A resistência como potência
Arthur Figer
O fenômeno da resistência na teoria e clínica psicanalíticas é marcado por
diferentes conceitos e interpretações, muitas vezes ambíguos e contraditórios.
Ao mesmo tempo em que encobre, a resistência também revela; da mesma
forma que pode obstruir e destruir um tratamento, é vista como essencial e
indispensável para a viabilidade de uma análise.
Freud utilizava, inicialmente, o termo “resistência” para designar um
tipo de movimento do eu contra uma possível rememoração de materiais
reprimidos. A entrada destes materiais reprimidos (inconscientes) na
consciência representaria uma ameaça à “estabilidade” do aparelho psíquico,
não à toa que foram outrora recalcados. Uma vez ameaçado, o eu trata, então,
de defender-se, fazendo uso dos mais diversos subterfúgios para evitar o
retorno deste perigoso material: o temível “retorno do recalcado”. Não por
acaso, o fenômeno da resistência apresenta-se na clínica psicanalítica das
mais diversas formas, desde uma falta ou atraso até um elogio ao sapato do
analista.
A partir do momento em que o tratamento psicanalítico envolve,
necessariamente,
algum
tipo
de
rememoração,
o
termo
resistência
rapidamente passou a representar todos os tipos de obstáculos que surgem
durante o tratamento e interrompem o seu progresso. “Tudo o que interrompe o
progresso do trabalho analítico é uma resistência.”, afirmava Freud em sua
obra-prima “A Interpretação dos Sonhos” (1900/1996:548). A resistência se
manifestaria, portanto, em todas as formas pelas quais o analisante quebra a
“regra fundamental” da psicanálise, ou seja, de dizer tudo o que lhe vem à
cabeça. Alguns anos depois, em 1905, Freud dá como uma das razões de seu
abandono da técnica da hipnose o fato desta não permitir “identificar a
resistência com que os doentes se aferram à sua doença”; e complementa “é
Texto redigido para apresentação na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), Jornada Comemorativa dos
100 anos de Iracy Doyle, em 05 de agosto de 2011.
somente a resistência que nos possibilita compreender seu comportamento na
vida”. Vemos já aí referências à positividade da resistência – não se resiste
apenas a alguma coisa, mas se resiste basicamente a abrir mão de algo, se
resiste porque se insiste no apego ao sintoma.
Alguns analistas pós-freudianos, porém, mais especificamente aqueles
da chamada psicologia do ego, talvez dando mais ênfase à negatividade do
que à positividade da resistência, passaram a encará-la como uma verdadeira
inimiga da análise, que deveria ser atacada e eliminada, para o bom
andamento do tratamento. Vencer as resistências do analisante tornou-se o
objetivo número um de muitos analistas da época e, por incrível que pareça,
também dos dias atuais. Esta luta contra a resistência, invariavelmente, incorre
em ainda mais resistência. Quanto mais uso o analista fizer de seu “suposto”
saber-poder para interpretar e remover as resistências, mais fortes estas
resistências se tornarão. Desta forma, a resistência do eu contra o retorno do
material recalcado, típica em todo processo analítico, passa a ser acrescida
desta outra fonte de resistência: a resistência ao saber-poder do analista tipo
“Dr. Sabe-tudo”. Esta resistência, legítima e positiva, diga-se de passagem,
revela um fenômeno que não é exclusividade do setting analítico, mas está
presente em todo tipo de sociedade e relações humanas: para todo poder há
de haver alguma forma resistência; quanto mais poder, diria, mais resistência.
As revoltas populares que explodiram recentemente em países do Oriente
Médio e África, contra os regimes totalitários, servem para ilustrar esta ideia.
Desta maneira, nos aproximamos daquilo que Lacan chamou de “resistência do
analista”, ou seja, o analista como causa da resistência. Ouçamos Lacan: “Não
há na análise outra resistência senão a do analista" (Escritos, p. 377). Esta
controversa afirmação do mestre francês pode ser entendida, pelo menos, a
partir de duas perspectivas, conforme segue: 1) a resistência do analisante
somente ocasionará a obstrução do processo analítico quando esta
corresponder ou evocar alguma resistência do próprio analista, ou seja, quando
o analista estiver implicado na resistência do analisante e; 2) é o analista quem
provoca a resistência do analisante, exercendo seu saber-poder sobre o
analisante de forma intrusiva, intempestiva, violenta e cruel, pretendendo,
arrogantemente, saber mais da vida do sujeito que o próprio sujeito.
Resistência, ainda segundo Lacan, significa simplesmente que o
analisante não pode mover-se mais depressa (Seminário 2, p. 228). Ou seja,
não forçando, não invadindo, não apressando e não ameaçando o analisante,
possibilitaria uma redução da resistência ao seu nível “mínimo irredutível”.
Resiste-se ao invasor, ao opressor, logo, se não há invasores, nem opressores,
não há resistência, ou melhor, há um “mínimo irredutível de resistência”. Este
“mínimo irredutível de resistência” é visto como essencial por Lacan, uma vez
que seria uma expressão legítima do desejo do sujeito de manter sua condição
de sujeito desejante. Por esta razão, este resíduo de resistência não deveria
ser alvo de interpretação, muito menos de eliminação, por parte do analista,
uma vez que não há possibilidade de superá-lo, nem removê-lo. A simples
tentativa, neste sentido, poderia provocar consequencias catastróficas para a
análise, muitas vezes com requintes de violência e crueldade, pois o sujeito,
legitimamente, poderia se sentir invadido. Apesar da recomendação lacaniana
para que o analista não busque remover toda a resistência, ele certamente
pode minimizá-la, ou, pelo menos, evitar exacerbá-la.
Para Lacan, a resistência seria estrutural e inerente ao processo
analítico. Posto de outra maneira, não há análise sem resistência e o papel do
analista no manejo da resistência é fundamental e determinante para o
sucesso de uma análise. Dependendo de seus atos e intervenções, e da
tempestividade ou intempestividade dos mesmos, o analista pode minimizar ou
maximizar a resistência. Jamais eliminá-la por completo. Após reduzir a
resistência ao seu mínimo, o analista terá de se haver com este resíduo de
resistência, que como vimos, para Lacan, é essencial. Essencial, talvez, pelo
fato deste resíduo irredutível de resistência representar aquilo que marca uma
diferença, exatamente a diferença entre psicanálise e sugestão. A psicanálise
valoriza e respeita o direito do analisante de resistir à sugestão e, portanto,
valoriza esta resistência. Trabalha-se, assim, não contra a resistência, mas
com a resistência, já que ela é presença constante no processo analítico.
Trabalha-se com o sujeito e, claro, com sua divisão.
A resistência, portanto, pode ser vista sob o aspecto de uma potência.
Potência esta que teria, ao mesmo tempo, um viés “destruidor” (negativo), na
medida em que pode facilmente acabar com uma análise, mas também um
aspecto “criativo” (positivo), uma vez que em seu nível mínimo irredutível, seria
responsável
por
sustentar
uma
análise
e,
consequentemente,
novas
possibilidades de subjetivação. Para ilustrar e concluir lembremos que: 1) a
resistência do ar é o que permite ao avião voar; 2) a resistência da água o que
possibilita ao navio navegar e, finalmente, 3) a resistência das cordas do violão
torna possível a melodia. O segredo está na afinação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, S. Obras Psicológicas Completas. Edição Standard Brasileira. 3ª
Edição. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
__________. (1900). “A Interpretação dos sonhos”. Vol. V.
__________. (1905). “Sobre a psicoterapia”. Vol. VII.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, Jacques. Seminário 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Rio, 05 de agosto de 2011.
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