O desejo do analista e o laço social
Fuad Kyrillos Neto
Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
de São João Del Rei (UFSJ). [email protected] Endereço: UFSJ - Campus Dom
Bosco. Praça Dom Helvécio 74 sala 2.17 A São João Del Rei – MG.
O conceito lacaniano “desejo do psicanalista” surgiu com a finalidade de fazer
contraponto ao desejo do Outro. No desenvolvimento do ensino lacaniano ele surge
como vazio de significação, tal qual o objeto a, e por isso mesmo sem identidade ou
identificação possível. Na clínica, sua função primordial é tornar presente o objeto a no
campo do Outro, daí sua proximidade com a angústia, localizada entre o gozo e o
desejo. Esse conceito foi cunhado como uma forma de marcar uma divergência ao
modelo de cura padrão adotado pela International Psychoanalytical Association (IPA).
A proposta lacaniana com o conceito “desejo do psicanalista” propõe o
esvaziamento de qualquer substância deste lugar. O desejo do psicanalista é, portanto, o
lugar no qual a falta de qualquer substância identificatória fará uma intervenção sobre o
sujeito.
As referências acerca do desejo do psicanalista são profusas no ensino de Lacan.
No Seminário 6, dedicado ao desejo e sua interpretação, Lacan relembra aos presentes a
essência vazia do desejo que jamais deverá ser desconsiderado pelos psicanalistas.
Presentificar o vazio é, portanto, uma função inerente e necessária ao desejo do
psicanalista.
No seminário 7 (1959-1960/1991) Lacan localiza o desejo do psicanalista para
além do desejo do Outro, pelo fato dele vir acompanhado do qualificativo “advertido”.
Portanto, no ensino de Lacan o desejo do psicanalista é diferente do desejo do Outro.
Ele atribui assim, para o analista, uma posição de objeto diferenciada ao lugar / desejo
do analista.
O adjetivo “advertido” como característico do desejo do psicanalista deve ser
apreciado como resultado do que restou da destituição subjetiva promovida em sua
análise pessoal. Podemos, ainda, pensá-lo “advertido” porque está atravessado pelos
enganos e desenganos relativos à transferência e a seu alicerce, o sujeito suposto saber.
Diz Lacan:
A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo em que
conduz seu paciente, em torno do que o movimento gira. Ele deve
saber, a ele deve ser transmitido, e numa experiência, aquilo de que
ele retorna. Este ponto pivô é o que eu designo – de um modo que,
penso, lhes parece já suficientemente motivado, mas que, espero, a
medida do nosso progresso, lhes parecerá cada vez mais claro, cada
vez mais necessário – é o que designo pelo nome de desejo do
psicanalista. (LACAN, 1964/1998, p.218-219)
O desejo do psicanalista está situado como o eixo principal em torno do qual o
psicanalista opera a ética da psicanálise. Assim, se introduz a perspectiva de situar o
desejo do psicanalista como um instrumento central na direção da cura, no que diz
respeito à escolha possível que se abre para o analisando.
No seminário sobre a ética, Lacan (1959-1960/1991) menciona o desejo do
analista sem tecer fartos comentários. Ele afirma que aquilo que o psicanalista tem a dar
numa sessão de análise é seu desejo, um desejo prevenido, e questiona: “O que pode ser
um tal desejo, propriamente falando, o desejo do analista?” (p. 360). Nesse seminário
ele responde de modo negativo: “Desde já, podemos, no entanto dizer o que ele não
pode ser. Ele não pode desejar o impossível” (p.360). Cecchia (2012) considera que esse
impossível a que ele se refere é a redução a zero da distância entre psicanalista e
analisante. Lacan não cita, mas provavelmente está fazendo uma crítica a Bouvet (Les
variations de la technique - distance et variations, 1958), que utiliza bastante tal noção
de distância. Essa ideia de redução de distância traz consigo a consideração de que a
experiência psicanalítica é essencialmente dual, quer dizer, limitada à presença da
pessoa do analisante e do analista e na qual o último serve como modelo para o
primeiro. Mais do que um simples engodo, essa concepção de experiência psicanalítica
é, segundo Lacan, patética em sua ingenuidade. A noção de desejo do psicanalista não é,
portanto, fundamentada na ideia de dualidade e de redução a zero da distância entre as
duas pessoas presentes na sessão de análise.
Lacan encerra este seminário sobre a premissa ética da psicanálise com a
seguinte questão: “Agiste em conformidade com seu desejo?” Para nós, é indispensável
à afirmação lacaniana de que a psicanálise não deve, jamais, trabalhar a favor do serviço
dos bens1 e de sua “racionalização moralizante”. Diz ele:
A ética da psicanálise não é uma especulação que incide sobre a
ordenação, a arrumação do que chamam serviço dos bens. Ela implica,
propriamente falando, a dimensão do que se chama de experiência
trágica da vida. É na dimensão trágica que as ações se inscrevem, e
que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores. (LACAN,
1959-1960/ 1991, p. 376)
1
O “serviço dos bens” designados por Lacan são: os bens privados, os bens da família, os bens da casa,
os bens do ofício, os bens da profissão e os bens da cidade.
É por meio do desejo do psicanalista, tomado aqui em sua proximidade com a
experiência trágica da vida, que surge às condições de possibilidade de uma ética
sustentada no desejo, e não em qualquer promessa ou ideal de felicidade, de cura ou de
bem estar.
Lacan, na proposição de outubro formaliza o desejo do analista como um luto,
quer dizer, em termos da operação de privação. Fica claro que não se alude ao falo, que
é, precisamente, a medida comum, comensurável. Esses objetos supostamente
comensuráveis, que carecem de medida comum valem para cada sujeito em particular,
indicam a inexistência de um bem supremo, universalizante, comum a todos os sujeitos.
Não existe, no nível do objeto, nenhuma fusão possível entre o psicanalista e seu
paciente.
Rabinovich (2000) ressalta que se tornar objeto causa do desejo só pode
acontecer com o sujeito quando o Outro o perdeu. O sujeito só se constitui como objeto
causa quando foi perdido. Portanto, só na perda o objeto se relaciona com a função de
causa em relação ao desejo. A identificação especular exclui a falta, exclui a castração,
mascara a perda constitutiva do desejo. A partir da identificação especular não é
possível aceder à posição do sujeito como causa do desejo, nem há modo de responder
ao enigma do desejo do Outro.
No seminário dedicado a transferência, temos o esboço de algumas coordenadas
que o analista deve alcançar para ocupar o lugar que lhe é próprio. Esse lugar que o
pertence faz a essência de um trabalho que se manterá constante, e que é definido pela
capacidade de alcançar pura e simplesmente a possibilidade de oferecer o vazio para o
desejo do paciente para que se realize como o desejo do Outro.
Neste seminário Lacan examina a complexidade da transferência localizando-a
para além do analisando, para tanto, recorre mais uma vez ao desejo do psicanalista:
Trata-se, portanto, para nós, de tentar articular e situar o que deve ser,
o que é fundamentalmente o desejo do analista – e isso, segundo
balizas que podem, a partir de uma topologia já esboçada, ser
designada como coordenadas do desejo, pois não podemos encontrar
nossas balizas idôneas referindo-nos as articulações da situação para o
terapeuta ou para o observador, e em nenhuma das noções de situação
tais como nos são expostas numa fenomenologia que se elabora à
nossa volta. Pois o desejo do analista não é tal que possa se bastar por
uma referência diádica. Não é a relação com o paciente que pode, por
uma série de eliminações e excursões, nos dar a sua chave. Trata-se de
algo mais intrapessoal. (LACAN, 1960-1961/ 1992, p. 199)
Optamos por utilizar essa longa citação por nos remeter simultaneamente as dimensões
do amor e do saber, cruciais no ensino de Lacan para abordar o desejo do psicanalista. O
diálogo platônico consiste na narrativa feita por Apolodoro sobre o banquete oferecido por
Agáton aos seus amigos em comemoração a mais um de seus sucessos teatrais. Durante o
evento, todos concordam em fazer um elogio a respeito de Eros, deus do amor. De todos os
discursos sobre a natureza e as qualidades do amor, interessou mais a Lacan o discurso e
as ações de Sócrates. Além de se contrapor à ideia do amor como completude, Sócrates
evidencia sua dimensão da falta. Os objetos do desejo e do amor são, segundo o
filósofo, os objetos que faltam ao sujeito. E o que essencialmente falta ao sujeito? O
bem e a felicidade: “desejo do bem e da felicidade, em geral, eis no que para todos
consiste o grande e astucioso Eros” (Platão IV a.c./2002, p.147). Aí também é possível
observar uma aproximação com o que Lacan diz acerca da falta-a-ser do desejo em suas
relações com a ética e com a moral. A própria falta de objeto provoca o movimento do
desejo em torno desse bem. (CECCHIA, 2012)
Outro ponto destacado por Lacan no discurso de Sócrates: a posição de quem
ama tem maior valor moral do que a de quem é amado. Do ponto de vista moral, as
posições do amante e do amado são correspondentes, respectivamente, à virtude e ao
vício. A posição do amado é como a de Narciso, ou seja, é a de quem se prende ao
prazer alienante do engrandecimento do eu. A posição do amante, por sua vez, é similar
à do sujeito, sempre imbricado na metonímia do desejo. O amante não cede de seu
desejo, pelo contrário, faz as maiores loucuras por ele. A posição do amante é, assim,
mais coerente com o imperativo categórico psicanalítico, o Wo Es war, Soll Ich werden.
Ademais, Sócrates não só afirma, em seu discurso, que é um equívoco considerar Eros
como objeto amado ao invés do sujeito que ama, como o demonstra em ato após a
chegada de Alcibíades. Este, apaixonado por Sócrates, queixa-se abertamente de nunca
ter sido amado por ele, tentando de várias formas denunciar sua crueldade por não tê-lo
amado. Ao denunciá-lo, entretanto, elogia suas qualidades, principalmente a beleza
encantadora de seu saber e de suas virtudes escondidas pela feiura de seu corpo.
Alcibíades diz que Sócrates é semelhante aos Silenos, semideuses muito feios
geralmente representados em caixas e armários que escondiam belos e preciosos
objetos. Como Sócrates responde à demanda de amor de Alcibíades? Não se lisonjeando
com os elogios dele e pedindo para fazer um elogio a Agáton, mostrando que prefere a
posição de amante a de amado. E além de se mostrar na condição de amante, Sócrates
procura sempre direcionar aquele que o ama à verdade. Ele recusa, desta maneira, ser
colocado como ideal para o outro e leva o sujeito que o ama a alguma verdade vinculada
a um saber. Ele privilegia, assim, a verdade e o saber em detrimento do ideal no qual é
colocado, procedendo uma transferência do amor a si ao amor ao outro e do amor ao
outro ao amor ao saber.
Tais considerações nos permitem visualizar de que modo a narrativa do
Banquete contribui para elaboração do que vem a ser o desejo do psicanalista. Um dos
pontos diz respeito ao segredo de Sócrates, àquilo que ele possui veladamente, àquele
bem precioso que, tal como nos Silenos, fica oculto pela aparência de feiura e
ignorância: o agalma Palavra grega para designar os objetos preciosos escondidos nos
Silenos.
Se voltei a partir da experiência socrática, foi essencialmente para
situá-los em torno do seguinte, que é dado desde o início do
estabelecimento da experiência analítica – somos interrogados como
quem sabe, e mesmo como portadores de um segredo, mas que não é o
segredo de todos, um segredo único. (...) o segredo que somos
supostos deter é mais precioso do que tudo aquilo que se ignora e que
se continuará a ignorar, na medida em que este segredo vai responder
pela parcialidade do que se sabe. (Lacan, 1960-1961/1992, pp. 261262)
No Seminário sobre a identificação, Lacan examina as estreitas relações entre a
identificação e a angústia. A angústia é tida como efeito da presença do objeto a no
campo do Outro. Essa presença abala as identificações do sujeito aos ideais do Outro/eu.
Lacan critica a via identificatória como meio de se obter o final de análise. Isso seria um
sério desvio no campo ético da psicanálise. O desejo do psicanalista deve ser presumido,
nunca definido, e por isso mesmo pode acontecer no lugar o Outro (LACAN 19601961/1992).
Portanto, o que se deve instalar na psicanálise, é o desejo do paciente, como o
desejo de seu Outro, o da historicidade própria do paciente, o das circunstancias
próprias de sua vida. Não se trata de colocar em jogo o desejo de um Outro
generalizado, razão que invalida por si só, o desejo entendido como desejo de
reconhecimento do Outro.
Podemos deduzir que, na direção do tratamento, a identificação opera como
uma defesa contra a angústia, que deveria sofrer oposição do analista. A angústia tem,
com o desejo do psicanalista, uma grande proximidade topológica, marcada pela
presença o objeto a no campo do Outro.
No seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan insiste
na importância do desejo e da transferência (como demanda de amor dirigida ao analista)
naquilo que concerne à função essencial do desejo do psicanalista. Diz Lacan:
Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também partir
ao encontro do desejo inconsciente. É por isso que eu digo que o desejo
é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento
força, a inércia, que há por traz do que se formula primeiro, no discurso
do paciente, como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto
comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu designo
aqui como a função essencial. (LACAN,1964/1998, p.222-223)
No Seminário dedicado a angústia Lacan (1962-1963/2005) afirma que ceder a
identificação ao eu do psicanalista na finalização do tratamento acarreta deixar o objeto
a intacto. Seria domar a transferência por intermédio da identificação, sem, contudo,
promover sua a sua destituição, ou seja, a destituição do sujeito suposto saber.
Lacan, em sua proposição nos aponta que a passagem de psicanalisante para
psicanalista é tributária do ato do psicanalista (versão ampliada do desejo do
psicanalista). O desejo do psicanalista é, portanto, o que opera na psicanálise para além
da terapêutica e para muito além da identificação, compondo, portanto, a formação do
psicanalista (LACAN, 1967/2003).
Em Televisão (1974/1993) temos uma aproximação da figura do analista com o
Santo. Diz Lacan:
Um santo, para que me compreendam, não faz caridade. Antes de
mais nada ele banca o dejeto: faz descaridade. Isso para realizar o que
a estrutura impõe, ou seja, permitir ao sujeito, ao sujeito do
inconsciente, tomá-lo por causa de seu desejo (LACAN 1974/1993,
p.32-33)
Descaridade é um neologismo de Lacan formado pela condensação de déchet
(dejeto) com charité (caridade). Dessa forma, vemos surgir à dimensão da negação ou
da ação contrária de fazer caridade pelo sufixo dé (dês). Assim, temos a seguinte
proposição: O analista é um santo que faz descaridade bancando o dejeto. Para Lacan “o
santo é o rebotalho do gozo” (LACAN 1974/1993, p.33). Porém, temos uma
advertência lacaniana quanto ao gozo do santo. Ele considera que quando o santo goza,
ele “não está mais operando.”
Politicamente, o santo é indiferente a justiça distributiva, mas não podemos, por
isso, considerá-lo desprovido de moral. Lacan (1974/1993) nos adverte que a posição de
santo pode se constituir numa saída para o discurso capitalista.
Tais considerações acerca do desejo do analista acabam por corroborar os
princípios presentes nessa ética do desejo resultante da posição do psicanalista.
Podemos salientar três princípios, quais sejam: o psicanalista não deve ceder de seu
desejo; deve responsabilizar-se por se autorizar a ocupar essa posição e deve não se
esquecer de sua própria experiência de análise, da qual se espera que ele tenha chegado
à separação de seus próprios ideais e fantasias.
A psicanálise é a interpretação das raízes significantes daquilo que constitui a
verdade do destino do homem. Tal fato compromete mais do que nunca aqueles que
assumem o lugar de analista, por que os coloca num lugar inédito, o de se prestar a uma
operação graças à qual alguém possa recobrar uma margem, mesmo que seja mínima,
de liberdade. É uma liberdade não generalizável, não submetida a nenhum imperativo
ou lei universal, que não é valida para todos os homens e todas as mulheres, mas
somente para um sujeito particular.
Esse percurso pelo termo “desejo do analista” nos mostra o esforço lacaniano
para que a formação de analistas propicie novos modos de operar a psicanálise com o
intuito de preservar seu caráter de verdade libertadora, na medida em que permite ao
sujeito definir se aceita ou não a causação pelo desejo do Outro. Isso implica um além
dos ideais, por que o sujeito é como causa do desejo do Outro não pode, de nenhum
modo, ser confundido com o que o sujeito é do ponto de vista dos ideais do Outro, isto
é, de uma forma de sua demanda.
Referências
CHECCHIA, M.A. Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan.
Tese de doutorado. Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 2012.
LACAN, J. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
___. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (1967). Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
___. O Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
___O Seminário 10. A angústia. (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
___ O Seminário 8: A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
___. O Seminário 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991.
_____. A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
PLATÃO (IV a.c.). Banquete. São Paulo: Martin Claret,2002.
RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
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