TEORIA JURíDICA
DO SALÁRIO
I
i
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
Professor Titular de Direito do Trabalho da USP
,
TEORIA JURIDICA
,
DO SALARIO
2ª edição
:«««««
EDITORA
L'G
SÃO PAULO
:«««««
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nascimento, Amauri Mascaro, 1932Teoria jurídica do salário / Amauri Mascaro Nascimento. - 2. ed. - São Paulo: LTr, 1997.
Bibliografia.
ISBN 85-7322-234-4
1. Direito do trabalho 2. Salários I. Título.
96-5187
CDU-34:331.2
índices para catálogo sistemático:
1. Salários: Direito do trabalho 34:331.2
(Cód. 1447.3)
© To dos os d i r e i tos r e s c r v a dos
EDITORA LTDA.
Rua Apa, 165 - CEP 01201-904 - Fone (01I) 826-2788 - Fax (Oll) 826-9180
São Paulo, SP - Brasil
1997
APRESENTAÇÃO
Na edição anterior fiz as seguintes observações a título
de apresentação.
Os estudos que me permitiram desenvolver a teoria jurídica do salário foram iniciados em 1968 e publicados no livro
"O Salário", o primeiro que dediquei ao tema, sob a forma de
repertório de casuística resumindo questões que foram respondidas com base nos textos de lei, da doutrina e da jurisprudência.
Pelas suas características e diante dos objetivos que esse
primeiro trabalho visou, nele não houve nenhuma preocupação
crítica que agora foi possível.
Em 1975, em "O Salário no Direíto do Trabalho", tentei
imprimir ao estudo do tema um caráter de certo modo sistemático, mas que não se afastou muito das características de
obra destinada à compilação para permitir ao profissional dispor
de uma fonte de consulta onde encontrar alguns dados sobre
os diferentes aspectos jurídicos do salário.
Todavia, verifiquei, na ocasião, que a melhor forma de
abordar o tema não é o Manual como havia sido feito.
Assim, voltei ao método de 1968, enriquecido com experiéncia adquirida nos livros anteriores, publicando o terceiro livro
que recebeu o nome de "Manual de Salário" editado em 1984
e que mesclou a descrição casuística com argumentos de autoridade.
Todavia, sempre tentei conseguir dois objetivos que me
parecem prioritários, estudar o salário segundo uma visão crítica
e dogmática e depurá-lo de outros aspectos com que se confunde, como os de natureza econômica, que só podem ser bem
6
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
analisados, em toda a sua complexidade, pelos economistas e
não pelo jurista.
A teoria jurídica do salário, que pode ser ousada, tem a
sua razão de ser na medida em que procura examinar conceitos
de que o ordenamento jurídico se vale para a consecução dos
seus fins. O salário é tema central do Direito do Trabalho e
como tal merece toda a nossa atenção o que justifica esta obra
que deve ser recebida como uma tentativa, embora imperfeita,
de teorização de tão complexa questão.
Nesta edição os temas na mesma desenvolvidos foram
revistos e atualizados em função das alterações do nosso modelo de relações econômicas, antes fundado na idéia da indexação salarial, agora tendo como pressuposto a estabilização
da economia e seus reflexos nas relações de trabalho.
Espero merecer a atenção que foi dada às obras anteriores.
O Autor
íNDICE
Capítulo I
PRINCípIOS ÉTICOS DO SALÁRIO
1. Princípio do justo salário
A Origens da idéia do justo salário
BAtendimento das necessidades do trabalhador,
das possibilidades da empresa e das exigências
do bem comum
CSalário justo segundo Régis Jolivet....
DSalário segundo Johannes Messner
2. Princípio do salário vital..................................................
3. Princípio do salário suficiente
4. A função alimentar do salário
17
17
22
25
26
29
31
33
Capítulo 11
PRINCípIO DA IGUALDADE SALARIAL
1.
2.
3.
4.
A igualdade salarial na perspectiva internacional.........
A constitucionalização do princípio
A fundamentação jurídica
Brasil: requisitos legais da equiparação salarial...........
A Limitação a empregados da mesma empresa.
BRelações de emprego na mesma localidade...
CExigência de igual produtividade
DTrabalho com a mesma perfeição técnica........
EIdentidade de funções
FDiferença máxima de tempo de função............
36
37
38
41
41
43
46
47
48
51
8
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
G H I -
Inexistência de quadro de carreira....................
Concomitância dos requisitos.... ........ ......... .......
Simultaneidade da prestação dos serviços.......
53
54
54
Capítulo 111
O SALÁRIO NO PLANO INTERNACIONAL
1. A Organização Internacional do Trabalho e o Salário.
58
2. A União Européia e o salário
3. O salário e os países do Mercosul..............
59
60
Capítulo IV
A COMPLEXA ESTRUTURA DO SALÁRIO
1. Partes componentes do salário....
Bipartição ou tripartição?
A Salário-base........................................................
B C Complementos salariais ..
2. Estrutura bipartite da lei brasileira: salário e remuneração
62
62
63
68
70
Capítulo V
OBRIGAÇÕES SEM NATUREZA SALARIAL
1. Características..................................................................
2. Principais tipos......................
A Indenizações
Ressarcimentos de gastos para o exercício da
B atividade..............................................................
C Participação nos lucros ou resultados desvinculada do salário....................................................
Atribuições assistenciais: o terceiro setor.........
DE Complementações previdenciárias.....................
74
76
76
85
87
95
96
TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO
9
F-
Programas de alimentação e transporte aprovados pelo Ministério do Trabalho
G H -
Treinamento profissional..........
100
Abono de férias não excedente a vinte dias... 100
I -
Clubes de lazer
96
101
J -
Escola gratuita para filhos do empregado
101
L-
Seguros
102
M -
Produção rural na infra-estrutura do empregador 103
Capítulo VI
TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE SALÁRIO COMO
CONTRAPRESTAÇÃO DO TRABALHO
1. Introdução................
105
2. Teorias sobre o conceito de salário
A Contraprestação do trabalho..............................
BContraprestação da disponibilidade do trabalhador
CContraprestação do contrato de trabalho
OConjunto de percepções econômicas do trabalhador
107
107
EFG-
108
111
114
Novo conceito de salário................................... 117
A teoria do salário social................................... 123
Salário e encargos sociais
126
Capítulo VII
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO SALÁRIO
1. Introdução........................................................................ 128
2. A Constituição de 1988....
129
A -
Salário mínimo fixo ou variável e pisos salariais 129
B -
Irredutibilidade do salário
131
10
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
c-
Décimo terceiro salário
D-
Proteção do salário na forma da lei e contra a
sua retenção dolosa
134
E-
R.e~~neração
'"
133
superior para o serviço extraor-
dmano
135
F-
Remuneração das férias acrescida de um terço 135
G -
Adicional de remuneração para as atividades
penosas, insalubres ou perigosas
135
H-
Proibição de discriminação salarial....
136
Capítulo VIII
ESTIPULAÇÃO DO SALÁRIO
1. Formas de estipulação
137
A Ajuste expresso ou tácito................................... 137
BSalário fixo ou variável....................................... 138
2.
3.
4.
5.
6.
7.
C Salário-base e complementos salariais............. 142
Salário sob condição
143
Oportunidade de ganho
145
Proibição de salário complessivo
147
Determinação supletiva do salário
148
Salário e contrato de trabalho nulo
154
Plano de salários
159
Capítulo IX
O SALÁRIO COMO CRÉDITO DO EMPREGADO
1.
2.
3.
4.
5.
Incessibilidade do crédito salarial.................................
Impenhorabilidade do salário
Privilégio do crédito salarial..........
Prescritibilidade
Irredutibilidade
161
165
165
167
170
11
TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO
Capítulo X
O SALÁRIO COMO OBRIGAÇÃO DO EMPREGADOR
1.
2.
3.
4.
Periodicidade do pagamento
Comprovação do pagamento..........................................
Inalterabilidade da forma e do modo de pagamento..
Limitação dos descontos
A Necessidade de limitações.
8 Descontos legais e convencionais..........
C Adiantamentos, descontos e redução dos salários
DConvenções coletivas
EContribuições e mensalidades sindicais
FCaução ou garantia............................................
G - Aluguel....
H Horas não trabalhadas a céu aberto.
I Juros de adiantamentos.
J Compensação na rescisão.................................
L Valores dos descontos
M - Danos causados pelo empregado................
NIrregularidades da chefia....................................
O Dívidas civis do empregado...............................
PEmpréstimos concedidos ao empregado
Q Dívidas do empregado com terceiros................
RMulta disciplinar
S Planos de assistência odontológica, médicohospitalar, de seguro, de previdência privada ou
de entidade cooperativa, cultural ou recreativa
associativa.......
180
182
183
187
187
189
190
190
191
193
194
194
195
196
196
196
197
198
198
199
199
203
Capítulo XI
MEIOS DE PAGAMENTO DO SALÁRIO E AS UTILIDADES
1. Dinheiro, cheque ou depósito bancário
204
12
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
2. Pagamento em utilidades
A B -
205
CD-
Conceito, origens e tendências....
205
Teorias sobre as utilidades como salário in natura
207
211
Critérios e limites da lei brasileira
Determinação do valor das utilidades
215
E-
Substituição do salário em utilidades
F-
Suspensão do contrato de trabalho e o salário
em utilidades
217
217
Capítulo XII
O SALÁRIO, A SUSPENSÃO E A INTERRUPÇÃO DO
CONTRATO
1. Fundamentos da continuidade da obrigação de pagar 219
2. Enumeração dos principais casos
222
Capítulo XIII
PRINCIPAIS COMPLEMENTOS DO SALÁRIO
1. Abonos salariais..............................................................
2. Adicional de horas extraordinárias
A Conceito e incidência
BTipos e percentuais............................................
C Reflexos sobre outros pagamentos...................
DSuspensão do pagamento.................................
EIntervalos da jornada..........................................
FAlgumas questões jurídicas................................
3. Adicional noturno
A Conceito, incidência e percentuais
BO problema dos turnos ininterruptos de revezamento
C Reflexos sobre outros pagamentos...................
D Suspensão do pagamento
230
231
231
234
235
237
238
239
241
241
242
245
246
TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO
4. Adicional de insalubridade
13
246
A -
Conceito e objeções doutrinárias
246
B -
Incidência e percentuais
248
C -
Algumas questões jurídicas
249
5. Adicional de periculosidade
250
A -
Conceito, percentuais e incidência
BC D -
Modalidades
251
Reflexos sobre outros pagamentos
251
Suspensão do pagamento................................. 251
6. Adicional de transferência
A B-
Conceito, incidência e percentuais......
Reflexos sobre outros pagamentos
7. Comissões sobre vendas
A BC -
-
252
252
254
254
Conceito e incidência....
254
Aquisição do direito e prazos de pagamento... 256
Reflexos sobre outros pagamentos....
258
8. Gratificações salariais
A
B
C
D
E
250
Conceito e incidência
Classificação
Reflexos sobre outros pagamentos
Gratificação de função
Incorporação da gratificação
9. Décimo terceiro salário
258
258
261
262
263
264
265
A B-
Conceito
Prazos de pagamento
265
265
C D-
Décimo terceiro salário proporcional................. 266
Reflexos sobre outros pagamentos................... 266
10. Gorjetas
266
A B -
266
269
Conceito e modalidades
Reflexos sobre outros pagamentos
14
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
11. Prêmios
270
A -
Conceito..................................
270
B -
Modalidades
272
C -
Reflexos sobre outros pagamentos
273
Capítulo XIV
INTERVENÇÃO DO ESTADO E AUTONOMIA PRIVADA
COLETIVA. BASES DA POlÍTICA DE SALÁRIOS
1. O salário como objeto da política econômica do Estado 274
2. O salário e as negociações coletivas de trabalho........
284
Capítulo XV
OS MíNIMOS SALARIAIS OBRIGATÓRIOS
1. Fundamentos doutrinários dos mínimos salariais obrigatórios............................................................................. 298
2. Origens dos mínimos salariais
303
3. Princípios tutelares da Organização Internacional do
Trabalho..
30S
4. Salário mínimo
306
A -
Sistemas: intervenção do Estado e autonomia
negociai............................................................... 306
B -
As transformações ocorridas no Brasil............. 307
C -
O conceito legal................................................ 312
D -
Características: imperatividade, generalidade, irrenunciabilidade e intransacionabilidade
312
E -
Regras da Constituição Federal (1988)
F -
Disposições principais da legislação infraconstitucional
321
313
S. Os salários profissionais e as alterações do Direito brasileiro............................................................................... 321
I
'
TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO
15
Capítulo XVI
BASE CONTRIBUTIVA PARA RECOLHIMENTOS
PREVIDENCIÁRIOS E DO FUNDO DE GARANTIA
DO TEMPO DE SERViÇO
1. Contribuições previdenciárias
325
2. Contribuições para o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço
328
3. Conveniência de unificação
330
Bibliografia
333
índice Alfabético................
345
·
I'
Capítulo I
PRINCípIOS ÉTICOS DO SALÁRIO
1. Princípio do justo salário. A - Origens da idéia
do justo salário. B - Atendimento das necessidades do
trabalhador, das possibilidades da empresa e das exigências do bem comum. C - Salário justo segundo Régis
Jolivet. O - Salário justo segundo Johannes Messner. 2.
Princípio do salário vital. 3. Princípio do salário suficiente.
4. A função alimentar do salário.
1. Princípio do justo salário
A - Origens da Idéia do Justo Salário. A proteção jurídica
do salário é um valor que se desenvolveu como decorrência
de diversos fatores, dentre os quais, mais recentemente, as
manifestações internacionais como a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948) que defende o direito a uma remuneração justa, compatível com a dignidade humana, satisfatória
de um padrão de vida decente; as Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho sobre salário
mínimo (Convenções ns. 26, 99, 109, 110 e 131 e Recomendações ns. 30, 89 e 135), isonomia salarial (Convenções ns.
100, 111 e 156 e Recomendações ns. 99, 111 e 165) e proteção
ao salário (Convenção n. 95 e Recomendação n. 85); e o direito
do trabalho através de normas destinadas a cercar os salários
de algumas garantias para que não fiquem exclusivamente expostos às vicissitudes da Economia.
Mais remotamente, as doutrinas sociais exerceram uma
forte pressão na formação das idéias, em especial o princípio
do justo salário.
As raízes históricas do princípio do salário justo são encontradas na reação do pensamento humano que se seguiu à
Revolução Industrial do século XVIII e ao liberalismo filosófico,
18
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
político e econômico subseqüente à Revolução Francesa de
1789.
Tem uma das suas mais sólidas formulações na doutrina
social da igreja católica, através dos documentos pontifícios e
estudos paralelos sobre a questão social.
Significa, na sua mais ampla expressão, um protesto e
uma contestação contra a ordem trabalhista vigente e os conceitos de trabalho como mercadoria e salário como preço dessa
mercadoria.
Na Idade Média, com a escolástica, surgiram as primeiras
formulações sobre os princípios fundamentais que deviam presidir a remuneração do trabalho. Os moralistas antigos, como
Molina, Lugo e Lésio, sustentavam a regra da communis aestimatio. Significa que a fixação do salário deve observar uma
estimativa comum coerente tanto com as necessidades do trabalhador como com o trabalho efetivamente executado. Essa
estimação comum é a da gente sensata da região e varia entre
um máximo e um mínimo. Segundo José Maria Guix 1), a doutrina escolástica pode resistir aos assaltos do mercantilismo que
queria rebaixar os salários ao mínimo possível, prescindindo das
necessidades do trabalhador. De outro lado, o princípio da communis aestimatio garantia o respeito ao bem comum, uma vez
que a estipulação do salário competiria às corporações e não
aos patrões.
Em fins do século XVIII modificaram-se consideravelmente
as condições econômico-sociais e os teólogos, para evitar as
graves conseqüências do liberalismo, procuraram restabelecer
a noção do justo salário, tendo em conta dois aspectos: o opus
e o labor, isto é, o trabalho-produtivo e o trabalho-atividade,
como o fizeram Costa-Rossetti, Lehmkuhl e Liberatore.
Já os católicos liberais procuraram centralizar a atenção
sobre o aspecto econômico do trabalho, portanto sobre o trabalho-produto e, em conseqüência, aceitar como único critério
válido a equivalência econômica entre a retribuição e a efetiva
contribuição do trabalhador com o seu trabalho. Assim, o tra-
(1) "Curso de Doutrina Social Católica". ed. BAC, pág. 506.
TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO
19
balho passou a ser encarado como mercadoria e devia ser retribuído segundo a sua duração, quantidade, qualidade, etc., e
sem levar-se em conta os elementos subjetivos como idade,
sexo, encargos familiares, etc. O aspecto pessoal do trabalhador, as suas necessidades vitais, eram desprezadas a um segundo plano, fora da justiça comutativa, e o contrato de trabalho
era considerado como um contrato de arrendamento (/ocatio
operis) que tem por objeto o produto do trabalhador.
Diz José Maria Guix: "Fora disto, no contrato, segundo
eles, não havia mais nada; a vida e a situação do trabalhador
ficaram de fora, e não havia por que ter em consideração essas
circunstâncias. Segundo essa doutrina, o justo salário é aquele
que dá ao trabalhador a parte que lhe corresponde da produção
total, ainda que eventualmente, como conseqüência do jogo da
concorrência no mercado e de outras circunstâncias de ordem
econômica, seu nível não permita ao trabalhador fazer frente
às necessidades da sua família; mais ainda, o salário pode descer abaixo do mínimo necessário, sem que seja violada a estrita
justiça. Em estrita justiça só é devido o salário que corresponde
à efetiva colaboração do trabalhador na produção, cujo valor
econômico vem manifestado pela lei da oferta e da procura,
retificada pelo princípio da communis aestimatio (quando o seu
valor seja admitido pelo conjunto de empregadores de uma
mesma região). Portanto, o empregador satisfaz todas as suas
obrigações de justiça quando paga o salário conforme o uso
do lugar, prescindindo de saber se é suficiente ou não. Não
obstante, em caso de ser insuficiente para cobrir as necessidades pessoais ou familiares, o empresário tem uma obrigação
de caridade de auxiliar os trabalhadores". Esta corrente de pensamento, que os católicos liberais expuseram através da Revue
Catholique des Institutions et du Oroit, está inspirada nos economistas do século XVIII e primeira metade do século XIX (A.
Smith, J. B. Say, Malthus, Ricardo).
Os católicos sociais da França, no entanto, concebiam o
contrato de trabalho como um arrendamento especial comparável à loca tio operarum e, nessas condições, além das utilidades reais decorrentes do trabalho executado, único aspecto
considerado pelos católicos liberais, o empresário, ao estabelecer o salário, deve também olhar as necessidades pessoais
e familiares do trabalhador. Segundo essa corrente do pensa-
20
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
mento cristão, não é possível prescindir da pessoa do trabalhador, dos seus aspectos subjetivos. Nessa concepção, predominante é o trabalhcresforço e não o trabalho-produto, não
é preferencial a obra, mas sim o obreiro, o qual já não é um
simples preço de uma mercadoria, mas deve, isto sim, permitir
ao trabalhador e sua família levar uma vida honesta e decente.
Sempre que o salário fixado não permitir a manutenção desse
nível mínimo, estará violada a regra de justiça.
Nesse embate de idéias, surgiu a "Rerum Novarum" de
Leão XIII (1819) condenando o liberalismo econômico e afirmando o direito do trabalhador a um salário que permita uma
vida digna: "Pretende-se que o salário, uma vez livremente consentido por um lado e por outro, o patrão, ao pagá-lo, preenche
todas as suas obrigações e não está mais comprometido com
nada... Que o patrão e o trabalhador façam tantas e tais convenções que lhes aprouver, que eles entrem em acordo principalmente sobre a cifra do salário. Acima de sua livre vontade,
há uma lei de justiça natural mais elevada e mais antiga, a
saber, que o salário não deve ser insuficiente para fazer com
que o trabalhador subsista sóbrio e honesto. Se, constrangido
pela necessidade, ou impelido pelo temor de um mal maior, o
trabalhador aceitar condições duras que ele não vê como recusar, porque elas lhe foram impostas pelo patrão ou por aquele
que fez a oferta do trabalho, sofre uma violência contra a qual
a justiça protesta (n. 34)".
Segundo Pio X/(2), "em primeiro lugar deve dar-se ao operário uma remuneração que seja suficiente para o seu sustento
e para o da família. É justo também que o resto da família
concorra, dê um segundo das suas forças, para o sustento comum de todos, como antes sucedia, especialmente nas famílias
de lavradores e também nas de muitos artesãos e pequenos
comerciantes; mas também é um crime abusar da idade infantil
e da debilidade da mulher. Principalmente em casa ou nas
suas proximidades, as mães de famnia podem dedicar-se às suas
tarefas sem por isso descurarem as atenções do lar. É, porém,
um gravíssimo abuso, que se deve eliminar com todo o empenho, que a mãe, pela escassez do salário do pai, se veja
(2) "Quadragesima Anna", 32, 405, 6.
TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO
21
obrigada a exercer uma profissão lucrativa, abandonando os
seus deveres e ocupações peculiares, e sobretudo a educação
dos filhos. Há de fazer-se, pois, todo o possível para que os
pais de família recebam um salário tal que com ele possam
fazer face convenientemente às necessidades domésticas ordinárias. E se as circunstâncias presentes da sociedade nem
sempre permitem fazê-lo, pede a justiça social que quanto antes
se introduzam reformas tais que se assegure esse salário a
qualquer operário adulto. Não será inoportuno aqui o louvor merecido a quantos, com previsão tão sábia como útil, ensaiaram
e experimentaram métodos diversos para adaptar a remuneração do trabalho aos encargos da família, de maneira que ao
aumento destes corresponda o aumento daqueles e, ainda, se
for necessário, se possam também satisfazer as necessidades
extraordinárias" .
Para Pierre Biga, Pio X/lançou-se ao conjunto do problema, de modo bem mais amplo, numa exposição sobre os direitos
do capital e do trabalho, recusando exclusividade de direitos, entendendo que é injusto que uma das partes reivindique
para si todo o fruto e assentando o seu ponto de vista sobre
três princípios básicos: a) devemos pagar ao trabalhador um
salário que lhe permita prover à sua subsistência e à de sua
família; b) na determinação dos salários, levar-se-ão em conta
as necessidades da empresa e dos que a dirigem, pois seria
injusto exigir salários que possam levar o empregador à ruína
e que não possam ser suportados; c) a fixação dos salários
deve inspirar-se também na economia geral.
Em João XXII/(3) são desenvolvidos estes princípios: "Por
isso, julgamos que é nosso dever afirmar uma vez mais que
do mesmo modo que a retribuição do trabalho não pode ser
abandonada inteiramente à lei do mercado, também não se
pode fixar arbitrariamente, mas que há de determinar-se de
acordo com a justiça e a eqüidade. Isso exige que seja atribuída
aos trabalhadores uma retribuição tal que lhes permita ter um
nível de vida verdadeiramente humano e fazer face condignamente às suas responsabilidades familiares; mas exige, além
(3) "Mater et Magistra",
22
AMAURI MASCARO NASCIMENTO
disso, que ao determinar a retribuição se atenda à sua verdadeira influência na produção e às condições econômicas da
empresa, às exigências do bem comum das respectivas comunidades políticas, particularmente no que respeita às repercussões no emprego total dos trabalhadores ativos de toda a região, assim como também às exigências do bem comum universal, ou seja, das comunidades internacionais de natureza e
amplitude diversas".
B - Atendimento das Necessidades do Trabalhador, das
Possibilidades da Empresa e das Exigências do Bem Comum.
Pode-se precisar, com Eberhard Welty4) , que a determinação
do salário justo deve observar, segundo a doutrina social católica, três fatores: a) as necessidades vitais do trabalhador e
da família; b) a situação da empresa; c) o bem comum.
a) As necessidades vitais do trabalhador. Welty mostra
que o trabalhador tem direito ao salário familiar que o patrão
tem de dar e a comunidade tem de tornar possível e garantir.
homem, que só possui as suas energias para trabalhar, deve
ganhar o necessário para poder viver do seu trabalho e, uma
vez que o trabalho é a sua única base de sustento, segue-se
que é um preceito de justiça comutativa que, suposto um determinado volume de trabalho exigível a uma pessoa humana
segundo a duração e as circunstâncias do mesmo, se lhe deva
um salário de quantidade suficiente para o sustento.
a
Afirma Bigd5 ) que os assalariados têm direito "primeiramente ao mínimo de vida decente, mínimo proporcional aos encargos de família: este mínimo está fora do produto comum
que tem que ser dividido; ele deve também variar com a qualificação do salário; cresce regularmente com o aumento dos
recursos na sociedade global; em segundo lugar, a uma parte
do resto, sendo este resto calculado depois das amortizações
que reconstituem o valor real do objeto de trabalho, sem aumento ou diminuição, supondo justos preços pagos pela empresa e à empresa".
(4) "Manual de Ética Social", ed. Herder, vaI. 3º, pág. 344.
(5) "A Doutrina Social da Igreja", ed. Loyola, pág. 335.
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