SOLILÓQUIO 4
Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se
a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me
castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo
daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida
de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.
Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a
razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi
dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos
seus destinos.
Todos
os
conhecimentos
têm
uma
profunda
sedução.
Quem
conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de
opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte de Eva,
que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.
Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que
um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão
organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal,
uma planta, um átomo.
Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei,
refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não
tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas
pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar
essa letra.
Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que
sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as
minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil
como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa
misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em
longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum
escriba emprestado.
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Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos