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lars kepler
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Tradução de
Alexandre Martins
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Copyright © 2010 Lars Kepler
Originalmente publicado por Albert Bonniers Förlag, Estocolmo, Suécia. Publicado
mediante acordo com Bonnier Group Agency, Estocolmo, Suécia.
título original em sueco
PAGANINIKONTRAKTET
Traduzido da edição britânica (The Nightmare)
revisão
Bruno Fiuza
Clarissa Peixoto
diagramação
Ilustrarte Design e Produção Editorial
cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj
K46p Kepler, Lars
O pesadelo / Lars Kepler ; tradução de Alexandre Martins.
— Rio de Janeiro : Intrínseca, 2012.
448p. : 23 cm
Tradução da versão em inglês: The Nightmare
ISBN 978-85-8057-253-7
1. Ficção sueca. I. Martins, Alexandre. II. Título.
12-6189.
CDD: 839.73
CDU: 821.113.6-3
[2012]
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
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À luz da longa noite de junho, em águas paradas, um grande barco de passeio
é encontrado à deriva na baía de Jungfrufjärden, ao sul do arquipélago de Estocolmo. A água, de uma serena cor azul-acinzentada, move-se tão suavemente
quanto a neblina. O velho remando em seu bote de madeira chama algumas
vezes, embora esteja começando a desconfiar de que ninguém irá responder.
Está observando o iate desde a praia há quase uma hora, enquanto ele desliza
para trás, empurrado para longe da terra pela corrente preguiçosa.
O homem conduz o bote até ele se chocar contra a embarcação maior. Recolhendo os remos e se amarrando à plataforma de popa, ele sobe a escada de
madeira e passa por cima da balaustrada. Não há nada à vista ali, a não ser uma
espreguiçadeira rosa. O velho fica imóvel, escutando. Não tendo ouvido barulho
algum, abre a porta de vidro e entra no salão. Uma luz cinzenta atravessa as
grandes janelas acima do piso de teca polida e o sofá de lona azul-escura. Ele
continua a descer a escada íngreme, revestida de mais madeira envernizada.
Passa por uma cozinha escura, um banheiro, entra na grande cabine. Janelas
pequenas perto do teto mal fornecem luz para revelar uma cama de casal triangular. Perto da cabeceira, uma jovem de jaqueta jeans está sentada flacidamente
na beirada da cama. As coxas estão afastadas; uma das mãos apoiada em um travesseiro rosa. Ela olha o velho nos olhos com uma expressão confusa e assustada.
O homem precisa de um instante para se dar conta de que a mulher está
morta.
Seus cabelos pretos compridos têm um prendedor em forma de pomba branca: a pomba da paz.
Quando o velho vai na sua direção e toca a bochecha, a cabeça cai para a
frente e um pequeno fio de água escorre de seus lábios e desce pelo queixo.
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pressentimento
Um arrepio percorre a coluna de Penelope Fernandez. Seu coração acelera e
ela lança um olhar por sobre o ombro. Talvez tenha um pressentimento do que
irá acontecer à medida que o dia avança.
A despeito do calor do estúdio de televisão, o rosto de Penelope parece gelado. Talvez a sensação seja resquício do tempo passado na maquiagem, quando
a fria almofada de pó foi pressionada contra sua pele e o prendedor de cabelos
de pomba da paz foi retirado para que pudessem esfregar a musse que faria seus
cabelos caírem em cachos ondulados.
Penelope Fernandez é porta-voz da Sociedade Sueca para a Paz e a Reconciliação. Está sendo conduzida em silêncio à redação e seu lugar iluminado em
frente a Pontus Salman, CEO da fabricante de armamentos Silencia Defense
AB. A âncora Stefanie von Sydow apresenta uma matéria sobre todas as demissões
resultantes da compra da Bofors Corporation pela britânica BAE Systems Limited. Então se vira para Penelope.
— Penelope Fernandez, em vários debates públicos você criticou a condução das exportações suecas de armas. Na verdade, você recentemente as comparou ao escândalo francês do Angolagate. Nesse caso, políticos e empresários em
altos cargos foram processados por suborno e contrabando de armas e receberam longas penas de prisão. Mas e aqui na Suécia? Ainda não vimos isso, não é
mesmo?
— Bem, pode-se interpretar isso de duas formas — responde Penelope. —
Ou nossos políticos se comportam de modo diferente ou nosso sistema judiciário funciona de forma diferente.
— Você sabe muito bem — começa Pontus Salman — que temos uma longa tradição de...
— Segundo a lei sueca — diz Penelope —, toda fabricação e exportação de
armamento é ilegal.
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— Você está errada, claro — diz Salman.
— Parágrafos 3o e 6o da Lei de Equipamento Militar — indica Penelope
com precisão.
— Nós na Silencia Defense já conseguimos uma decisão preliminar positiva.
— Salman sorri.
— Do contrário este seria um caso de grandes crimes com armas, e...
— Mas nós temos permissão.
— Não se esqueça da justificativa para armamentos...
— Só um momento, Penelope.
Stefanie von Sydow a interrompe e anui para Pontus Salman, que erguera a
mão para indicar que não havia terminado.
— Todas as transações comerciais são analisadas antecipadamente — explica ele. — Ou diretamente pelo governo ou pela Inspetoria Nacional de Produtos Estratégicos, se é que você sabe o que é isso.
— A França tem regulamentação similar — diz Penelope. — Ainda assim, um
equipamento militar no valor de 8 milhões de coroas suecas chegou a Angola, a
despeito do embargo de armas da ONU e apesar de uma proibição compulsória...
— Não estamos falando sobre a França, estamos falando sobre a Suécia.
— Sei que as pessoas querem manter seus empregos, mas ainda gostaria de
saber como você explica a exportação de enormes volumes de munição para o
Quênia. É um país que...
— Você não tem prova disso — diz ele. — Nada. Nenhuma migalha. Ou tem?
— Infelizmente, não posso...
— Você não tem provas concretas? — pergunta Stefanie von Sydow.
— Não, mas eu...
— Então acho que eu mereço um pedido de desculpas — diz Pontus Salman.
Penelope o encara, a raiva e a frustração em ebulição, mas faz força para se
controlar, e fica em silêncio. Pontus Salman sorri satisfeito e começa a falar
sobre a fábrica da Silencia Defense em Trollhättan. Duzentos novos postos de
trabalho criados quando foram autorizados a começar a produção, diz. Ele fala
de forma lenta e em detalhes, gastando habilidosamente o tempo que sobra
para sua adversária.
Enquanto escuta, Penelope se esforça para colocar de lado a raiva se concentrando em outras questões. Em breve, muito em breve, ela e Björn estarão a
bordo do barco dele. Arrumarão a cama triangular na cabine da proa e encherão a geladeira e o pequeno freezer com petiscos. Ela imagina os copos gelados
de schnapps e a travessa de arenque marinado, arenque com mostarda, arenque
em conserva, batatas frescas, ovos cozidos e bolachas. Após ancorarem em uma
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ilhota do arquipélago, colocarão a mesa na popa e ficarão ali comendo ao sol da
tarde por horas.
Penelope Fernandez sai do prédio da televisão sueca e se encaminha para
Valhallavägen. Ela perdeu duas horas esperando por um espaço em outro programa matinal antes de o produtor finalmente dizer que ela havia sido derrubada por uma matéria com dicas rápidas de como perder barriga para o verão. A
distância, nos campos de Gärdet, ela consegue identificar as lonas coloridas do
Circus Maximus e as pequenas formas de dois elefantes, provavelmente muito
grandes. Um deles ergue a tromba no ar.
Penelope tem apenas 24 anos. Usa os cabelos negros e encaracolados na altura dos ombros, e um pequeno crucifixo, presente de crisma, cintila em uma
corrente de prata no pescoço. Sua pele tem a suave cor dourada de azeite de
oliva ou mel, como disse um garoto no ensino médio em um trabalho em que
os alunos deviam descrever uns aos outros. Seus olhos são grandes e sérios. Mais
de uma vez já disseram que ela era parecida com Sophia Loren.
Penelope pega o celular para avisar a Björn que está a caminho. Pegará o
metrô na estação de Karlaplan.
— Penny? Alguma coisa errada? — indaga Björn, soando apressado.
— Não. Por que a pergunta?
— Tudo pronto. Deixei uma mensagem na sua secretária eletrônica. Só
falta você.
— Então nada de estresse, certo?
Enquanto Penelope desce pela escada rolante íngreme até a plataforma,
seu coração começa a bater desconfortavelmente. Ela fecha os olhos. A escada rolante afunda, parecendo encolher enquanto o ar se torna cada vez
mais frio.
Penelope Fernandez é de La Libertad, uma das maiores províncias de El
Salvador. Nasceu em uma cela, a mãe amparada por 15 prisioneiras tentando
fazer da melhor forma possível o papel de parteiras. Havia uma guerra civil, e
Claudia Fernandez, médica e ativista, acabara na infame prisão do regime por
estimular a população indígena a criar sindicatos.
Penelope abre os olhos ao chegar à plataforma. Sua sensação de claustrofobia passou. Ela pensa em Björn esperando por ela no iate clube de Långholmen.
Ela adora nadar nua quando saem de barco, pulando diretamente na água sem
ver nada além de mar e céu.
Ela embarca no trem, que avança, balançando suavemente até sair do túnel
ao chegar à estação de Gamla Stan, e raios de sol penetram pelas janelas.
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Assim como a mãe, Penelope é uma ativista, e sua apaixonada oposição à
guerra e à violência a levou a fazer mestrado em ciência política na Universidade de Uppsala, com especialização em paz e solução de conflitos. Trabalhou
para a organização beneficente francesa Action Contre la Faim em Darfur, sul
do Sudão, com Jane Oduya, e seu artigo para o Dagens Nyheter sobre as mulheres no campo de refugiados e sua luta para voltar à normalidade após cada ataque lhe trouxe grande reconhecimento. Dois anos antes ela sucedera Frida
Blom como porta-voz da Sociedade Sueca para a Paz e a Reconciliação.
Saindo do subterrâneo na estação Hornstull, Penelope de novo se sente desconfortável, extremamente desconfortável, sem saber por quê. Ela desce a ladeira correndo até Söder Mälarstrand, depois cruza rapidamente a ponte para
Långholmen e segue a estrada até o pequeno porto. A poeira que levanta do
cascalho cria uma névoa no ar parado.
O barco de Björn está à sombra, bem abaixo da ponte Väster. O movimento
da água cria uma rede de luz nas vigas cinzentas.
Penelope vê Björn na popa. Está de pé com seu chapéu de cowboy, imóvel,
ombros caídos, os braços ao redor do corpo. Ela enfia dois dedos na boca e assovia, assustando-o, e ele se vira na sua direção com um rosto tomado de medo.
E o medo ainda está lá em seus olhos quando ela desce as escadas para o cais.
— O que há de errado? — pergunta.
— Nada — responde ele, ajeitando o chapéu e tentando sorrir.
Quando se abraçam, ela percebe que as mãos dele estão geladas e as costas
da camisa, encharcadas.
— Você está coberto de suor.
Björn evita os olhos dela.
— Foi cansativo arrumar tudo para sair.
— Trouxe minha bolsa?
Ele anui e aponta para a cabine. O barco balança suavemente sob seus pés,
e o ar cheira a madeira laqueada e plástico aquecido pelo sol.
— Alô? Alguém em casa? — pergunta ela, dando um tapinha na cabeça
dele.
Os olhos azul-claros de Björn são infantis e seus cabelos cor de palha caem
em dreadlocks apertados sob o chapéu.
— Estou aqui — responde ele. Mas olha para longe
— No que está pensando? Sua cabeça está onde?
— Só que finalmente estamos partindo juntos — responde enquanto passa
os braços pela cintura dela. — E que vamos fazer sexo na natureza.
Ele enterra os lábios nos cabelos dela.
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— Então é com isso que você está sonhando — sussurra ela.
— Sim.
Ela ri da sinceridade dele.
— A maioria das pessoas... Mulheres, quero dizer, acham sexo a céu aberto
um tanto supervalorizado — diz. — Deitar no chão entre formigas, pedras e...
— Não. Não. É mais como nadar nua — insiste ele.
— Você vai ter de me convencer — provoca.
— Farei isso, certo.
— Como?
Ela está rindo quando ouve o telefone tocar em sua bolsa de pano.
Björn fica rígido ao ouvir o toque. Penelope olha para a tela.
— É Viola — diz, tranquilizadora, antes de atender. — Hola, mana.
Um carro buzina do outro lado enquanto a irmã grita na direção dele.
— Maldito idiota.
— Viola, o que está acontecendo?
— Acabou. Larguei Sergei.
— De novo, não! — diz Penelope.
— De novo — diz Viola, perceptivelmente deprimida.
— Lamento — diz Penelope. — Dá para perceber que está chateada.
— Bom, ficarei bem, acho. Mas... Mamãe disse que você ia sair de barco e
eu pensei... Que talvez eu também pudesse ir, se você não se importar.
Um momento de silêncio.
— Claro, você também pode vir — diz Penelope, embora consiga escutar a
própria falta de entusiasmo. — Björn e eu precisamos de algum tempo sozinhos, mas...
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