UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
IARA LOPES MAIOLINI
UMA PROPOSTA ENUNCIATIVO-DISCURSIVA DE LEITURA
DE CONTOS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL
CUIABÁ-MT
2013
ii
IARA LOPES MAIOLINI
UMA PROPOSTA ENUNCIATIVO-DISCURSIVA DE LEITURA
DE CONTOS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em
Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso
como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre
em Estudos de Linguagem, sob a orientação da professora Dra.
Cláudia Graziano Paes de Barros.
CUIABÁ-MT
2013
iii
iv
Dedico aos meus pais, Maria Eldinê Cardoso e Leontino Lopes
de Souza, que, devido às circunstâncias sofríveis de suas
vidas, não tiveram oportunidade de irem à escola aprender a
ler e a escrever.
v
AGRADECIMENTOS
Ao autor e consumador da vida: O Deus triuno (Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito
Santo) que em todo o tempo esteve comigo, dando-me forças para eu sempre
chamar a existência às coisas que ainda não existiam como se elas já existissem.
“Oh profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos! Porque dele
e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém”
(Romanos 11: 33,36).
Ao meu esposo, Sérgio Pereira Maiolini, a quem “amo firme, fiel e verdadeiramente”
(Vladimir Mayakovsky). Obrigada, meu amor, por me ouvir e ouvir sempre as
mesmas coisas, as mesmas “ladainhas”; por fazer dos momentos insuportáveis
suportáveis e por me apoiar e não me fazer desistir. Amar-te-ei por toda a minha
vida.
À minha orientadora, Profa. Dra. Cláudia Graziano Paes de Barros, pela orientação,
dedicação em ler o meu trabalho e pela a oportunidade de me fazer aprender com o
seu conhecimento.
À professora Dra. Maria Inês Pagliarini Cox, pela gentileza de ter aceitado ler o meu
trabalho e pelas ricas contribuições e sugestões que me foram de suma importância.
À professora Dra. Fabíola Aparecida Sartín Dutra Pereira Almeida, pela leitura do
meu trabalho que muito contribui e enriqueceu a presente pesquisa.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
Aos meus irmãos por me ajudarem nessa caminhada, em especial, a minha irmã e
ao meu cunhado, Ana Lúcia C. de Moraes e Eurico V. de Moraes Filho, por ter-me
dado a oportunidade de sair do interior (Tuntum/MA) e ir para a “cidade grande”, a
fim de estudar e ter “um futuro melhor”. Obrigada!
vi
À minha grande amiga-irmã, Natália Thereza Barros Agrella, pelas orações, pelo
incentivo e apoio para eu fazer o mestrado e, sobretudo, por sua amizade
inigualável. Obrigada, minha querida amiga!
Ao meu amigo Jonh Erick Augusto, por tantas vezes acreditar em mim e por me
incentivar a fazer a pós-graduação, pois, como sempre dizíamos “sou guerreira, sou
forte, sou filha Norte”. Obrigada, bom amigo!
À professora Maria Rosa Petroni, pela torcida e por ter sido “minha mãe de
pesquisa”.
Aos amigos, Jeferson e Viviane, por terem lido o meu texto e pelas contribuições
que me fizeram refletir melhor acerca da pesquisa.
Às minhas amigas, Angélica, Viviane, Rute, Shirlei, Leni e Leila, pelos bate-papos
bastante profícuos, divertidos e agradáveis.
Aos amigos do grupo de pesquisa Relendo Bakhtin (REBAK), pelas discussões,
conversas e pelas tardes “únicas e irrepetíveis”, em especial agradeço à professora
Simone Padilha que, com o seu jeito doce e meigo, permitiu que eu participasse
desse grupo tão querido e especial.
Aos professores e aos amigos da Pós-graduação (turma 2011), pelas contribuições
teóricas, conversas, aprendizados e risadas durante as aulas do mestrado.
À professora Keila da Escola Estadual F.A.F.M., pela gentileza e boa vontade em
permitir que eu aplicasse os questionários aos alunos e por disponibilizar uma
coleção do livro didático “Viva Português”. Obrigada, professora!
vii
[...] Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,
sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Clarice Lispector – Felicidade Clandestina
viii
RESUMO
Uma proposta enunciativo-discursiva de leitura de contos para o Ensino
Fundamental
A presente pesquisa tem como objetivo investigar e discutir as práticas de leitura e
letramento literário de alunos do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola
pública estadual de Cuiabá, Mato Grosso. Também, examina e analisa o tratamento
dado ao gênero discursivo conto como objeto de ensino para as atividades de leitura
na coleção de Livro Didático “Viva Português”. Ainda, elabora uma proposta de
leitura do gênero conto direcionada aos alunos do 9º ano pela perspectiva social e
interativa da linguagem e do ensino-aprendizagem. Para tanto, pela dimensão da
linguagem em uso, a proposta baseia-se no quadro teórico enunciativo-discursivo de
Mikhail Bakhtin, Valentin Volochinov e Pavel Medvedev (1929a; 1929b; 1926; 1928).
E, pela dimensão do ensino-aprendizagem, ancora-se no viés socio-histórico de Lev
Vygotsky. Além disso, propõe atividades de leitura através dos conceitos
bakhtinianos da compreensão ativa e sujeito como um ser ativo e respondente
(1952-53/1979; 1934-35/1975) para refletirmos acerca do letramento literário
mediado pelos contos. Assim, concebemos que o gênero discursivo conto é uma
ferramenta bastante profícua na questão de formação do leitor literário. A
metodologia de pesquisa é de natureza qualitativa e a abordagem é à luz da teoria
dialógica bakhtiniana aplicada às ciências humanas (1959-61/1979; 1970-71/1979;
1974/1979). Os dados analisados revelaram que os alunos pesquisados têm
diversas práticas de leitura porque eles leem poema, letra de canção, conto etc.
Porém, na esfera escolar, os sujeitos pesquisados leem textos do livro didático. Em
especial à análise dos dados do livro didático “Viva Português”, observamos que
este não promove o letramento literário porque, em boa medida, desenvolve um
trabalho de leitura alicerçado na gramática normativa. Finalmente, em nossas
análises e reflexões relativas ao letramento literário, entendemos que esse deveria
ser uma prática de leitura do estudante quanto do professor em seu ensino da leitura
literária na escola.
Palavras-chave: Letramento literário. Gênero do discurso. Conto.
ix
ABSTRACT
An enunciative-discursive proposal of tale´s reading to the elementary
education
The present research has the aim to investigate and to discuss the reading´s
practices and literary literacy from students of 7th 9 th year of elementary education of
a state public school located in Cuiabá, Mato Grosso. Also, it examines and analyses
the didactic treatment given to the speech genre tale as teaching object for the
reading activities on the collection Portuguese language schoolbook “Viva
Português”. Thus, it elaborates a reading proposal of the genre tale guided to the 9th
year´s pupils by the social and interactive perspective of language and teaching and
learning. For such, by the level of language in use, the proposal is based on theorical
framework enunciative-discursive from Mikhail Bakhtin, Valentin Volochinov and
Pavel Medvedev (1929a; 1929b; 1926; 1928). And, by the level of teaching and
learning, it anchors in the socio-historical bias from Lev Vygotsky (1930; 1934).
Moreover, it proposes activities of reading through the Bakhtinian concepts of active
understanding and active and respondent being (1952-53/1979, 1934-35/1975) to
reflect about literary literacy mediated by tales. Thus, we conceive that the discursive
genre tale is a very fruitful tool in the question of the literary reader´s formation. The
research methodology is an assumption which is brought to the light by Bakhtin`s
dialogic framework applied to the human sciences (1959-61/1979; 1970-71;
1974/1979). Data analysis revealed that the researched pupils have many reading
practices because they read poems, lyrics, tales, etc. However, at the school sphere,
they read texts from the didactic textbooks. Especially in the data analysis from the
textbook “Viva Português”, we note that this does not promote literary literacy
because, to a large extent, it develops a reading work grounded in normative
grammar. Finally, in our analysis and reflections regarding to the literary literacy, we
understand that this might be a student as well as a teacher´s reading practice in his
teaching of literature´s reading at school.
Keywords: Literary literacy. Speech genre. Tale.
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................
13
CAPÍTULO 1 – Leitura e a formação do leitor literário.........................
17
1.1 – Plano Nacional do Livro e Leitura e a democratização do acesso
ao livro.......................................................................................................
18
1.1.1 – Uma breve apresentação do livro didático e da leitura no Brasil..
18
1.1.2 - O Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL..................................
22
1.2
- Um diálogo possível: Mikhail Bakhtin e Antonio Candido.............
24
1.3
- Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o letramento literário...
30
1.3.1 - A concepção de leitura nos PCN..................................................
30
1.4 - A escolarização do texto literário......................................................
36
CAPÍTULO 2 – Bakhtin e Vygotsky: uma abordagem enunciativodiscursiva do ensino-aprendizagem de leitura de contos...................
42
2.1 – O gênero do discurso no Brasil........................................................
42
2.2 – O gênero do discurso: a tríade e outros aspectos............................
45
2.3 – Vygotsky e o ensino-aprendizagem..................................................
53
2.4 – O gênero como megainstrumento de ensino-aprendizagem..........
57
2.4.1 - Os gêneros: ferramentas nas práticas e capacidades de leitura...
59
CAPÍTULO 3 – O gênero discursivo conto: um olhar bakhtiniano.....
62
3.1 – A origem do conto: a história da estória...........................................
62
3.2 – Conto: em busca de uma definição..................................................
65
CAPÍTULO 4 – Metodologia de pesquisa e as Ciências Humanas.....
71
4.1-
A natureza da pesquisa..................................................................
71
4.2 - Bakhtin e as Ciências Humanas........................................................
71
4.3 – O método sociológico.......................................................................
74
4.4 – Metodologia de coleta dos dados.....................................................
75
4.5 – Metodologia de análise dos dados...................................................
77
CAPÍTULO 5 – Analisando os questionários e o Livro Didático de
Língua Portuguesa..................................................................................
78
5.1– Os questionários: as práticas de leitura e letramentos dos alunos...
79
xi
5.1.1- As práticas de leitura.......................................................................
79
5.1.2- Outros dados...................................................................................
86
5.1.3- Atividades diversas.........................................................................
87
5.1.4- O que é leitura para você?..............................................................
89
5.2 – Sobre a coleção do Livro Didático Viva Português...........................
93
5.2.1- Descrição geral da coleção.............................................................
93
5.2.2- Os gêneros da esfera literária na coleção.......................................
96
5.2.3- A presença do conto da esfera literária na coleção........................
98
5.2.4 – Sobre o tratamento didático nas atividades de leitura do conto....
102
5.2.5- Sobre as capacidades mobilizadas................................................
111
CAPÍTULO 6 – Uma proposta didática do gênero discursivo conto..
118
6. 1 – Acerca da proposta didática............................................................
118
Considerações Finais..............................................................................
152
Referências bibliográficas......................................................................
156
ANEXO 1 – O homem que enxerga a Morte.............................................
164
ANEXO 2 – Cinco ciprestes, vezes dois....................................................
168
ANEXO 3 – Um amigo para sempre..........................................................
170
ANEXO 4 – Brincadeira.............................................................................
173
ANEXO 5 – O coração comido..................................................................
176
Tabela 1 – A presença da leitura na infância............................................
79
Tabela 2- Quem lia....................................................................................
79
Tabela 3 – Pessoas que mais influenciaram o gosto pela leitura
80
Tabela 4 – Materiais escritos existentes na residência.............................
80
Tabela 5 – Quantidade de livros existentes na residência........................
81
Tabela 6 – Tipo de livro que costuma ler, ainda que de vez em quando..
82
Tabela 7 – Quantidade de livros lidos neste ano......................................
82
Tabela 8 – Textos lidos na escola.............................................................
83
Tabela 9 – Atividades realizadas na escola..............................................
83
Tabela 10 – Gêneros habitualmente lidos.................................................
84
Tabela 11 – Gêneros mais apreciados para leitura...................................
84
Tabela 12 – Gêneros mais apreciados para a escrita...............................
85
Tabela 13 – Frequenta algum curso..........................................................
86
Tabela 14 – Frequência de uso do computador........................................
86
xii
Tabela 15 – Que uso costuma fazer do computador.................................
86
Tabela 16 – Práticas de leitura de pais ou parentes.................................
87
Tabela 17 – Assiste à televisão.................................................................
87
Tabela 18 - Ouve rádio..............................................................................
87
Tabela 19 - Vai a exposições ou feiras......................................................
88
Tabela 20 - Vai a shows............................................................................
88
Tabela 21 - Vai a cinemas.........................................................................
88
Tabela 22: O que significa leitura para você? (7º ano)..............................
89
Tabela 23: O que significa leitura para você? (9º ano)..............................
91
Tabela 24: Quantidade de gêneros da esfera literária na coleção............
96
Tabela 25: Quantidade de gêneros de outras esferas na coleção............
97
Tabela 26: Capacidades de compreensão mobilizadas nas atividades
111
de leitura do conto na coleção...................................................................
Tabela 27: Capacidades de réplica ativa mobilizadas nas atividades de
leitura do conto na coleção........................................................................
113
13
INTRODUÇÃO
As razões que nos levaram a fazer tal pesquisa sobre a formação do leitor
literário advêm de uma época anterior ao Mestrado, quando, durante a graduação do
curso de Letras, éramos bolsistas de iniciação científica.
Foi nesse período que desenvolvemos pesquisas sobre o ensinoaprendizagem de leitura e escrita na perspectiva enunciativo-discursiva da
linguagem. Pesquisas essas que nos levaram, como graduandos, a algumas
discussões, indagações e percepções sobre a linguagem, de maneira que nos
instigaram a continuar estudando sobre as questões atinentes ao ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa.
Atrelado a isso, já no Estágio Supervisionado do referido curso, em nossa
Regência, desenvolvemos um trabalho de leitura e reescrita de fábulas em uma
turma do 6º ano do Ensino Fundamental de uma escola estadual pública de Cuiabá
(Mato Grosso)1, que nos impulsionou e nos desafiou, de certa forma, a pensar em
como trabalhar o gênero da esfera literária em sala de aula sem deixar de ouvir a
“voz” do aluno. Embora o trabalho tenha sido bastante árduo e cansativo,
observamos que os alunos eram participativos e interessados nas aulas e que, em
boa medida, conseguiram reescrever algumas fábulas.
Essas foram, portanto, as principais razões que nos levaram a continuar
pesquisando os fenômenos que estão envoltos no ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa, especificamente, da formação do leitor literário.
Somado a isso, temos visto que desde o início dos anos 80, muitas pesquisas
foram realizadas acerca do ensino de Língua Portuguesa em nosso país. Tais
pesquisas fomentavam o debate em torno do principal problema que a maioria dos
alunos das escolas públicas até hoje enfrentam, isto é, a aquisição da leitura e da
escrita de modo proficiente.
Assim, nas últimas décadas, temos observado um aumento da demanda no
que tange ao domínio da leitura e da escrita, ou seja, domínio das diversas
capacidades de linguagem nas variadas áreas da vida social, relacionado, portanto,
aos tipos e níveis de letramentos que vão além da decodificação da palavra escrita.
Com o intuito de atender tais demandas, o sistema educacional brasileiro
propôs algumas orientações e programas oficiais para o ensino, tais como: os
1
A referida escola é a mesma onde realizamos a presente pesquisa.
14
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN; a reformulação do Programa Nacional do
Livro Didático – PNLD; o Programa Nacional Biblioteca Escolar (PNBE) e o
Programa Nacional do Livro e da Leitura (PNLL).
Em decorrência dessas políticas públicas, foram implantados os programas
nacionais de avaliação, SAEB e ENEM, os quais possuem como objetivo a
verificação do rendimento escolar dos alunos nos níveis fundamental e médio.
Nesse sentido, esses programas têm demonstrado que os alunos apresentam um
índice abaixo do rendimento, principalmente, no quesito proficiência em leitura.
Além desses programas, o Brasil tem participado, desde o ano de 2000, do
programa internacional PISA2 – Project for Internacional Student Assessment (em
português: Programa Internacional de Avaliação de Alunos), cujo objetivo principal é
produzir indicadores acerca da efetividade dos sistemas educacionais de cada país,
de modo a avaliar o desempenho dos alunos na faixa etária dos 15 anos, isto é, no
fim da educação básica.
Em 2000, segundo o relatório3 do Inep, os alunos apresentaram um
desempenho sofrível no exame PISA, alcançando o último lugar entre os países
participantes. Já em 2009, o Brasil atingiu um desempenho significativo, no qual
50% dos alunos conseguiram atingir o nível 2, que está relacionado às atividades
de leitura como localização de informações.
Entendemos, portanto, que tais resultados ainda são insatisfatórios para se
formar um cidadão atuante e participativo, de maneira que reflita acerca de sua
condição humana em sociedade. Assim, os exames esperam dos alunos
capacidades de leitura ainda não alcançadas nesses níveis. Além disso, inferimos
que a formação de um possível leitor, inclusive o leitor literário, em tais
circunstâncias, parece estar bastante comprometida.
Refletindo sobre tais pontos, nosso objetivo se volta para a construção de um
trabalho que encaminhe para a formação do leitor literário, de modo que o aluno
exerça plenamente sua cidadania e seja capaz de atribuir sentidos para qualquer
tipo de texto, inclusive o texto literário. Por isso, pensamos numa pesquisa que
2“É
um programa internacional de avaliação comparada desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), havendo em cada país participante uma coordenação nacional.
No Brasil, o PISA é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)”
(Inep/MEC, 2009, p.11).
Esse relatório está disponível em <http://portal.inep.gov.br/internacional-novo-pisa-resultados>, acessado em 29/04/2013
às 17h27min.
3
15
contribuísse para refletirmos sobre a formação do leitor literário, a partir das
atividades de leitura do conto no livro didático, pois, atualmente, esse é o principal
material impresso a que o aluno de escola pública tem acesso.
A esse respeito, os PCN asseveram que:
O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de
reconhecimento de singularidades e propriedades que matizam um
tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de
equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos
textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento
de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não
aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de
reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão
e a profundidade das construções literárias (BRASIL, 1998,p.27).
A questão da formação do leitor literário e da leitura literária tem sido objeto
de muitas pesquisas em nosso país, a saber: Paulino (2008); Soares (2001; 2008);
Aguiar (2007); Martins e Versiani (2008); Zilberman (2001; 2009); Lajolo (2009);
Cosson (2007). Ainda não há, entretanto, muitos trabalhos que abordam o ensino da
leitura literária pelo viés bakhtiniano. Dentre esses, é possível destacarmos os
trabalhos de Padilha (2005) e Coentro (2008). Essa discute a formação do leitor
literário por meio da contação de histórias, já aquela, o trabalho desenvolvido nos
livros didáticos, enfocando particularmente os gêneros poéticos.
É nesse contexto que esta pesquisa se insere, discutindo a formação de
leitores literários no Ensino Fundamental e apresentando uma proposta de
sequência didática com o gênero conto, a partir das ideias sócio-históricas de
ensino-aprendizagem de Vygotsky (1930; 1934) e dos pressupostos teóricos de
Bakhtin e o Círculo (1926; 1928; 1929; 1934-1935/1975; 1952-53/1979).
O pensamento vygotskiano sobre ensino-aprendizagem foi de suma
importância para refletirmos sobre as atividades de leitura de conto do LD, assim
como no planejamento e elaboração da nossa proposta de atividades de leitura.
Neste estudo, aliamos as reflexões vygotskianas sobre interação entre sujeitos na
construção do conhecimento ao pensamento bakhtiniano sobre a natureza sóciohistórica da linguagem e a constituição dialógica dessa. Atrelada a isso, a
concepção de leitura é tomada como um processo de compreensão ativa, isto é,
uma atividade que acarreta uma série de inter-relações complexas que enriquecem
o já dito com novos elementos, novos apontamentos, novos argumentos etc.
16
Também adotamos as considerações de Mikhail Bakhtin e o Círculo sobre os
gêneros do discurso que, aliadas à concepção de ferramentas de Vygotsky que
medeiam o ensino-aprendizagem, nos permitiu construir a proposta de didatização
do gênero conto.
Portanto, este trabalho objetivou:
1. Conhecer as práticas de leitura dos discentes da etapa final do ciclo do
Ensino Fundamental de uma escola pública mato-grossense;
2. Conhecer as propostas de didatização de ensino-aprendizagem de leitura do
gênero conto da coleção didática de Língua Portuguesa adotada pela escola;
3. Elaborar uma proposta de didatização do gênero conto para o nono (9º) ano
do Ensino Fundamental.
Para tanto, três perguntas de pesquisa nos orientaram:
1. Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino
Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar?
2. Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção
didática adotada na escola?
3. Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero
conto?
Desse modo, no capítulo 1 realizamos uma releitura das discussões sobre o
letramento e o letramento literário. No capítulo 2, apresentamos as considerações de
Bakhtin e o Círculo sobre os gêneros do discurso e, num segundo momento,
abordamos as concepções de Vygotsky sobre o desenvolvimento humano e o
aprendizado. No capítulo 3, discutimos sobre a história do conto e seus elementos
indissociáveis. No capítulo 4, traçamos o percurso metodológico realizado. No
capítulo 5, primeiramente, são apresentados e analisados os dados referentes às
práticas letradas dos alunos entrevistados e, também, analisamos e descrevemos as
atividades da coleção adotada pela escola. No capítulo 6, apresentamos a proposta
de sequência didática do gênero discursivo conto, tomado como objeto de ensino.
Em seguida, tecemos as Considerações Finais desta pesquisa de mestrado.
17
CAPÍTULO 1
Leitura e a formação do leitor literário
A arte nos permite conhecer melhor o existente, ao percebermos
outras possibilidades de existir [...] Arte, diriam os “práticos”, arte
para quê? É perda de tempo, é “frescura” de gente desocupada. Arte
hoje não tem valor próprio, só vale se virar indústria e comércio, se
tiver valor no mercado (Graça Paulino, 1999).
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser
satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de
dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos
liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da
literatura é mutilar a nossa humanidade (Antônio Cândido, 1988).
Neste capítulo, trataremos da prática de leitura de textos literários na escola
nas perspectivas do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), dos Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa (PCNLP) e do Programa Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE).
Para tanto, valer-nos-emos de conceitos atinentes à leitura e ao letramento
literário como também de um diálogo possível entre dois estudiosos das artes
literárias na Rússia e no Brasil, respectivamente Mikhail Bakhtin e Antônio Cândido.
18
1.1 Plano Nacional do Livro e Leitura e a democratização do acesso ao livro
1.1.1 Uma breve apresentação do livro didático e da leitura no Brasil
Galvão e Batista (2012), no ensaio4 “A leitura na escola primária brasileira:
alguns elementos históricos”, afirmam que até meados do século XIX quase não
existiam livros específicos de leitura em nossas escolas e os textos manuscritos
utilizados como materiais de ensino da prática de leitura em sala de aula eram os
documentos de cartório e cartas, a Constituição do Império, o Código Criminal e a
Bíblia.
As práticas iniciais de escolarização ocorriam nas fazendas ou engenhos com
alguma pessoa mais escolarizada, por exemplo: o padre, o capelão ou o mestreescola contratado para esse fim. Nessa época, os escravos eram proibidos de
ingressarem na escola e as meninas podiam frequentar apenas a educação básica
(isso é, “aprender a ler e escrever e fazer as primeiras operações matemáticas”), a
fim de cumprirem as atividades domésticas.
A partir do período imperial, algumas iniciativas de ampliar a oferta de
escolarização da população começaram a surgir, porque a educação passou a ser
vista como de suma importância para o desenvolvimento econômico e cultural do
país. Em 1808, com a implantação da imprensa régia, o Brasil inicia o processo de
impressão de livros, mas é somente na segunda metade do século XIX que
começam a surgir, no Brasil, livros de leitura direcionados às séries iniciais.
Em 1868, Abílio César Borges publicou o Primeiro Livro, uma obra destinada
ao aprendizado inicial da leitura e da escrita. Outras séries de leituras foram
editadas, notadamente as de Felisberto de Carvalho. No final do século XIX e início
do XX, houve uma expansão gradativa da escolarização que passou a ser um dos
objetivos do governo republicano. Muitas reformas, atinentes ao ensino, começaram
a ser propostas. Entretanto, a escola continuava acessível a uma pequena parcela
da população.
Em 1921, Monteiro Lobato também marcou a história dos livros de leitura com
a publicação de Narizinho Arrebitado, que, de acordo com crítica da época, se
diferenciava de outros livros, posto que trouxe a novidade do “prazer na leitura” à
cena educacional brasileira, aspecto, até então, ignorado pela escola. De 1921 até
4
Disponível em <http://www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/ensaios/ensaio21.html>, acessado em 11/05/2012.
19
meados de 1950, muitos foram os livros de leitura produzidos e algumas editoras
passaram a se especializar na produção de livros didáticos.
Simultaneamente, essa época foi marcada pelo grande índice de pessoas
“analfabetas”, não escolarizadas: mais de 80% da população. Por causa disso,
novas metodologias de ensino passam a ser discutidas através do movimento
educacional da Escola Nova, cujo marco mais significativo foi o Manifesto dos
Pioneiros da Educação em 1932.
Segundo Galvão e Batista (2012, s/p), embora houvesse todo esse
movimento de intelectuais acerca da leitura escolar,
[...] o dia-a-dia da maioria das escolas continuava sem muitas
inovações. Algumas autobiografias revelam, por exemplo que, na
década de 30, os alunos continuavam temerosos em ler as lições,
ainda tomadas em voz alta, e a angústia e o tédio continuavam a
marcar a sua relação com a leitura prescrita pela escola. Nesse
momento, os castigos físicos eram proibidos oficialmente em todo o
país, mas as restrições, penalidades e sanções permaneceram no
cotidiano das escolas [...] Em muitas escolas, alguns objetos de
leitura eram proibidos – como as histórias em quadrinhos, que
fascinaram crianças e jovens dos anos 30 e 40 – e algumas práticas
de leitura também (GALVÃO & BATISTA, 2012, s/p).
É entre as décadas de 50 e 70 que a rede pública de educação começa a ser
expandida e cada vez mais a camada popular da sociedade ingressa na instituição
escolar. Simultaneamente, aumentou o número de bibliotecas populares e de
livrarias.
Todavia, é nesse período que, ao contrário do que acontecia no passado, a
presença do livro na sala de aula passa a ter um tempo menor de utilização. Talvez,
essa modificação se explique pelo fato de que “os novos livros trazem, cada vez
mais, cadernos de exercício e manuais do professor. No passado, traziam, no geral,
uma ou duas folhas de instrução aos professores” (BATISTA & GALVÃO, 2012, s/p).
Os autores (2012) acreditam que tal mudança pode ser explicada pelo fato de
que, nessa época, havia uma necessidade muito grande de atualização do conteúdo
que era complexo e de rápida desatualização; havia ainda o desenvolvimento
acelerado de pesquisas no âmbito educacional que, por diversas vezes,
modificavam o conhecimento e a metodologia pedagógica. Ademais, havia as
necessidades econômicas das editoras.
Portanto, o livro na escola perde a sua função, a saber: tornar-se um objeto
de diálogo, discussões e respostas/compreensão (contrapalavra) entre os
20
interlocutores (autor/ leitor), ou seja, no lugar de um espaço de interação verbal
entre autor e leitor, cuja compreensão (contrapalavra) precede a reflexão/refutação,
surge o livro didatizado em que o aluno não é convidado a tomar a palavra de modo
que reflita e refrate acerca de um texto ou de outro.
Por isso, concordamos com os pensadores russos, Bakhtin/Volochinov (2009
[1929]), quando afirmam:
O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas
sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de
maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado [...]
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929], p.127).
Assim, principalmente após os documentos oficiais (1997; 1998; 1999), o livro
didático para a criança/adolescente busca a presença frequente dos usos sociais da
língua escrita na escola, tanto em relação às diversas modalidades de leitura,
quanto à variedade de gêneros e suportes que os veiculem.
O livro didático passa a conter uma grande multiplicidade de gêneros como
quadrinhos, rótulos, propagandas, listas etc. Somado a isso, programas e
documentos oficiais surgem na tentativa de auxiliar o professor na função de ensinar
os alunos e torná-los sujeitos leitores. Em 1985, o governo institui o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) que, ao longo de sua história, sofreu muitas
mudanças5.
No cenário escolar, o livro didático tornou-se o principal material impresso
utilizado por professores e alunos brasileiros. Muitas são as razões que levaram (e
que ainda levam) o livro didático a tal categoria, por exemplo: a formação (inicial ou
continuada) de professores, muitas vezes, inadequada; a precária condição de
trabalho docente e, ainda, a “dificuldade enfrentada para produzir e fazer circular o
livro no Brasil (particularmente, para fazê-lo circular na escola)” (BATISTA,
2008[2003], p. 28).
Dessa forma, o livro didático configura-se como material imprescindível para a
prática docente do ensino básico, posto que exerce grande influência no trabalho de
leitura, “determinando sua finalidade, definindo o currículo, cristalizando abordagens
metodológicas e quadros conceituais, organizando, enfim, o cotidiano da sala de
aula” (BATISTA, 2008[2003], p. 28).
5
Cf. BATISTA (2008)
21
Observam-se, entretanto, alguns pontos positivos do PNLD, por exemplo: a) o
aumento percentual de livros recomendados6 vem aumentando, progressivamente,
pelas editoras participantes desde 1997, ao passo que o número de excluídos 7 se
tem reduzido bastante; b) a ampla renovação da produção didática brasileira, devido
à participação de novas editoras a cada PNLD e ao surgimento de novos autores de
livro didático; c) observa-se uma abrangência da cobertura do PNLD, regularizando
“o fluxo do atendimento e, com o aumento da eficácia dos processos de compra e
distribuição alcançada pelo FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar], foi
possível aumentar o atendimento [...]” (BATISTA, 2008[2003], p.39).
Assim, ao longo da história, desde meados de 19608, o livro didático sofreu
muitas mudanças para chegar ao patamar de qualidade atual e o PNLD vem
contribuindo significativamente para um ensino melhor. No entanto, segundo o autor
(2008[2003]), ainda há algumas reformulações que o PNLD deve seguir e acatar,
por exemplo: as atuais “exigências sociais [que] impõem a revisão de paradigmas”
(BATISTA,
2008
[2003],
p.42).
Essas
novas
exigências
encontram-se,
principalmente, esboçadas nos PCN9 (1997; 1998; 1999) que embasam as
propostas de mudança e renovação na avaliação do livro didático.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP)
(BRASIL, 1998) afirmam que um dos objetivos principais da escola básica deve ser
levar o aluno a compreender a cidadania, de tal maneira que o torne um sujeito
participativo em sua comunidade, capaz de exercer democraticamente o exercício
de direitos e deveres políticos, civis e sociais em seu cotidiano e posicionar-se crítica
e responsavelmente nas diferentes situações sociais, usando a linguagem como
forma de mediar conflitos, tomar decisões, protestar e tomar a palavra ativamente na
sociedade etc.
É uma categoria de análise de classificação dos livros didáticos instituída pelo PNLD. Os recomendados são aqueles que
cumpriram corretamente sua função, já os excluídos correspondem aos livros que apresentaram erros conceituais,
desatualização, preconceitos ou discriminação de qualquer tipo (BATISTA, 2008[2003]).
6
7
8
Ver nota 3.
Cf. (BATISTA, 2008[2003]).
Nos anos finais da década de 90, o Ministério de Educação (doravante MEC) publicou um conjunto de documentos oficiais
nomeados como Parâmetros Curriculares Nacionais, direcionados à renovação e reorganização curricular das várias
disciplinas escolares do ensino no Brasil. No Ensino Fundamental de língua materna, foram publicados os Parâmetros
Curriculares de Língua Portuguesa de 1º e 2º ciclos (1997) e os de 3º e 4º ciclos (1998).
9
22
Por isso, é importante que o livro didático (LD) também contemple tais
questões, a fim de que seja um instrumento que favoreça o processo de ensinoaprendizagem do aluno e que a sua utilização se concretize na escola
adequadamente, “reforçando o vínculo dos conteúdos com as práticas sociais e
atendendo às novas demandas sociais [...]” (BATISTA, 2008[2003], p.44).
Sabemos, no entanto, que apenas a utilização do LD em sala de aula ainda
não é suficiente para formar o aluno leitor, em especial quando se trata de leitura
literária, pois, por muitas vezes, o LD ora trabalha com uma diversidade substancial
de textos jornalísticos, propagandas, ora o LD toma o texto literário no âmbito da
historicidade do texto literário ora utiliza recortes/pedaços de textos literários.
Em 1997, o MEC institui o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)
cujo objetivo é equipar as escolas com acervos de obras de referências, obras
literárias (sem textos recortados em parte), antologias de contos, bem como
bibliografias de apoio para o trabalho docente.
Contudo, apenas “abastecer” as bibliotecas ou salas de leitura não é
suficiente, uma vez que tal prática não nos dá a garantia de que a leitura aconteça
de fato. Seriam necessários mediadores, interlocutores proficientes em leitura,
leitores autônomos e apreciadores de textos literários para viabilizar outros modos
de leitura, outras práticas leitoras.
Nesse sentido, recentemente, em 2011, foi criado o Plano Nacional do Livro
e Leitura, PNLL10, cujos objetivos se alicerçam na
[...] necessidade de formar uma sociedade leitora como condição
essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de
brasileiros no que diz respeito a bens, serviços e cultura, garantindolhes uma vida digna e a estruturação de um país economicamente
viável (BRASIL/PNLL, 2011, p.21).
1.1.2 O Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL
O PNLL é uma iniciativa dos Ministérios da Cultura e da Educação e teve sua
primeira edição em 2006. Recentemente, o PNLL foi sancionado como lei, sob o
decreto11 de número 7.559 de 1º de setembro de 2011. O artigo 1º dessa lei afirma
10
Disponível em <http://www.pnll.gov.br/>, acessado em 17/04/12.
O Decreto do PNLL foi publicado no DOU no dia 5 de setembro de 2011 e pode ser acessado em
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7559.htm>.
11
23
que o tal plano: “consiste em estratégia permanente de planejamento, apoio,
articulação e referência para a execução de ações voltadas para o fomento da
leitura no País” (BRASIL /PNLL, 2011, s/p).
O PNLL é orientado por quatro eixos estratégicos de organização, tais como:
a democratização do acesso ao livro; a formação de mediadores para o incentivo à
leitura; a valorização institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; o
desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual e ao
desenvolvimento da economia nacional e dezenove linhas de ação.
As metas dessas linhas são: a implantação de novas bibliotecas e o
fortalecimento das que já existem; distribuição de livros gratuitos à comunidade
(bibliotecas circulantes, pontos de leitura nos ônibus, em vans etc.) e melhoria do
acesso a eles; a fomentação e incentivo da leitura e formação de mediadores de
leitura; ações para criar a consciência da valorização do livro e da leitura; e incentivo
à leitura literária e maior presença da produção nacional literária, científica e cultural
no exterior.
Dentre essas metas, a “leitura literária” aparece apenas na linha de ação 17 e
19 no eixo estratégico IV. Primeiro, quando se refere ao incentivo e, depois, à
produção literária. No caderno do PNLL (2011), percebemos que a literatura tem um
espaço maior. Para tanto, o documento argumenta que
Entre as muitas possibilidades de textos que podem ser adotados no
trabalho com a leitura, a literatura merece atenção especial no
contexto do Plano, dada a enorme contribuição que pode trazer para
uma formação vertical do leitor, consideradas suas três funções
essenciais, como tão bem as caracterizou Antônio Cândido: a) a
capacidade que a literatura tem de atender à nossa imensa
necessidade de ficção e fantasia; b) sua natureza
essencialmente formativa, que afeta o consciente e o
inconsciente dos leitores de maneira bastante complexa e
dialética, como a própria vida, em oposição ao caráter
pedagógico e doutrinador de outros textos; c) seu potencial de
oferecer ao leitor um conhecimento profundo do mundo, tal
como faz, por outro caminho, a ciência (BRASIL/PNLL, 2011, p.33
ênfase adicionada).
Portanto, embora a democratização do acesso ao livro e à leitura seja um dos
principais objetivos, o plano não deixa claro a qual acesso de livros se refere ou/e a
qual tipo de leitura. O ato de incentivar, de valorizar, parece-nos vago, posto que não
nos garante a concretização, a realização, de fato da leitura literária. Outra questão
24
que se coloca é o fato de nenhum eixo estratégico contemplar a presença ou o
incentivo da leitura na infância, pois não há nenhuma discussão acerca da presença
do livro e da representação simbólica desse material de leitura específica para essa
fase.
É importante destacar, no entanto, que o plano assume uma concepção de
leitura que ultrapassa a mera decodificação da escrita alfabética ou o simples ato de
decifrar os caracteres em reprodução do texto lido ou extração de informações.
Assim, “a leitura configura um ato criativo de construção de sentidos, realizado pelos
leitores a partir de um texto criado por outro(s) sujeito(s)” (PNLL, 2011, p.32).
Como
se
pode
observar,
esse
programa
traz
mudanças
bastante
significativas, dentre as quais podemos citar: a disponibilização de livros gratuitos
para toda a comunidade; a acessibilidade da leitura aos cegos e surdos; a
implantação das chamadas bibliotecas móveis; o aumento do número de livrarias
etc.
Apresentadas essas considerações, refletiremos, na próxima seção, a partir
de Bakhtin e Cândido, sobre como concebemos a literatura e o texto literário.
1.2 Um diálogo possível: Mikhail Bakhtin e Antônio Cândido
Mikhail Bakhtin foi um eminente pensador russo que, juntamente com o seu
Círculo12, concebiam a linguagem a partir do âmbito sócio-histórico-ideológicocultural. Na literatura, Mikhail Bakhtin é mais conhecido por suas contribuições na
teoria do romance com o conceito de romance polifônico (O problema da poética de
Dostoievski, de 1929), extraído a partir das obras do escritor russo Dostoievski, ou
ainda pelos estudos realizados sobre a obra de Rabelais, cunhando, assim, o
conceito de carnavalização (A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O
contexto de François Rabelais de 194013).
As ideias bakhtinianas são decorrentes de discussão, reflexão e produção realizadas por Mikhail Bakhtin e um grupo de
estudos de intelectuais russos, conhecido como Bakhtin e o Círculo, em meados de 1920 a 1970, cujos participantes eram:
V. N. Voloshínov, P. Medvedev, Iudina, Kagan entre outros. Os estudiosos supracitados se dedicavam a pesquisar questões
de variadas áreas das Ciências Humanas. É importante dizer que a autoria de algumas obras é disputada. Por exemplo, no
original russo e na tradução inglesa a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) levam somente a assinatura de
Voloshínov, ao passo que na tradução brasileira (que foi feita a partir da francesa) aparecem tanto a assinatura de
Voloshínov como a de Bakhtin. Diante disso, as obras que possuem esta problemática – como é o caso também da obra
Discurso na vida e discurso na arte (1926) - citaremos o nome dos dois autores e as que levam somente a assinatura de
Bakhtin serão citadas somente em seu nome. Cf. Brait (2005,2006).
12
13
Embora sua primeira edição tenha saído em 1965 na Rússia, foi escrito em 1940 em forma de tese de doutoramento.
25
Ademais, os estudos de Mikhail Bakhtin têm contribuído substancialmente
com as diversas áreas das Ciências Humanas Sociais, a saber: Linguística,
Linguística Aplicada, Análise do Discurso, Filosofia, Educação etc, pois, como temos
visto, o Bakhtin foi um pensador de fronteiras amplas.
Para o pensador russo, a literatura não pode ser dissociada da vida cotidiana,
real, pois ela é sócio-histórica. Ele não toma o texto literário de maneira dicotômica,
como alguns estudiosos vinham fazendo em sua época: de um lado, a poética
teórica e histórica, de outro lado, o método sociológico defendido por P. N. Sakulin
em O método sociológico na literatura14.
Na perspectiva defendida por P. N. Sakulin, a literatura era compreendida a
partir de leis sistemáticas que seriam capazes de evoluir de maneira “natural”.
Portanto, a literatura era submetida a uma ação de causa do meio social, como se
as leis sistemáticas fossem uma essência interna, não sendo determinadas pela
inserção social do fenômeno estético. Assim sendo, a análise imanentista precedia a
análise sociológica literária.
Por isso, Bakhtin (2010[1970], p.360-361) ao contra-argumentar tal visão
assevera que:
a literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida
fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável
separá-la do restante da cultura e, como se faz constantemente, ligála imediatamente a fatores socioeconômicos, por assim dizer,
passando por cima da cultura. Esses fatores sobre a cultura no seu
todo e só através dela e juntamente com ela influenciam a literatura
(BAKHTIN, 2010 [1970], p.360-361 ênfase adicionada).
Bakhtin (2010 [1970]) defende que a literatura não pode ser um reflexo ou
espelho da vida socioeconômica, apesar de ela influenciar fortemente a literatura de
forma não direta. Em um conto de uma determinada época, por exemplo, não se
pode traduzir diretamente uma parte do enredo como um reflexo, decalque ou cópia
da realidade socioeconômica e histórica daquele momento.
Volochinov/Bakhtin, em Discurso na vida e discurso na arte (Sobre a poética
sociológica) de 1926, argumentam que o discurso (a palavra 15) na vida deve ser
14
Cf. Discurso na vida e discurso na arte (Sobre poética sociológica) de 1926.
Segundo Bubnova (2009, p.41 ênfase da autora), “ o vocábulo palavra deve ser entendido em sua ambivalência e
polissemia: além do seu “primeiro” significado, pode querer dizer “discurso”, “anunciado”, “enunciação”, “ato de fala” etc. A
palavra, sendo produto da interação entre várias instâncias sociais, vem a ser um acontecimento social, de uma maneira
15
26
analisado tanto em seu caráter extralinguístico (interlocutores, tempo, lugar social,
aspectos
presumidos
dos
interlocutores,
contexto
sócio-histórico,
horizonte
ideológico etc.), quanto em seu caráter linguístico intrínseco (seleção textual,
sintaxe, entonação, léxico, léxico técnico do gênero, ortografia, abreviação etc.).
Analogamente acontece isso com o discurso na arte, o qual deve ser tomado a partir
dos elementos externos (a sua situação ou condições de produção, circulação e
recepção) e internos que se integram totalmente no discurso artístico e literário
(VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2010[1926]).
Por isso, Bakhtin discute o texto literário a partir dos fenômenos culturais da
época, de maneira que esses são intrínsecos e inseparáveis do fazer e da análise
literária. O aspecto sócio-histórico se figura como elemento inerente a arte literária,
posto que ele não lhe seja estranho e, tampouco, está externo a ela.
Assim, o discurso artístico se constitui não apenas do próprio objeto em si –
como uma imanência -, porém das relações sócio-históricas, da situação de
produção e recepção, das esferas de comunicação discursivas, das nuances
apreciativas e valorativas do autor/interlocutor etc.
É, pois, nesse sentido que os autores russos (1926, pp.2-3 ênfase dos
autores) entendem a arte como um fenômeno social:
A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico
afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro
dela. Não se trata de um elemento estranho afetando outro, mas de
uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é
apenas uma variedade do social.
A teoria da arte,
conseqüentemente, só pode ser uma sociologia da arte. Nenhuma
tarefa “imanente” resta neste campo (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
1926, pp. 2-3 ênfase dos autores).
Bakhtin/Volochinov consideram, assim, a literatura pela ótica cultural e social,
pois, a arte literária situa-se no âmbito das expressões simbólicas, e, como tal, é um
elemento imprescindível na constituição da civilização.
No contexto brasileiro, temos o estudioso Antônio Cândido, um renomado
professor e crítico literário cuja obra mais conhecida é Formação da literatura
brasileira (1959). É reconhecido e respeitado no Brasil, sendo referência obrigatória
para os estudiosos brasileiros no campo das artes literárias.
análoga a como na ontologia dialógica de Bakhtin um ato ético (postupok) era o acontecimento de encontro entre o eu e o
outro Ser” (BUBNOVA, 2009, p.41 ênfase da autora).
27
Assim como Bakhtin, Cândido vê a literatura a partir da abordagem
sociológica mediada por outro sistema maior, a cultura. Cândido se contrapunha aos
seus antecessores que tomavam a literatura como um simples documento histórico
da sociedade (uma historiografia literária).
O pesquisador brasileiro constrói seu método dialético de análise a partir das
relações complexas entre a literatura e a sociedade, a literatura e outras artes, o
escritor e o público, o conteúdo e a forma, observando, ao mesmo tempo, as
relações entre os elementos internos e externos da obra literária. Para tanto, o
crítico literário reúne conhecimentos das diversas áreas, sociologia, história da
literatura, psicologia, direito e crítica literária.
No ensaio intitulado O direito à literatura (2011), o brasileiro compreende essa
como um bem essencial, incompressível16, para a humanização do ser humano. O
autor afirma que é inerente ao homem a prática de fabulação, de criação de seres
mitológicos, de imaginação e invenção de estórias. Para ele, “não há povo e não há
homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato
com alguma espécie de fabulação” (CÂNDIDO, 2011, p.176).
É na perspectiva de imaginação e invenção de estórias que esta pesquisa
compreende e defende a leitura de textos literários como forma de humanização do
sujeito. Antônio Cândido, em defesa de uma sociedade mais igualitária, afirma que
o acesso aos bens culturais é um direito humano e a literatura “[...] é fator
indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua
humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no
inconsciente” (CÂNDIDO, 2011, p.177).
Segundo o autor (2011), os sujeitos das camadas populares não leem a
literatura
considerada
erudita,
porque
a
acessibilidade aos livros não
é
democratizada17. O que há, de acordo com o autor, é uma privação desses bens
culturais, indispensáveis e essenciais para a constituição e existência do ser
humano.
Antônio Cândido se fundamenta na distinção do sociólogo francês Louis Joseph Lebret entre bens compressíveis
(essenciais) e bens incompressíveis. Segundo o qual, “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram
sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a
alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde (...); e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que
não, a arte e a literatura?” (CÂNDIDO, 1995, s/p).
16
Antônio Cândido discutiu tal questão no ano de 1988 e vemos que só agora surge um programa (PNLL) governamental
em caráter de lei que abarque a democratização do acesso ao livro literário.
17
28
O autor ainda argumenta que a literatura só estará nessa categoria, isto é,
será encarada como bem incompressível, se a fruição da arte e literatura
corresponderem a uma necessidade profunda do ser humano. O ser humano não
consegue viver sem nenhum contato com o universo fabuloso ou ao menos vivenciar
algum momento em que contemple o universo fantástico.
Para ele, o simples ato de sonhar enquanto dormimos, por exemplo,
asseguraria a presença indispensável desse universo. A criação ficcional ou poética
é inerente ao ser humano, já que está presente em cada um de nós, escolarizados
ou não, eruditos ou não. Tal ocorrência é notória nos poemas, nos causos, nos
contos, nas canções populares, nos cordéis etc. A manifestação da criação literária
se dá desde o devaneio amoroso até a prática assídua de ver telenovelas ou na
leitura despreocupada de um conto, por exemplo.
Ainda para o autor (2011, p.182), o caráter humanizador da literatura se
efetiva como:
[...] um processo que confirma no homem aqueles traços que
reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso
da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna, mais compreensivos e
abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CÂNDIDO,
2011 [1988], p.182).
Nesse sentido, a literatura se vale de coisas concernentes à vida, como a
história, a religião, a filosofia, a ciência etc, ou seja, o fazer literário inclui o social, o
histórico, o religioso, dentre outros, a fim de criar e contrapor ideologias, verdades,
valores, crenças. Portanto, o fazer literário dialoga com as coisas atinentes à vida
humana como o amor, as paixões, as guerras, a miséria, dentre outros. O trabalho
que o escritor Dostoiévski fez com a linguagem ao escrever uma obra como Os
irmãos Karamasov é completamente diferente do que o jornalista Dostoiévski fazia
no jornal, por exemplo. O literário, portanto, não é pronto e previsível, não é estático
e acabado, mas inusitado, inacabado, polissêmico, questionador, libertador e
insólito.
Isso só é possível porque, como toda arte, a literatura tem o poder de falar em
nós, no mais profundo do nosso ser, de maneira tal que nos identificamos com os
personagens; envolvemos-nos com as estórias, as brigas, as intrigas; fazemos inter-
29
relações com outros textos ou contos que ouvimos no quotidiano; refletimos acerca
dos atos complexos da existência humana; faz-nos ficar horas e horas vidrados no
livro; possibilita um mundo diferente daquele no qual estamos inseridos; leva-nos a
imaginar lugares, cidades, ruas; faz-nos sentir dor, alegria, compaixão, revolta por
algum personagem ou situação; promove ascensão intelectual e social, entre outros.
Talvez, por isso, Petrilli (2010, p.41 ênfase adicionada) tenha asseverado que “[...] a
linguagem literária é o lugar em que mais se destacam e se manifestam as
características
vivas
do
comunicar-se,
a
plurivocidade
da
‘palavra’,
seu
‘plurilinguismo dialogizado’ [...]”.
A literatura tem caráter humanizador porque o autor de uma obra organiza as
palavras num todo articulado, de maneira que elas se comunicam ao nosso “espírito”
e o leva, a priori, a se organizar e, depois, a organizar o mundo (CÂNDIDO, 2011),
ou seja, o autor organiza o material verbal, a fim de que haja uma superação desse
que é determinado por um arranjo especial das palavras, o qual gera sentido.
Através da literatura, o autor manifesta os sentimentos, as expressões e as
visões apreciadas e valoradas socialmente do universo dos indivíduos e da
sociedade, isto é, o texto literário constitui-se a partir da interrelação entre autorcriador e interlocutor-contemplador. Entendemos, a partir disso, que a literatura pode
ser um instrumento consciente de desmascaramento, uma vez que pode focalizar as
situações de restrição dos direitos, a miséria, a mutilação espiritual de determinada
comunidade etc.
Cereja (2004) afirma que, para esses pensadores, Bakhtin e Cândido, a
literatura é resultante da confluência de várias forças, culturais, sociais, estéticas,
linguísticas, históricas, bem como “da influência da própria tradição literária, que
implica uma concepção não necessariamente linear e cumulativa de tempo”
(CEREJA, 2004, p. 223). Acreditamos, portanto, que os teóricos Mikhail Bakhtin e
Antônio Cândido, apesar de não dialogarem diretamente entre si, dialogam através
de suas obras, sobretudo no ensino de literatura no Brasil no final do século XX e
início do XXI.
Por isso, aproximá-los é aprofundar o olhar sobre a literatura, a sociologia da
cultura, assim como repensar o ensino da literatura (do letramento literário) na
escola, não pelo viés da tradição, ou seja, dos estudos das escolas literárias lineares
e “sequenciais” (romantismo, realismo, modernismo, etc.), mas, sobretudo, pelo viés
da esfera literária e dos gêneros discursivos literários, conforme sugerido nos
30
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (contos, crônicas,
poemas, etc.) ou destacado pelo Programa Nacional de Biblioteca Escolar.
Portanto, a presente pesquisa compreende o texto literário como um espaço
sócio-historicamente constituído através dos elementos culturais e ideológicos de
uma determinada sociedade. Partiremos, assim, da concepção de que o texto
literário é um lugar de confronto de vozes, de emancipação e humanização do ser
humano.
Na próxima seção, discutiremos sobre a concepção de leitura à luz da teoria
bakhtiniana, relacionando-a com a dos documentos oficiais e com a do letramento
literário.
1.3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o letramento literário
1.3.1 A concepção de leitura nos PCN
Ao observarmos a concepção de leitura presente nos PCN: “a leitura é o
processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação
do texto [...]” (BRASIL, 1998, p.69), vemos que essa se baseia fortemente na
acepção bakhtiniana de compreensão ativa.
Para Bakhtin (2003[1952-1953/1979]), a compreensão ativa se alicerça no
pensamento basilar de que todo enunciado se constitui de uma compreensão e
resposta, porque “toda compreensão é prenhe de resposta” (BAKHTIN, 2003 [19521953/1979], p. 271) e todo sujeito tem uma natureza responsiva. O ato de
compreensão ativa é entendido como um ato de resposta, porque o sujeito sóciohistórico é um ser que age na vida e a modifica e transforma, recriando o objeto
contemplado
num
novo
contexto
–
o
contexto
potencial
da
resposta
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006[1929]).
Para o pensamento bakhtiniano, a palavra chega ao falante como parte das
infinitas enunciações (enunciados) de outros sujeitos situados socialmente que já
estão na vida, posto que Bakhtin compreende o leitor ou “o ouvinte como alguém
que só pode compreender como aquele que responde e replica de maneira ativa”
(BAKHTI, 1993 [1934-35/1979], p.89). É na interação viva que nos importamos ou
não com o que o outro diz, ponderamos, discordamos, apreciamos ou julgamos as
palavras de outrem, as declarações, os apontamentos etc. A compreensão ativa é,
31
assim, a prática de recuperação do ato, da atividade de produção do enunciado
concreto.
Deste modo, a compreensão ativa, somando-se àquilo que é
compreendido no novo círculo do que se compreende, determina
uma série de inter-relações complexas, de consonâncias e
multissonâncias com o compreendido, enriquece-o de novos
elementos (BAKHTIN, 1993[1934-1925], pp.90-91).
A palavra dita pelo locutor, portanto, é coberta de tonalidades e nuanças
valorativo-apreciativas, pois é assim que ela se comporta na enunciação viva:
sempre carregada de matizes, valorada ou desprestigiada, boa ou má, importante ou
trivial etc (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010[1929]).
Como sabemos a palavra é viva e, com ela, os sentidos engendrados não se
encontram na língua, no sistema linguístico, na palavra isolada, porém na vida real,
isto é, nas interrelações entre os sujeitos situados social e historicamente num
determinado tempo e espaço e nas diferentes esferas de interação humana. Toda
enunciação viva pressupõe uma réplica ativa de outrem, quer dizer, “todo discurso é
orientado para a resposta” (BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 89).
Nesse sentido, o pensamento bakhtiniano toma o sujeito como ser humano
ativo e responsável, ou seja, o ser que age na vida é o centro das discussões
bakhtinianas. O sujeito, portanto, faz parte do processo/produto dialógico de
compreensão da linguagem, do sentido engendrado numa enunciação. Isso significa
dizer que o sujeito socialmente constituído não é alguém que compreende apenas
passivamente a enunciação, pelo contrário, o sujeito participa ativamente do diálogo
corrente em que a sua atuação é responsiva e responsável.
Paes de Barros (2005), embasada teoricamente no pensamento bakhtiniano,
concebe a compreensão responsiva ativa como uma “compreensão no sentido da
evolução é o que se acha na base da responsividade, no processo de interação
verbal” (PAES DE BARROS, 2005, p. 45 ênfase adicionada). Assim como a autora
(2005), entendemos a compreensão ativa como um ato em que os sujeitos
envolvidos em determinada interação verbal participam ativamente, de maneira tal
que enriquecem e acrescentam novos elementos ao compreendido.
Portanto, esses sujeitos não são meros “ouvintes” passivos, receptivos que
apenas dublam e reproduzem o discurso verbal, a esse fenômeno Bakhtin chamou
de compreensão passiva. Assim como Bakhtin (1993[1934-35/1979]), Paes de
Barros (2005) concebe a compreensão passiva como um ato de reconhecimento dos
32
componentes linguísticos cuja prática de leitura é entendida apenas como
decodificação e repetição dos elementos do texto, ou seja, não há acréscimo de
novos elementos, de outras ideias ou refutações ao já dito.
A compreensão passiva está no campo da decodificação ou decifração da
leitura, por isso, inferimos que tal prática figura como uma leitura identificativa:
identificar o sinal, o sinal escrito. Ou ainda de identificação dos traços fônicos,
gramaticais e outros relevantes para esse tipo de compreensão, a qual pode ainda
se apresentar ao sujeito como um item de significado do dicionário ou da gramática.
Bakhtin (1993[1934-35]) toma a compreensão passiva como um minimum de
compreensão, a saber:
Temos em vista não o minimum lingüísticos abstrato da língua
comum, no sentido do sistema de formas elementares (de símbolos
lingüísticos) que assegure um minimum de compreensão na
comunicação prática. Tomamos a língua não como sistemas de
categorias gramaticais abstratas [...] (BAKHTIN,1993[1934-35], p.81
ênfase adicionada).
A compreensão passiva entende que a enunciação será sempre idêntica,
única e não reiterável pela qual, em cada enunciação, podemos encontrar os
elementos idênticos a enunciações anteriores que são iguais para todas as
enunciações futuras. Nessa perspectiva, se “consideravam o ouvinte como alguém
que só pode compreender passivamente” (BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 89), isto é,
o ouvinte ou o leitor é considerado como um ser que deve ficar repetindo oralmente,
copiando ou oralizando algo já escrito.
No gênero conto, a compreensão passiva pode ser detectada no momento da
leitura em voz alta, quando o leitor é instigado a “recontar” pura e simplesmente a
narrativa, sem o acréscimo de novos elementos - como dublagem ou ventriloquismo
- ou numa soletração de alguma palavra difícil ou na busca da significação de algum
termo do conto no dicionário ou no glossário sem muitos objetivos. Isso é decorrente
de: “[...] toda uma corrente de práticas didáticas – ligada [...] à visão de leitura como
extração de sentido literal do texto [...] que influenciou (e influencia) fortemente as
práticas de leitura presentes até os nossos dias nas escolas” (PAES DE BARROS,
2005, p. 46).
Nessa acepção, a compreensão passiva é vista como uma espécie de
ventriloquismo, por assim dizer, momento em que o leitor dubla a fala alheia, como
33
quem reconta o que leu, de modo que pouco ou nada contribui para o entendimento,
portanto, “não caminha para a evolução” (idem, 2005, p.47 ênfase da autora), ou
seja, tal dinâmica não passa de uma reprodução, identificação e reconhecimento da
voz alheia.
Assim, como vimos desenvolvendo, a compreensão passiva, na perspectiva
bakhtiniana, comporta-se como uma prática de decodificação, identificação ou cópia
de informações. Dessa forma, a discussão travada aqui figura como pano de fundo
para a nossa pesquisa, tendo em vista que assumimos a leitura como um processo
criativo e dialógico, contrapondo-se, assim, a concepção de práticas didáticas
relacionadas à visão de leitura como mera decodificação dos componentes
linguísticos do texto que influenciou - e ainda influencia - as atividades de leitura nas
escolas, como bem argumenta a autora supracitada.
Nesse sentido, no ano de 1998, no contexto escolar brasileiro, com a
publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de 3º e 4º
ciclos (PCNLP) pela Secretaria de Educação Básica (SEB), há a recomendação da
presença de outros "gêneros de circulação social" na escola; uma presença maior de
gêneros das esferas jornalística, publicitária, midiática etc,cujo objetivo maior era a
formação do leitor crítico e reflexivo, de maneira que ele possa exercer plena e
democraticamente sua cidadania.
Como podemos ver no quadro a seguir os PCNLP (BRASIL/SEF/MEC, 1998,
p.54) sugerem para a prática de leitura de textos escritos e orais os seguintes
gêneros do discurso:
GÊNEROS PRIVILEGIADOS PARA A PRÁTICA DE ESCUTA E LEITURA DE TEXTOS
Linguagem oral
Linguagem escrita
Literários
 Cordel, causos
similares
 texto dramático
 canção
De imprensa
 comentário
radiofônico
 entrevista
 debate
 depoimento
e
Literários
De imprensa






conto
novela
romance
crônica
poema
texto dramático






notícia
editorial
artigo
reportagem
carta do leitor
entrevista
34
 charge e tira
De divulgação
científica
 exposição
 seminário
 debate
 palestra
De divulgação científica
 verbete enciclopédico
(nota/artigo)
 relatório
de
experiências
 didáticos
(textos,
enunciados
de
questões)
 artigo
 propaganda
Publicidade
Publicidade
 propaganda
Quadro 01 - Prática de escuta de textos orais e leitura de textos escritos
No que tange à literatura, os PCNLP (1998) asseveram que:
O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de
reconhecimento de singularidades e propriedade que matizam um
tipo particular de uso da linguagem. É possível afastar uma série de
equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos
textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento
de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não
aquelas que contribuem para a formação de leitores capazes de
reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão
e a profundidade das construções literárias (BRASIL, MEC, SEF,
1998, p. 27).
Decorrente disso, os PCNLP (1998) sugerem que o trabalho com os gêneros
da esfera literária pode auxiliar no processo de compreensão da própria linguagem
literária e de seus usos e práticas sociais inerentes. O trabalho com os gêneros da
esfera literária, como indicado nos documentos oficiais, possibilita um tratamento
específico da literatura na sua própria esfera e não com um pretexto para estudar
conceitos, noções de outras esferas discursivas (moral, econômica, geográfica etc) e
tampouco como pretexto para o estudo da gramática.
Além disso, o trabalho com os gêneros da esfera literária auxilia no
desenvolvimento do letramento literário. Nesse sentido, o documento recomenda
que o ensino deva “[...] contemplar, também, a diversidade que acompanha a
recepção a que os diversos textos são submetidos nas práticas sociais de leitura”
(BRASIL, 1998, p.26). Assim, o letramento literário amplia a visão e o entendimento
de outras práticas leitoras sociais, como também pode colaborar para a apropriação
de outras práticas de leitura.
35
Em nosso país, a escola é a principal agência de formação para um
letramento literário para as crianças e adolescentes, sobretudo das famílias de baixa
renda, ou seja, é função da escola promover a leitura de textos literários, visto que
os jovens oriundos de bairros periféricos, às vezes, não têm acesso ao texto literário,
especialmente o erudito, àqueles valorados pela sociedade em seu dia a dia.
Como bem afirmam os PCNLP, “trata-se de uma educação literária, não com
a finalidade de desenvolver uma historiografia [...]” (BRASIL,1998, p. 71). Por
conseguinte, o trabalho com o letramento literário deve evitar o desenvolvimento de
estudo da historiografia literária, isto é, das escolas ou períodos literários ou tomar a
literatura para os estudos biográficos de algum autor literário.
O letramento literário deve contemplar “uma educação literária [...] com a
finalidade de desenvolver [...] propostas que relacionem a recepção e a criação
literária às formas culturais da sociedade [com vistas a] ampliar os modos de ler dos
alunos [...]” (BRASIL,1998,p.71).
Paulino e Cosson (2009, p.67), em um artigo 18 intitulado “Letramento literário:
para viver a literatura dentro e fora da escola”, definem letramento literário como “o
processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos”. Os
pesquisadores argumentam que tomar o letramento literário como um processo
significa dizer que tal fenômeno se dá em um estado constante de transformação,
em um continuo, ou seja, não é uma “habilidade que se adquire como aprender a
andar de bicicleta” (idem).
Outro aspecto importante acerca do letramento literário é que ele não começa
e nem termina na escola, embora acreditemos que a escola tenha o dever de
promovê-lo. De acordo com os mesmos autores (2009, pp. 68-69):
A singularidade que faz do letramento literário um tipo especial de
letramento se efetiva por meio de um processo constituído de dois
grandes procedimentos. O primeiro deles é a interação verbal intensa
que a apropriação da literatura demanda. A leitura e a escrita do
texto literário operam em um mundo feito essencialmente de palavras
e, por essa razão, uma integração mais profunda com o universo da
linguagem se torna necessária [...] o segundo procedimento, que se
efetiva dentro do primeiro e dele não pode ser dissociado, é o (re)
conhecimento do outro e o movimento de desconstrução/ construção
do mundo que se faz pela experiência da literatura [...]
(PAULINO&COSSON, 2009, pp.68 – 69).
Cf. Zilberman, Regina e Rösing, Tania M. K. (Orgs). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global,
2009.
18
36
O letramento literário é compreendido como um ato de apropriação, isso é,
tornar o literário próprio, incorporá-lo, transformá-lo e deixar-se ser transformado. Tal
apropriação é sócio-individual, tendo em vista que um mesmo texto gera leituras e
sentidos diferentes, isso porque dependem das condições, dos interesses, dos
objetivos, que motivam a leitura e as experiências a partir das leituras de mundo de
cada leitor, ou seja, na prática literária não há espaço para apenas um sentido, uma
interpretação, uma “resposta certa”. Ler textos literários é uma experiência de
imersão nas coisas que estão além, é ainda imergir num mundo do fantástico,
insólito e maravilhoso.
Dessa forma, o aspecto polissêmico da literatura é um espaço de plena
liberdade para o leitor. “Daí provém o prazer da leitura, uma vez que ela mobiliza
mais intensa e inteiramente a consciência do leitor; sem obrigá-lo a manter-se nas
amarras do cotidiano” (BORDINI & AGUIAR, 1988, p.15), posto que o literário pode
fornecer ao leitor uma participação ativa na construção dos sentidos e, por
conseguinte, leva-o a reexaminar e reavaliar a sua própria visão e percepção da
realidade concreta.
Sendo assim, o mundo criado pelo autor é aceito pelo leitor como um mundo
possível para si. Na obra literária, um mundo possível se constrói porque os objetos
e os processos nem sempre são totalmente delineados, portanto, esse mundo deixa
lacunas e “vazios” que são “preenchidos” pelo leitor, esse entra num estado de
desestabilização que lhe proporciona a possibilidade de reestruturar-se.
Nessa dinâmica, há um cruzamento de horizontes: o do leitor com o do(s)
personagem(s); do leitor com o do autor e com o conto que suscitam questões e dão
respostas a cada um a seu modo e de acordo com seu momento sócio-histórico.
Segundo Aguiar (2001), isso se deve ao fato de que a leitura literária “é simbólica,
ela permite leituras plurais, dando-se à interpretação sempre de um modo novo,
pelas possibilidades de combinações dos signos” (AGUIAR, 2001, p. 249).
1.4 A escolarização do texto literário
A escola na Antiguidade era destinada apenas aos que pertencessem à elite,
isso significa dizer que a maior parte da população, vinculada à economia rural,
afastada dos centros urbanos e governamentais, ficava de fora de seu espaço
(ZILBERMAN, 2009).
37
No período medieval, os indivíduos pertencentes à sociedade cristã ficaram à
margem da escrita, da leitura e da escola. Conforme Zilberman (2009), “a situação
não se altera significativamente durante a Idade Média, que restringiu a vida
educacional, cultural e artística às atividades nos mosteiros dos cristãos [...]”
(ZIBERMAN, 2009, p.20).
É com a invenção da tipografia que as mudanças passam a ser significativas.
É mais ainda a partir do séc. XVIII que essas mudanças começam a se mostrar com
mais intensidade e significação (ZILBERMAN, 2009). A autora afirma que é nesse
período que “a sociedade europeia passa a viver sob o que Raymond William
denominou a revolução duradoura, expressa em diferentes níveis”, como
econômico, político e cultural19.
É nesse momento que se verifica o impacto das novas tecnologias de
comunicação que, por exemplo, “propiciam a multiplicação dos meios de reprodução
mecânica, facultando a difusão dos objetos culturais, antes privilégio de uma elite
social e intelectual” (ZILBERMAN, 2009, p.21), bem como a ampliação do
atendimento escolar às classes populares. Assim, a prática de leitura e o papel da
escola passam a ser compreendidas como uma atividade relevante e valorizada pela
sociedade dessa época.
O pensamento vigente da época era que a habilidade de ler e o contato
constante com a cultura resultariam na emancipação intelectual do indivíduo e na
construção de suas ideias próprias. O pensamento iluminista via o livro e a leitura
como condição sine qua non para a expansão do saber, assim como para a
emancipação intelectual.
Na realidade brasileira, a escola pública nasceu a partir do discurso de levar
as letras até o povo, a fim de promover uma maior igualdade social. Segundo
Soares (2001), esse discurso em favor da democratização do saber, da escola é
antigo. Rui Barbosa, por exemplo, em 1882, já denunciava a precária educação da
época e anunciava propostas de multiplicação de escolas, bem como melhoria no
ensino.
Todavia, embora tal instituição tenha surgido a partir dessa suposta ideia de
igualdade social, logo “tornou-se mais um aparelho de dominação das classes
populares, traindo o seu objetivo inicial” (AGUIAR&BORDINI, 1988, p. 10).
Cf. WILLIAMS, Raymond. The long revolution. London: Pelican, 1980. Apud ZILBERMAM, Regina. A escola e a leitura da
literatura. In: _____; ROSING, Tania (Orgs). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.
19
38
Provavelmente, essa mudança por parte da escola se deva ao fato de que ela surgiu
por iniciativa e para os interesses da classe burguesa emergente. Apesar de a
escola ter esse caráter contraditório, ela continua sendo a principal agência de
prática de leitura/letramentos dos alunos, em especial de alunos das escolas
públicas.
A função da escola é, assim, proporcionar aos alunos o contato e a
apropriação de variados tipos de letramentos - como o digital, o literário etc - e,
concomitantemente, o domínio da leitura e da escrita, a fim de que esses discentes
saibam comunicar-se e posicionar-se criticamente nas diversas situações e
instâncias sociais.
Somado a isso, é de suma importância que a leitura literária assuma um lugar
especial na aula de língua portuguesa, pois, como já dissemos em outro momento, a
literatura tem o poder de dizer o que somos enquanto sujeitos duma dada
comunidade, de tal modo que nos incentiva a desejar expressar o mundo por nós
mesmos. Ademais, para que a leitura literária cumpra o seu papel humanizador, é
necessário que os rumos da escolarização dos textos literários mudem.
Contudo, sabemos que a escola brasileira apresenta uma crise substancial no
que tange a prática da leitura - a julgar pelos diagnósticos de procedência diversa
(PISA, SAEB). E para Zilberman (2009, p.28) os conflitos que acarretam tal crise são
de várias ordens:
Começam no ambiente da administração da educação, disseminada
entre órgãos relacionados aos níveis federais, estaduais e
municipais, sem que esses busquem afinar-se, e estendem-se à
política de remuneração e qualificação dos professores, à
conservação física dos prédios, incluindo-se salas de aula,
bibliotecas e equipamentos de ensino [...] (ZILBERMAN, 2009, p.28).
Além de todas essas questões, que desencadeiam outras, a não proficiência
em leitura por parte dos alunos tem sido um grande problema para o ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa. Atualmente, por exemplo, a escola tem
enfrentado grande dificuldade em encontrar uma maneira de conciliar esses dois
“mundos”: a linguagem cujo suporte é o impresso (o livro) e a linguagem
multimidiática (as telas de computador, de cinema, de celular, de televisão, etc.).
Assim, entendemos que a relação escola e literatura não é harmoniosa, “[...]
uma vez que a educação literária é um produto do século XIX que já não tem razão
de ser no século XXI [...] [somado a força da tradição e da inércia curricular]”
39
(COSSON, 2007, p.20), pois em nossa sociedade contemporânea, há uma
multiplicidade de textos, de imagens, de linguagens e espaços interativos de ordens
várias e uma grande diversidade de manifestações culturais. Esses são alguns
argumentos que levam algumas pessoas a recusarem a presença da leitura literária
no âmbito escolar.
Paulino (2008, p. 65) afirma que:
As motivações para a leitura literária teriam que ultrapassar esse
contexto de urgência e ser encaradas em nível cultural mais amplo
que o escolar, para que se relacionem à cidadania crítica e criativa, à
vida social, ao cotidiano, tornando-se um letramento literário de fato,
ao compor a vida cotidiana da maioria dos indivíduos (PAULINO,
2008, p.65).
A autora (2008) defende um letramento literário para além dos muros da
escola, de maneira que esse letramento possa se refletir na vida do aluno de
maneira que o auxilie em sua formação enquanto cidadão.
Atualmente, os suportes pelos quais a literatura é veiculada são bastante
diversos. Eles são flexíveis, mutáveis e se adaptam às novas condições sóciohistórico da sociedade vigente. Nos dizeres de Zilberman (2009), os suportes da
literatura na Antiguidade:
[...] migraram da argila, utilizada pelos sempre lembrados sumérios,
para o papiro dos egípcios e para o pergaminho de gregos e latinos,
até chegar ao papel na modernidade. Atualmente, podem alojar-se
na tela do computador ou na lâmina do CD, como já passaram pelo
plástico do disquete e pelas fibras óticas da rede virtual, processo
compartilhado pela permanência do formato do códice,
representados pelos livros impressos em matéria de procedência
vegetal (ZILBERMAN, 2009, p.29).
O relevante não é por onde o texto literário é viabilizado ou em qual suporte
se encontra, mas se o que o aluno está lendo leva-o a refletir acerca de sua
condição humana. Sabemos que a leitura literária não se configura de maneira
fechada, pelo contrário, é marcada pelos vazios e pelo (in)acabamento das
situações e das figuras propostas, de maneira que suscita a intervenção e
participação daquele que lê. Portanto, “[...] a literatura instaura-se no trabalho com a
linguagem, reveladora de pistas para a ideação da vida não tal qual ela é, mas como
ela pode ser. Daí a sua perenidade” (AGUIAR, 2007, p.18).
40
No que tange a escolarização do texto literário, Soares (2001) assevera que a
escola se apropria da literatura, tomando-a para si, escolarizando-a, didatizando-a e
pedagogizando-a, a fim de atender aos seus próprios objetivos, tornando, assim, a
arte literária uma literatura escolarizada e, portanto, fugindo de sua função primeira,
permitir a fruição literária. O trabalho que a escola tem feito com o texto literário, por
muitas vezes, é de modo fragmentado, engessado ou quando não, uma leitura já
pronta com a resposta certa.
Como temos dito, a expressão escolarização da literatura ou do texto literário
remete a ideia de tornar literário o escolar – a literalização escolar -, isso se deve
pelo fato de que o texto literário continua sendo apresentado com um caráter
educativo, de formação, de aprendizado.
A título de exemplificação temos a obra A menina do nariz arrebitado (1921)
de Monteiro Lobato que, quando publicada, trazia em sua capa o seguinte inscrito:
“livro de leitura para as segundas séries”, ademais, o livro foi anunciado como “um
novo livro escolar aprovado pelo governo de São Paulo”. Assim, entendemos que,
em boa medida, a escolarização do texto literário foi acompanhando o ritmo do
crescimento e do desenvolvimento da educação escolar.
Padilha (2005) nos alerta que a escolarização, de certa forma, é decorrente
“das diferentes concepções de língua, linguagem, escola, sujeito e mundo que
cercam o processo de produção dos manuais didáticos [e, sobretudo, a prática de
sala de aula]” (PADILHA, 2005, p.2). O texto literário, portanto, não é estudado em
sua particularidade, em suas características específicas.
A escolarização ou didatização do texto literário é um processo natural, assim
como todo conhecimento que chega a escola, uma vez que não há como a escola
existir sem a escolarização, caso contrário fugiria de sua própria essência. A
instituição escola está indissociavelmente ligada à constituição dos conhecimentos
que, quando escolarizados, se corporificam e se formalizam em currículos, matérias,
disciplinas, programas, metodologias.
Por isso, não tem como evitar que a literatura – assim como qualquer outra
arte ou ciência - se escolarize, pois, como afirma Soares (2001, p.21) “não se pode
criticá-la, ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola”. Entretanto, o
que ocorre é que a escolarização, consoante com a autora (2001), não tem se
realizado adequadamente no cotidiano da escola. Para a autora, o que se deve
criticar não é a escolarização da arte literária,
41
[...] mas a inadequação, a errônea, a imprópria escolarização da
literatura, que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção,
como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal
compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigurao, desvirtua-o, falseia-o (SOARES, 2001, p.22).
Para Walty (2001), o discurso didático tem o caráter de esvaziar e congelar
em definições e classificações o texto literário com o objetivo de ensinar regras
morais, discutir acerca de drogas, aborto ou gravidez na adolescência, bem como
ensinar regras gramaticais etc. Tal procedimento, analisado por Magda Soares e por
ela nomeado de “escolarização inadequada”, deforma a formação do leitor, levandoo ao afastamento do texto literário, estabelecendo, assim, um abismo entre
(provável) leitor e literatura.
Nos dizeres de Walty (2001, pp.51-52),
não é a escola que mata a literatura, mas o excesso de didatização,
burocracia do ensino, acoplado a regras preestabelecidas, a normas
rígidas e castradoras. Em suma, o uso inadequado do texto literário,
fragmentado, descolado, manipulado, levaria à sua subordinação ao
jugo escolar (WALTY, 2001, pp.51-52).
Neste sentido, percebemos o quão difícil é para a escola cumprir o seu papel
de formadora de alunos leitores e apreciadores de textos literários. Por isso, é
necessário que o texto literário circule na esfera escolar na sua integridade, que seu
acesso seja mais democratizado e viabilizado na escola e fora dela. É preciso que
haja mais bibliotecas, espaços e projetos de leitura; mais campanhas de incentivo à
leitura, além da promoção de eventos artísticos (teatro, cinema, feiras culturais, etc.).
E, sobretudo, que no espaço escolar haja apreciadores de textos literários, isto é,
mediadores que incentivem e falem de suas experiências enquanto leitores.
Tendo em vista as recomendações dos Parâmetros Curriculares (1998), que
tomam o letramento literário a partir dos gêneros do discurso, no próximo capítulo,
trataremos desses, tomados como instrumentos de ensino-aprendizagem de língua
e literatura (Bakhtin (1934/35), Vygotsky (1930) e Schneuwly (1994/2004)). Além
disso, discorreremos acerca do gênero literário conto, objeto deste estudo.
42
CAPÍTULO 2
Bakhtin e Vygotsky: uma abordagem enunciativo-discursiva do ensino-aprendizagem
através dos gêneros discursivos
Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é
uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma
reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas
(no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na
assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras
ou em outros materiais semióticos). (Bakhtin, 2010 [1970 – 1971]).
Neste capítulo, discutiremos sobre a questão do gênero do discurso à luz da
teoria bakhtiniana e alguns preceitos vygotskiano, os quais embasarão a nossa
proposta didática de leitura de contos.
Além desses aspectos, apresentaremos algumas releituras de pesquisadores
das referidas teorias.
2.1 O gênero do discurso no Brasil
Historicamente, o estudo do gênero pertencia, tradicionalmente, à retórica e à
literatura. Mikhail Bakhtin e o Círculo, ao relerem e discutirem acerca dessa tradição
de gêneros em que apenas os literários e retóricos eram estudados e valorados,
desconstroem e resignificam a ideia de gêneros, contrapondo-se ao formalismo
russo que vigorava naquela época.
Bakhtin e o Círculo não tomam apenas os literários ou retóricos como objetos
de estudo, porém reclamam a contemplação de vários gêneros do discurso de
maneira a focar a natureza dialógica da linguagem20. Conforme Barbosa (2001,
p.23), “todo e qualquer texto lido ou escrito, falado ou ouvido, enfim, tudo que é dito
ou dizível pertence a algum gênero, por mais que, por vezes, não se saiba designálo ou reconhecê-lo”. Portanto, com essa nova visão, os pensadores russos dão início
a uma nova concepção de gênero nos estudos da linguagem.
Essa acepção tornou-se notória no contexto brasileiro. Inicialmente, nas
universidades públicas, em meados da década de 90, no âmbito acadêmico, depois,
nas orientações curriculares de alguns documentos oficiais da educação, por
exemplo, os PCNLP (BRASIL,1998). Com isso, reivindica-se, na cena acadêmica
20
Para maiores informações cf. Padilha (2005).
43
(congressos, dissertações, teses, livros, grupos de trabalho etc), que o objeto de
estudo na aula de Língua Portuguesa seja o gênero de discurso.
É interessante relembrarmos que antes do gênero, o texto era tomado como
base de ensino-aprendizagem de língua materna no ensino fundamental – isso
desde a década de 1980. Temos como exemplo, mas não único, um livro muito
importante nesse momento: “O texto na sala de aula: leitura e produção”, organizado
pelo pesquisador João W. Geraldi em 1984.
Segundo Rojo e Cordeiro (2004), o texto foi tomado “nessas quase três
décadas, primeiramente como um material ou objeto empírico que, em sala de aula,
propiciava atos de leitura, de produção, de análise linguística” (ROJO&CORDEIRO,
2004, p.8). Mais tarde, o texto é utilizado como suporte para o desenvolvimento de
habilidade e estratégias de leitura, interpretação de texto, redação, no entanto,
segundo as autoras, “o texto ainda não se constitui propriamente num objeto de
estudo, mas num suporte para o desenvolvimento de estratégias necessárias ao seu
processamento” (idem).
Portanto, o texto que deveria ser o objeto de ensino se torna, na verdade, um
pretexto para ensinar a gramática mecanicamente, ou seja, por exemplo, em
exercícios de completar colunas, fazer cópias, modelos de redação. O mesmo fato
acontece no emprego dos textos literários.
Assim, a tipologia – narração, descrição e dissertação – passa a ser
propagada pela linguística textual. Noções como tipos de textos, coesão e coerência
começam a invadir a sala de aula e os cursos de formação continuada. Passa-se a
ensinar, portanto, as formas globais e locais dos textos. É esse ensino de
propriedades e de generalização dos elementos constitutivos do texto que deu
origem a “gramaticalização dos eixos do uso” (ROJO&CORDEIRO, 2004, p.9), de
maneira que o texto torna-se pretexto para o ensino da gramática normativa, bem
como das noções da gramática textual, em especial das tipologias textuais.
Segundo Barbosa (2001),
[...] não podemos ensinar um cenário em geral, um problema ou um
tipo de resolução em geral e, no limite, não podemos ensinar
narrativa em geral, porque, embora possamos classificar vários
textos como sendo “narrativos”, eles são enunciações diversas e,
portanto, concretizam-se em formas diferentes – gêneros-, que
possuem diferenças específicas (BARBOSA, 2001, p.53 ênfase da
autora).
44
Nessa perspectiva, fazia-se abstração das condições de produção e de
circulação dos textos, acarretando numa leitura de extração de informações ao invés
de uma leitura interpretativa, crítica e reflexiva. A produção textual era encaminhada
para a aprendizagem das formas e dos conteúdos gramaticais, pois se acreditava
que “quem sabe as regras sabe proceder”.
O contexto de produção e recepção e as finalidades do texto, por exemplo,
não eram levados em consideração no momento da leitura e da escrita. Temos visto
que, em boa medida, algumas escolas públicas brasileiras não têm conseguido
formar leitores proficientes, pois exames (SAEB, PISA) e os dados preliminares
desta pesquisa têm apontado que os alunos apresentam apenas as capacidades
mais básicas de leitura, como extrair informações de textos relativamente simples.
Essas questões exigem uma “virada discursiva ou enunciativa no que diz
respeito
ao
enfoque
dos
textos
e
de
seus
usos
em
sala
de
aula”
(ROJO&CORDEIRO, 2004, p.10), ou seja, o texto e a língua em uso, conforme suas
condições de produção, e os gêneros como objetos de ensino-aprendizagem. Essa
mudança passa a ecoar, também, nos programas e propostas curriculares oficiais do
nosso país (PCN 1997/1998,1999), como já dito alhures. Com isso, a noção de
gênero (discursivo) passa a ser incorporada, principalmente, pelos PCNLP.
No aspecto do ensino da literatura, os PCNLP (1998, 1999) recomendam que
o trabalho com gêneros literários seja feito através da recuperação de sua esfera de
produção, circulação e recepção. Um dos aspectos que se levanta, nesses
documentos, é a implicação do uso dos textos literários não mais como pretexto
para o ensino da gramática.
Nossos dados preliminares, no entanto, têm demonstrado que o ensino dos
gêneros discursivos tem tomado o mesmo rumo que o do texto. Ou seja, o gênero
também vem sendo tratado como pretexto para ensinar apenas as características
estruturais (a forma composicional) dos gêneros, pois esse elemento é mais
facilmente reconhecível, logo, de fácil identificação.
Portanto, ainda impera o ensino das formas (os aspectos textuais) em
detrimento do conteúdo temático, do estilo, mas, principalmente, da recuperação das
condições de produção, da esfera de produção, circulação e recepção; da relação
estabelecida entre os interlocutores, do contexto ideológico e cultural, assim como
da apreciação valorativa instituída pelos interlocutores. Acreditamos que um trabalho
45
que não contemple esses três elementos, acrescidos desses outros aspectos, não é
desenvolvido numa visão enunciativo-discursiva de gênero.
2.2 O gênero do discurso: a tríade e outros aspectos
Certamente, o pensamento acerca do gênero do discurso é um dos mais
complexos, dentre tantos outros que Bakhtin e o Círculo cunharam, pois o
descrevem como sendo, ao mesmo tempo, relativamente estável e mutável, o que
nos parece, a priori, paradoxal e contraditório.
Para nós, contraditório seria se os autores russos argumentassem que os
gêneros são formas rígidas, prescritivas, estanques, não evolutivas na história do
homem em sociedade. Para os pensadores russos, os gêneros são vistos pela ótica
da realidade do sujeito situado social, histórica e culturalmente, tomando a
linguagem na corrente de enunciados na vida.
Para Bakhtin e o Círculo (2010[1952-1953]), não temos como dissociar a
linguagem da vida, pois ela é o signo ideológico imprescindível para a comunicação
real entre os sujeitos, assim como para a constituição dos costumes culturais de
determinada sociedade. Segundo Bakhtin (2010[1952-1953/1979]), “os gêneros do
discurso, comparados às formas da língua, são bem mais mutáveis, flexíveis e
plásticos; entretanto, para o indivíduo falante eles têm significado normativo, não são
criados por ele, mas dados a ele”. (BAKHTIN, 2010[1952-1953/1979], p.285).
O autor russo afirma que os gêneros do discurso são “tipos relativamente
estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2010 [1952-1953/1979], p.262). Outro pensador
do Círculo, Medvedev (2012[1928]), refere-se ao gênero como “uma totalidade típica
do enunciado”, isto é, “uma forma típica do todo da obra, do todo do enunciado”
(MEDVEDEV, 2012[1928], p. 193), ou seja, tem um caráter estável, dinâmico, cujos
principais aspectos são: a) cada gênero possui uma linguagem própria, um tom; b)
não é rígido em sua normatividade, mas plástico, dinâmico e concreto; c) apresenta
o novo (a singularidade) entrelaçado ao mesmo (a generalidade), haja vista que não
é abstrato, embora apresente certa regularidade. Contudo, ele está no campo do vir
a ser (SOBRAL, 2009).
A estabilidade do gênero do discurso é decorrente dos traços específicos que
cada gênero conserva e, por conseguinte, é o que o leva a ser identificado como
esse ou aquele gênero. Já a mutabilidade do gênero do discurso é fruto da
46
constante transformação, mudança e renovação da sociedade, do sujeito, dos
interlocutores, da história, das interações, dos valores e das apreciações correntes,
bem como das condições de produção, das esferas de produção, circulação e
recepção etc.
Por isso, Bakhtin (1981[1929]), em “Problemas da poética de Dostoiévski”,
assevera que o gênero discursivo sempre recorda o seu passado, apesar de viver
do seu presente; é uma constante “festa da renovação” que reclama o caráter de
novidade e cuja natureza é de igual maneira renovadora e conservadora.
O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica.
É verdade que nele essa arcáica só se conserva graças à sua
permanente renovação, vale dizer, graças à atualidade. O gênero
sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo
tempo. [...] o gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu
passado, o seu começo (BAKHTIN, 1981 [1929], p. 91 ênfase do
autor).
Há casos em que um gênero se transforma ou agrega-se a outro(s). O gênero
carta pessoal, por exemplo, vem, aos poucos, sendo substituído pelo gênero e-mail.
É certo que o gênero ofício é muito mais estável e rígido do que uma resenha, por
exemplo. Os gêneros evoluem, transformam-se, emergem socialmente, são
absorvidos por outros ou somados a outros.
Segundo Bakhtin (1993[1934-1935/1975]), isso se deve a duas forças
opostas: força centrífuga e força centrípeta. A primeira força é desestabilizadora,
engendrada pelas mudanças, pelos conflitos, embates sociais, históricos e
ideológicos, bem como pelas diferentes linguagens, movimentos e signos sociais. Ao
passo que a segunda é estabilizadora, cuja função é buscar garantir a unidade e
padronização da língua.
Os gêneros existem no fluxo das forças sócio-discursivas da vida coletiva. É
na interação entre os sujeitos situados em esferas de uso da linguagem que os
gêneros são apreendidos, visto que é desde os momentos iniciais de nossa vida em
sociedade que nos apropriamos da linguagem e do discurso de outrem e
aprendemos a valorar e perceber o mundo social.
Aprendemos a fazer uso dos gêneros paulatinamente nas diversas esferas de
atividade humana, isso é, interagimos através desses enunciados concretos, uma
vez que não enunciamos palavras isoladas. A propósito, Bakhtin (2010[1952-1953],
47
p.285) afirma que quanto mais dominamos um gênero discursivo, melhor será o
nosso desempenho e aperfeiçoamento e, por conseguinte, teremos mais liberdade
para realizarmos o nosso projeto discursivo, assim como a nossa individualidade.
Os gêneros do discurso emergem a partir da necessidade discursiva que todo
e qualquer falante duma dada língua tem, ou seja, é a intenção ou o projeto
discursivo do enunciador que irá determinar a enunciação. É nessa atividade
dialógica, pertencente à realidade (à vida), que os gêneros tendem a surgir ou a
desaparecer.
Portanto, num trabalho com os gêneros do discurso é importante que as
condições de produção sejam recuperadas e situadas, de igual modo a do
interlocutor: o juízo de valor, os acentos valorativos, as nuanças apreciativas de
ambas as partes envolvidas no discurso. É por isso que os não-ditos não se
encontram na língua, no sistema linguístico21, mas na vida real (nas inter-relações
entre os sujeitos, nas diversas formas de relação com a realidade) (BAKHTIN,
2010[1959-1961]).
O enunciado concreto é quem suscita respostas, valoração, apreciação,
discordâncias, persuasão etc, pois, como sabemos, ele é sempre endereçado a
alguém, é valorado, possuindo, assim, uma entonação expressiva. É ainda
configurado por uma dimensão verbal e uma dimensão extra-verbal somada a uma
situação de produção e recepção, um horizonte espacial e temporal comum,
atrelado à compreensão responsiva da situação e uma atitude apreciativo valorativa.
Ademais, é produto e processo ao mesmo tempo, isto é, acontecimento único e
irrepetível, portanto, um elo na cadeia da comunicação verbal.
Isso é fruto do projeto discursivo do falante/enunciador, pois, nesse
momento, o sujeito faz as suas escolhas discursivas e linguísticas (sintáticas,
morfológicas, lexicais) para tentar gerar o efeito de sentido desejado/planejado.
Segundo Bakhtin (2002 [1934-1935]), “essas palavras dos outros trazem consigo a
sua expressão, o seu tom valorativo, que assimilamos, reelaboramos e
reacentuamos.” (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 295). E é a partir dessas “palavras
Para Mikhail Bakhtin e o Círculo o sistema linguístico corresponde as correntes filosófica – linguísticas que tomam a
língua como objeto de estudo e a isola do conteúdo ideológico, social e cultural. Precisamente, na obra Marxismo e Filosofia
da Linguagem (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 2010[1929]), os autores discutem e criticam acerca das duas principais
orientações do pensamento linguístico, quais sejam: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. O principal problema
de tais correntes consiste em que elas isolam e delimitam a linguagem como objeto específico em detrimento do aspecto
ideológico, social e cultural, ou seja, sem os acentos apreciativos, sem os tons valorativos dados pelos interlocutores, sem
considerar o contexto da enunciação etc.
21
48
acentuadas” do outro que respondemos, dialogamos, isto é, nos posicionamos frente
o querer dizer do nosso interlocutor.
Sobral (2009), fundamentado na teoria bakhtiniana de gênero, afirma que “os
gêneros nascem de uma dada inserção socio-histórica de discursividade, ou
conjuntos de discursos, de sua relação com outros gêneros da mesma ou de outras
discursividades, por oposição ou assimilação, diretas ou indiretas” (SOBRAL, 2009,
pp. 127-128). A essas escolhas, são acrescidos outros fatores no desvelar do
enunciado concreto, notadamente, a situação, na qual os interlocutores se
encontram; a esfera; o contexto social, histórico, ideológico e cultural, além do
conteúdo extraverbal22.
Bakhtin/Voloshínov (2009 [1929]) afirmam que
[...] para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma
lingüística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo
adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o
locutor, a forma lingüística não tem importância enquanto sinal
estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo
sempre variável e flexível (BAKHTIN/VOLOSHÍNOV, 2009 [1929],
p.96 ênfase adicionada).
Todo enunciado reflete e refrata as esferas de comunicação por meio do seu
conteúdo temático23, do seu estilo e de sua construção composicional. Cada gênero
discursivo traz as suas formas composicionais mais ou menos estabelecidas, isso
porque tais formas são instituídas pelas relações sociais entre os sujeitos numa
determinada esfera social, pertencente a uma determinada comunidade.
Contudo, a forma composicional não deve ser confundida com artefato ou
forma rígida, haja vista que pode ser alterada segundo as finalidades do projeto
discursivo do autor/interlocutor. Ou seja, ela não é fixa, estanque ou intocável, senão
passível de ser modificada e transformada, pois está a serviço do autor/interlocutor.
Como exemplos, temos a letra de canção composta em forma de carta (A carta,
Renato Russo) ou ainda o poema em receita (Receita de felicidade, de Toquinho)24.
22
Cf. Bakhtin/Voloshínov (1926).
Mikhail Bakhtin/Voloshínov ao fazerem uso pela primeira vez do termo tema na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem
de 1929 lançam mão de uma nota de rodapé na qual explicitam o termo supracitado. Afirmam que o uso que farão do termo
não deverá ser confundido com o que os autores chamam de “tema de uma obra de arte”. Os autores não fazem maiores
explicações de qual seria esse outro sentido dado ao termo, mas podemos inferir, consoante com Barbosa (2001), que
talvez o sentido esteja relacionado à dimensão da referencialidade, bastante usada no senso comum, no sentido de
“assunto”.
24 Disponível em <http://www.vagalume.com.br/renato-russo/a-carta.html> e em <http://letras.mus.br/toquinho/87362/>,
acessados em 28/11/2012 às 17h49min.
23
49
No que tange ao estilo é importante dizer inicialmente que há o estilo do
gênero e o estilo do autor. O estilo está diretamente ligado às escolhas linguísticas,
as expressões e as formas gramaticais em que a sua presença é mais notória,
“marcada”.
Além disso, o estilo também se configura a partir das relações sociais entre o
locutor e o interlocutor e das apreciações valorativas, ou seja, do juízo dos sujeitos
envolvidos na atividade de interação. Em outras palavras, as escolhas de ordem
linguística e discursiva irão demonstrar a apreciação valorativa que o locutor/autor
tem acerca de seu objeto e de seus interlocutores, por conseguinte, irá definir o
estilo – o tom irônico ou não; o acento valorativo sobre determinado objeto; a
escolha e entonação das palavras; as expressões faciais, os gestos; a entonação da
voz etc. São esses aspectos que demonstram se determinada conversa nos agrada
ou não; se determinada pessoa é querida ou não e, ainda, se o bate papo é
importante ou não.
Portanto, o estilo está vinculado à seleção de recursos da língua, a
determinados tipos de estruturação e ao acabamento dado pelo locutor, bem como
ao tipo de relação estabelecida entre os sujeitos interlocutores.
A título de exemplificação, temos o caso 25 de alguns juízes de direito
brasileiros que elaboraram suas sentenças (acórdão) em forma de versos (poema),
assim, o acabamento, ou seja, o “tom” dado pelos locutores foge ao esperado para
uma sentença jurídica. Temos outro exemplo26, ao observarmos os seguintes
enunciados (capas de revistas, a primeira da “Carta Capital” e a segunda da “Veja”)
sobre o falecimento do então presidente da Venezuela, Hugo Chávez: “A morte de
um Líder”27 (traz o rosto do ex-presidente com letras brancas como a capa da
revista) e “Chávez a herança sombria”28 (com apenas um lado da face aparecendo e
a outra escura com o referido enunciado, dando destaque a palavra Chávez em
vermelho) percebemos que as escolhas linguísticas feitas pelos autores desses
Disponível
em:
<http://buymazon.wordpress.com/artigos/arte-cultura/direito-e-poesia-deu-juiz-poeta/>;
<http://www.sulinfoco.com.br/juiz-eleitoral-usa-poema-para-decidir-caso-de-treviso> e <http://www.sulinfoco.com.br/juizeleitoral-usa-poema-para-decidir-caso-de-treviso>, acessado em 26/11/2012 às 21h50min.
25
Não iremos fazer uma análise profunda dos seguintes enunciados, visto que não é esse o nosso objetivo.
Disponível em < http://www.asmelhoresrevistas.com.br/wp-content/uploads/2013/03/revista-cartacapital.jpg>, acessado
em 03/07/2013 às 19h55min.
26
27
Disponível em <http://www.asmelhoresrevistas.com.br/wp-content/uploads/2013/03/revista-veja.jpg>, acessado em
03/07/2013 às 19h55min.
28
50
enunciados estão carregadas de nuanças valorativas e apreciativas, isto é, juízos de
valores.
Primeiramente, nos parece que o tom apreciativo do primeiro enunciado é
menos “acusador” e imparcial, ao passo que aquele veiculado pela Veja parece ser
bastante categórico. Podemos observar uma mesma notícia que foi veiculada por
revistas que têm interlocutores, objetivos, interesses e ideologias específicos e
díspares e, portanto, estilos diferentes. Além disso, as escolhas linguísticas de cada
revista são bastante nítidas, quando, por exemplo, a revista Veja apresenta o nome
do ex-presidente da Venezuela em vermelho, certamente, tem como objetivo
lembrar aos leitores que ele pertencia a um partido político de esquerda e que, por
isso, deixaria um legado sombrio.
Para Sobral (2009, p.118), o estilo:
[...] trata-se do aspecto do gênero que indica fortemente sua
mutabilidade: ele é a um só tempo expressão da comunicação
discursiva específica do gênero e expressão pessoal, mas não
subjetiva, do autor ao criar uma nova obra no âmbito de um gênero
(SOBRAL, 2009, p.118).
Já o conteúdo temático pode ser apreendido como algo “típico” (o que já foi
mencionado, dito, escrito) que se configura sócio-historicamente. O gênero artigo
científico, por exemplo, presente nas variadas áreas das ciências, apresenta
temáticas recorrentes, recursivas, como o conhecimento científico, discussão
filosófica ou matemáticas, sobre lógica ou algum problema social etc, o que
poderíamos entender como aspectos próprios desse gênero.
Segundo BARBOSA (2001), são as diferentes esferas de comunicação
humana responsáveis pela cristalização dos gêneros do discurso no decorrer da
história – entre outros fatores. É a necessidade da repetição de um dado conteúdo
temático, nesses gêneros relativamente cristalizados, que influencia na recorrência e
futura permanência e consolidação do que pode ser dito em cada gênero. Uma vez
que estamos tratando duma concepção de linguagem em que o sujeito sempre é
ativo (criativo) e responsivo e que age na vida, não podemos tomar o conteúdo
temático como estanque e rígido.
No que tange ao tema, Medvedev (2012[1928], p.196 ênfase adicionada)
assevera que:
O tema não se forma, em absoluto, desses significados [linguísticos];
ele constitui-se somente com sua ajuda, assim como com a ajuda de
51
todos os elementos semânticos da língua, sem exceção. Dominamos
o tema com a ajuda da língua, mas não devemos incluí-lo na língua,
como se fosse elemento dela. O tema transcende sempre a língua.
Mais do que isso, o tema não está direcionado para a palavra,
tomada de forma isolada, nem para a frase e nem para o período,
mas para o todo do enunciado como apresentação discursiva
(MEDVEDEV, 2012[1928], p.196 ênfase adicionada).
O tema, portanto, está no campo da comunicação discursiva real, da
entonação expressiva, do enunciado concreto cuja participação é ativa e responsiva
em determinada situação sócio-histórica. O elemento constitutivo do tema é a
entonação expressiva, ou seja, esse não pertence à palavra isolada, à oração, mas,
sobretudo, à vida, ao enunciado. O tema é, assim, o sentido completo da
enunciação que se comporta como o próprio enunciado, notadamente único e não
reiterável, pois “as palavras não são de ninguém, em si mesmas nada valorizam [...]”
(BAKHTIN, 2010[1953-1954], p.290).
Assim como Medvedev (1928), Bakhtin/Volochinov (2009[1929], p.133)
argumentam que o tema não é determinado apenas “[...] pelas formas linguísticas
que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os
sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação.”
Outro aspecto de suma importância na constituição do tema é o instante histórico
que lhe assegura o caráter único, dinâmico e social.
Sabemos, contudo, que as formas linguísticas são imprescindíveis para a
realização do tema, a esse fenômeno Bakhtin chamou de significação: elementos
reiteráveis e idênticos, pois são abstratos e convencionados. A significação é sujeita
à análise, uma vez que é um elemento técnico e como tal é sempre idêntico em
todas as instâncias históricas em que é mencionado. Nesse sentido, a significação
não existe sem o tema, de igual maneira o tema não existe sem a significação.
Por exemplo, a expressão “Chuva” posta de modo isolada - sem os
interlocutores, as esferas delineadas, as condições de produção e recepção - figura
apenas como uma significação, isto é, um aparato técnico e sempre idêntico
linguisticamente. Ao passo que, se falarmos que esse enunciado foi dito por uma
comunidade do sertão baiano ou por um individuo que antes de sair olha o céu e
toma um guarda-chuva, a fim de se prevenir, ou por um cidadão cuiabano em pleno
mês de agosto, fará todo sentido, logo, teremos infinitos temas – únicos e
irrepetíveis sócio-historicamente.
52
Antes de terminarmos esse item acerca do gênero discursivo, é relevante
falarmos um pouco sobre os gêneros primários e os secundários. Os gêneros
primários nascem na interação espontânea entre os sujeitos de uma determinada
comunidade e estão fortemente enraizados às situações de experiências e vivências
dos sujeitos, de maneira quase indissociável e “automática”. Os gêneros primários
estão mais presentes em situações cotidianas e privadas – por exemplo, o diálogo
cotidiano, a conversa entre amigos, um bilhete de recado etc.
Já os gêneros secundários, por sua vez, estão diretamente ligados às esferas
mais ideológicas das superestruturas (artísticas, literária, científica, escolar), haja
vista que podem ser melhores projetados e configurados de maneira mais
engenhosa. Esses gêneros têm a natureza mais complexa, uma vez que são
próprios das esferas públicas (arte, ciência, literatura etc.) e abarcam as formas mais
intricadas da escrita. Como exemplos de gêneros secundários temos o romance, a
reportagem, a dissertação etc.
O estudo dos gêneros discursivos exige uma investigação do seu conteúdo
temático, da sua forma composicional e de seu estilo, além das esferas em que
circulam, das condições de produção nas quais os enunciados concretos se
realizam.
Outro aspecto de crucial relevância é a valoração apreciativa do locutor
acerca de um dado objeto, pois ela é a pedra angular das relações entre os sujeitos
socialmente situados, porque está imersa nas nuanças ideológico-culturais, naquilo
que uma determinada sociedade julga ser importante ou trivial, feio ou bonito, bom
ou ruim, ou seja, o ato de valorar isso ou aquilo está na dimensão social, histórica e
ideológica duma determinada comunidade.
Por exemplo, em uma determinada escola, uma professora lê para seus
alunos o livro “Menina bonita” de Ana Maria Machado, que conta a história de uma
menina negra com seu coelhinho branco. O livro é rico em ilustrações e, por isso,
durante a leitura, a professora as mostrava para que os alunos visualizassem.
Houve um momento em que um aluno disse “é ela a menina bonita? Ela é feia”.
Percebemos que a valoração apreciativa do aluno está arraigada em préconceitos racistas postos e disseminados em sociedade, demonstrando, assim, que
ele tem um padrão já definido de belo e feio. A beleza da menina negra, para o
discente, parece fugir ao que é considerado bonito culturalmente. Além disso,
observamos um estranhamento por parte do aluno no que diz respeito à
53
personagem protagonista ser uma negra, fugindo, portanto, dos padrões da
sociedade.
A partir de agora, esclarecidos alguns conceitos da teoria bakhtiniana,
discutiremos, na próxima seção, os conceitos vygotskiano concernentes ao processo
de ensino-aprendizagem. Além disso, apresentaremos também a ideia de gênero
discursivo, segundo Schneuwly (2004[1994]), como megainstrumento e as
capacidades de leitura.
2.3 Vygotsky e o ensino-aprendizagem
Lev Vygotsky foi um grande pesquisador nas diversas áreas das Ciências
Humanas nos anos de 1917 a 1923, tendo atuado como professor de literatura, ele
publicou, durante esse período, sua primeira pesquisa em literatura e ciência 29.
Embora o psicólogo russo tenha tido pouco tempo de vida (1896-1934), escreveu
mais de 200 artigos, por isso, talvez, o então pesquisador e amigo de Vygotsky,
Luria, tenha dito num artigo intitulado “Vigotskii” que: “Não é exagero dizer que
Vigotskii era um gênio. Ao longo de mais de cinco décadas trabalhando no campo
da ciência, eu nunca encontrei alguém que sequer se aproximasse de sua clareza
de mente [...]” (LURIA, [s/d] 2006, 21).
Nesse mesmo artigo, Luria afirma que a teoria vygotskiana pode ser dividida
em três eixos centrais e indissociáveis: o instrumental, o histórico e o cultural todos
imbricados com o social30. Esses eixos se vinculam às relações entre ensino e
aprendizagem. É importante ressaltar que o termo ensino não é desvinculado de
aprendizagem na língua russa eles constituem uma única palavra: obouchenie, que
significa "ensino-aprendizagem”.
Em um texto intitulado Interação entre aprendizado e desenvolvimento
(1934)31,
Vygotsky inicia a sua argumentação levantando o problema de que o
Percebemos aqui que os estudos naquela época eram interdisciplinares. Vygotsky discutia literatura, teatro, direito,
psicologia, medicina, psicopedagogia, neuropsicologia. Foi também nesse período, nos anos de 1917 a 1923, que o
psicólogo russo fundou a revista literária Verask, na qual publicou a sua primeira pesquisa que discutia os problemas da
literatura, mais tarde reeditada com o título de A psicologia da arte. Vygotsky sempre esteve preocupado com as questões
atinentes ao ensino-aprendizagem escolar, por isso dedicou boa parte de suas pesquisas científicas para pensar como o
ser humano aprende, de que maneira, quando aprende e o que precisa para sedimentar os conceitos etc.
30 Cf. LURIA, A. R. Vigotskii. In: VIGOTSKII, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem. (Trad. Maria da Penha Villalobos). São Paulo: ícone, 2006.
29
Organizado por Michael Cole et al cuja tradução é de José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto e Solange Castro
Afeche da editora Martins Fontes, 7ª edição.
31
54
ensino escolar não pode ser dissociado do aprendizado e do desenvolvimento do
ser humano. O psicólogo russo é contra a ideia de que o aprendiz começa a
desenvolver o aprendizado apenas quando passa a frequentar a escola. Diante isso,
podemos entender que, para Vygotsky, a aprendizagem é um processo dinâmico e
dialógico, pois é um ato ininterrupto que ocorre na interação que se realiza nas
diversas instâncias sociais entre os sujeitos.
Vygotsky (2007[1934], p.95) reflete que o problema em torno da
aprendizagem pré-escolar (espontânea, cotidiana) e a escolar (sistematizada) não
se deve apenas pelo fato de que essa é sistematizada e aquela não o é, mas,
sobretudo, porque o aprendizado escolar “produz algo fundamentalmente novo no
desenvolvimento da criança”. Nesse caso, o contato interativo e dialógico com os
signos, instrumentos e conceitos mais sistematizados.
Portanto, os “signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima
de tudo, um meio de contato social com outras pessoas” (VYGOTSKY, 2007[1930],
p.18). Por exemplo, a criança ao chegar à escola, provavelmente, já terá
conhecimento de alguns contos que, por muitas vezes, são lidos pelos pais/algum
parente ou assistidos em desenhos e filmes.
Dessa forma, os signos são constituídos e (re)inventados pelos sujeitos no
curso da interação verbal e sua função primordial é assegurar a comunicação
dialógica entre as pessoas e a transmissão dos costumes culturais. Os signos são o
produto de uma convenção, de um acordo entre os integrantes de cada comunidade,
cujo processo de negociação de sentidos está indissociavelmente atrelado a eles.
Vygotsky (2007[1930]) afirma que o processo de internalização pode ser
compreendido como o momento em que a criança começa a reconstruir
internamente as atividades e operações que lhe advêm em seu dia a dia ou na
escola, por exemplo. O ato de reorganizar internamente um evento externo cuja
base está nos signos tem como função principal a incorporação duma dada cultura
para um determinado sujeito na sócia-história humana.
O processo de desenvolvimento do sujeito aparece, inicialmente, no âmbito
social, e, posteriormente, individual, isto é, o desenvolvimento ocorre primeiramente
entre pessoas (interpsicológico) para, num segundo momento, tornar-se interno
(intrapsicológico).
Assim,
de
acordo
com
Vygotsky
(2007[1930],
p.58),
o
desenvolvimento das funções mentais superiores aparece duas vezes na ação
cultural do ser humano:
55
[...] primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro,
entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança
(intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para a atenção
voluntária, para memória lógica e para formação de conceitos. Todas
as funções superiores originam-se das relações reais entre
indivíduos (VYGOTSKY, 2007 [1930], p.58 ênfase do autor).
A transformação de um evento interpessoal em um intrapsicológico é
decorrente de uma longa série de acontecimentos sócio-históricos presentes na vida
do indivíduo, uma vez que “todas as funções superiores originam-se das relações
reais entre indivíduos humanos” (VYGOTSKY, 2007[1930], p.58). Portanto, o sujeito
se constitui no outro, no processo de internalização e é através da relação social que
a organização psicológica se desenvolve.
No processo de internalização/apropriação, o sujeito se constitui no outro
através da relação social e a sua organização psicológica se desenvolve
continuamente. Assim, o sujeito sempre vai estar sob a “influência” de palavras ou
de signos de outrem, isto é, das palavras alheias. Essas palavras reelaboram-se
dialogicamente e tornam-se palavras próprias alheias, para, então, tornarem-se
palavras próprias (BAKHTIN, 2010[1970-1971]).
Para Rojo (2010 [1991], p.23), isso se justifica pelo fato de que:
Sou capaz [o sujeito] de me perceber conscientemente porque tenho
uma imagem interna do outro e de suas atividades e com ela me
ponho em diálogo, em réplica. Isso se dá por meio de processos
internos de retomada e réplica da (inter)ação sobre objetos sociais
(ROJO, 2010 [1991], p.23).
Vygotsky (2007[1934]) argumenta que a aprendizagem é o princípio do
desenvolvimento, de modo que acarreta uma série de processos mentais. Assim, na
tentativa de refletir acerca das dimensões do aprendizado escolar, o russo elabora
um conceito que é de “excepcional importância, sem o qual este assunto não pode
ser resolvido: a zona de desenvolvimento proximal” (VYGOTSKY, 2007[1934], p.95).
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através da solução independente de problemas,
e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da
solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em
colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 2007
[1934], p.97 ênfase do autor).
56
A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)32 constitui-se através de dois
eixos: o nível de desenvolvimento real e o potencial. O primeiro diz respeito aos
processos mentais superiores já sedimentados, compreendidos e apropriados pelo
sujeito aprendiz sem a necessidade do auxílio de outrem. Ao passo que o nível
potencial de desenvolvimento diz respeito às formas cognitivas superiores ainda não
alcançadas pelo indivíduo, ou seja, elas não foram internalizadas e apropriadas pelo
sujeito aprendiz, por isso, necessitam de auxílio de outra pessoa.
Vygotsky enfatiza a colaboração e o auxílio de outrem no processo de
apropriação dos processos mentais superiores. Quer dizer, o professor, o colega, os
pais - pares mais avançados - têm uma participação ativa no processo de
desenvolvimento do ser humano. Dessa feita, o professor possui papel como
mediador fundamental e imprescindível no processo de consolidação do
conhecimento do aluno.
Assim, cabe a ele promover um espaço de interação verbal onde o aluno
possa participar como protagonista de sua própria história. É nesse espaço dialógico
que o aluno aprenderá a tomar e a reelaborar a palavra alheia, a fim de fazê-la sua.
Nesse caso, o professor exerce a função de mediador entre o conhecimento
dialógico e o aluno, estando incumbido de intervir na zona proximal de
desenvolvimento dos discentes.
Paes de Barros (2005, p.41) afirma que:
[...] a ZPD é a criação de um espaço onde o aluno entra como ator
de seu desenvolvimento. Esse espaço permite que o sujeito
transforme a si mesmo. O ponto essencial do desenvolvimento
humano é a transformação dos processos psíquicos através da
apropriação dos instrumentos semióticos (PAES DE BARROS, 2005,
p. 41).
Assim, o domínio da linguagem como instrumento semiótico é imprescindível
para a apropriação dos conhecimentos, das funções superiores e dos conceitos por
parte do aluno, pois ela constitui o sujeito por meio das diversas práticas sociais e
nos diz quem somos, de modo que nos instiga a significar e expressar o mundo. O
domínio da linguagem nos permite, ainda, abstrair e generalizar os objetos, uma vez
Em consonância com Rojo faremos uso do termo ZPD no lugar de ZDP. A autora assevera que “normalmente dita ZDP
(Zona de Desenvolvimento Potencial ou Proximal). A escolha feita na tradução acima (ZPD) não é, a nosso ver, ociosa,
posto que a força da adjetivação no desenvolvimento ou na zona de intercessão criada pelo ensino-aprendizagem” (ROJO,
2001, p.170).
32
57
que o ser humano pode agir e pensar acerca desses sem que, necessariamente,
estejam presentes. Ademais, é, por muitas vezes, a incorporação do outro em mim.
Portanto, o desenvolvimento humano é um processo pelo qual os sujeitos se
transformam, em âmbito psíquico, a partir das relações sociais advindas dos meios
simbólicos que promovem a construção e sedimentação de conhecimento, modos
de agir, valores morais e políticos. Por esse viés, a linguagem assume uma função
central no processo de ensino-apredizagem do aluno, pois é através dela que o
homem se comunica e se constitui no curso da comunicação discursiva.
2.4 O gênero como megainstrumento de ensino-aprendizagem
Bernard Schneuwly (2004[1994], p.19) defende a tese de que o gênero33 pode
ser considerado um instrumento semiótico no processo de ensino-aprendizagem de
língua materna. Ao longo deste texto, o autor tece argumentos de que o gênero
pode ser concebido não apenas como um instrumento semiótico, mas como um
megainstrumento. Para tanto, Schneuwly (2004[1994]) lança mão de conceitos de
duas teorias cujos representantes são: Vygotsky e Bakhtin. É a partir da releitura
desses,
portanto,
que
ele
cunha
a
metáfora
de
gênero
textual
como
megainstrumento. Pela vertente vygotskiana, temos o conceito de ferramentas
psicológicas (instrumentos), já na vertente bakhtiniana o conceito de gêneros do
discurso.
Nessa acepção, o gênero é tomado como uma ferramenta psicológica, uma
vez que ajuda no processo de mobilização, aprimoramento e consolidação dos
domínios dos processos mentais superiores dos alunos no desenvolvimento e
domínio da linguagem. As ferramentas psicológicas são concebidas como
instrumentos criados em âmbito sócio-histórico, portanto, a linguagem representa a
ferramenta imprescindível para o bom desempenho do aluno no que tange,
principalmente, à leitura e à escrita.
No dizer de Schneuwly (2004 [1994], p.25):
Rojo (2004) usa o termo “gêneros (discursivos ou textuais)” quando se refere aos documentos oficiais (BRASIL,
1997;1998;1999); gêneros textuais ao se referir aos pesquisadores do cantão de Genebra (ROJO,2004, pp.10-12).
Entretanto, a autora assume o termo “gênero do discurso/discursivo”. Assim, nesta pesquisa quando recorremos aos
estudiosos de Genebra usaremos a terminologia “gêneros textuais”, a fim de marcarmos a nossa inscrição teórica e manter
a dos eminentes pesquisadores. Como podemos verificar nos textos de Schneuwly (1994) e Dolz&Schneuwly (1996), ora
eles usam apenas “gêneros” ora “tipos textuais”, apesar de se basearem na teoria de gêneros discursivos de Mikhail
Bakhtin.
33
58
[...] considerar o gênero como “mega-instrumento”, como uma
configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos
(sobretudo linguísticos, mas também paralinguísticos), permitindo
agir eficazmente numa classe bem definida de situações de
comunicação. Pode-se, assim, compará-lo ao megainstrumento em
que se constitui uma fábrica: conjunto articulado de instrumentos de
produção que contribuem para a produção de objetos de um certo
tipo (SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 25).
O gênero, assim, é um megainstrumento, porque é um instrumento semiótico
complexo, ou seja, uma forma de linguagem que permite a um só tempo a produção
e a compreensão de textos. O referido pesquisador defende que os gêneros dão
forma as ações discursivas do agir discursivo do sujeito, visto que trazem uma
representação dessas formas e prefiguram as que são possíveis.
O autor (2004[1994]) reflete, ainda, que o gênero como megainstrumento
pode ser comparado a uma fábrica, isto é, um conjunto articulado de instrumentos
que culminam para a produção de outros objetos. Nesse sentido, os gêneros são
decorrentes das práticas sociais de linguagem, portanto, podem ser compreendidos
como modelos de atividade e de atuação discursiva.
Schneuwly (2004[1997], p. 141) afirma que “toda capacidade humana é
construída pela apropriação de instrumentos semióticos”. Nessa medida, o autor
considera os gêneros discursivos como ferramentas psicológicas que auxiliam na
apropriação de todas as capacidades de desenvolvimento cultural do ser humano.
Como podemos verificar, nessa temática de gênero como megainstrumento, Dolz e
Schneuwly (2004 [1996], p. 60) propõem um currículo organizado a partir do
agrupamento dos gêneros por seus domínios sociais, aspectos tipológicos e
capacidades de linguagem para as produções escritas e orais.
O conto, gênero abordado em nossa pesquisa, encontra-se no domínio
cultural literário, conforme o seguinte recorte do quadro dos autores genebrinos:
59
Domínios sociais de comunicação
Aspectos tipológicos
Exemplos de gêneros orais e escritos
Capacidades de linguagem
dominantes
Cultura literária ficcional
Narrar
Mimeses da ação através da criação
de intriga no domínio do verossímil
Conto maravilhoso
Conto de fadas
Fábula
Lenda
Narrativa de aventura
Narrativa de ficção científica
Narrativa de enigma
Narrativa mítica
Sketch ou história engraçada
Biografia romanceada
Romance
Romance histórico
Novela fantástica
Conto
Crônica literária
Adivinha
Piada
Quadro 2 - Recorte da proposta provisória de agrupamentos de gêneros de Dolz&Schneuwly,
2004[1996], p. 60.
Dessa forma, os genebrinos apresentam didaticamente três gêneros: conto,
conto de fadas e conto maravilhoso no campo social literário. A nosso ver, a ideia de
gênero como megainstrumento é relevante para pensarmos e elaborarmos a nossa
proposta didática de ensino-aprendizagem de leitura do gênero discursivo conto.
2.4.1 Os gêneros: ferramentas nas práticas e capacidades de leitura
Dolz e Schneuwly tomam o gênero para “a progressão em expressão oral e
escrita” (Dolz; Schneuwly, 2004[1996], p. 41), portanto, o gênero megainstrumento é
usado para a produção do oral e da escrita. Entretanto, os autores argumentam
saber que, “em certos casos, a escrita é uma via particularmente eficaz para melhor
compreender o funcionamento dos textos e para assim adquirir uma melhor mestria
da leitura” (Dolz; Schneuwly, 2004 [1996], p. 58-59).
Baseado nos autores genebrinos, Cristovão (2001 apud PAES DE BARROS,
2005, p. 33) explicita que Dolz e Schneuwly “trabalham com o conceito de
60
capacidades exclusivamente para a questão da produção escrita”. Contudo, Paes de
Barros acrescenta que “essa mesma abordagem pode ser estendida para a leitura
[...]” (PAES DE BARROS, 2005, p. 33).
A despeito de tais capacidades, Rojo (2004) reflete que a prática de leitura
envolve uma série de procedimentos e capacidades – perceptuais, cognitivas,
afetivas, sociais, discursivas, linguísticas- que são dependentes da situação, dos
objetivos e das finalidades de leitura.
Assim, a atividade de leitura implica num envolvimento de diversas
capacidades por parte do leitor, de modo que depende da situação, do contexto de
produção e recepção, dos objetivos traçados e das esferas de circulação. Por isso,
toda ação de linguagem, segundo Dolz e Schneuwly (2004[1997]), sempre significa
elaborar, apreender e compreender os enunciados orais ou escritos construídos.
Nessa perspectiva, Dolz e Schneuwly (1998 apud PAES DE BARROS, 2005)
refletem acerca das capacidades de ação, discursivas e linguístico-discursivas.
As capacidades de ação possibilita que o aluno faça a adaptação de sua
produção de linguagem, conforme os contextos, por exemplo, as representações do
ambiente físico, assim como dos sujeitos envolvidos e da esfera de comunicação
discursiva. Dessa forma, tais representações estão relacionadas ao gênero, tendo
em vista a relação com o interlocutor e o conteúdo, apresentando objetivos
específicos, ou seja, a definição clara sobre o objeto, o gênero. Por esse viés, os
referidos autores afirmam que tais capacidades produzem três tipos de
representações, a saber:
a)
as representações relativas ao ambiente físico onde se realiza
a ação (local e momento onde o texto é produzido, a presença ou
ausência de receitas);
b)
as representações relativas à interação comunicativa: o
estatuto social dos parceiros (os papéis representados pelo
enunciador e pelo destinatário), o lugar social dentro do qual se
realiza a interação e o seu objetivo;
c)
os conhecimentos de mundo estocados na memória e que
podem
ser
mobilizados
na
produção
de
um
texto
(DOLZ&SCHNEUWLY apud PAES DE BARROS, 2005, p.34)
As capacidades discursivas, consoante com os autores, se referem ao que
pode ser dito por meio do objeto, bem como a organização do que é dito no objeto,
auxiliando na definição estrutural do texto, na elaboração dos conteúdos e na
composição do gênero. Por sua vez, as capacidades linguístico-discursivas
61
relacionam-se a operações mobilizadas no momento da produção escrita, isto é,
como pode ser dito - “o que quero dizer” -, envolvendo:
a)
operações de textualização: os mecanismos de conexão,
segmentação e coesão nominal e verbal; b)
b)
mecanismos de gerenciamento de vozes ou de tomada de
posição enunciativa: também envolvem dois tipos de operação,a
organização das vozes enunciativas e as expressões de
modalização;
c)
as operações de construção de enunciados; e
d)
escolha dos itens lexicais (idem, pp.79-82).
Em diálogo com esses pesquisadores e enfatizando a perspectiva
enunciativo-discursiva e sócio-histórica, a pesquisadora Paes de Barros (2005)
argumenta que, em sua abordagem de pesquisa, os gêneros discursivos e sua
função como instrumento de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa podem
propiciar a aprendizagem das capacidades de leitura. Assim como, os gêneros e o
“o domínio de tais capacidades diz respeito a tipos e níveis de letramentos
concernentes às diversas capacidades de leitura necessárias em diferentes práticas
sociais” (PAES DE BARROS, 2005, p.1).
Igualmente, Rojo e Cordeiro (2004) sustentam que o trabalho com os gêneros
narrativos auxiliam no desenvolvimento das capacidades letradas literárias e na
apropriação das práticas letradas e no desenvolvimento do letramento literário. Por
isso afirmam que:
Escolhemos os gêneros pertencentes a diferentes esferas de
circulação (literária, escolar, televisiva – jornalística/política), que
estão alocados pelos autores em diferentes agrupamentos (narrar,
expor, argumentar). Priorizamos as esferas e os agrupamentos de
gêneros, em nossa opinião, mais relevantes para a formação da
cidadania no Brasil e mencionados nos PCN: a) narrar, importante
para a formação do leitor literário [...] (ROJO&CORDEIRO, 2004, p.
17 ênfase adicionada).
Assim sendo, no âmbito de nossa pesquisa, trabalharemos com o gênero
conto como um instrumento de ensino-aprendizagem de leitura. Para tanto, faz-se
necessário apresentarmos, no próximo capítulo, uma breve historicização do gênero
conto, com respaldo na teoria dos gêneros do discurso.
62
CAPÍTULO 3
O gênero discursivo conto: um olhar bakhtiniano
Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei si o
que eu vou contar é conto ou não, sei que é verdade (Mário de
Andrade, 1976).
Mas se não tivermos uma idéia viva do que é o conto, teremos
perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse
plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida
travam uma batalha fraternal [...] (Julio Cortázar, 1974).
Abordaremos, neste capítulo, questões atinentes à origem do gênero do
discurso conto e sobre suas possíveis definições, buscando relacioná-las com a
concepção de gênero bakhtiniana.
3.1 A origem do conto: a história da estória
Magalhães Junior (1972), em sua obra intitulada A arte do conto, argumenta
que o conto é a manifestação literária de ficção mais antiga da humanidade,
existindo em comunidades de povos com conhecimento da escrita ou não. O conto
nasce de forma oral através do ato de (re)contar e ouvir histórias. Conforme Gotlib
(1999), o início dessa prática, que nos leva a tempos remotíssimos, é impossível de
ser determinado, datado ou localizado.
Magalhães Junior (1972), embasado no escritor espanhol Juan Valera, afirma
que o conto esteve presente na Grécia desde o início de sua civilização cujo
compilador pioneiro foi o poeta e gramático Partênio de Nicéia. Nos dizeres de
Magalhães Junior (1972), “na antiguidade, o conto tanto podia constituir uma história
isolada, independente, como vir inserido, incidentalmente, no corpo de uma narrativa
mais extensa” (MAGALHÃES JUNIOR, 1972, p.9).
Contar e ouvir histórias eram imprescindíveis para a permanência de um povo
e de seus costumes culturais. Tais atividades e práticas orais mantinham os laços de
união entre o homem e a comunidade da qual esse pertencia. Assim, tal prática era
uma forma de assegurar a perenidade dos costumes, das crenças, da tradição
cultural numa dada comunidade, de maneira que esses permanecessem sempre
vivos e presentes na memória dos povos.
63
Para Gotlib (1999, p.5), o ato de contar e ouvir estórias, que está sob o signo
da convivência,
[...] sempre reuniu pessoas que contam e que ouvem: em sociedades
primitivas, sacerdotes e seus discípulos, para transmissão dos mitos
e ritos da tribo; nos nossos tempos, em volta da mesa, à hora das
refeições, pessoas trazem notícias, trocam ideias e... contam casos.
Ou perto do fogão de lenha, ou simplesmente perto do fogo
(GOTLIB, 1999, p. 5).
As primeiras manifestações dos contos na forma escrita registram-se entre os
egípcios nos anos 4000 antes de Cristo – os contos dos mágicos são os mais
antigos; na cultura hebraica temos as histórias bíblicas; na cultura grego-latina, a
"Odisséia" e "Ilíada", de Homero; além das vindas do Oriente, "As mil e uma noites"
(séc. X dC). Na Idade Média, as famílias tinham o costume de se reunir entre o
jantar e a ceia, a fim de ouvirem as novelas de cavalaria, cujo teor moralizante e
religioso predominava – uma das formas de difusão dos princípios do Teocentrismo.
Por um longo tempo na história, o conto foi confundido com anedota, parábola
(exemplos morais), novela, fábula e romance. No decorrer desse processo histórico,
as confusões terminológicas do conto eram admissíveis, sendo denominado, por um
longo tempo, de novela. Conforme Ferreira (2008, p.19), “tal classificação perdurou
até o século XVIII, quando lhe imputaram outra concepção [...] a obra [contos
eróticos] Decameron de Boccaccio, lançada em 1350, é tida como aquela que
lançou as bases clássicas do conto”. Essa obra rompe com o conteúdo didático
moralista, entretanto, mantém o tom da narrativa oral e passa a ser traduzida em
muitas línguas.
No século XVII, surgem Novelas ejemplares de Cervantes em 1613. E, nesse
fim de século, aparecem os contos de Charles Perrault - Histoires ou contes Du
temps passé cujo subtítulo é Contes de ma mère Loye – conhecidos no Brasil como
os Contos da mãe Gansa. No entanto, segundo adverte Jolles (apud FERREIRA
2008, p. 20) é somente com a coletânea de narrativas dos irmãos Grimm, intitulada
Contos para Crianças e Famílias que o conto passa a ter, verdadeiramente, o
sentido de forma literária, portanto, a coletânea de narrativas dos irmãos Grimm foi
“a base de todas as coletâneas ulteriores do século XIX” (idem).
É no século XIX que o conto consegue o seu apogeu com escritores de
grandeza indubitável. A título de exemplificação, citaremos apenas alguns: na
França, Balzac, Flaubert, Guy Maupassant; na Alemanha, Ernst Theodor, Wilhelm
64
Hoffmann; nos Estados Unidos, Edgar Allan Pöe; na Rússia, Nicolai Gogol; em
Portugal Alexandre Herculano, Eça de Queirós; no Brasil, Machado de Assis, Aluísio
Azevedo.
No contexto brasileiro, o conto, no século XX, assume posição privilegiada,
passando a ter um número de produções bastante relevante. É na metade desse
século que Monteiro Lobato se torna um grande contista do Pré-modernismo.
A Semana da Arte Moderna de 1922 favorece para uma nova fase na
produção contística, sendo Mário de Andrade um dos principais representantes
desse novo movimento (Modernismo). Esse autor, além de contista, era também
teórico desse gênero, chegando a afirmar, ironicamente: “Em verdade, sempre será
conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto” (FERREIRA, 2008, p.21).
Mário de Andrade, nessa afirmação, levanta o problema da complexidade de se
traçar e estabelecer limites formais ao gênero conto.
Segundo Lucas (apud FERREIRA, 2008), “[...] a visão moderna do conto
encarregou-se de despojar a narrativa curta de seu tratamento pomposo e prolixo,
tratou de cortar uma floresta de verbosidade, desbastou a escrita de clichês mortos”
(LUCAS apud FERREIRA, 2008, p.21), ou seja, os modernistas rompem com a visão
tradicional de se fazer conto. Esse gênero, nessa nova perspectiva, não é mais
linear, o autor passa a experimentar novas formas de organização textual. Para
Santos (2010, p. 30):
A partir dos anos 20 e 30, o escritor [Mário de Andrade] já revela as
conquistas das liberdades formais, a pesquisa estética e o projeto de
compreender a realidade brasileira. À medida que o autor
problematizava o modo de narrar, inovava o tratamento dado ao
narrador, incorporava novos temas e a linguagem brasileira; os
paradigmas tradicionais da ficção iam sendo derrubados (SANTOS,
2010, p.30).
Os anos de 1930 foram marcados por uma geração substancialmente
romancista, por exemplo, com a profícua produção de autores como Jorge Amado,
Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e outros. Já na década de 1940, temos um
período essencialmente poético com João Cabral de Melo Neto, embora, em 1945,
Guimarães Rosa inicie a produção contística com o lançamento de Sagarana.
Nos anos de 1960 e 1970, temos um grande número de escritores de contos,
como Rubem Fonseca, Luis Vilela, Clarice Lispector, Moacyr Scliar, levando o conto
a um reconhecimento bastante significativo. A escrita dos contistas dos anos 1970 é
marcada por um “sentimento trágico, nefasto, afastando a possibilidade de
65
comunicação das personagens diante de um mundo desestruturado e sufocante”
(FERREIRA, 2008, p.24).
Embora, nas décadas de 1980 e 1990, o romance tenha sido reinserido como
modelo narrativo, o conto continuou com seu lugar de destaque, com escritores já
reconhecidos (nos anos de 1960 e 1970) e com novos escritores como Sérgio
Sant’Anna, Luiz Ruffato, Luiz Vilela, Lígya Fagundes Telles e outros.
3.2 Conto: em busca de uma definição
O conto, ao longo de sua existência, sempre sofreu frequentes modificações,
tanto em termos estruturais, quanto em termos de reconhecimento e de status
dentro da literatura.
Assim, a questão da definição do conto sempre foi um problema e continua
sendo atualmente. Partindo disso, o crítico russo Vladimir Propp dá início a uma
pesquisa acerca do conto maravilhoso, conforme os princípios do formalismo russo,
resultando na obra Morfologia do conto maravilhoso (1928). Nessa obra, o autor
pesquisa as formas, a fim de tentar determinar as constantes e variantes dos contos,
comparando suas estruturas e sistemas.
Para alguns estudiosos, como A.L. Bader (apud GOTLIB, 1999, p.29), o conto
permanece com a mesma estrutura de outrora, o que muda é a sua técnica. Assim,
os estudiosos baseiam-se na evolução do modo tradicional para o modo moderno de
narrar. O modo tradicional estava muito atrelado à arte clássica (do período gregolatino) e ao Renascimento (século XVI) ou Classicismo (século XVII) cujos modelos
e eixos fixos determinavam e guiavam o fazer literário.
Nesse sentido, por exemplo, aspectos como “equilíbrio e harmonia” eram
vistos como condições sin ne quo para a arte literária, ou seja, o modelo estético
linear de “começo, meio e fim” na narrativa deveria ser cumprido, pois esse se
configurava como elemento constitutivo do conto.
Ao passo que no modo moderno, temos a transgressão desses eixos e
modelos. Os novos escritores rompem com essa estética, de maneira que o caráter
de fragmentação dos valores, das pessoas, das obras é acentuado. Dessa forma,
não há mais espaço para um ponto de vista fixo. O enredo que antes era justaposto
numa ordem linear, agora passa a se diluir em sensações, percepções, revelações
etc.
66
Assim, muitos escritores, como Mário de Andrade, Machado de Assis, Júlio
Cortázar, advertem acerca da grande dificuldade de se traçar fronteiras para o
conto. Gotlib (1999, p.11) afirma que, para Julio Casares, há três concepções de
conto: 1. Relato de um acontecimento; 2. Narração oral ou escrita de um
acontecimento falso; 3. Fábula que se conta às crianças para diverti-las. Conforme a
autora, todas essas acepções têm um ponto em comum, isto é, “são modos de se
contar alguma coisa” (GOTLIB, 1999, p.11).
Assim, o texto narrativo, geralmente, apresenta uma sucessão de
acontecimentos, pois sempre há algo para ser narrado e contempla o interesse
humano, visto que é de nós e para nós, ou seja, é um tipo de material pelo qual o
interesse está na humanidade e que organiza os acontecimentos numa sequência
temporal estruturada cuja busca é a da unidade da mesma ação34 (GOTLIB, 1999).
Para o contista norte-americano, Edgar Allan Pöe (apud GOTLIB, 1999), o
conto se caracteriza pela relação entre a sua extensão e a reação ou efeito que o
gênero consegue provocar no leitor. O contista defende a ideia de que é preciso
dosar a obra, a fim de que, “a uma só assentada”, o leitor faça a leitura do conto, por
isso, nem breve demais e nem extenso demais – a extensão, para Pöe é
imperdoável.
Cortázar (1974, p152 ênfase adicionada) assevera que “o contista sabe que
não pode proceder acumulativamente, que não tem o tempo por aliado [...]”, pois “o
tempo e o espaço do conto têm que estar como que condensados, submetidos a
uma alta pressão espiritual [...]” (CORTÁZAR, 1974, p152).
O contista russo Tchekhov (apud GOTLIB, 1999), dramaturgo e médico,
coincide com o pensamento de Pöe em alguns pontos. A brevidade continua sendo
o elemento caracterizador do conto e, assim como o contista norte-americano, o
autor russo acredita que vale mais dizer de menos que dizer demais. Para
Tchekhov, o conto deve causar “o efeito ou o que chama de impressão total no
leitor” (GOTLIB, 1999, p.42 ênfase da autora). Além disso, argumenta que não basta
No que tange ao aspecto relatar, Gotlib (1999, p.12 ênfase da autora) argumenta que o contar (do latim computare) uma
estória era uma atividade oral no princípio e, depois, passou a ser registrada por escrito. No entanto, esse contar não é
apenas um ato de relatar acontecimentos, eventos ou ações, “pois relatar implica que o acontecimento seja trazido outra
vez, isto é, re (outra vez) mais latum (trazido), que vem de fero (eu trago)”. É importante dizer que um relato nos moldes que
temos hoje, isto é, copiar tal qual, não condiz com o “relatar acontecimentos” que o contista faz; pois em um conto inventase, cria-se sendo o acontecimento falso ou verdadeiro. O que se tem no conto é ficção, “a arte de inventar um modo de se
representar algo”.
34
67
apenas esses aspectos para se fazer conto, mas novidade, força, clareza e
compactação.
Diferentemente da compactação, os outros aspectos podem ser observados
em outros gêneros. O conto deve ser compacto, os elementos devem ser
condensados, uma vez que é a compactação que ocasiona a brevidade do conto
vivo. Para tanto, o autor deve evitar os excessos, ser conciso e controlar as coisas
supérfluas. Assim como para Pöe (idem), o conto depende de um efeito único ou
impressão total por parte do leitor.
Para outros autores, “é o próprio conto que representa um momento especial
em que algo acontece” (GOTLIB, 1999, p. 49). Um desses momentos especiais é
reconhecido por alguns autores como a epifania35 – como a concebeu James Joyce,
segundo Gotlib (1999) -, ou seja, é o momento em que o objeto se desvenda ao
sujeito, compreendido como uma manifestação espiritual súbita.
O escritor argentino, Júlio Cortázar (1974), ao refletir acerca do caráter
peculiar do gênero discursivo conto, lança mão de uma comparação entre
romance/cinema e conto/fotografia, ou seja, o romance está para o cinema, assim
como o conto está para a fotografia. Enquanto uma fotografia pressupõe uma justa
limitação prévia, um filme é inicialmente uma ordem aberta. A fotografia está
reduzida pela limitação da câmera em focar uma parte de algo, de uma realidade, de
uma cena, recortando, em fragmento, a realidade vislumbrada pelo fotógrafo. O
romance e o cinema agem por acumulação, visto que captam a realidade de forma
mais ampla e multiforme.
Dessa forma, o referido autor (1974, p.157) constrói a ideia de que um conto
para ser considerado “um bom conto” deve apresentar, logo nas primeiras palavras
ou cenas, uma tensão, seguida de uma intensidade – o conto excepcional. A
intensidade consiste “na eliminação de todas as ideias ou situações intermédias, de
todos os recheios ou frases de transição que o romance permite e exige”. Já a
tensão “é uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor nos vai
aproximando lentamente do que conta”.
O conto excepcional, segundo Cortázar, é aquele que atinge a qualidade
literária, de modo que o torna inesquecível para quem o lê, fisgando, portanto, o
Entretanto, segundo Gotlib (1999, p.52) “Estas considerações [acerca da epifania] não fazem parte estritamente do
conceito do que se denomina conto. Podem fazer parte de uma teoria geral da narrativa, ou mesmo de uma teoria geral do
conhecimento. No entanto, em contos cujo núcleo é justamente esta percepção reveladora de uma dada realidade, a teoria
torna-se fundamental para a sua leitura. É o caso de Clarice Lispector, por exemplo.”
35
68
leitor. Para tanto, o conto deve tornar-se, segundo Cortázar, significativo, isto é, os
elementos – tensão e intensidade – devem fazer parte, ou seja, o conto deve
conquistar o leitor, “sequestrando-o” momentaneamente.
Assim, o conto é um gênero discursivo complexo, para o qual é difícil de
estabelecer fronteiras. Por isso, concordamos com Gotlib (1999, p. 82), quando
afirma:
Porque cada conto traz um compromisso selado com sua origem: a
da estória. E com o modo de se contar a estória: é uma forma breve.
E com o modo pelo qual se constrói este seu jeito de ser,
economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos,
condensação de recursos [...] além disso, são modos peculiares de
uma época da história. E modos peculiares de um autor, que, deste e
não de outro modo, organiza a sua estória [...] como são também
modos peculiares de uma fase ou de uma fase da produção deste
contista, num tempo determinado, num determinado país (GOTLIB,
1999, p.82).
Numa acepção bakhtiniana, inferimos que o conteúdo temático (aquilo que é
possível de ser dito, o dizível em um gênero) do conto é “o contar estória”, como foi
dito pela autora acima: “[...] cada conto traz um compromisso selado com sua origem
[...]”. Bakhtin (1981[1929], p.91) afirma que “o gênero sempre conserva os
elementos imorredouros da archaica [...]” - a archaica refere-se aos traços
característicos dos tempos antigos, a Antiguidade. Portanto, o gênero discursivo
conto sempre apresentará os resquícios e traços distintivos de sua origem, de seus
“elementos imorredouros da archaica”.
Vimos ao longo dos nossos apontamentos que, desde tempos imemoriais, a
atividade de narrar causos, acontecimento, ações e eventos move e dá vida ao
gênero conto e o que lhe mantém vivo até os dias de hoje. No entanto, o ato de
contar histórias, não se confunde com o de relatar – como dizemos em outro
momento.
O dizível do conto – o contar estórias - está imbricado com os eventos e atos
dos sujeitos socialmente situados, já que uma das principais características de um
contista é ser observador dos sujeitos em suas diversas esferas de atividade. Esses
eventos e atos são infinitos em termos de temáticas: amor, tristeza, amizade,
política, alegria, assassinato, sexo, adolescência etc.
69
A brevidade36, a compactação, o efeito único ou impressão total, a
intensidade, a tensão, portanto, figuram como os elementos mais recorrentes e
constitutivos da forma composicional do gênero discursivo conto. Gotlib (1999, p. 82
ênfase adicionada), ao refletir sobre o “modo de se contar”, afirma que: “E com o
modo de se contar a estória: é uma forma breve. E com o modo pelo qual se constrói
este seu jeito de ser, economizando meios narrativos, mediante contração de
impulsos, condensação de recursos” (GOTLIB, 1999, p. 82).
Como já dissemos, em outro momento, o estilo do gênero e do autor
corresponde às escolhas lexicais, aos tempos verbais, isto é, aos elementos
linguísticos que esse gênero pode levar, esses são os aspectos linguísticos mais
recorrentes. Para Gotlib (1999, p.82 ênfase adicionada), o estilo do gênero
discursivo conto se realiza pelos “modos peculiares de uma época da história”, por
sua vez o estilo do autor está relacionado aos “modos peculiares de um autor, que,
deste e não de outro modo, organiza a sua estória [...]”, assim, compreendemos o
estilo como “modos peculiares de uma fase ou de uma fase da produção deste
contista, num tempo determinado, num determinado país” (GOTLIB, 1999, p. 82).
Nos contos, os tempos verbais, por exemplo, aparecem no pretérito perfeito
ou imperfeito. Se estivermos falando de contos de fadas ou maravilhoso, as
expressões “Era uma vez...” e “Viveram felizes para sempre!” são os mais utilizados.
Elementos como fadas, duendes e seres encantados, bem como o caráter insólito,
fantástico devem fazer parte da configuração desses contos.
Ao passo que, se estivermos tratando de um conto de terror, a escolha lexical
tenderá a provocar sentimentos de medo, de mistério (mysterium), de crueldade, de
morte etc, palavras como, silêncio, escuridão, frio, vento, chuva, abismo, gato, corvo,
morcegos são recorrentes – os exemplos são muitos, contudo os vocábulos devem
estar em consonância com o caráter sombrio, sobrenatural, lúgubre e de terror, por
muitas vezes, um terror psicológico, no interior do ser humano. Geralmente, o lugar
da ação é descrito minuciosamente.
Acreditamos que a tomada do conto como objeto de ensino-aprendizagem de
leitura é relevante na medida em que o gênero discursivo conto ou o “contar
A esse respeito, Cortázar (1974, p.151) diz que: “[...] o conto parte da noção de limite físico, de tal modo que, na França,
quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouvelle, gênero a cavaleiro entre o conto e o romance
propriamente dito”. Contudo, temos conhecimento que há uns poucos autores, como Machado de Assis, que escreveram
contos (O alienista, por exemplo) que excederam as cinquenta páginas. Para nós, isso se justifica pelo caráter sóciohistórico-cultural dos gêneros discursivos, pois esses não são formas estanques e rígidas, porém enunciados relativamente
estáveis que se encontram na vida real e como tal são suscetíveis a transformações e transgressões dos modelos.
36
70
histórias” está presente na humanidade desde os tempos imemoriais: é uma
atividade que até os dias atuais ainda faz parte da realidade das pessoas. Além
disso, os gêneros da ordem do narrar, geralmente, são os mais conhecidos pelos
alunos, pois muitos fazem parte de seu cotidiano, como por exemplo, as novelas
televisivas, os filmes, as minisséries etc. E, a propósito, o aluno sempre está
contando ou inventado histórias, eventos do seu dia a dia.
Constatamos que o conto é um gênero discursivo na acepção bakhtiniana do
termo, pois é constituído pelos elementos indissociáveis, ou seja, pelo conteúdo
temático, forma composicional e estilo, relacionados às condições de produção e
recepção (locutor e interlocutores sócio-históricos) e, também, às esferas da
comunicação discursiva.
Traçados, então, a historização do gênero conto, objeto desta pesquisa,
apresentaremos, no próximo capítulo, o nosso percurso metodológico.
71
CAPÍTULO 4
Metodologia de pesquisa e as Ciências Humanas
Quanto a mim, em tudo eu ouço vozes e relações dialógicas entre
elas [...] Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua
festa de renovação (Bakhtin).
O presente capítulo tem como objetivo apresentar o processo metodológico
adotado por esta pesquisa, os objetivos, o objeto, os sujeitos, os instrumentos da
coleta de dados, as categorias de análise e as questões que instigaram o estudo. A
pesquisa está fundamentada nas perspectivas sócio-históricas de Bakhtin e seu
Círculo no que se refere à concepção enunciativo-discursiva de língua e linguagem,
assim como nos construtos de Vygotsky sobre ensino-aprendizagem.
4.1 A natureza da pesquisa
A natureza desta pesquisa é enunciativo-discursiva bakhtiniana, portanto, os
sentidos e as significações dos eventos analisados se configuram como o cerne de
nossas discussões. Diante disso, entendemos que assumir a perspectiva
bakhtiniana é considerar os sujeitos, o contexto e os fenômenos, cuja dimensão
social, histórica e cultural é imprescindível no processo de compreensão de
determinado objeto.
Por isso, o tratamento dos dados terá como ponto de partida o ato de “ouvir
as vozes” (o LD e os questionários) que direcionaram esta pesquisa, construindo um
espaço de interações dialógicas entre os sujeitos envolvidos, ou seja, o encontro do
eu e do outro é um lugar de (des)construção dialógica de sentidos.
Bakhtin/Volochinov (1929) argumentam que só pode haver interação social e
construção de conhecimentos com a presença de um outro, pois, é por meio dessa
interrelação (das relações interdiscursivas), entre o eu e o outro, que o objeto de
pesquisa vai se constituindo.
4.2 Bakhtin e as Ciências Humanas
No texto Metodologia das Ciências Humanas, Bakhtin (BAKHTIN, 2010[1974])
assevera que as ciências humanas são as ciências do discurso, porquanto o
discurso oral ou escrito do ser expressivo e falante é o objeto a ser investigado.
72
Portanto, não há linguagem sem possibilidade de diálogo ou sem resposta de
outrem, uma vez que a nossa fala sempre é direcionada a um outro que, de alguma
maneira, responde e reage aquilo que foi dito - apesar de haver uma infinidade de
possibilidade de respostas e de tomadas de decisões.
Por isso, Bakhtin afirma que há três tipos de relações:
1.
Relações entre os objetos: entre coisas, entre fenômenos
físicos, químicos, relações causais, relações matemáticas, lógicas,
linguísticas, etc.
2.
Relações entre o sujeito e o objeto.
3.
Relações entre os sujeitos – relações pessoais, relações
personalizadas: relações dialógicas entre enunciados, relações
éticas, etc. [...] (BAKHTIN, 1997[1970- 1971], p. 374 ênfase
adicionada).
Esta pesquisa está inserida nas “relações entre sujeito e o objeto” e, em boa
medida, nas “relações entre sujeitos”, pois entendemos que a relação entre sujeito e
objeto se dá na relação dialógica: o pesquisador e o livro didático. Ao passo que a
relação entre sujeitos acontece no momento em que o pesquisador “ouve as vozes”
tanto do autor do livro didático, quanto do aluno através do questionário, isto é, das
relações dialógicas entre os enunciados.
O pensador russo nos alerta que o pesquisador das ciências humanas não
deve ir ao campo de pesquisa já com os eventos e situações prontas, ou seja, não
se deve criar artificialmente uma situação para ser investigada, mas sim ir ao
encontro do acontecimento, do evento, em seu processo de desenvolvimento.
Esse lugar de encontro do acontecimento entre o objeto pesquisado e o
pesquisador é prenhe de nuanças conflitantes e tensas em que o agir dos sujeitos
propicia um confronto de vozes, olhares, visões de mundo, visto que o meu olhar
acerca do outro nunca coincide com o olhar do outro acerca de mim, pois, “[...] é
lugar de conflito e tensão, [bem como] lugares sociais de onde se produzem
discursos e sentidos [que] não são necessariamente simétricos” (AMORIM, 2003,
p.13).
Na perspectiva bakhtiniana, o conceito de exotopia (outsideness) é recorrente
em toda a sua obra, ocupando um lugar central para o entendimento da atividade de
pesquisa. É importante dizer que Bakhtin, no momento em que cunhou esse
conceito, estava analisando uma criação artística.
73
O pensador russo ao refletir sobre a obra de arte, a partir desse conceito,
defende a ideia de que a obra é lugar de tensão, uma vez que entre o eu e o outro,
“entre o retrato que faço de alguém e o retrato que ele [o outro] faz de mim mesmo,
há sempre uma diferença fundamental de lugares e, portanto, de valores” (AMORIM,
2003, p.14). Conforme a mesma autora, exotopia “[...] refere-se à atividade criadora
em geral – inicialmente à atividade estética e, mais tarde, à atividade da pesquisa
em Ciências Humanas” (AMORIM, 2006, p. 95).
O lugar exotópico, o lugar exterior, constrói-se no confronto de vozes, de
diferentes perspectivas entre o eu e o outro, bem como na diferença e na tensão
entre dois olhares, ou seja, dois pontos de vista. É um momento de distanciamento,
de deslocamento do meu lugar ao de outrem na tentativa de compreender a maneira
que esse outro olha e, finalmente, o momento de retorno ao meu lugar.
Assim, a exotopia figura-se numa relação de tensão entre pelo menos duas
consciências, dois lugares, isto é, “o do sujeito que vive e olha de onde vive, e
daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do
olhar do outro” (AMORIM, 2006, p.101), pois somente o outro que está de fora pode
dar uma visão acabada de mim mesmo.
Portanto, numa relação dialógica, sempre haverá no mínimo duas
consciências, dois olhares, duas vozes valoradas e sociossituadas que não se
misturam, pois “o ser da expressão é bilateral: só se realiza na interação de duas
consciências (a do eu e do outro)” (BAKHTIN, 2010 [1974], p. 395-396).
Como as relações dialógicas são sempre valorações de indivíduos sociais e
historicamente situados, em nossa pesquisa, num primeiro momento, buscamos
conhecer e entrevistar alunos de uma escola e, em um segundo momento,
intentamos dialogar com os autores dos livros didáticos em torno da didatização do
gênero conto.
Para tanto, o método sociológico, de Bakhtin/Volochinov (1929), foi-nos de
grande valia, pois tal método toma a esfera de produção e circulação, o gênero do
discurso e o texto como elementos imprescindíveis para a investigação numa
acepção discursivo-dialógica.
74
4.3 O método sociológico
Bakhtin/Volochinov, na obra Marxismo e filosofia da linguagem37 (1929), no
texto intitulado A interação verbal, descrevem o método sociológico:
Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua
deve ser a seguinte:
1) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as
condições concretas em que se realiza. 2) As formas das distintas
enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a
interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de
atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma
determinação pela interação verbal. 3) A partir daí, exame das
formas da língua em sua interpretação lingüística habitual
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929, pp. 128-129 ênfase dos autores).
Dessa forma, a sequência do método sociológico, num primeiro momento,
pode ser compreendida da seguinte forma: o primeiro item, o qual Bakhtin chama de
condições concretas de interação verbal, refere-se às esferas da interação verbal
entre os sujeitos, isto é, nas quais as relações interpessoais se realizam. Ao passo
que o segundo item, as categorias de atos de fala, se refere ao gênero do discurso
que surgem em decorrência da interação e, por fim, o último item, exame das formas
da língua, diz respeito ao texto. Portanto, é dessa forma que o autor russo assevera
que devemos estudar os fenômenos da linguagem humana.
Concordamos com Paes de Barros (2005), quando diz que “o método
sociológico que o círculo bakhtiniano elaborou nos permite, como pesquisadores,
entender de forma mais abrangente um determinado objeto de estudo” (PAES DE
BARROS, 2005, p.61). Argumentamos que o referido método tem como ponto de
partida as relações discursivas nas condições concretas, nas esferas de atividade
humana, cujos sujeitos assumem lugares ou posições.
Nesse sentido, esta pesquisa tem como objetivos:
1. Conhecer as práticas de leitura dos discentes da etapa final do ciclo do
Ensino Fundamental de uma escola pública mato-grossense;
O método sociológico está presente em outras obras, a saber: “Discurso na vida, discurso na arte: sobre uma poética
sociológica” (VOLOCHINOV [1926]); “O Freudismo” (BAKHTIN/VOLOCHINOV [1927]; “O método formal nos estudos
literários” (MEDVEDEV [1928]).
37
75
2. Conhecer as propostas de didatização de ensino-aprendizagem de leitura
do gênero conto da coleção didática de Língua Portuguesa “Viva
Português” adotada pela escola;
3. Elaborar uma proposta de didatização do gênero conto para o nono (9º)
ano do Ensino Fundamental.
Para tanto, três perguntas de pesquisa orientam-nos:
1. Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino
Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar?
2. Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da
coleção didática adotada na escola?
3. Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do
gênero conto?
Posto nossos objetivos e perguntas de pesquisa, apresentaremos, a seguir, a
nossa metodologia de coleta e de análise dos dados que nos auxiliou na busca
pelas respostas desta pesquisa.
4.4 Metodologia de coleta dos dados
Os instrumentos de coleta de dados, utilizados nesta pesquisa, foram: o
questionário composto por 34 perguntas fechadas e uma aberta, feito a alunos do 7º
(28 alunos) e 9º ano (26 alunos); uma coleção didática “Viva Português” (PNLD
2011-2013) do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental utilizada pelos entrevistados.
A aplicação desse questionário possibilitou-nos “ouvir” a voz do aluno sobre a
leitura, assim como averiguar o que estes eles costumam ler e o que gostam de ler,
além de conhecer as diversas práticas de letramento de que tomam parte. É
importante dizermos que a aplicação desse questionário, somado as respostas dos
alunos, foi o que nos levou ao livro didático utilizado por eles.
76
Verificamos esse LD, a fim de examinarmos as capacidades de compreensão
mobilizadas no trabalho com a leitura do gênero conto, pois, bem sabemos que o
livro didático, atualmente, é o material mais utilizado pelo aluno na esfera escolar,
por isso a nossa preocupação em averiguar as competências trabalhadas nele.
Além disso, conforme Melo e Magalhães (2009), “muitas reflexões têm
surgido sobre o livro didático de língua portuguesa (LDLP), contudo pouco ainda são
os estudos sobre o ensino da literatura [da leitura literária ou do letramento literário]
no livro didático” (MELO&MAGALHÃES, 2009, p.171).
Também utilizamos como instrumento de coleta de dados o Manual do
Professor dos referidos livros didáticos, com o intuito de detectar a concepção de
leitura e de linguagem das autoras, bem como o referencial teórico.
A seleção do LDLP ocorreu com base nos seguintes dizeres de
Bakhtin/Volochinov (2009[1929]):
O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas
sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de
maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado, no
quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas,
institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da
comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência
sobre os trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a
forma de livro é sempre orientado em função das intervenções
anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor
como as de outros autores: ele decorre, portanto da situação
particular de um problema científico ou de um estilo de produção
literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante
de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a
alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções
potenciais, procura apoio, etc.(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929],
p. 127-128 ênfase adicionada).
Assim, entendemos que a coleção didática analisada figurou como um
instrumento de pesquisa bastante relevante para pensarmos a nossa proposta
didática. Além disso, sob a forma de diálogo, o LD possibilitou-nos averiguar, por
meio das atividades propostas e o manual do professor, as expressões apreciadas e
valoradas pelos autores acerca dos objetos de estudo e, ainda, pudemos ver o
tratamento dado, pelos autores, à leitura e compreensão do gênero conto.
Examinamos a coleção “Viva Português” (doravante LDVP) do 6º ao 9º ano
do Ensino Fundamental, cujas autoras são Elizabeth Marques Campos, Paula
77
Cristina Cardoso e Silvia Letícia de Andrade. A coleção analisada foi aprovada pelo
PNLD para o triênio 2011-2013. A obra é publicada pela editora Ática.
Observamos, em todos os anos do LDVP, as atividades de leitura em que o
gênero conto era trabalhado e constatamos que as autoras priorizam o trabalho com
a gramática, visto que, em boa medida, os exercícios atinentes a conteúdos
gramaticais têm grande incidência.
A escola fica localizada no Bairro Boa Esperança, distrito regional do Coxipó,
zona sudoeste de Cuiabá, capital de Mato Grosso. O bairro é residencial, os
moradores, em sua maioria, são das classes sociais A e B, mas a escola atende a
população de vários bairros adjacentes, em especial as de menor poder aquisitivo.
Boa parte dos moradores constitui-se da comunidade acadêmica da Universidade
Federal de Mato Grosso, em especial de estudantes universitários.
4.5 Metodologia de análise dos dados
A metodologia de análise de dados se sustenta na abordagem bakhtiniana da
pesquisa nas Ciências Humanas. No momento da análise do LDVP, consideramos
relevante aplicar as seguintes categorias de análise:
 Compreensão ativa;
 Compreensão passiva (BAKHTIN, 1993[1934-1935]).
Além dessas, também:
 Capacidades de compreensão;
 Capacidades de apreciação estética e réplica ativa do leitor (ROJO,
2004).
É importante dizermos que, no decorrer desta análise, novas categorias
surgiram, pois como bem aponta Brait (2006) “não há categorias, a priori, aplicáveis
de forma mecânica a textos e discursos, com a finalidade de compreender formas de
produção de sentido num dado discurso, numa dada obra, num dado texto” (BRAIT,
2006, p. 14 ênfase da autora).
Sendo assim, no próximo capítulo, apresentaremos a análise do questionário
e as nossas conclusões decorrentes da observação do trabalho que o livro didático
de Língua Portuguesa (LDVP) propõe para as atividades de leitura de contos na
coleção aqui já citada.
78
CAPÍTULO 5
Analisando os questionários e o Livro Didático de Língua Portuguesa
[...] o ensino das disciplinas verbais conhece duas modalidades
básicas escolares de transmissão que assimila o [discurso de]
outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cór” e “com suas
próprias palavras”. […] O objetivo da assimilação da palavra de
outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no
processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do
termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na
qualidade de informações, indicações, regras, modelos etc., - ela
procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em
relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a
palavra autoritária e como a palavra internamente persuasiva
(BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 142).
[Leitura] Significa que quando eu estou lendo eu vou para outra
dimensão que o mundo fica diferente que a história e o lugar a onde
eu estou que faço parte da história, e um luga a onde eu posso fugir
da minha vida normal ser outra pessoa (Dizer de uma aluna do 7º
ano).
O objetivo deste capítulo é observar, analisar e compreender as concepções
e práticas de leitura dos alunos do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental. Além disso,
também, visa à compreensão das propostas de didatização da leitura do gênero
literário conto no Livro Didático de Língua Portuguesa “Viva Português” (LDVP).
Neste capítulo, nosso olhar se voltará para as propostas de leitura que o livro
didático apresenta, a fim de perceber quais são as possíveis capacidades de leitura
mobilizadas nas propostas e de que maneira elas colaboram para a formação de um
leitor literário.
79
5.1 Os questionários: as práticas de leitura e letramentos dos alunos
Nesta seção de nossa pesquisa, serão elencados e analisados os dados de
práticas de leitura e práticas de leitura literária de nossos sujeitos, a fim de
respondermos a primeira pergunta de pesquisa: Quais práticas de leitura têm os
discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos
contextos escolar e extraescolar?
A escola escolhida para a aplicação de questionários com uma pergunta aberta
foi a “Escola Estadual F. A. F. M.” localizada em Cuiabá, capital de Mato Grosso.
Esta pesquisa contou com a participação de 54 alunos, sendo 28, do 7º ano; e 26,
do 9º ano do Ensino Fundamental. A escolha por esses anos ocorreu por causa do
trabalho didático com o gênero conto nos LD dessas etapas, como bem sugerem os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de 3º e 4º ciclos. Além
disso, gostaríamos de propor um trabalho que discutisse a formação do leitor
literário na escola fundamental.
Para tanto, inicialmente, fez-se necessário coleta e análises de dados acerca
das práticas de leitura dos alunos.
5.1.1 As práticas de leitura
Apresentaremos, nesta seção, a análise dos dados dos questionários aplicados
aos alunos do 7º e 9º ano do Ensino Fundamental atinentes às atividades de leitura
e às outras práticas de letramento dos alunos.
Tabela 1 – A presença da leitura na infância
Sim
63,46%
Não sei
26,92%
Não
9,62%
Tabela 2- Quem lia.
Não respondeu
32,69%
Mãe ou responsável do sexo feminino
28,85%
Mãe e pai
13,46%
Pai ou responsável do sexo masculino
11,54%
Avó
5,77%
Outra pessoa
3,85%
Tia
1,92%
Irmã mais velha
1,92%
80
Tabela 3 – Pessoas que mais influenciaram o gosto pela leitura
Mãe e pai
25,00%
Algum professor
25,00%
Mãe ou responsável do sexo fem.
21,15%
Ninguém
9,62%
Pai ou responsável do sexo masc.
7,69%
Outro parente
5,77%
Algum amigo
3,84%
Padre/pastor ou líder religioso
1,92%
Quanto à presença da leitura na infância, os dados nos mostram que 63,46%
dos alunos tinham alguém que lia para eles. A mãe ou responsável do sexo feminino
aparece com 28,85%, portanto, conforme os dados essa é a principal mediadora
entre “a criança e o livro”.
A tabela 3 aponta dados relevantes no que tange à influência do gosto pela
leitura na infância: os pais apresentam uma incidência de 25,00%, de igual maneira
o professor. Os dados revelam que os pais, bem como o professor exercem uma
grande influência nesse processo de valorização e gosto pela leitura na infância.
Esse achado revela o quão importante é o papel do professor na vida escolar do
aluno, não apenas como influenciador desse processo, mas como mediador que
incentiva e colabora para o bom desenvolvimento do gosto pela leitura. Como
Azevedo (2003, p.76) assevera:
É razoável, em todo o caso, que crianças e jovens com situação
social minimamente equilibrada e que, por sorte, mantenham contato
com adultos leitores – referimo-nos a leitores de fato e não apenas a
gente alfabetizada – tenham boas chances de também se tornarem
leitores (AZEVEDO, 2003, p.76).
Tabela 4 – Materiais escritos existentes na residência
Bíblia, livros sagrados ou religiosos, livros didáticos, dicionários.
53,80%
Agenda de telefone, livros de receita de cozinha.
11,54%
Livros de literatura/romances, enciclopédia.
9,62%
Álbum de família, fotografias.
9,62%
Calendários e folhinhas.
7,69%
Não respondeu.
5,77%
Livros infantis.
1,92%
81
Tabela 5 – Quantidade de livros existentes na residência
De 15 a 50
50,00%
Menos de 10
23,08%
De 51 a 100
17,31%
Não tem livros em casa
5,77%
Não respondeu
3,85%
Como podemos perceber na tabela 4, no que se refere aos materiais escritos,
que os sujeitos possuem em sua residência, 53,85% dos alunos responderam que
há Bíblia (livros sagrados ou religiosos), livros didáticos e dicionários em suas
residências. A forte presença do livro didático e do dicionário parece resultar das
ações educacionais e programas governamentais tais como: PNLD (Programa
Nacional do Livro Didático) e do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento
Escolar). Certamente, a forte presença da Bíblia (livros sagrados ou religiosos) é
fruto de ações sociais nas comunidades, ou seja, talvez, pelo fato da religiosidade
dos familiares.
Por outro lado, os dados apontam uma incidência bem menor, 9,62%, para
livros de literatura/romances e enciclopédia. Podemos pensar que isso se justifique
pelo fato destes materiais impressos em nossa sociedade serem caros, embora nos
anos de 2002, 2003 e 2004, o Ministério da Educação (MEC), por meio do Fundo de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE), tenha distribuído gratuitamente, junto às escolas públicas do país,
uma coleção denominada Literatura em minha casa que continha diversos gêneros
da esfera literária, por exemplo: conto, peça teatral, poema, crônica, novela .
Executado no ano de 2011, o objetivo desse projeto era entregar a cada aluno um kit
contendo cinco livros de diferentes gêneros literários. Nesse sentido, entendemos
que o fato de um aluno da rede pública ganhar uma obra literária nos parece
relevante para o aprimoramento do letramento literário.
No entanto, compreendemos que apenas a posse de livros não determina a
formação do leitor literário, visto que para isso é preciso professores e mediadores
de leitura capacitados e apreciadores da leitura literária. Além disso, para o
aprimoramento da formação literária, necessita-se de espaços públicos, por
exemplo, bibliotecas adequadas e equipadas.
No que tange à quantidade de livros na residência, 67,31% dos sujeitos
responderam que têm de 51 a 100 livros. Esse dado é interessante, na medida em
82
que o comparamos com o índice de “tipos de materiais escritos na residência” –
53,80% para livro didático, dicionário e livros religiosos - observamos que, talvez, o
que o aluno tem reconhecido por “livro” é, por exemplo, o livro didático e/ou Bíblia
(livros sagrados ou religiosos).
Tabela 6 – Tipo de livro que costuma ler, ainda que de vez em quando
Romance, aventura, policial, ficção
46,15%
Bíblia, livros sagrados ou religiosos
30,77%
Não costuma ler livros
13,46%
Biografias, relatos históricos
5,77%
Autoajuda, orientação pessoal
3,85%
Tabela 7 – Quantidade de livros lidos neste ano
38
Mais de três
44,23%
Um
21,15%
Dois
17,31%
Nenhum
17,31%
Os dados da tabela 6 mostram que 46,15% desses alunos disseram ler –
ainda que de vez em quando – livros de romance, aventura, policial e ficção. Nossos
dados analisados corroboram com os da pesquisadora Paes de Barros (2005)
porque se assemelham com esse contexto, isto é, 51,6% disseram ler livros de
romance, aventura, policial e ficção.
Assim, os dados trazem um percentual bastante relevante no que diz respeito
à leitura de livros: 86,54% disseram ler algum tipo de livro, apenas 13,46% disseram
que não costumam ler livros. Entretanto, ao observarmos novamente a tabela 4, os
livros de literatura/romance aparecem com uma incidência ínfima de 9,62%
contrapondo-se a 46,15% - romance, aventura, policial e ficção - da tabela 6
referente a tipo de livro que costuma ler.
Em relação à quantidade de livros lidos durante o ano (tabela 7), 44,23%
responderam que haviam lido mais de três livros no decorrer daquele ano. Portanto,
os dados indicam que 82,69% dos entrevistados já leram pelo menos um livro
durante o ano.
38
Referente ao ano de 2011, momento em que aplicamos ao questionário.
83
Tabela 8 – Textos lidos na escola
Livros didáticos
42,31%
Matérias, textos ou exercícios no quadro negro
32,69%
Seus próprios textos ou dos colegas
7,69%
Textos e exercícios em folhas avulsas
5,77%
Revistas
5,77%
Jornais
1,92%
Sites ou páginas na internet
1,92%
Folhetos e cartazes
1,92%
Tabela 9 – Atividades realizadas na escola
Copiar matérias, textos e exercícios do quadro negro
73,08%
Fazer redação ou trabalhos, responder a questionários ou fazer exercícios
15,38%
Copiar textos dos livros
5,77%
Apresentar seminários ou trabalhos, participar de debates ou discussões
3,85%
Fazer anotações sobre as aulas
1,92%
No atinente às práticas escolares, nossos dados revelam uma grande
incidência de 73,08% de atividades voltadas para copiar matérias, textos e
exercícios do quadro negro. E, ainda revelam que 5,77% das atividades estão
relacionadas às práticas de cópias de textos dos livros. Podemos compreender que
essa incidência alta de exercícios escolares de cópias ou de identificações nos
remete a possíveis práticas docentes cristalizadas e sedimentadas e práticas
similares do livro didático que colaboram para a promoção da cópia e identificação
de informações. Diante do exposto,
Inicialmente, o que chama a atenção nesse episódio dos alunos [e do
LD] é a famosa frase modelar das práticas escolares: [...] copiar. De
tal modo habituados a atividades escolares que envolvem a
reprodução pela cópia, os alunos tendem a reproduzir, mesmo nas
aulas de um projeto de leitura, aquilo que compreendem faça parte
de uma atividade escolar: o exercício de copiar informações (PAES
DE BARROS, 2009, p. 171).
Os dados apontam um percentual de 15,38% de resposta com “fazer redação
ou trabalhos, responder a questionários ou fazer exercícios”. Para a questão “textos
lidos na escola”, o livro didático apresenta uma incidência de 42,31%, em seguida
vem o ato de copiar matérias, textos ou exercícios do quadro negro com 32,69%.
Essas são, assim, as principais atividades de leitura realizadas em sala de aula
pelos alunos entrevistados. Entendemos que tais práticas não são suficientes para a
84
formação de um leitor crítico que tenha domínio da palavra escrita. Por conseguinte,
não está em consonância com as ideias dos PCNLP (1998) que asseveram:
[...] cabe à escola promover sua ampliação de forma que,
progressivamente, [...] cada aluno se torne capaz de interpretar
diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e,
como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas
situações (BRASIL/MEC/SEF, 1998, p.19).
Algo semelhante acontece nos dados de pesquisa de Paes de Barros (2005,
p. 119), a qual afirma que as atividades mais realizadas nas práticas escolares são
caracterizadas pela cópia de matérias e exercícios do quadro negro, verificamos,
assim, também, em nossos dados, grande incidência dessas atividades. Diante
desse quadro, concordamos com Azevedo (2003, p.79) que os “textos literários são
essenciais para a formação das pessoas, têm seu sentido e seu lugar, mas não
formam leitores. É preciso que, concomitantemente, haja acesso à leitura de ficção,
ao discurso poético, à leitura prazerosa e emotiva”.
Em boa medida, podemos inferir que, provavelmente, ao invés de uma prática
de leitura para formação de um leitor crítico, há práticas, na escola, para formar
sujeitos meramente “copistas” ou sem “vozes apreciativas”.
Tabela 10 – Gêneros habitualmente lidos
Poesia
26,92%
Letra de canção
21,15%
Conto
17,31%
Artigo de jornal/revista
11,54%
Crônica
11,54%
Não respondeu
7,69%
Romance
3,85%
Tabela 11 – Gêneros mais apreciados para leitura
Poesia
23,08%
Letra de canção
19,23%
Artigo de jornal/revista
17,31%
Conto
15,38%
Romance
9,62%
Crônica
7,69%
Não respondeu
7,69%
85
Tabela 12 – Gêneros mais apreciados para a escrita
Poesia
29,08%
Conto
17,31%
Letra de canção
13,46%
Outros
11,54%
Não respondeu
11,54%
Crônica
5,77%
Romance
5,77%
Artigo de jornal/revista
11,54%
Cartas
1,92%
Os dados referentes às tabelas 10, 11 e 12 revelam que gêneros discursivos
da esfera literária encabeçam as listas dos textos que os alunos costumam ler, mais
gostam de ler e de escrever. A poesia é o gênero discursivo com maior incidência,
26,96%; 23,08%; 29,08%, respectivamente para as referidas questões. Os dados
apontam o gênero discursivo letra de canção como o segundo mais lido entre os
discentes, com 21,15% para o que costumam ler e 19,23% para o que mais gostam
de ler.
Por sua vez, o gênero discursivo conto, também da esfera literária e objeto
desta pesquisa, apresenta um índice interessante 17,31% para o que os alunos
costumam ler; 15,38% para o que mais gostam de ler e 17,31% para o que mais
gostam de escrever.
Concernente à produção escrita, os dados mostram que a poesia é a mais
cobiçada entre os alunos, aparecendo com 29,08%. O conto fica em segundo lugar
com uma incidência de 17,31%. Os dados revelam, portanto, que os alunos
entrevistados apreciam os gêneros discursivos da esfera literária. Possivelmente,
isso se deve ao fato de que os gêneros da esfera literária se constituem numa
experiência a ser realizada pelo leitor, ou seja, o texto literário tem o caráter de dizer
o que somos de maneira tal, que nos leva a desejar expressar o mundo ao nosso
modo.
Inferimos, assim, que talvez os discentes tenham outras práticas de leitura
fora da sala de aula, na biblioteca, em algum curso, em casa, num projeto social, na
igreja etc. Como podemos ver na tabela abaixo 53,85% dos alunos fazem algum tipo
de curso.
86
Tabela 13 – Frequenta algum curso
Sim
53,85%
Não
46,15%
5.1.2 Outros dados
Nesta seção, apresentaremos algumas práticas de letramentos dos alunos
entrevistados no que se refere ao uso do computador e internet, assim como as
práticas de leitura de seus pais ou parentes.
Tabela 14 – Frequência de uso do computador
Todos os dias da semana
48,08%
Quase todos os dias
23,08%
Eventualmente/de vez em quando
17,31%
Um ou dois dias da semana
9,62%
Nunca utilizou computador
1,92%
Tabela 15 – Que uso costuma fazer do computador
Navegar em redes sociais: Orkut, Facebook, Twitter
71,15%
Preparar trabalhos escolares
21,15%
Não respondeu
5,77%
Não uso computador
1,92%
Quanto à frequência de uso do computador, 48,08% dos sujeitos disseram
que usam todos os dias da semana e 23,08% quase todos os dias. É interessante
observarmos que em pesquisa semelhante, Paes de Barros, em 2005, constata que
apenas 6,4% dos discentes tinham o costume de utilizar o computador todos os dias
e 48,3% faziam uso eventualmente. Esses dados revelam que, de fato, a
acessibilidade digital é muito maior hoje em dia.
Talvez isso seja decorrência das políticas públicas de inclusão digital (por
exemplo, algumas bibliotecas públicas passaram a disponibilizar o acesso à
internet); dos preços de aquisição desse tipo de tecnologia que se tornou mais
acessível; além da grande quantidade de lan houses, principalmente, em bairros
periféricos.
Ainda conforme a Paes de Barros (2005), a incidência de alunos que nunca
utilizaram o computador era grande, chegando em 29,0%. Por sua vez, os nossos
dados apontam um percentual irrisório de 1,92%. Entretanto, os dados revelam que
71,15% dos discentes têm utilizado a ferramenta internet/computador mais para
87
“navegar” nas redes sociais do que para estudo, pesquisa ou realizar trabalhos,
porque, como os dados mostram apenas 21,15% utilizam essa ferramenta para
essas finalidades.
Tabela 16 – Práticas de leitura de pais ou parentes
Ler a Bíblia, livros sagrados ou religiosos
42,31%
Ler revistas
19,23%
Ler jornais
13,46%
Ler ou escrever cartas, ler receitas
9,62%
Não sabe
9,62%
Fazer trabalhos escolares
3,85%
Ler ou escrever tarefas do trabalho
1,92%
No que concerne às práticas de leitura dos pais ou parentes, os dados
revelam que 42,31% têm a prática de ler a Bíblia ou livros religiosos e que 19,23%
costumam ler revistas. Sabemos que a presença da leitura desde os primeiros anos
de vida da criança é muito importante para a formação de um futuro sujeito leitor,
bem como outras práticas de letramento, por exemplo, o ato de contar histórias, a
ida à biblioteca ou livraria com os pais, ver os pais ou alguém próximo lendo, assistir
a um filme e peça teatral, ouvir música etc.
5.1.3 Atividades diversas
Como temos dito, alguns eventos de letramentos são de suma importância
para a formação de um sujeito leitor, em especial, o leitor literário. Por isso, nesta
seção, apresentaremos outras atividades que os alunos costumam participar, além
das mencionadas anteriormente.
Com que frequência você:
Tabela 17 – Assiste à televisão
Sempre
84,62%
Às vezes
13,46%
Nunca
1,92%
Tabela 18 - Ouve rádio
Sempre
53,85%
Às vezes
44,23%
Nunca
1,92%
88
Tabela 19 - Vai a exposições ou feiras
Às vezes
38,46%
Nunca
34,62%
Sempre
26,92%
Tabela 20 - Vai a shows
Nunca
36,54%
Sempre
32,69%
Às vezes
30,77%
Tabela 21 - Vai a cinemas
Às vezes
65,38%
Sempre
26,92%
Nunca
5,77%
Não respondeu
1,92%
No que tange a atividades culturais, conforme os dados indicam, a televisão e
o rádio são os principais meios de comunicação presentes na vida dos alunos:
84,62% dos discentes afirmam assistir à televisão “sempre” e 53,85% ouvem
“sempre” o rádio.
Diante disso, é importante refletirmos sobre a qualidade da programação da
televisão aberta em nosso país, pois como os dados mostram, esse é o principal
meio de entretenimento e informação de muitas crianças e jovens.
No que se refere à frequência com que vão ao cinema, 65,38% disseram que
“às vezes” vão ao cinema. Talvez, tal incidência seja decorrência da localização da
escola que fica aos redores da Universidade Federal e essa aos fundos do Shopping
Center Três Américas de Cuiabá, MT, o shopping aqui referido tem um sistema de
promoção de sessões de cinema às segundas e quartas-feiras para estudantes.
Quanto à frequência com que vão a exposições ou feiras e a shows, os dados
apontam que 38,46% “às vezes” vão a exposições ou feiras e 36,54% “nunca” vão a
shows. Observamos, portanto, que esses sujeitos estão inseridos em variadas
práticas de letramento. Em nosso contexto, os dados revelaram que, em certa
medida, os jovens têm lido e participado de eventos culturais. Assim sendo, na
seguinte seção, analisaremos o “dizer” do aluno sobre a sua concepção de prática
de leitura.
89
5.1.4 O que é leitura para você?
Neste subitem, continuaremos as análises dos dados referentes a uma
pergunta aberta do questionário aplicada aos 7º e 9º anos.
Tabela 22: O que significa leitura para você? (7º ano)
Leitura como forma de adquirir conhecimento
Leitura como forma de obter informação
Leitura como fruição, uma forma de prazer
Leitura como forma de conhecer outras culturas
Leitura como forma de diversão
Não respondeu
53,57%
17,86%
14,29%
7,14%
3,57%
3,57%
A tabela 22 corresponde ao questionário feito com 28 alunos do 7º do Ensino
Fundamental da referida escola. Os alunos deveriam responder em forma de texto
verbal a pergunta: O que significa leitura para você?
Mais da metade dos alunos, isto é, 53,57%, concordam que a leitura é uma
forma de adquirir conhecimento. Ao nosso ver, os discentes têm encarado a leitura
como uma atividade de grande importância para a formação escolar.
AL39.1: É um modo de aprender mais, um novo modo de conhecimento
AL.2: leitura para mim e saber mais.
AL.3: leitura significa mais aprendizado
AL.4: Saber mais. ficar mais bom pra ler
AL.5: Leitura é jeito para saber mais e ser alguem
AL. 6: As pessoas desenvolve mais e o aprendicio fica melhor
Os alunos questionados valoraram o objeto discursivo em questão,
relacionando-o às práticas de leituras escolares cristalizadas e coerentes a função
principal da escola: o ensino e aprendizagem. Atrelado às práticas escolares, temos
17,86% de alunos que concebem a leitura como uma forma de obter informação:
AL. 7: educação informação
AL.8: leitura significa informação
AL.9: Leitura significa e é uma fonte de informação
39
AL. Corresponde a aluno.
90
Quando os alunos afirmam que leitura é “informação”, de certa forma, estão
revozeando um discurso presente e, vivenciado na escola por eles, de conceber a
leitura como um processo de decodificação, atrelada à extração, extração literal e/ou
cópia de informações, isto é, um ato mecânico de ler e escrever, pois,
provavelmente os alunos responderam à questão a partir de suas vivências e
experiências apropriadas ao longo de suas vidas em práticas escolares e de leitura.
A nosso ver, trata-se de uma resposta bem coerente com as práticas
escolares de leitura ligadas ao ensino de conteúdos, muitos dos quais compostos de
informações e dados. Já outros alunos do 7º ano contestaram com outro olhar sobre
as práticas de leitura. Conforme a tabela demonstra, 14,29% dos discentes
afirmaram que compreendem a leitura como uma atividade que proporciona o prazer
e a imaginação:
AL. 10: Significa que quando eu estou lendo eu vou para outra dimensão
que o mundo fica diferente que a história e o lugar a onde eu estou que faço parte
da história, e um luga a onde eu posso fugir da minha vida normal ser outra
pessoa.
AL. 11: Eu vou para outro mundo que eu mesmo posso inventar, eu me
sinto dentro da história, eu sinto como se fosse a vida real.
De certa maneira, podemos compreender um perfil de um possível leitor
literário, cujo objetivo principal nas atividades leitoras é fruir na leitura. Esses alunos
afirmaram terem o costume de ler romance, poesia, letra de canção, conto. Inferimos
que eles possam ser leitores literários, uma vez que, em seus textos, observamos
expressões e apreciações (vou para outra dimensão; o mundo fica diferente; faço
parte da história; posso inventar outro mundo; me sinto dentro da história etc.) que
somente quem tem a prática de leitura literária poderia usufruir e apontar.
Notamos, nas respostas acima, a leitura por fruição ou por prazer como
características inerentes à leitura literária ou à prática leitora literária, pois, conforme
Cândido (2011, p.177), o texto literário se:
Manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a
atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de
romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem
mergulhar no universo da ficção e da poesia [...] Deste modo, ela é
91
fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o
homem na sua humanidade [...] (CÂNDIDO, 2011, p.177).
Passemos agora a tabela 23 que corresponde à entrevista feita com 26
alunos do 9º ano de uma escola pública de Cuiabá, Mato Grosso.
Tabela 23: O que significa leitura para você? (9º ano)
Leitura como forma de adquirir conhecimento
Leitura como forma de escrever melhor
Leitura como diversão
Não respondeu
Leitura como forma de obter informação
Leitura como fruição, uma forma de prazer
Leitura como forma de compreensão
23,08%
19,23%
15,38%
15,38%
11,54%
11,54%
3,85%
Assim como o resultado dos dados no 7º ano, a concepção de leitura como
forma de adquirir conhecimento continua encabeçando os percentuais desta
pesquisa, porém, com uma incidência menor 23,08%. Percebemos que agora os
alunos parecem preocupados com a escrita, pois 19,23% dos discentes disseram
que leitura é uma forma de escrever e dominar melhor a Língua Portuguesa.
Al.14: Significa aprendizado ler é tudo de bom eu adoro porque ler você
aprende mais escreve melhor entende tudo melhor fica mais fácil até mesmo pra
realizar projetos pequenos.
Al. 15: meio importante pra escrever melhor
A leitura como forma de diversão vem logo abaixo com 15,38% das respostas
dos alunos. Alguns – 11,54% - compreendem a leitura como uma forma de obter
informação. Com esse mesmo percentual, alguns alunos disseram que tomam a
leitura como uma forma de prazer, imaginação, isto é, como fruição. Uma incidência
inferior, ao compararmos com o percentual do 7º ano – 14,29% - para essa mesma
questão. Observando os dados, parece que os alunos, ao passar de ano, perdem o
interesse pela leitura nessa perspectiva do domínio escolar.
Al.16: Expressar sentimentos através de palavras como ler um romance,
drama, animação
Al.17: É o lugar em que se pode dar a vida em qualquer coisa além da
imaginação
92
Responderemos, assim, a nossa primeira questão de pesquisa: Quais
práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental
da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar?
Para respondermos a questão, recorreremos, mais uma vez, às duas falas
referidas anteriormente, cujas respostas são de suma relevância para a construção
de nossa proposta. Assim, passemos aos dois dizeres:
AL. 10: Significa que quando eu estou lendo eu vou para outra dimensão
que o mundo fica diferente que a história e o lugar a onde eu estou que faço parte
da história, e um luga a onde eu posso fugir da minha vida normal ser outra
pessoa.
AL. 11: Eu vou para outro mundo que eu mesmo posso inventar, eu me
sinto dentro da história, eu sinto como se fosse a vida real.
Nesse momento, relacionamos as respostas com a citação abaixo. No tocante
ao texto literário, Cosson (2007, p17) afirma que esse:
[...] nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o
mundo por nós mesmos. E isso se dá por que a literatura é uma
experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser
reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da
minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser
outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do
tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós
mesmos (COSSON, 2007, p.17 ênfase nossa).
Observamos, assim, que as referidas falas dos alunos estão em consonância
com a citação acima visto que os discentes tiveram e têm experiências com gêneros
da esfera literária. Observamos, em suas respostas, o fato de os alunos se
apropriaram de certas formas de leitura literária que os levou a incorporação de
outros – outros mundos, outras pessoas, outras culturas, outros sentimentos etc.
Nesse sentido, percebemos outro aspecto relevante, levantado pelos
discentes: as leituras literárias lhes proporcionaram o rompimento com o tempo e o
espaço em que estavam, de maneira que tal rompimento não apenas lhes permitiu
saber da vida através da experiência alheia, mas, sobretudo, de vivenciá-la.
Dessa forma, a leitura literária amplia o nosso universo, o nosso olhar sobre o
mundo (e sobre nós mesmos), de tal forma a nos incitar a imaginá-lo e compreendê-
93
lo, concebê-lo e organizá-lo de outras maneiras. A leitura literária provoca em nós
inquietações, sensações, experiências - como se abrisse uma “fenda” – que, de
certa forma, não nos permite o esquecimento ou apagamento delas. Talvez, tenha
sido isso que aconteceu com esses alunos, a julgar por suas respostas.
Portanto, é por possuir esse caráter emancipatório e de tornar o mundo
compreensível por meio das palavras e das linguagens - transformadas em cores,
dores, odores, dissabores, sabores e amores - que a leitura literária, a nosso ver,
deve e precisa manter um lugar relevante no espaço escolar.
Na próxima seção, passaremos à nossa segunda questão de pesquisa.
5.2 Sobre a coleção do Livro Didático Viva Português
Nesta seção, serão elencados e analisados os dados referentes às práticas e
atividades leitoras contidas na coleção do LDVP de nossa pesquisa. A partir da
perspectiva enunciativo-dialógica, tomamos o livro didático de língua portuguesa
(LD) como gênero do discurso em conformidade com os pesquisadores: Bunzen e
Rojo (2005); Padilha (2005), Paes de Barros (2005). Essa vertente possibilita-nos
analisar as relações dialógicas empreendidas pelas autoras do LD no interior da
obra didática Viva Português.
5.2.1 Descrição geral da coleção
A coleção Viva Português do 6º ao 9º ano é publicada pela editora Àtica cuja
autoria é coletiva. Os volumes da coleção estão organizados em quatro unidades
temáticas, cada uma delas dividida em dois capítulos, os quais são nomeados a
partir de nomes de gêneros. Por consequência, há capítulos denominados como
fábula e conto, poema, anúncio publicitário, tira, anedota, novela, romance, roteiro
de cinema. A coleção estudada organiza-se em capítulos.
No que se refere ao gênero conto há capítulos intitulados: conto de
assombração, conto de mistério e conto maravilhoso (6º ano do LD); conto (7º ano);
conto de amor (8º ano); conto de mistério, conto contemporâneo e conto fantástico
(9º ano). Por sua vez, em cada capítulo há dois textos principais nomeados como
texto 01 (um) e texto 02 (dois), os quais didatizam os gêneros discursivos elencados
acima.
94
No início de cada unidade e antes dos capítulos, há a seção Projeto que visa
à apresentação de um projeto a ser desenvolvido durante o semestre escolar. Por
exemplo, no 6º ano há o Projeto Revista e o Projeto Livro de pano; no 7º ano, o
Projeto Espetáculo teatral e Jornal Mural/Informativo; no 8º ano, Projeto a leitura no
pátio e Projeto Leitura multimídia e no 9º ano existe o Projeto Livro de Contos e
Projeto Revista.
Após a apresentação dos Projetos, há a apresentação das unidades, nesse
caso, um roteiro esquemático dos conteúdos a serem desenvolvidos na unidade. Em
seguida, o LDVP inicia cada um dos capítulos com um subtítulo relacionado às
tipologias textuais. Assim, constam subtítulos como tipos textuais narrativo,
descritivo e argumentativo.
Em seguida, apresenta-se a seção denominada Antes de ler. Após isso,
inicia-se o texto principal [texto 01] de determinado gênero (conto de amor, conto
maravilhoso, conto de mistério, etc.). Outras seções são a interpretação escrita,
conhecimentos linguísticos, exercícios de fixação (uma subseção) e novamente
Antes de ler. Depois, segue a sequência: Texto 02 (dois), Interpretação escrita,
conhecimentos linguísticos, exercícios de fixação e aplicação, quadro sintético de
características do gênero estudado na unidade. Em algumas obras da coleção,
aparece a seção No mundo da fala e produção de texto.
Ao final de cada duas unidades, o LDVP retoma novamente a seção Projeto,
a fim de concretizar o trabalho desenvolvido, articulando, assim, os eixos de leitura,
produção textual (oral e escrita) e conhecimentos linguísticos. Sua finalidade é a
elaboração de um livro de pano, revista, jornal e a montagem de uma peça teatral. A
coletânea apresenta uma grande variedade de textos de diferentes esferas:
jornalísticas, literárias, publicitária etc. Ao final de cada unidade, tem-se a seção
Aproveite para... (ler, assistir, ver na internet) cujo intuito é incentivar o aluno a
buscar outros textos e também informações com títulos de livros, filmes, sites
relacionados aos gêneros e temáticas estudados.
Em cada unidade há dois capítulos, cada um com dois textos principais. Antes
da leitura de cada texto principal, o LDVP apresenta a seção Antes de ler que instiga
o aluno a pensar sobre o tema do capítulo com atividades orais e/ou escritas. A
seção Interpretação explora, principalmente, a estrutura do texto, as informações
explícitas e implícitas, a formação de inferências, dentre outros aspectos.
95
As atividades de produção são propostas ao final de cada unidade e são
desenvolvidas em etapas que se chamam: Decalque, Reprodução, Transcrição. Por
último, na seção Produção de autoria, o discente é orientado a escrever seu próprio
texto, de forma que o LDVP traz um esquema de orientação, notadamente: Quem
diz? O que diz? Como diz? Por que diz?
A oralidade é apresentada na seção No mundo da fala cujo objetivo é propor
a realização de atividades as quais desenvolvam a proficiência oral, porém, o PNLD
(2011, p. 148) diz que “o trabalho com a oralidade é limitado”.
Os conhecimentos linguísticos são explorados na seção Conhecimentos
linguísticos e nas subseções Exercícios de fixação e Exercícios de Aplicação. Ao
final da explanação dos conteúdos, há um quadro de Conclusão que apresenta um
resumo dos conteúdos estudados na seção.
Como a nossa pesquisa aborda o
letramento literário, descreveremos e analisaremos as escolhas dos gêneros desse
domínio.
Portanto, passaremos a nossa segunda pergunta de pesquisa: Qual o
tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática
adotada na escola?
96
5.2.2 Os gêneros da esfera literária na coleção
Na tabela a seguir apresentaremos os dados referentes à quantidade de
gêneros da esfera literária que observamos na coleção analisada:
Tabela 24: Quantidade de gêneros da esfera literária na coleção
GÊNERO DISCURSIVO
6º ANO 7º ANO 8º ANO 9º ANO
TOTAL
POEMA
35,71%
5%
45,95%
25,14%
CONTO (trecho)
12,86%
12,50%
13,51%
50%
18,86%
ROMANCE (trecho)
7,14%
10%
13,51%
3,57%
8,57%
CRÔNICA
15,71%
5%
2,71%
21,43%
11,43%
LETRA DE CANÇÃO
8,57%
5%
8,11%
3,57%
6,86%
CONTO
5,71%
2,50%
5,40%
21,43%
7,43%
FÁBULA
2,86%
22,50%
6,29%
17,50%
4%
CORDEL
ANEDOTA
7,14%
PEÇA TEATRAL
HAICAI
10%
2,70%
3,43%
2,70%
2,86%
2,86%
1,14%
LENDA
5%
1,14%
MITO
5%
1,14%
NOVELA (trecho)
PARÁBOLA
TOTAL
5,41%
1,14%
1,43%
70
0,57%
40
37
28
175
Conforme a tabela 24, os dados revelam que o poema encabeça a lista dos
gêneros da esfera literária na coleção, apresentando uma incidência de 25,14%. Em
seguida, o conto com um percentual de 18,86 %, porém aqui tal ocorrência, em
todos os anos da coleção, se dá por meio de excertos. Assim, pudemos observar
que há uma presença significativa de gêneros da esfera literária no LDVP analisado.
Parece que o LDVP dialoga com os PCNLP, no que diz respeito ao quadro intitulado
“Gêneros privilegiados para a prática de escuta e leitura de textos” (BRASIL,
MEC/SEB, 1998, p. 54).
A nosso ver, esse possível diálogo entre LDVP e PCNLP é importante, pois
demonstra que, de certa forma, os autores estão a par das orientações dos
documentos e, em boa medida, das questões atinentes aos novos estudos, muito
embora o projeto discursivo do PCNLP tenha sido construído por várias vertentes
teóricas do ensino-aprendizagem de língua materna como a Análise do Discurso
97
francesa,
Linguística
Textual,
Linguística
Aplicada,
Enunciativo-Discursiva
Bakhtiniana etc.
Os PCNLP sugerem os seguintes gêneros da esfera literária: conto, cordel,
canção, novela, romance, crônica, poema, texto dramático etc. Dessa forma, ao
voltarmos o nosso olhar para a tabela 24, observamos que esses gêneros da esfera
literária podem ser visualizados no quadro sugerido pelos parâmetros (BRASIL,
MEC/SEB, 1998, p. 54). Assim, de nossa parte, entendemos que esse material
didático, no que tange a seleção de gêneros discursivos nas atividades de escuta e
leitura, está em consonância com os documentos.
Tabela 25: Quantidade de gêneros de outras esferas na coleção
GÊNERO DO DISCURSO
6º ANO
7º ANO
8º ANO
9º ANO
TOTAL
REPORTAGEM
31,12%
48,93%
8,07%
42,54%
30,84%
40%
10,64%
12,90%
10,64%
17,90%
2,22%
2,13%
22,58%
10,64%
10,44%
ANUNCIO PUBLICITARIO
–
–
25,81%
2,13%
7,45%
ENTREVISTA
–
14,89%
1,61%
–
3,98%
ARTIGO DE OPINIÃO
–
–
–
17,02%
3,98%
NOTÍCIA
–
10,64%
–
2,13%
2,99%
RESENHA
–
–
9,68%
–
2,99%
DEPOIMENTO
–
2,13%
–
8,51%
2,49%
BIOGRAFIA
4,44%
–
3,23%
–
1,99%
HISTÓRIA EM QUADRINHOS
4,44%
–
1,61%
–
1,49%
PIADA
6,68%
–
–
–
1,49%
RECEITA
2,22%
–
1,61%
2,13%
1,49%
–
6,38%
–
–
1,49%
TIRA
PROPAGANDA
MAPA
2,22%
–
1,61%
–
1,00%
INFOGRÁFICO
–
2,13%
1,61%
–
1,00%
SINOPSE
–
–
3,23%
–
1,00%
ROTEIRO DE CINEMA
–
–
3,23%
–
1,00%
BLOG
2,22%
–
–
–
0,50%
CAÇA-PALAVRAS
TEXTO DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA
2,22%
–
–
–
0,50%
2,22%
–
–
–
0,50%
PÁGINA DE JORNAL
–
2,13%
–
–
0,50%
CARTAZ PUBLICITARIO
–
–
1,61%
–
0,50%
MESA-REDONDA
–
–
1,61%
–
0,50%
FOTOLOG
–
–
–
2,13%
0,50%
CURRÍCULO VITAE
–
–
–
2,13%
0,50%
TOTAL
45
47
62
47
201
QUESTIONARIO
98
Em tal tabela, a reportagem, que pertence à esfera social imprensa, é quem
atinge o maior percentual – 30,84% - em toda a coleção. Novamente, percebemos
aqui, um possível diálogo entre LDVP e PCNLP no que toca à seleção dos gêneros
de outras esferas, pois, os documentos oficiais elencam os seguintes gêneros:
notícia, reportagem, entrevista, charge e tira etc. Além disso, notamos que o gênero
tira apresenta uma incidência bastante relevante, isto é, 17,90% em toda a coleção.
De nossa parte, entendemos que, a julgar pela quantidade de gêneros de
outras esferas (imprensa, publicidade etc.), que não a literária, o LDVP os toma
como principal ferramenta de ensino-aprendizagem, em outras palavras, os gêneros
da esfera jornalística, da imprensa, da publicidade são os privilegiados.
Como objeto norteador de nossa pesquisa, ater-nos-emos em analisar o
gênero conto.
5.2.3 A presença do conto da esfera literária na coleção
Neste subitem apresentaremos os dados referentes, primeiramente, à
organização didática do trabalho com os contos na forma de projeto escolar; e, em
um segundo momento, a quantidade desses nos volumes analisados.
No LDVP do 9º ano, observamos que as autoras sugerem de modo mais
específico a seção “projeto livros de contos” na introdução da unidade (2011, p. 8) e
no final da unidade (2011, p. 148-153). Na opção de trabalho escolar por projetos, as
autoras dialogam com os PCNLP em relação às organizações didáticas especiais,
porque aqueles referenciais sugerem que se “proponham atividades no interior de
um projeto que deixe claro para o aluno os parâmetros da situação de comunicação”
(BRASIL, MEC/SEB, 1998, p. 74).
O diálogo torna-se mais nítido na etapa de projetos, pois os PCNLP orientam,
dentre alguns exemplos de projetos, a “produção de fita cassete de contos [ou]
coletânea de textos de um mesmo gênero (poemas, contos)” (BRASIL,
MEC/SEB, 1998, p. 87 ênfase adicionada).
99
Gráfico 1 – Os contos presentes na coleção
As autoras didatizam o gênero conto em sua pluralidade de formas
discursivas: contos de assombração, mistério, maravilhoso, amor, fantástico e
contemporâneo. A nosso ver, é significativa a ocorrência do gênero conto no LDVP,
tendo em vista que ele está presente em todos os volumes e que, talvez, promova
possíveis práticas leitoras de conto. Ainda, observamos uma busca em atender às
recomendações dos PCNLP ao destacar o gênero conto:
[...] a seleção de textos deve privilegiar textos de gêneros que
aparecem com maior frequência na realidade social e no universo
escolar, tais como notícias, editoriais, cartas argumentativas, artigos
de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos, romances,
entre outros (BRASIL, MEC, 1998, p. 26 ênfase adicionada).
Entretanto, observamos que o tratamento didático dado ao gênero conto é,
em boa medida, por fragmentos ou trechos, como podemos ver abaixo:
Gráfico 2 – Quantidade de fragmentos de contos na coleção
100
Podemos observar que no 6º e 9º anos há uma incidência maior do gênero
discursivo conto, isto é, quatro contos no 6º ano e seis contos no 9º ano, totalizando
dez contos, contudo, desse total, quatro contos são fragmentos. No 7º e 8º anos, o
conto apresenta uma incidência menor, um e dois respectivamente.
A nosso ver, apresentar trechos de contos ou fragmentos de qualquer texto
literário figura como uma prática inadequada, quando se almeja a formação do leitor
literário, pois, geralmente, tais atividades não possibilitam uma prática de fruição
literária completa dos textos pelos alunos.
Assim, a fragmentação dos textos literários se constitui como uma prática
que, em certa medida, “mutila” a forma composicional, o estilo do gênero, o
conteúdo temático, a situação de produção e o tom literário. Ainda, pensamos que a
fragmentação ou o uso de trechos de textos literatos não promove uma apreciação
estética do todo discursivo.
Portanto, embora o LDVP apresente um percentual alto de gêneros da esfera
literária e, em boa medida, esteja em consonância com os PCNLP na seleção de
gêneros discursivos, acreditamos que apresentar trechos, excertos ou fragmentos
dos contos não é uma prática profícua para a formação do leitor literário.
Sobre isso, Paiva e Maciel (2008, p.115) afirmam que os fragmentos:
[...] são apresentados aos alunos como pseudotextos, às vezes
começando pela metade, outras vezes com recortes feitos no corpo
do texto apenas para adequá-lo ao espaço ao livro didático,
aproximando o começo do fim. Além disso, muitas vezes, quando é
transferido para o livro didático, o texto literário acaba se
desconfigurando, pois perde a programação visual e as ilustrações
do livro originalmente concebido e publicado (PAIVA&MACIEL, 2008,
p.115).
Em certa medida, o uso de recortes pode influenciar na compreensão
dialógica da apreciação valorativa dada pelo autor da obra literária. Como também,
acarretam lacunas tanto na apreciação estética quanto na mobilização de certas
capacidades leitoras. E, ainda, pode apresentar outros efeitos de sentidos durante a
circulação e recepção dos contos pelos ouvintes-contempladores.
Verificamos também que tanto os contos recortados quanto aqueles na
íntegra apresentam como primeira função o trabalho com os conhecimentos
linguísticos (gramática). Em um segundo momento, eles são tomados para o
desenvolvimento da leitura (compreensão textual) como posto no seguinte gráfico:
101
Gráfico 3 – Quantidade de atividades nos capítulos em que é trabalhado o gênero conto no LD
Observamos nesse gráfico que o LDVP tem desenvolvido um trabalho
exaustivo com a gramática, tendo em vista que 61% das atividades desenvolvidas,
no 6º ano, correspondem a conteúdos linguísticos; 53%, no 7º ano; 49%, no 8º ano e
48% no último ano do Ensino Fundamental, o 9º. Os dados revelam que, de certa
forma, com o passar dos anos, as atividades de gramática tendem a diminuir.
Notamos que o trabalho didático com textos literários está a serviço do ensino
da gramática ou dos conhecimentos linguísticos. Assim, ao compararmos o
percentual total das atividades, percebemos que os exercícios de conteúdo
gramatical atingem uma incidência de 52,59% nos capítulos em que o conto
aparece. Ao passo que as atividades de leitura aparecem com um percentual total
de 38,3%. Os dados apresentam uma incidência de 6,48% para atividades de escrita
e 2,59% para as de oralidade.
Gráfico 4 – O percentual total das atividades de leitura, escrita, oralidade e gramática nos
capítulos relacionados ao gênero conto
102
No atinente às atividades de leitura, sua incidência é de 31% no 6º ano, 24%
no 7º, 45% no 8º e 44% no 9º ano. O percentual de atividades de leitura corresponde
praticamente à metade do índice de conhecimentos linguísticos. Os dados, assim,
revelam um descompasso entre o percentual de atividades de leitura e de
conhecimento linguístico. Nesse sentido, a seguinte citação do PNLD (2011, p. 151)
corrobora com os nossos dados, quando afirma sobre trabalho exaustivo com a
gramática normativa:
De modo geral, a abordagem é transmissiva e metalinguística, com
poucas atividades que permitem a construção de conceitos.
Predomina uma abordagem na perspectiva estrutural, com grande
investimento em conceituações e definições, memorização de regras
e listas de exercícios [...] (BRASIL, MEC/SEB, 2011, p. 151).
Abordaremos, no subitem seguinte, questões relacionadas às atividades de
leitura realizadas com os contos.
5.2.4 Sobre o tratamento didático nas atividades de leitura do conto
O livro do 6º ano - na unidade 3, capítulo e texto 01 – apresenta o conto “O
homem que enxergava a Morte” de Ricardo Azevedo. Vejamos a seguir uma
atividade referente à leitura, apresentada no LDVP do 6º ano, página 153:
As narrativas de ficção – como os contos, os romances, as novelas, os poemas
narrativos e os causos – sempre apresentam certos elementos, que encontramos ao fazer
estas perguntas:

Quem conta a história, isto é, quem é o narrador?

Quem participa da história, isto é, quem são as personagens?

O que acontece na história, isto é, qual o enredo?

Onde acontece a história, isto é, qual o espaço?

Quando acontece a história e quanto tempo dura, isto é, qual o tempo?
O conto “O homem que enxergava a Morte” tem todos esses elementos, mas
escolhemos estudar aqui apenas um deles, a personagem principal, observando, para isso,
suas ações e as consequências delas.
Responda às questões no caderno.
103
1. Logo no início do texto é apresenta a personagem principal. Com ela é que
acontecem os fatos mais importantes do conto e por causa dela a história se
desenvolverá.
a) Quem é essa personagem? Descreva a situação em que ela se encontra no início da
história (para isso releia os cinco primeiros parágrafos).
b) De acordo com o texto, por que o homem não consegue encontrar um padrinho para
seu filho mais novo?
Observe que a situação inicial da personagem – muito pobre com seis filhos – muda
com o nascimento do sétimo filho e a necessidade de encontrar um padrinho para ele. A
partir dessa primeira complicação, uma solução, novos problemas e novas soluções
organizarão a narrativa.
Nessa atividade, observamos que, apesar do livro apontar os elementos
estruturais do gênero conto – que consideramos relevantes para encaminhar a
leitura participativa -, ele diz, no entanto, que não irá explorá-los em sua totalidade,
mas sim apenas o aspecto personagem principal.
Acreditamos que, em se tratando de didatização, não é relevante para os
alunos estudarem apenas a personagem (personagens) de um dado conto, pois, tal
gênero não se realiza somente através do estudo das características dessa.
Portanto, entendemos que o estudo do gênero conto, por esse viés, de certa forma,
apresenta-se de maneira fragmentada, uma vez que quem lê, estuda ou escreve um
conto, certamente, o compreende em sua totalidade (narrador, personagens,
enredo, espaço, tempo, esfera de circulação e recepção etc.), isto é, um todo de
sentido - Enunciado Concreto (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010 [1929]).
Além disso, o LDVP propõe algumas atividades que, conforme podemos
observar nos dados supracitados, não possibilitam ao aluno-leitor uma participação
ativa dialógica em que o cerne da prática leitora seja a formação desse sujeito
enquanto leitor literário que aprecia e valora esteticamente o objeto contemplado.
Percebemos tais evidências, quando o LDVP faz uso de expressões que
levam o aluno-leitor diretamente a um dado excerto do conto, por exemplo, “logo no
início do texto”; “se encontra no início da história”; “para isso releia os cincos
primeiros parágrafos”; “de acordo com o texto”. Essas expressões colaboram para
uma compreensão no nível da textualidade ou ainda, uma compreensão “uniforme”
que apenas dubla e revozea o já dito.
104
É importante dizermos que, ao analisarmos tais atividades, observamos que o
LDVP não informa ao aluno-leitor que há outra versão desse conto, escrita pelo
contista e folclorista Luís da Câmara Cascudo e que esse, por sua vez, é apenas
aquele que escreve o conto, contado oralmente por João Monteiro, em Natal, Rio
Grande do Norte. Diante disso, inferimos que, talvez, aqui possa ter havido uma
tentativa de apagamento da voz de um discurso que se sustenta na prática oral.
Em outra atividade na mesma unidade, porém, no capítulo e texto 02,
utilizando o conto “Cinco ciprestes, vezes dois” de Marina Colasanti, o LDVP
propõem as seguintes atividades:
1- Copie no caderno o trecho em que o homem do conto é apresentado. (LDVP, 6º
ano, p. 205).
2- O homem é assassinado pelo bandido, mas nesta parte do texto se observa uma
importante interferência. Quem interfere na história? (LDVP, 6º ano, p. 205).
Nessa atividade, o LDVP convida os alunos a copiarem/extraírem um
determinado trecho em que a personagem seja apresentada. Acreditamos que tal
atividade promove apenas a prática de localizar e copiar mecanicamente um excerto
do conto, não permitindo que o aluno tome um posicionamento crítico, apreciativo
sobre o texto lido, visto que as práticas de localizar e copiar informações não
promovem a formação de um possível leitor literário, ou seja, o aluno não é
direcionado a dialogar, a refletir, a reagir de maneira que o gosto pela leitura literária
venha a ser desenvolvido, de forma que se torne um apreciador de textos literários.
Ainda, podemos observar, na segunda atividade, a realização de tal prática
leitora, ou seja, o LDVP propõe ao aluno que esse apenas diga quem interferiu no
curso da história, sem levá-lo a uma compreensão ativa dialógica. É importante
dizermos que, nesse conto, o narrador muda o desfecho da história, de modo que
interrompe enfaticamente o rumo do conto: “Mas um conto é apenas um conto, que
eu conto, reconto e transformo em outro conto” (Marina Colasanti).
Aqui observamos que o LDVP poderia ter explorado uma característica
peculiar do gênero discursivo conto, isto é, o traço, a marca, os resquícios da
oralidade, da tradição oral de se contar causos desde a origem da humanidade.
Percebemos ainda que esse modo peculiar – “diferentes possibilidades para a
expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da
105
individualidade” (BAKHTIN, 2010 [1953-1954], p. 265) - da autora Marina Colasanti
deveria ser discutido com os alunos, pois são esses aspectos que levam os
discentes a tornarem-se apreciadores ou não de contos. Consoante com Mikhail
Bakhtin (1981[1929]), entendemos que “o gênero sempre conserva os elementos
imorredouros da archaica [...] – a archaica refere-se aos traços característicos dos
tempos antigos, a Antiguidade” (BAKHTIN, 1981[1929], p.91). Tal citação evidencia
que o gênero discursivo conto, portanto, sempre apresentará os resquícios e traços
distintivos de sua origem, de seus “elementos imorredouros da archaica” (idem).
Em ao livro do 7º ano, na unidade 1, no capítulo e texto 01, o LDVP propõe a
leitura do conto “Um amigo para sempre” de Marina Colasanti, segue algumas
atividades:
1- O texto “Um amigo para sempre” é um conto, isto é, uma narrativa curta composta
por narrador (quem conta os fatos), personagens (quem participa deles), espaço
(lugar onde se passa a história) e tempo (época ou duração do fato narrado). Além
disso, apresento uma situação inicial estável, que é transformada por um
acontecimento. Reconhecer esses elementos é importante ponto de partida para
interpretar qualquer conto. Então, no caderno identifique:
a) A personagem principal de “Um amigo para sempre”;
b) O lugar onde se passa a história;
c) O tempo de duração do fato narrado;
d) A situação inicial do conto;
e) O fato que deu início a transformação.
2- Após o primeiro encontro entre o homem e o pássaro, a narrativa evolui e, a cada
parágrafo acrescenta-se uma nova informação, consequência do fato anterior. Há
um trecho, no entanto, que encaminha a história para o final provocando certa
expectativa no leitor. Copie-o no caderno.
Podemos observar que o LDVP retoma, na primeira atividade, a discussão
sobre a estrutura do conto, de maneira que propõem ao aluno a prática de identificar
e copiar excertos no caderno. Reiteramos que a prática de levar o aluno a conhecer
a personagem principal, o lugar, o tempo, o enredo é de suma importância, contudo,
a mera identificação seguida de copiar trechos que indicam tais elementos sem
106
refletir acerca dos possíveis efeitos de sentidos que são engendrados, talvez, não
seja o caminho para formarmos leitores e apreciadores de contos.
Ainda na atividade 02, há uma questão concernente a um determinado
aspecto da prática leitora: provocar certa expectativa no leitor. No entanto, o LDVP
não discute tal questão com mais acuidade, de forma que pede apenas que os
alunos copiem no caderno o trecho em que se pode observar tal expectativa.
Observamos que, provavelmente, a voz do aluno aqui não tenha sido levada em
consideração, visto que a atividade fala que a leitura do conto pode provocar certas
expectativas no leitor, ou seja, tais expectativas são geradas no aluno-leitor. Acerca
dessa questão, Edgar Allan Poe (apud GOTLIB, 1999) afirma que o conto se
caracteriza pelo efeito, pela expectativa que ele consegue provocar no leitor, em
outras palavras, deve-se “dosar” a obra, afim de que o leitor leia “a uma só
assentada”.
Na atividade 03, o conto é objeto de estudo gramatical relativo à morfologia
verbal.
3- No texto de Marina Colasanti, aparecem vários verbos no pretérito imperfeito do
subjuntivo. Releia as frases e os verbos destacados na atividade 01 e responda no
caderno:
a) Em todas as frases, os verbos destacados estão no pretérito imperfeito. Quais estão
no modo indicativo? Quais estão no subjuntivo?
b) Escreva no caderno a forma infinitiva dos verbos que, no item a, aparecem no
subjuntivo.
c) Os verbos da primeira conjugação tem vogal temática a (cantar). Na resposta do a,
quais verbos pertencem à primeira conjugação?
d) Os verbos de segunda conjugação apresentam a vogal temática e/o (escrever,
compor). Na resposta do item a, quais verbos pertencem à segunda conjugação?
e) Entre os verbos destacados, há algum da terceira conjugação? Que vogal temática
caracteriza a terceira conjugação? Exemplifique (LDVP, 7º ano, p. 19 - 21).
No atinente a essa questão, a concepção de compreensão passiva de Mikhail
Bakhtin e o Círculo (1993 [1934-1935]) serve para refletirmos acerca de tal evento,
qual seja compreensão passiva que está no campo da decodificação ou decifração
da leitura. Assim, tal prática se concretiza como uma leitura identificativa, isto é,
107
identificar o sinal, o sinal escrito; ou ainda, de identificação dos traços fônicos,
gramaticais e outros relevantes para esse tipo de compreensão.
Nesse viés, da prática de leitura literária, nos parece que, nessa atividade, tal
prática é tomada apenas como um processo de identificação dos aspectos
gramaticais e, não como um ato de compreensão ativa, momento no qual “se
determina uma s é r i e d e i n t e r - r e l a ç õ e s c o mp l e x a s , d e c o n s o n â n c i a s e
mu l t i s s o n â n c i a s c o m o compreendido, enriquece-o de novos elementos”
(BAKHTIN, 1993 [1934-1935], p. 90-91 ênfase adicionada).
Paes de Barros (2005), em consonância com a teoria bakhtiniana, pontua que
a leitura é um processo de compreensão ativa em que os leitores constroem “os
sentidos dos textos verbais e não–verbais, observando-os como componente de um
todo de significação, a ponto de desvelar o não-dito presente na dialogia [...]” (PAES
DE BARROS, 2005, p.148) nas práticas de leitura.
Assim, verificamos, ainda, que o conto, na referida atividade, não é utilizado
para se desenvolver o letramento literário, mas como pretexto para se ensinar
conteúdo de cunho gramatical em detrimento daquelas “que contribuem para a
formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os
sentidos,
a
extensão
e
a
profundidade
das
construções
literárias”
(BRASIL/MEC/SEF, 1998, p. 27).
O volume do LDVP do 8º ano, na unidade 01, no capítulo 1, nos textos 01 e
02, “O primeiro amor" de Ana Miranda e “Brincadeira” de Anton Tchekhov,
respectivamente, apresentam algumas atividades, a saber:
1- A transformação desencadeada altera o estado de alma (sensações e sentimentos)
da narradora – personagem. Copie o trecho em que a garota revela o início de um
sentimento completamente novo.
2- A partir deste ponto da história, o conto se desenvolve apresentando os estados de
alma, as emoções da personagem.
a) Que sentimento passa a dominar a garota?
b) Como ela reage a esta nova sensação?
(LDVP, 8º ano, p. 14-15)
3- Descreva a situação inicial das personagens.
4- Que fato desencadeia a mudança de estado de alma da personagem Nádenka?
(LDVP, 8º ano, p. 27)
108
Os dados revelam que o LDVP, novamente, retoma a mesma discussão feita
no 6º e 7º ano. Observamos que o livro ainda propõe aos alunos que identifiquem os
trechos, copiem no caderno e descrevam características da personagem. É
importante notarmos que a atividade 02 e 04 propõem o mesmo tipo de prática, pois
pede para o aluno indicar os estados de alma da personagem, ou seja, mais uma
vez o LDVP traz para estudo a caracterização da(s) personagem (ns) do conto.
Além disso, pudemos perceber que ainda há expressões, como “copie o
trecho” ou “descreva a situação”, que corroboram para um esvaziamento de
nuanças e de possíveis efeitos de sentidos que poderiam ser engendrados por meio
desses dois contos lidos pelos alunos. A nosso ver, tais atividades culminam para
uma prática que não explora os aspectos discursivos estéticos e apreciativos de um
texto verbal ou verbo-visual, de forma que essa prática não propicia o levantamento
de outros sentidos (o não-dito) do objeto contemplado em outro contexto.
Em nossa perspectiva, tais atividades de leituras não dão voz aos alunos, visto
que não levam em consideração uma possível co-criação leitora, em que elementos
discursivos, recepção do conto e a apreciação estética não são desenvolvidas.
Com base nas questões citadas acima, observamos, portanto, que tais
atividades estão no nível de fragmentação do conto. A julgar pela concepção de
leitura que o LDVP concebe, isto é,
[...] um processo de interação entre o leitor e o texto. Nessa atividade
interativa, muitas vezes orientada por objetivos claros a serem
obtidos (busca de informação, entretenimento, reflexão, etc.), nem
sempre são conscientes as estratégias de entrada no texto,
tampouco os mecanismos textuais utilizados pelos autores para
comunicar uma ideia, um fato ou uma experiência estilística (Manual
do Professor, 2012, p.2).
Na nossa ótica discursiva, entendemos que o processo de leitura dialógica não
é pela interação entre leitor e texto, mas sim entre leitor e autor. Percebemos, ainda,
que há certo descompasso entre a afirmação anterior e a seguinte “nesta coleção
procuraremos realizar um trabalho bastante específico de identificação e
caracterização do gênero textual, cujas bases teóricas se encontram em Bronckart e
em Bakhtin” (Manual do Professor, 2012, pp.2, 4 ênfase adicionada).
Primeiramente, pensamos que o processo de leitura, numa acepção
enunciativo-discursiva, é tomado como um ato ativo e criativo em que o sujeito age e
reage com o autor da obra, bem como concorda ou discorda, acrescenta novos
109
elementos, questiona e replica os discursos presentes na obra contista. Em segundo
lugar, nessa perspectiva, o aluno é convidado a tornar-se co-autor duma dada obra,
a participar ativamente da (re)constituição dos sentidos e desvelar os não-ditos no
texto.
Assim, a leitura, pelo viés enunciativo-discursivo, toma o aluno como um sujeito
que age na vida, no mundo ou nos mundos propostos pelos contos. Portanto, o
aluno responde, aprecia e valora os contos, porque a compreensão é dialógica, pois
se dá no processo de interação entre dois indivíduos socialmente organizados.
No exemplar do 9º ano da coleção, há algumas atividades de leitura
desenvolvidas a partir do conto “O coração comido” de Gilles Massardier, a saber:
1- Qual a primeira informação que o leitor recebe sobre Béatrice?
2- Ao final da confissão do castelão, o que mais surpreende o frei?
3- A descrição é fundamental na construção de um conto de mistério; é por meio dela
que o leitor tem a possibilidade de imaginar as personagens e os lugares descritos.
Se a descrição for eficiente, poderá garantir a tensão necessária ao desenvolvimento
do enredo, até o momento do desfecho. Releia os parágrafos de 2 a 5 e indique
no caderno os elementos do ambiente responsáveis por manter o leitor em
expectativa.
4- O desfecho do texto (penúltimo parágrafo) faz referência a um comportamento
surpreendente do barão. Ao relatá-lo, o narrador sugere ter havido uma grande
mudança no comportamento do pai de Béatrice.
a) Que mudança foi essa?
b) O que o barão resolveu fazer para aplacar esse novo sentimento?
(LDVP, 9º ano, p.27).
É importante dizermos que o referido conto faz parte de uma obra intitulada
“Contos e lendas da Europa Medieval” a qual, como o próprio nome sugere, aborda
assuntos desse período histórico. No entanto, observamos que o LDVP não propõe
um trabalho nas atividades de leitura em que tal temática pudesse ser explorada,
para instigar a participação do aluno-leitor por meio de sua voz, de sua apreciação
valorativa. Pudemos notar que, de certa forma, a coleção aqui analisada insiste em
atividades que promovem a compreensão apenas do texto, isto é, busca-se
apreender aquilo que está posto no texto, ou seja, por esse viés o foco recai sobre o
texto e sobre o leitor na extração de informações do texto (ROJO, 2004).
110
Em consonância com Bakhtin (2010 [1959-61/1976], p.311), compreendemos
que a atividade de “cópia” de textos é de fato uma “reprodução mecânica do texto”.
Contudo, a leitura deixa de ser uma reprodução mecânica de significado do texto, se
for feita de modo que o sujeito faça retomadas e citações, acrescentando outros
elementos àquilo que foi dito ou relacionando a outros textos e discursos verbais,
visto que há uma reelaboração e reacentuação da palavra alheia, em decorrência
“do acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica
da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2010 [1959-61/1976], p.311),
Portanto, só há esse acontecimento novo, quando dois sujeitos, duas
consciências se encontram, por isso, o contemplador (o aluno-leitor) será um coautor de quantos textos for ler (do objeto discursivo contemplado). Dessa forma, a
leitura como processo criativo alia-se aos pensamentos bakhtinianos:
[...] acerca da natureza social da linguagem e de sua constituição
dialógica, a partir da qual a leitura é considerada como um processo
de compreensão ativa que acarreta uma série de inter-relações
complexas que enriquecem o já compreendido com novos elementos
no diálogo dos enunciados (PAES DE BARROS, 2005, p.5 ênfase da
autora).
Assim, responderemos a nossa segunda questão de pesquisa: Qual o
tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção didática
adotada na escola?
Percebemos que o LDVP didatiza o gênero conto na perspectiva de trabalho
escolar de leitura em que parece não levar em conta a segunda parte da seguinte
citação dos documentos oficiais de Língua Portuguesa: “a razão de ser das
propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o
silêncio” (BRASIL, MEC, 1998, p. 19 ênfase adicionada). Diante do exposto, o LDVP
prioriza, na maioria das atividades, a compreensão leitora passiva na qual os alunosleitores devem fazer uso da leitura na cópia ou reprodução das formas da língua e
das formas estruturais dos contos.
Dessa forma, notamos que há pouco espaço para o trabalho com a leitura
que vai ao encontro da formação literária do aluno como co-criador dos contos
literários, visto que o LDVP não apresenta situações didáticas leitoras que abordem
ou instigue a participação ativa dialógica, de maneira a dar voz ao aluno. Assim, não
promove, muitas vezes, a contrapalavra do discente ou a apropriação da palavra
111
alheia, isto é, a tomada da palavra de outrem na recriação das práticas leitoras
contistas pelos próprios alunos.
De certa forma, o LDVP não contempla a leitura na perspectiva dialógica em
que Paes de Barros (2005, p. 188) afirma: “a compreensão completa o texto: exercese de uma maneira ativa e criadora”. Compreendemos, portanto, que, na coleção
estudada, o ensino da leitura nas atividades do gênero conto se fundamenta,
sobretudo, na transmissão passiva leitora, em que se copia o discurso do outro.
Consoante com Bakhtin/Volochinov (2010 [1929]):
Trata-se de ao invés de se adotar uma falsa concepção da
compreensão como um ato passivo- compreensão da palavra que
exclui de antemão e por princípio qualquer réplica ativa [...], qualquer
resposta [...] que se caracteriza justamente por uma nítida percepção
do componente normativo do signo lingüístico, isto é, pela percepção
do signo como objeto/sinal, onde, correlativamente,
o
reconhecimento
predomina
sobre
a
compreensão
(BAKHTIN/VOLOCHINOV,
adicionada).
2010
[1929],
p.99
ênfase
Desse modo, passaremos para a análise das capacidades mobilizadas nas
atividades leitoras do LD.
5.2.5 Sobre as capacidades mobilizadas
Nesta seção, apresentaremos nossa terceira questão de pesquisa: Que
capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto?
Primeiramente, mostraremos a tabela com o percentual de mobilização de
capacidades leitoras, observadas nas atividades de leituras propostas relacionadas
ao gênero conto.
Tabela 26: Capacidades de compreensão mobilizadas
coleção
Capacidades de compreensão de leitura
Localização e/ou cópia de informações
Antecipação ou predição de conteúdos ou propriedades
dos textos
Produção de inferências
Checagem de hipóteses
Comparação de informação
Ativação de conhecimentos de mundo
Generalização (conclusões gerais sobre fato, fenômeno,
situação, problema, etc. após análise de informações
pertinentes)
nas atividades de leitura do conto na
6º ANO
26,99%
14,29%
7º ANO
17,86%
5,35%
8º ANO
47,37%
15,79%
9º ANO
30,47%
5,47%
11,11%
4,76%
3,17%
3,17%
11,11%
41,08%
1,78%
7,14%
-
18,42%
2,63%
-
33,59%
2,34%
9,38%
3,91%
112
Como podemos observar na tabela acima, as atividades de localização e/ou
cópia de informações têm a incidência maior em toda a coleção, apresentando um
percentual de 26,99% no 6º ano; 17,86% no 7º; 47,37% no 8º e 30,47% no 9º.
A título de exemplificação temos as seguintes atividades do 6º ano, nas quais
a capacidade mobilizada é a localização de informação em que se pede apenas
para o aluno localizar as personagens, porém não leva o discente a refletir o porquê
ou a se fazer perguntas como: Isso me ajudará a compreender melhor o conto? Por
que as personagens são importantes? Por que os dois contos têm personagens
semelhantes? Qual é a finalidade de indicar os indícios do conto?
Assim como no conto “O homem que enxergava a morte”, a história
que você acabou de ler também gira em torno da relação entre duas
personagens. Quais? (LDVP, 6º ano, p. 167).
Há no texto diversos indícios de que a história pode não ter
acontecido exatamente como o narrador contou. Indique-os no
caderno (LDVP, 6º ano, p.195).
O LDVP traz também algumas atividades que mobilizam capacidades de
antecipação (produção de hipóteses) e de inferências, como podemos visualizar,
respectivamente, a seguir:
Que tipo de história o leitor encontrará nesse livro? (LDVP, 6º ano,
p.148).
O relato do barão revela mais do que sua personalidade assassina.
Explique essa afirmação apresentando informações do texto (LDVP,
9º ano, p.27).
De nossa parte, entendemos que tais atividades são de suma importância
para o processo de aprendizagem de leitura e para a apropriação da palavra alheia.
No entanto, percebemos que o LDVP apresenta um percentual bastante elevado de
atividades cujas capacidades mobilizadas estão no âmbito apenas da compreensão
textual, ou seja, não há uma preocupação para a formação do leitor literário.
A nosso ver, tal incidência, parece não contribuir para uma leitura crítica e
reflexiva, de forma que os alunos sejam participativos e apreciadores de textos
literários. Tendo em vista que o nosso objetivo principal é observar as ocorrências
das capacidades de apreciação e réplica ativa nas atividades de leitura de contos e
que, em boa medida, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) já apresentou
113
uma análise acerca das capacidades de compreensão mobilizadas na coleção, não
iremos nos ater as capacidades de compreensão.
Dito isso, nossos dados levantados e quantificados corroboram com a análise
da etapa de leitura do LD Viva Português formulada pelo Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD). Especificamente no que tange às capacidades mobilizadas
nas atividades leitoras, nossa tabela elenca as “capacidades desenvolvidas no
conjunto da coleção, entre outras, [que] são: [...] estratégias de leitura como ativação
de conhecimentos prévios, formulação e verificação de hipóteses, localização de
informações, inferências” (BRASIL, FNDE, PNLD, 2011, p. 148).
A tabela a seguir trata das capacidades de apreciação e de réplica ativa
trabalhadas na coleção aqui pesquisada, a saber:
Tabela 27: Capacidades de réplica ativa mobilizadas nas atividades de leitura do conto na
coleção
Capacidades de apreciação e réplica do leitor
na prática de leitura
Recuperação do contexto de produção do texto
Percepção de relações de intertextualidade
Percepção de outras linguagens
Elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas
6º ANO
7º ANO
8º ANO
12,70%
6,35%
6,35%
-
3,57%
10,71%
8,94%
3,57%
5,26%
10,53%
9º ANO
3,91%
2,34%
8,59%
Em relação à capacidade de recuperação do contexto de produção do texto,
pudemos observar um percentual de 12,70 % para o 6º ano; 3,57%, 7º ano; 5,26%,
8º ano e 3,91% para o 9º ano. É importante dizermos que tais capacidades são
desenvolvidas numa seção cujo nome é “Antes de ler”, a qual possui, a nosso ver,
bastante relevância para a formação do aluno-leitor literário, entretanto, vimos que,
ao longo dos anos, esse percentual tende a diminuir nos volumes, visto que no 6º
ano, por exemplo, há uma incidência de 12%, ao passo que no 9º ano tal incidência
diminui, alcançando 3,91%. A título de exemplificação, apresentaremos uma
atividade que contempla tal capacidade:
O poeta do texto contava às crianças e aos adultos à sua volta
“histórias maravilhosas de coisas surpreendentes criadas pelo seu
espírito”. Na sua opinião, ele mentia ou recriava a realidade?” (LDVP,
7º ano, p. 27).
A nosso ver, essa diminuição revela que o LD não tem como objetivo principal
formar alunos-leitores de textos literários, pois, como bem pontua Rojo (2004), o
contexto de produção é de suma importância na prática da leitura dialógica, cujo
114
objetivo principal é formar o aluno–leitor para refletir, refratar e apreender o não-dito
de textos verbais ou verbo-visuais. Portanto, para se obter uma leitura crítica e
cidadã, como nos lembra Rojo (2005), é preciso situar o texto, questionando:
[...] Quem é seu autor? Que posição social ele ocupa? Que
ideologias assume e coloca em circulação? Em que situação
escreve? Em que veículo ou instituição? Com que finalidade? Quem
ele julga que o lerá? Que lugar social e que ideologias ele supõe que
este leitor intentado ocupa e assume? Como ele valora seus temas?
Positivamente? Negativamente? Que grau de adesão ele intenta?
Sem isso, a compreensão de um texto fica num nível de adesão ao
conteúdo literal, pouco desejável a uma leitura crítica e cidadã
(ROJO, 2004, p.6).
Com relação às capacidades de percepção da intertextualidade, os dados
revelaram um percentual de 6,35% para o 6º ano e 10,71% para o 7º. Assim,
pudemos notar que há poucas questões atinentes às relações de intertextualidade,
isto é, relações com outros textos já conhecidos que poderiam deles resultar réplica
ativa. Dessa forma, observamos que esta capacidade de leitura é fundamental para
a formação do aluno-leitor literário, pois o leva a fazer relações com outros dizeres,
com novas falas e outros discursos.
Assim, tal prática permite que o aluno construa conhecimento de maneira
reflexiva e dialógica, pois, por esse viés, a leitura não é harmoniosa, mas sim
polissêmica e prenhe de sentidos variados. Consoante Bakhtin “o texto só tem vida
contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de texto eclode a
luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo”
(BAKHTIN, 1974/1979, 2010, p.401).
No concernente à capacidade de percepção de outras linguagens (imagens,
som, gráficos, mapas etc.), os alunos do 6º ano apresentaram uma incidência de
6,36%; os do 7º ano um percentual de 8,94% e 2,34% no 9º ano. A percepção de
outras linguagens é extremamente importante para o ensino de leitura, visto que
abrange variadas esferas sociais. Além disso, são elementos constitutivos de
possíveis sentidos que podem ser engendrados na leitura de um texto verbal ou
verbo-visual.
Já a capacidade de elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas
apresentou uma incidência de 3, 57% no 7º ano; 10,53% no 8º e 8,59% no 9º ano.
Percebemos que os dados revelam que a coleção apresenta um percentual de
capacidades de apreciações estéticas e/ou afetivas insuficiente para a formação do
115
leitor literário, ou seja, parece que a referida coleção não estimula significativamente
o letramento literário.
As capacidades de réplica ativa, portanto, exigem uma tomada de posição e
apreciação valorativa do leitor com relação à palavra de outrem (autor), de maneira
tal que “essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom
valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos” (BAKHTIN, 2010
[1952/1953], p.295). Na ótica da réplica ativa, a leitura “é um processo dialógico que
promove discursos e enunciados que acabam por construir conjuntamente os
sentidos do texto” (PAES DE BARROS, 2005, p.32).
Em corroboração com a autora (2005), entendemos que a leitura literária
como réplica ativa é um processo dialógico de apropriação da palavra literária, ou
seja, tornar o literário próprio, incorporá-lo, reelaborá-lo e reacentuá-lo. A prática de
apropriação da palavra literária percorre um caminho social, porém também
individual, isto é, sócio-individual.
Acreditamos que a leitura é um espaço social em que o processo de tomada e
apropriação da palavra alheia é imprescindível para a formação do leitor, em
especial a formação do leitor literário. Assim, nesse viés o sujeito é levado a se
desvencilhar, a refletir e apreciar, a refutar, a concordar ou discordar, ou seja, a
recriar o que já existe.
Assim, diante desse contexto, entendemos que bom seria o professor
complementar o trabalho do LD com outras atividades, a fim de desenvolver a
capacidade de leitura para além do texto/da compreensão, isto é, leitura literária
como ato de apreciação estética, réplica ativa e criativa e, ainda, como processo
dialógico e de confronto entre a “palavra-alheia” e a “palavra-alheia-minha”
(BAKHTIN, 1934-35/1975). Desse modo, retomamos a nossa terceira questão de
pesquisa: Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do
gênero conto?
Em análise dos dados sobre as capacidades mobilizadas à luz da teoria
dialógica de Bakhtin e o Círculo, observamos que a mobilização oscila ora na
vertente da leitura passiva, ora na vertente da leitura de compreensão ativa –
capacidades de apreciação estética e réplica ativa.
Compreendemos que a coleção analisada busca reverenciar as vozes de
autoridade dos autores contistas, visto que os exercícios abordam questões
atinentes,
principalmente,
à
identificação
de
informações,
à
cópia
de
116
excertos/trechos do conto, à prática constante de descrever as características das
personagens ou a situação na qual essas se encontravam e no ensino do conteúdo
gramatical sem refletir sobre a língua ou ainda sobre as escolhas linguísticas. Assim,
em nossas análises, observamos, em boa medida, que as capacidades mobilizadas
pelo LDVP dialogam com práticas leitoras arraigadas nas outras práticas escolares
(ROJO, 2004).
Além disso, ao analisarmos os dados pelo viés enunciativo-discursivo,
verificamos que, de certa forma, as capacidades mobilizadas se distanciam da
compreensão ativa e responsiva, porque em relação à “leitura na perspectiva
dialógica” (PAES DE BARROS, COSTA, 2012), as atividades leitoras do LD não
tratam:
[...] a leitura como um processo de compreensão ativa, que exige
uma tomada de posição do leitor em relação ao discurso do outro, a
fim de analisar suas palavras, adotá-las, contrariá-las ou criticá-las,
em constante apreciação valorativa, e em réplica, na relação
dialógica que se desdobra durante o processo de leitura. (PAES DE
BARROS, COSTA, 2012, p. 45).
Portanto, as várias respostas dos alunos na etapa específica da leitura como,
também, o tratamento didático dispensando ora às atividades leitoras ora às
capacidades mobilizadas de forma passiva na leitura vêm ao encontro da epígrafe
de Bakhtin do início deste capítulo:
[...] o ensino das disciplinas verbais conhece duas modalidades
básicas escolares de transmissão que assimila o [discurso de]
outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cór” e “com suas
próprias palavras”. […] O objetivo da assimilação da palavra de
outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no
processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do
termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na
qualidade de informações, indicações, regras, modelos etc., - ela
procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em
relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a
palavra autoritária e como a palavra internamente persuasiva
(BAKHTIN, 1993 [1934-35], p. 142).
Em primeiro lugar, portanto, constatamos que as propostas do LDVP
apresentam o gênero conto como um modelo a ser seguido, um ensino cristalizado
do gênero, ou seja, uma vez que o aluno aprende como uma narrativa se organiza
saberá compreender e escrever qualquer outro gênero que seja da ordem do narrar.
117
Um segundo aspecto que notamos foi o fato do LDVP não considerar outras
esferas de circulação do gênero conto, apenas a escolar. Outras esferas, como a
das artes cênicas, a jornalística e a digital-virtual, não são apresentadas aos alunos
de modo que o gênero não é estudado em sua circulação e recepção em outros
campos e, por conseguinte, fica considerado “aquele texto antigo, chato e sem
graça”.
Em terceiro lugar, constatamos que há um número exagerado e, a nosso ver,
desnecessário, de atividades de conteúdos gramaticais. Dessa forma, o LDVP
pesquisado tem a gramática normativa como base para o ensino-aprendizagem de
língua portuguesa, proporcionando um ensino mecânico e engessado da leitura e
escrita de contos.
Percebemos, ainda, que questões atinentes às capacidades de apreciação e
réplica do leitor em relação ao texto e o fruir da leitura literária, por exemplo, não são
contempladas significativamente, comprometendo, assim, a formação de um
possível leitor literário. Sendo assim, as lacunas aqui mostradas serviram para
refletirmos sobre a elaboração da nossa proposta de didatização do gênero
discursivo conto pelo viés enunciativo-discursivo, a qual será apresentada no
próximo capítulo.
118
CAPÍTULO 6
Uma proposta didática do gênero discursivo conto
O presente capítulo tem como objetivo apresentar a nossa proposta de
didatização do gênero discursivo conto para alunos do 9º ano do Ensino
Fundamental.
Para tanto, consideramos a análise dos dados obtidos por meio dos
questionários aplicados aos alunos, também analisamos o trabalho que os autores
do livro didático pesquisado propuseram em suas atividades de compreensão de
leitura de contos e, em diálogo com os dados coletados e analisados, apresentamos
uma proposta didática, tendo em vista a realidade das escolas estaduais de Cuiabá,
em
Mato
Grosso.
Procuramos
desenvolver
um
projeto
que
enfoque
o
desenvolvimento das capacidades leitoras.
6.1 Acerca da proposta didática
Os PCN (BRASIL/MEC, 1998) asseveram que a escola deve ser um espaço
de formação de leitores, no qual cada aluno se torne capaz de compreender
diferentes textos que circulem em diferentes esferas sociais, de maneira tal que
consiga assumir a palavra. Para tanto, os documentos oficiais nos alertam que é
necessário haver uma seleção criteriosa dos materiais de leitura utilizados na
escola:
Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas
características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício
de formas do pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a
fruição dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para
a plena participação numa sociedade letrada (BRASIL/MEC, 1998,
p.24 ênfase adicionada).
Tendo em vista tais orientações e refletindo sobre algumas questões
encontradas nos questionários aplicados aos alunos, acreditamos que o uso de
textos que favoreçam o “exercício de formas do pensamento mais elaboradas” e “a
fruição dos usos artísticos da linguagem” (BRASIL/MEC, 1998, p.24) como o conto,
por exemplo, podem ser uma ferramenta eficiente para o ensino-aprendizagem de
leitura.
Dessa forma, procuramos elaborar uma proposta didática que consiga
encaminhar algumas questões não trabalhadas pelo LD, isto é, proporcionar outros
119
caminhos para as lacunas encontradas no LD. Assim, buscamos seguir e adequar à
realidade escolar estudada, já descrita anteriormente, a concepção de gênero
discursivo como megainstrumento (Schneuwly, 1994/2004) – uma ferramenta de
ensino-aprendizagem. Nessa perspectiva, abordaremos as diversas capacidades de
leitura e de linguagem buscando, especialmente, contemplar o aprendizado das
particularidades do gênero, do autor e do momento sócio-histórico de suas épocas.
Contando e recontando contos: modos diferentes de narrar
Objetivos:
 Conhecer a proposta do projeto de leitura de contos;
 Apresentar vários contos para o aluno.
Duração: 2 aulas
Professor,
Inicialmente, apresente o projeto de leitura literária de contos aos alunos: os objetivos, as
finalidades, sua proposta de trabalho. Depois, faça, juntamente com os alunos, uma seleção de
contos, a fim de que a turma tenha um banco de textos, pois o que trazemos aqui é apenas um
exemplo, não significa que você tenha que trabalhar com esses mesmos contos. Para tanto, vocês
poderão, por exemplo, ir à biblioteca, pesquisar na internet – em blogs, sites, Wikipédia, Google etc.
- e revistas com esses fins, ouvir as sugestões dos alunos e outros professores, ler resenhas de
algumas coletâneas de contos, ler capas e contracapas de livros de contos etc. Após a seleção
cuidadosa vamos proceder da seguinte maneira:
Como momento introdutório, pergunte aos alunos se eles saberiam contar alguma história para a
turma. Você pode começar a atividade: fale sobre algo cotidiano, aparentemente banal, por
exemplo, “Num certo dia eu estava indo ao mercado, porém antes de entrar no estabelecimento,
olho à minha esquerda: vejo um jovem sujo, maltrapilho, sentado numa sarjeta e com um olhar
longínquo e triste... vejo ainda muita gente indo e vindo, contudo o jovem continua ali... entro no
mercado, compro o que desejo, ao sair olho novamente para aquele jovem...”.
Professor, após essa explanação, você pode fazer algumas inferências sobre a situação feita
anteriormente, por exemplo, fale sobre o que você sentiu com essa situação; sobre o fato de muitas
pessoas não perceberem, por muitas vezes, a existência de uma pessoa nesse estado; ou refletir
sobre a questão socioeconômica do nosso país; ou ainda sobre as seguintes indagações: Aquele
jovem tem família? Onde estão seus parentes? Tem uma casa? Irmão? Mãe? Como deve ser não
“voltar para casa”, não ter para onde ir quando todos estão dormindo? Não ter um endereço? Não ir
á escola?
Professor, esse é apenas um exemplo você pode modificar ou acrescentar outras situações, porém
não se estenda muito, pois a maioria dos alunos - senão todos - deve participar.
120
Com esse simples exemplo, observamos que, geralmente, um conto nasce a partir de uma situação
da vida, do dia a dia entre as pessoas, em sociedade. Percebemos que certamente o contista deve
ser um grande observador das coisas da vida, do ser humano e de suas ações, angústias, seus
conflitos, sentimentos etc.
O conto, geralmente, se apresenta como uma narrativa curta cuja característica principal é a
brevidade. Os modos de contar alguma coisa ficam a critério de cada autor, de modo que a temática
é infinita, visto que é material humano sobre o próprio ser humano, ou seja, é de nós, sobre nós,
para nós. É uma sucessão de acontecimentos que se organizam numa série temporal bem
estruturada, de maneira que tudo se realiza numa unidade de uma mesma ação. Assim, há vários
modos de estruturar essa unidade que se figura como uma sucessão de atos cuja força motriz é a
ação humana.
O enredo do conto se organiza em torno de um único conflito – uma única oposição entre forças. O
conflito pode se dar entre duas ou mais personagens, por exemplo, entre o protagonista e forças
externas ou ainda entre o protagonista e o antagonista etc. Dessa forma, o conflito engendra uma
situação de tensão que prevalece em toda a narrativa de modo que prende a atenção do leitor até o
desfecho – a etapa final do enredo. Assim, o conflito torna-se cada vez mais tenso de tal maneira
que atinge o seu auge, isto é, o clímax, ou seja, esse é o momento em que o interesse e a
expectativa do leitor em saber o que acontecerá é elevada ao máximo, proporcionando o desfecho
do conflito.
A seguir, temos o nosso primeiro conto.
Bom trabalho e ótima leitura!
121
Leitura 1
Conto: O leitor
Autor: Dezsö Koszotolányi
Duração: 4 aulas
Objetivo:


Conhecer alguns aspectos do estilo do autor do conto;
Observar a forma composicional do gênero.
 A seguir iremos ler o conto O leitor do autor: Dezsö Kosztolányi. Professor, esse conto
pode ser encontrado no livro intitulado “Contos Húngaros” que faz parte do acervo do
PNBE.
 Após a leitura de cada texto, é imprescindível que você defina para os alunos o
interlocutor (ou interlocutores) dos contos, o contexto socio-histórico da época
de cada conto, as esferas de circulação (isto é: onde geralmente esses textos
circulam? Quem os escreve?) e as de recepção (isto é: com qual objetivo os leio?
Qual é a motivação?).
 É interessante apresentar para os alunos onde fica a Hungria: Se já tinham ouvido falar
nesse país? Se eles conhecem algum costume do povo desse país? Uma sugestão:
visitem o blog “Posfácio” (<http://www.posfacio.com.br/2012/08/03/contos-hungarostrad-e-org-paulo-schiller/>) no qual vocês encontrarão algumas informações sobre a
antologia, mas, sobretudo, sobre o que um determinado leitor tem a dizer acerca da
leitura deste livro.
Quem é...
Dezsö Kosztolányi (1885 – 1936) - “filho de um professor e diretor de escola, nasceu em
Szabadka, cidade no sul da Hungria que, após o tratado de Trianon, passou a fazer parte da
Iugoslávia, com o nome servo-croata de Subotina. Foi estudando artes na Universidade de
Budapeste que conheceu outros poetas de sua geração, alguns deles fundadores da revista
Nyugat40, travou amizade duradoura com Karinthy, e, sem acabar o curso, tornou-se jornalista.
Embora em seu país a poesia fosse particularmente prezada, ele logo se firmou também como
prosador e escreveu vários romances, dos quais o melhor é Doce Anna [...] Foi, no entanto, no
conto que, durante uma época quando jornais e revistas publicavam narrativas curtas, o escritor
achou sua forma mais congenial” (ASCHER,2010, p.17).
Revista Nyugat era considerada a revista mais importante da literatura húngara do século XX. Suas publicações
ocorreram em Budapeste entre janeiro de 1908 e agosto de 1941. E segundo Gotlib (1999, p.44) “Nos idos de 80, do século
XX, já havia a prensa da imprensa: era preciso escrever e muito e depressa.” Assim, temos visto que no século passado era
comum jornais e revistas publicarem contos.
40
122
Antes da leitura do conto...
1- Você sabe onde fica a Hungria? Já assistiu a algum filme, novela ou desenho
que se passasse nesse país? Já leu algum conto, romance, poema, notícia,
reportagem que falassem desse país? Veja a imagem41 a seguir:
2- Essa imagem é de Budapeste, capital da Hungria. Observe a forma dos
prédios, das casas, a ponte. Em sua opinião onde será que fica esse país em
qual continente? Levante algumas hipóteses?
3- O conto que você irá ler se passa nesse país nos anos de 1910, século XX.
Em sua opinião, como será que as pessoas se comportavam, se vestiam ou
falavam nessa época? O que estava acontecendo no mundo nesse período?
Seria bom, você conversar com o seu professor de História sobre isso, ele lhe
dirá muitas coisas interessantes.
4- Sente-se em dupla com um colega de classe, folheiem o livro “Contos
Húngaros”, observem à capa, a contracapa, o sumário e o título do conto “O
leitor”. Em sua opinião, porque o conto se chama “O leitor”? Depois, converse
com seu colega sobre o que o título sugere. Anote seus apontamentos no
caderno e depois apresente aos colegas.
41
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Budapest_pest.jpg>, acessado em 16/05/2013 às 17h23min.
123
O Leitor
I
Eu tinha um colega de escola, ele estava sempre lendo.
– O que você está lendo?
– Estou lendo – balbuciava, e enfiava os dois indicadores nos ouvidos, bem fundo, para não
ouvir nada.
Assim ele costumava ficar sentado no banco da escola, com a testa franzida, torto como um
gorila, corcunda como um camelo. Embora fosse um rapaz quase bonito. Um camponês saudável,
encorpado.
Durante os intervalos de dez minutos, ele lia na sala de aula. No caminho para casa ele lia
na rua. No jardim, entre os ramos da cerejeira, na escadaria, na cama, lia sempre, o tempo todo.
– Por que você lê?
– Porque me interessa.
– Afinal, o que há em um livro?
– Beleza - ele disse -, muitas coisas bonitas.
Mas ele não era capaz de explicar o que eram as muitas coisas bonitas. Só continuava
lendo. Tudo, a torto e a direita, sem escolher nada. Tanto fazia se era de má qualidade ou obraprima, um romance húngaro ou uma tradução suspeita, um dicionário, exercícios de matemática ou
um tratado de astronomia.
Uma vez eu o surpreendi lendo uma gramática japonesa.
– Você está estudando japonês?
– Não, só estou lendo.
Lia um pouco como outros rezam. Elevado, movimento a boca.
II
Eu tinha pena dele, como de alguém doente. Ouvi que existem pessoas que de uma
sentada comem quatro ou cinto jantares e se sentem cada vez mais esfomeadas. Ele também sofria
de algo semelhante a uma dilatação do estômago.
Nas férias, eu o procurei. Ele morava perto das terras onde o sol se punha na vizinhança
das matas, fora da cidade.
Lá, o pai, que passara a vida arando a terra, tinha uma pequena propriedade e um barraco
coberto de palha.
Entrei no barraco. No único quarto, com piso de terra, um cheiro de barro úmido golpeou o
meu nariz, com um hálito de bolor, de mofo, de linfa. O meu amigo estava sentado em uma cadeira
e lia a Grande Enciclopédia recém-publicada.
– Já estou no décimo-primeiro volume – anunciou –, só faltam cinco.
– E você leu eles todos?
– É claro.
– Você não pula nada?
– Nada.
Seu relógio de bolso tiquetaqueava sobre a mesa à sua frente. Percebi que ele olhava as
horas.
– Está tudo aqui – disse triunfante, e apontou para o livro. – Tudo. Vou terminar no fim das
férias.
Eu me despedi porque senti que era um peso, e cada instante que eu lhe roubava causavalhe dor. Ele tinha muita pressa. Pensava no que faltava, nos cinco volumes e nos muitos outros
livros adormecidos na biblioteca que esperavam por ele.
Fora, vi seu pai em manga de camisa. Um belíssimo ancião orgulhoso. Magro e grisalho
como um pombo da paz. O rosto era vermelho. Era um tipo húngaro-turco. Na servidão de muitos
séculos transparecia algo de nobre e oriental.
– Tio István – eu disse –, seu filho vai ser um grande sábio.
– Sim – ele disse indiferente, e nem me olhou.
Afiava a foice com a pedra de amolar.
Mas a mãe dele – uma mulherzinha pálida – veio atrás de mim.
– Há uma maldição sobre o pobrezinho – ela sussurrou –, uma grande maldição. Por isso
ele lê o tempo todo.
124
III
Eu nunca soube qual era.
A mulherzinha supersticiosa com certeza imaginava coisas. István – o rapaz se chamava
István – era como os demais estudantes. Comia bem, dormia bem, mostrava-se inteligente,
dedicado. Tinha o raciocínio rápido, mas não como um raio. Marcava posição com decência, sem
exibir uma aptidão especial. Passava nos exames sem dificuldade. Também não foi mal na
formatura.
– Você ainda vai ser um grande sábio – eu brincava.
– Sim – ele respondeu imperturbável.
Desta vez quem sorriu fui eu.
Porque me ocorreu o pai dele, com a foice na mão, de pé no meio do trigal, na luz
cambiante. Ele também havia respondido assim. E o filho agora se parecia muito com ele, com o
rosto húngaro, cada vez mais vermelho com o passar dos anos, com a fala pausada e a dedicação
virtuosa.
IV
Eu o visitei em Budapeste. Não mudara nada. Continuava a devorar os livros. Mesmo no
batente das janelas havia cadernos espalhados. A montanha de livros mal cabia no quarto. A
enchente de papel se inclinava na direção da janela como se fosse se derramar por ela.
No criado-mudo encontrei uma colherzinha e um pequeno vidro.
– O que é isso?
– Remédio.
– Você está doente?
– Só nervoso.
Olhei para ele vagarosamente.
Então notei que ele parecia alquebrado. A constituição estava íntegra, o rosto bonito, mas
nos olhos havia uma sombra, uma névoa por falta de sono. Ampliara a biblioteca ano após ano.
Empilhara os livros uns sobre os outros. Arranjara um apartamento. A quantidade aumentava cada
vez mais. Fora preciso abrir trilhas entre os livros, abrir clareiras. Pensava inquieto em quanto ainda
teria de ler. Ocorria-lhe esse ou aquele livro de se levantar à noite. Examinava se um ou outro
volume estava no lugar.
V
Certa tarde, ele arrumava a biblioteca. Ajeitava livros em cima, na estante mais alta, sobre
uma escada. Quis tirar uma enciclopédia inglesa grossa, encadernada em couro, com cantos de
aço. O livro não se moveu. Nisso ele se irritou um pouco. Riu numa careta, como um disciplinador e,
de repente, o arrancou do lugar.
Na esteira dele outros livros caíram. Todos grossos. Ele os escorou com o peito de touro.
Mas sentiu pressão também em outros lugares. Novos livros caíram sobre seus ombros, sobre a
cintura, o estômago, de modo que ele não conseguiu mais se defender com os braços.
“Será que corro perigo?” – pensou.
Não empalideceu, na verdade ficou vermelho. Deu um grito estranho de perigo, e começou
a se debater com o corpo rebelde, imenso, de camponês, de que ele jamais cuidara, mas que agora
parecia terrivelmente forte. Lutou com os muitos livros, expondo as costelas de aço, a coluna de
ferro, contra a enchente que jorrava, cada vez mais próxima, ameaçadora.
– Ho! – disse, como se ele se dirigisse a cavalos.
Enquanto aguentou, resistiu, esteve no comando. Nisso, um livro, não muito grande, o
desequilibrou, ele caiu desajeitado da escada, estatelou-se no chão.
Durante algum tempo os livros continuaram desabando, zunindo, como as folhas da mata
virgem na tempestade, um outro volume mais encorpado despencava, em silêncio caía uma outra
edição preciosa. Em seguida, fez-se silêncio.
István jazia no piso. De sua cabeça corria sangue. Uma enciclopédia o matou com o canto
de aço. Foi mais forte que ele.
Dezsö Kosztolányi. Contos Húngaros. São Paulo; Hedra, 2010.
Acervo PNBE- 2013
Glossário
Alquebrado: cansado.
Bolor: mofo.
Clareiras: campestres, aberto.
125
Compreensão do conto
1- Logo nos primeiros parágrafos do texto, o narrador-personagem descreve o
István (O leitor) de maneira bastante curiosa, associando a sua prática da
leitura com suas ações. Para causar tal efeito, o narrador faz uso de
metáforas. Quais são elas?


Fique ligado!
Narrador é a pessoa imaginária que narra, conta a história e que não tem relação
nenhuma com o autor dessa ou daquela obra. Existem três tipos de narradores:
O narrador-personagem corresponde a um narrador que, além de contar a história em
primeira pessoa, faz parte dela, sendo, portanto, chamado de personagem. Esse tipo de
narrador conta a história por um ponto de vista único, isto é, o seu. Assim, a narrativa
cujo narrador é personagem é marcada por características subjetivas as quais são
bastante parciais. Dessa forma, esse tipo de personagem tem visão limitada dos fatos,
de modo que isso pode causar um clima de suspense na narrativa. Tudo que ele nos
conta é sob o prisma de suas percepções e suposições acerca dos fatos narrados. Já o
narrador-testemunha diz respeito a uma das personagens que vivem a história contada,
mas não é a personagem principal. Limita-se a contar o que vê e ouve, apenas observa
o acontecimento, a ação. Ao passo que o narrador onisciente fala dos sentimentos e
pensamentos de os personagens, não se limitando em apenas contar o que vê e ouve.
2- A primeira frase do conto é: “Eu tinha um colega de escola, ele estava sempre
lendo.” Após isso, temos apenas as ações do leitor. Veja que o narradorpersonagem não se preocupa em descrever o espaço de forma demorada,
mas sim em falar sobre o comportamento, as ações do István - o leitor –
nesses lugares. O que isso nos diz sobre a personalidade e o comportamento
de István?
Fique ligado!
Você sabia que desde o início da história da humanidade as pessoas tinham o
costume de se reunir para contar suas estórias, mitos, lendas, ritos da tribo? É isso
mesmo, a prática de contar estórias sempre reuniu pessoas que contam e ouvem esta
ou aquela estória. Apesar de o ato de contar estória ser bem antigo, até hoje muitas
pessoas ainda o pratica: alguns ouvem estórias dos avôs, dos pais, amigos; outros de
um contador de estória ou de um contista. Esse último escreve sobre as ações e
atitudes do ser humano na vida, no seu cotidiano, ou seja, observa o ser humano em
diversas situações do dia a dia: como encara o amor, a amizade, a solidão, a tristeza
etc – as possibilidades temáticas são infinitas, visto que fala do ser humano. Às vezes,
inventa seres encantados com poderes sobrenaturais, porém com características
humanas, que não pertencem ao mundo real, mas aos sonhos, a imaginação. O
conteúdo temático de um determinado conto é indefinível, porém uma coisa é certa,
deve tratar de seres humanos ou mitológicos, bestiários, inanimados, contudo devem
apresentar características humanas.
Características do conto: Geralmente, um conto se organiza da seguinte forma:
Situação inicial > Complicação (conflito) > Desenvolvimento (ação) > Clímax >
Desfecho (com crise e resolução final).
Contudo, há muitos contos que rompem com esse modelo, são chamados de contos
modernos. “Segundo o modo moderno de narrar, a narrativa desmonta este esquema
e fragmenta-se numa estrutura invertebrada” (Gotlib, 1999, p.29). Vejam que esse
esquema pode ser percebido nos contos de fadas, por exemplo, ou seja, obedecem à
ordem de início, meio e fim na estória. Com o passar dos tempos, principalmente, pós
Revolução Industrial isso vai se perdendo. De modo que o caráter da fragmentação vai
cada vez mais se tornando acentuado. Portanto, o que se tem é uma realidade
126
desvinculada de um antes e um depois (início e fim). Como é o caso do conto que
você leu “O leitor” e dos outros que você lerá mais à frente.
O tempo verbal predominante nos contos é o Pretérito Perfeito, Imperfeito e Mais-queperfeito do Indicativo.
Os tipos de narrador: narrador-personagem (o narrador narra e participa da história);
narrador-observador (esse tipo de narrador não se envolve, não participa, apenas
conta o que vê) e narrador-onisciente (é o tipo de narrador que conhece tudo da
história e dos personagens).
3- Observe que, embora o conto seja curto, o autor o divide em cinco capítulos.
Em sua opinião a que se deve isso? Por que dividir o conto em capítulos, se ele
é tão curto?
4- No início do segundo capítulo o narradorpersonagem afirma que tinha pena do
István, “como de alguém doente”,
podemos, então, inferir que “o leitor” sofria
de algum transtorno psicológico?
5- Ainda no segundo capítulo, temos a
informação de que o leitor vivia num lugar
fora da cidade, que o pai era um
camponês e moravam num barraco
coberto por palha.
 O que isso demonstra sobre as
condições socioeconômicas desse
rapaz?
 Aqui é o único momento em que o
narrador-personagem se atém a
uma descrição de um espaço
físico, embora leve e sutil. O que
ele diz sobre o quarto? Qual será
sua intenção ao fazer isso?
Professor,
Com relação à questão 3,
explique para os alunos que o fato
do autor escolher dividir o conto
em capítulos é uma questão de
estilo individual e não de estilo
do gênero, ou seja, nem todos os
contos são organizados em
capítulos. Sugerimos a leitura do
livro
“Conceitos-chave”,
organizado por Beth Brait, no qual
você encontrará alguns artigos
que tratam da questão do estilo
pelo viés enunciativo-discursivo.
Sobre a teoria contista, há um livro
bastante simples, porém muito
rico, chamado “Teoria do conto”
de Nádia Battella Gotlib que
aborda questões referentes ao
conto.
6- Veja que nessa passagem há uma sequência de indícios que deveriam
aparentemente culminar noutro fim, veja: “entrei no barraco/ no único
quarto/com piso de terra/ com um hálito de bolor, de mofo, de linfa/sentado
numa cadeira/ lia a Grande Enciclopédia recém-publicada”. Responda:
 Qual seria esse outro fim? O que a sequência demonstra? Você se
surpreendeu com o resultado?
 Pesquise no dicionário qual o significado da palavra linfa, assim, você
poderá refletir melhor sobre a questão.
7- A mãe do István acredita que o filho lê muito pelo fato dele estar amaldiçoado.
Em sua opinião, isso é possível? Há algum indício no texto que nos leve a
comprovar ou supor tal afirmação?
127
8- Em sua opinião, por que o leitor não era capaz de falar sobre as “coisas
bonitas” que lia nos livros, “só continuava lendo. Tudo, a torto e a direita, sem
escolher nada”? Você conhece a expressão “a torto e a direita”? O que ela
sugere?
9- Leia abaixo um trecho sobre o autor Dezsö Kosztolányi:
“Foi, no entanto, no conto que, durante uma época quando jornais e revistas publicavam
narrativas curtas, o escritor achou sua forma mais congenial. Vários têm como protagonista
Kornel Esti, um alterego do autor. Todos, porém, caracterizam-se pela precisão, economia e
por sua capacidade de, num espaço mínimo, dar vida amiúde a personagens complexas e
verossímeis envolvidas em situações (às vezes desvairadas) e em tramas cuja mera
apresentação tomaria, em mãos menos hábeis, dezenas de páginas. Observados pelo autor,
os seres humanos devidamente situados revelam seus segredos e, às vezes, tudo o que
podem ter não só de típico, mas de estranho e até grotesco. A ironia sutil de Kosztolányi
perpassa tudo o que ele toca sem, no entanto, distanciá-lo ou colocá-lo acima do que narra”
(ASCHER, 2010, p.17).
a) Você conseguiu perceber no conto “O leitor” alguma característica
temática (ele fala sobre o que?) do estilo do autor húngaro apontada
nesse trecho? Quais?
b) Como as personagens criadas por Dezsö se caracterizam e o que elas,
geralmente, revelam? Isso é possível de ser visto no personagem István?
Em sua opinião, o que ele (István) revela?
c) Segundo o autor do trecho lido, o conto é uma narrativa curta cuja
precisão e economia no momento da criação se constitui como aspectos
imprescindíveis. Você concorda com essa afirmação? Já leu algum conto
que, em sua opinião, não era tão curto? Qual?
10-Segundo o autor do trecho lido, os contos do escritor Dezsö Kosztolányi eram
publicados em revistas e jornais – no início do século XX, nos anos 1910.
a) E hoje em dia? Onde geralmente os contos são publicados? Quem os lê?
Você gosta de ler contos de qual autor?
b) E antigamente? Quem os lia? Quem os publicava?
c) Atualmente, o que será que motiva as pessoas a ler contos semelhantes
ao “O leitor”?
d) Você considera esse conto atual? Por quê?
Professor,
Explique para os alunos que obras contemporâneas são aquelas escritas e
publicadas em nosso tempo, ao passo que as obras atuais referem-se àquelas que
têm significado para nós, ou seja, embora alguém leia uma obra escrita no século
passado, ainda sim será atual independente da sua época de escrita e publicação.
128
Debatendo com a turma, o professor e o autor
1- Com a leitura desse conto pudemos ver algumas questões relacionadas à
vida. Você conhece alguma história que seja semelhante a essa? Pode ser
uma novela, um poema, uma música, uma
situação real, um filme, outro conto etc.
Professor,
Conte à turma oralmente.
2- O fato de esse conto ter sido escrito numa
outra época por um escritor de outro país,
de outro continente (Europeu), cuja
cultura é diferente da sua, impediu sua
compreensão? Converse com os seus
colegas sobre isso.
Nessa atividade é bom que
você
tente
trabalhar
a
oralidade do aluno, por isso
seria interessante fazer uma
“Roda de Conversa” na qual
o aluno seja convidado a
expor suas ideias, reflexões e
opiniões
construídas
(ou
desconstruídas) ao longo de
todas
as
atividades
desenvolvidas anteriormente.
A
Para terminar...
ideia
é
promover
um
debate mesmo.
Observe a imagem42:
Boris Anatolyevich Sholokhov - foi um
pintor de talento, grande retratista e
conhecido, também, por sua pintura de
gênero. Aprendeu a pintar com seu tio
Pyotr Sholokhov, um conhecido pintor
russo, quando ainda era criança. Estudou
arte na Academia de Belas Artes de São
Petersburgo e no Instituto de Arte Surikov
em Moscou. Também foi professor de arte
no Instituto Poligráfico de Moscou.
Menina lendo, 1957 (Rússia, 1919 – 2003).
1- Em sua opinião, como a imagem Menina lendo do pintor russo relaciona-se
com o conto “O leitor”?
42
Disponível em <http://peregrinacultural.wordpress.com/tag/lendo/>, acessado em 16/05/2013 às 20h47min.
129
2- O que você achou do final do conto? Ficou surpreso? Por quê?
3- Retorne ao tópico “Antes da leitura do conto...” e veja se suas suposições
sobre a história confirmaram-se? Exponha para a turma.
4- Você indicaria esse conto para alguém ler? Um amigo, por exemplo. Por quê?
Leitura 2
Conto: Morella
Autor: Edgar Allan Pöe
Duração: 4 aulas
Objetivo
:
 Conhecer as características específicas presentes no conto de terror de
Edgar Allan Poe.
Professor,
Ao término da leitura desse conto, é importante que haja uma contextualização das
condições de produção e recepção: Quando o conto foi publicado? Quem escreveu? Quem
narrou?Com qual objetivo? Sobre o que fala? Converse com os alunos sobre: O que mais
lhe chamou atenção? Já leu algum conto desse autor? Conhece alguma história parecida
com essa? Durante a leitura, você foi construindo cenas mentalmente?
Professor, esse conto encontra-se no Acervo do Programa Nacional da Biblioteca Escolar
(PNBE – 2013), cuja intitulação é Contos obscuros de Edgar Allan Poe. Nesse livro há
muitas informações sobre o contista e alguns comentários sobre cada conto, inclusive o
Morella. Consideramos que a leitura dessas informações lhe será de grande valia para o seu
trabalho, mas, sobretudo, para os alunos.
Quem é...
Edgar Allan Pöe (1809-1849) foi um grande escritor estadunidense, nascido em Boston no século
XIX. Pöe é considerado o grande mestre do conto, ocupando um lugar incontestável na literatura
mundial, sendo o precursor do conto de terror. Os contos dele são caracterizados por elementos
mórbidos e fantásticos – sobrenaturais. “Poe é considerado o primeiro grande mestre do conto,
ou da short story, descrição mais nítida, e que corresponde, nas suas próprias palavras, ‘à
narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia hora a uma ou duas horas’. No século XVIII,
que lhe deu sua base literária, a narrativa curta tinha sempre algo da anedota, ou da fábula, ou do
apólogo moralizante, ou da alegoria, ou do conto folclórico adaptado” (TAVARES, 2010, p.12).
130
Antes da leitura do conto...
1- Observe a capa e contracapa do livro “Contos obscuros” de Edgar Allan Poe.
Dê uma passada de olho nos títulos dos contos dessa antologia. O que você
acha que irá acontecer nesse conto? Em sua opinião, o que o nome Morella
sugere?
2- Agora observe a imagem a seguir e diga: qual será o assunto principal do
conto Morella?
3- Quem faz parte dessa imagem? Em sua opinião, o que essa imagem sugere
(observe as cores, o lugar e as expressões das pessoas)?
4- As pessoas se encontram em que lugar? O que será que elas estão fazendo
aí?
5- Após concluir todos esses passos, faça um comentário no caderno sobre sua
primeira impressão acerca do conteúdo do conto (o assunto).
131
Morella
Ele mesmo, por si mesmo, único, eternamente um e só. Platão, O banquete.
Era um sentimento de profunda e estranha afeição que eu experimentava pela minha amiga Morella.
Conheci-a por acaso muitos anos atrás, e desde aquele primeiro encontro minha alma começou a
arder num fogo que jamais conhecera; mas tal fogo não vinha de Eros, e foi amarga e tormentosa
para o meu espírito a convicção gradual de que eu, de modo algum, conseguiria definir seu
extraordinário sentido ou regular sua intensidade inconstante. Mas o fato é que nos conhecemos; e
o destino nos conduziu juntos ao altar, sem que eu jamais lhe tivesse falado em paixão ou pensado
em amor. Ela, no entanto, evitava a vida social e, apegando-se unicamente a mim, fazia-me feliz. É
uma forma de felicidade, o imaginar; uma forma de felicidade, o sonho.
A erudição de Morella era profunda. Juro pela minha vida que seus talentos eram de uma
escala fora do comum – seus poderes mentais eram gigantescos. Eu sentia isto, e em mais de um
assunto tornei-me seu aprendiz. Logo descobri, contudo, que, talvez por conta de sua educação
feita em Presburgo, ela me apresentava um grande número de obras que em geral são
consideradas meros refugos entre a antiga literatura alemã. Tais obras, por motivos que não posso
atinar, eram seu objeto favorito de estudo; e se com o tempo assim também se tornaram para mim,
isto não se deve atribuir a nada além da influência do hábito e do exemplo.
Em tudo isto, se não me engano, minha razão pouco intervinha. Minhas convicções, se é
que bem me conheço, não eram de modo algum influenciadas por um ideal, e nenhuma sombra do
misticismo contido em minhas leituras seria possível descobrir, a menos que eu me equivoque
grandemente, nos meus atos ou meus pensamentos. Assim, persuadido, eu permitia tacitamente
que minha esposa me guiasse, ao penetrar sem receio no mundo intricado de seus estudos. E então
– quando, ao folhear aquelas páginas ominosas, eu pressentia um espírito ominoso despertando
dentro de mim – Morella punha sobre minha mão a sua mão fria, e exumava das cinzas de uma
filosofia morta algumas palavras singulares em voz baixa, as quais, pelo seu estranho significado, se
imprimiam de forma indelével em minha memória. E então, hora após hora, eu me deixava quedar
ao seu lado, mergulhando na música de sua voz, até que essas melodias surgiam infectadas de
terror, e uma sombra se abatia sobre a minha alma, aqueles sons de outro mundo deixando-me
pálido e trêmulo por dentro. E assim a alegria de súbito se fundia ao horror, e tudo o que há de mais
belo no que há de mais abominável, tal como o vale de Hinnom se torna a Geena.
É desnecessário definir o caráter preciso das indagações que, brotando dos volumes que
mencionei, constituíram, durante tanto tempo, quase que o único assunto de conversação entre nós
dois. Os doutos, no que poderíamos chamar de moral teológica, poderão percebê-lo facilmente;
quanto aos leigos, em hipótese alguma conseguiriam entendê-lo. O estranho panteísmo de Fichte,
a palingenesia alterada dos pitagóricos por Schelling eram, em geral, os temas de discussão que
pareciam mais belo à imaginativa Morella. Creio que o sr. Locke define a identidade pessoal como
sendo a continuidade de um ser racional. E como entendemos por “pessoa” uma essência
inteligente dotada de razão, e desde que há uma consciência que sempre acompanha o
pensamento, é esta quem nos faz ser aquilo que chamamos de nós mesmos, distinguindo-nos
assim de outros seres pensantes, e dotando-nos de identidade pessoal. Mas o principium
individuationis, aquela noção de identidade que no momento da morte é (ou não) perdida para
sempre, era para mim, em qualquer circunstância, uma questão do mais vivo interesse; não só pela
natureza surpreendente e inquietante de suas consequências, mas também por causa do modo
peculiar e inquieto com que Morella sempre a mencionava.
Mas, na verdade, chegou por fim um tempo em que o mistério da natureza de minha esposa
passou a me oprimir como um encantamento. Eu já não suportava o toque de seus dedos pálidos,
nem o timbre profundo de sua voz musical, nem o brilho de seus olhos cheios de melancolia. Ela o
percebia, mas não me censurava; parecia consciente da minha fraqueza ou da minha ingenuidade,
e, sorrindo, dizia ser o Destino. Ela parecia também conhecer o motivo, ignorava por mim, para o
gradual distanciamento do meu afeto; mas nunca me deu pistas ou indicações sobre sua natureza.
E na verdade ela era apenas uma mulher, e eu a via enfraquecer dia após dia. Chegou um momento
em que uma mancha rubra surgiu e se fixou em sua face, e as veias azuladas de sua fronte se
dilataram; meus sentimentos por ela se abrandaram em piedade, mas quando encontrei seus olhos
carregados de sentimento minha alma tornou-se sombria e sofreu uma vertigem como as vertigens
que acometem aqueles que lançam seu olhar para dentro de algum abismo lúgubre e insondável.
Devo confessar, então, que eu ansiava, com um desejo intenso que me consumia, pelo momento da
morte de Morella? Assim era; mas aquele espírito frágil apegou-se à argila que o hospedava, por
132
muitos e muitos dias, semanas e meses fatigantes, até que meus nervos torturados sobrepujaram
minhas energias mentais e eu me enfureci com essa demora, e, com o coração tomado por um
espírito maligno, amaldiçoei aqueles dias e aquelas horas e aqueles amargos momentos que
pareciam não ter fim e que pareciam se prolongar mais e mais à medida que sua vida delicada ia se
finando, como as sombras que se esticam no final do dia.
Mas numa noite de outono, quando os ventos pareciam imóveis no firmamento, Morella me
chamou ao pé de sua cama, uma névoa difusa pairava por sobre toda a terra, uma luz cálida cobria
as águas, e no meio das folhas de outubro atapetando o solo da floresta certamente um arco-íris
havia tombado do céu.
Este é finalmente o dia – disse ela, quando me aproximei –, o mais belo dos dias para viver
ou para morrer. Um dia tão belo para os filhos da terra e da vida... ah, e mais belo ainda para as
filhas do céu e da morte!
Beijei sua fronte, e ela continuou:
– Estou morrendo, e no entanto continuarei a viver.
– Morella!
– Nunca houve um dia em que fosse capaz de me amar. Mas aquela que desprezaste em
vida, irás adorar depois da morte.
– Morella!
– Repito que estou morrendo. Mas dentro de mim existe uma prova da afeição, ah, quão
pouca!, que sentiste por mim, por Morella. E quando meu espírito partir, a criança viverá, essa
criança que é tua e minha, de Morella. Mas teus dias serão dias de tristeza, aquela tristeza que é a
mais duradoura das emoções, assim como o cipreste é a mais duradoura das árvores. Porque as
horas da tua felicidade se esgotaram, e não se colhe a felicidade de duas vezes numa vida como se
colhem as rosas de Paestum duas vezes num só ano. Não brincarás mais com o tempo como o
poeta de Teos; o mirto e a vinha te serão estranhos, e deverás usar à tua volta um sudário como
os dos muçulmanos em Meca.
– Morella! – gritei. – Morella! Como sabes disto? – Mas ela virou o rosto no travesseiro e,
com um leve tremor perpassando por seus membros, assim morreu, e não mais ouvi sua voz.
E ela, tal como havia predito, morreu ao dar à luz aquela criança, que não começou a
respirar senão quando a mãe cessou de fazê-lo; e essa criança, uma menina, viveu. E cresceu, de
maneira estranha, em estatura e em intelecto, e era o retrato perfeito da falecida, e eu amei com um
amor mais ardente do que imaginava ser possível sentir por um habitante na terra.
Mas logo esse paraíso de pura afeição foi coberto de sombras, e a melancolia, o horror e o
sofrimento começaram a varrê-lo com suas nuvens. Já disse que a criança cresceu de maneira
estranha tanto em estatura quanto em inteligência. Estranho, de fato, foi o seu rápido crescimento
corporal, mas eram terríveis – ah!, quão terríveis! – os pensamentos tumultuados que se
aponderavam de mim enquanto eu observava o desenvolvimento de sua mente. E poderia ser de
outra forma, quando todos os dias eu voltava a descobrir nas ideias da criança os poderes e as
faculdades mentais da mulher adulta? Quando as lições da experiência brotavam dos lábios da
infância? E quando a sabedoria e as paixões da idade madura eram vislumbradas por mim no brilho
de seus olhos profundos e especulativos?
Quando, repito, este fato se mostrou evidente aos meus sentidos exaltados – quando eu não
mais conseguia ocultá-lo da minha própria alma, nem desviá-lo das minhas percepções, que
estremeciam ao percebê-lo –, é de surpreender a alguém que suspeitas de uma natureza terrível e
inquietante tenham se apossado do meu espírito, ou que meus pensamentos evocassem o tempo
inteiro, com horror, as histórias estranhas e as teorias perturbadoras da falecida Morella? Afastei da
curiosidade do mundo aquela criatura que o destino me forçava a adorar, e, na reclusão rigorosa de
minha moradia, fiquei a acompanhar com uma ansiedade agonizante tudo que dissesse respeito à
criança que eu tanto amava.
E enquanto os anos transcorriam, e eu contemplava dia após dia seu rosto santo, e suave, e
eloquente, e estudava as suas formas que amadureciam, a cada novo dia eu descobria uma nova
semelhança entre a criança e sua mãe, a melancólica e a falecida. E a cada hora essas sombras de
semelhança se adensavam, e se tornavam mais plenas, mais nítidas, mais inquietantes, e fato de
que seu sorriso fosse parecido com o de sua mãe; mas estremecia ao perceber que eram
perfeitamente idênticos; que seus olhos se assemelhassem aos de Morella era suportável, mas eles,
também, às vezes, fitavam as profundezas de minha alma com a expressão estranha e intensa da
própria Morella. E nos contornos de sua fronte, e nos cachos de seus cabelos, e nos dedos pálidos
que os acariciavam, distraídos, e no timbre triste e musical de sua voz, e, acima de tudo – oh, acima
de tudo –, nas frases e nas expressões da morta que brotavam dos lábios da viva, eu encontrava
133
com que alimentar meus pensamentos de horror, como um verme que se recusa a morrer.
Assim se passaram dois lustros de sua vida, e minha filha ainda permanecia sem nome
sobre esta terra. “Minha filha” e “Meu amor” eram as expressões que eu usava habitualmente para
exprimir o meu afeto paternal, e a rigorosa clausura em que ela passava seus dias evitava o contato
com quaisquer outras pessoas. O nome de Morella morrera com ela mesma. Eu jamais falara com a
filha a respeito da mãe, pois era um assunto impossível de abordar. Na verdade, durante sua breve
existência, a criança não recebera outras impressões do mundo exterior senão aquela que lhe eram
acessíveis nos estreitos limites de sua reclusão.
Mas, por fim, a possibilidade de realização da cerimônia do batismo ofereceu à minha
mente, na sua condição nervosa e inquieta, uma feliz libertação dos terrores do meu destino. E
diante da pia batismal eu hesitei ao escolher um nome. Muitos nomes de pessoas sábias e belas,
dos tempos antigos e modernos, da minha terra e de terras estrangeiras, vieram aos meus lábios,
muitos e muitos epítetos de pessoas nobres, felizes e boas. O que me levou, então, a perturbar a
memória dos mortos e sepultados? Que demônio me instigou a proferir aquele som, cuja mera
lembrança é capaz de fazer refluir o sangue das minhas têmporas para o coração? Que espírito
maligno se manifestou de algum recesso da minha alma, quando, naquelas galerias obscuras e no
silêncio da noite, eu sussurrei aos ouvidos do sacerdote as sílabas – “Morella”? Que outro ser,
senão um demônio, poderia convulsionar daquele modo as feições de minha filha, e espalhar sobre
elas o matiz da morte, quando, num sobressalto diante daquele som meramente audível, seus olhos
vidrados se voltaram do chão para os céus e, tombando prostrada sobre as lajes negras da cripta
dos meus ancestrais, respondeu “Aqui estou!”?
Nítidos, fria e calmamente nítido, aqueles sons penetraram nos meus ouvidos, e ali
escorreram chiando, como chumbo derretido, para dentro do meu cérebro. Anos, muitos anos se
passarão, mas a memória daquele instante não passará jamais. Não ignorei a existência das flores e
das vinhas, mas a cicuta e o cipreste lançaram sua sombra sobre mim, dia e noite. Perdi o senso do
tempo e do espaço, e as estrelas do meu destino sumiram do firmamento, e desde então a terra se
cobriu de trevas e as imagens que a habitavam passavam por mim como sombras voláteis, e entre
elas eu avistava apenas uma – Morella. Os ventos do firmamento não produziam senão o mesmo
som aos meus ouvidos, e o quebrar das ondas à beira-mar murmurava o tempo inteiro – Morella.
Mas ela morreu; e com as minhas mãos eu a depositei na tumba; e soltei uma gargalhada longa e
cheia de amargura quando não encontrei nenhum traço da primeira no local onde sepultei a
segunda – Morella.
Edgar Allan Pöe. Contos obscuros de Edgar Allan Poe.
Acervo PNBE - 2013
Glossário
Adensavam: Tornar denso; condensar.
Atapetando: Cobrir de tapete.
Cicuta: Planta umbelífera, venenosa.
Cipreste: Símbolo da morte, da tristeza, da dor.
Doutos: sábio, erudito, culto.
Eloquente: Que convence, é expressivo ou persuasivo.
Eros: era o deus grego do amor.
Erudição: erudita, culta.
Epíteto: Qualificação; cognome, apelido.
Exumava: tirar um cadáver do sepulcro; desenterrar:
Geena: (literalmente vale de Hinnom) é um vale em torno da Cidade Antiga de Jerusalém, e que veio a tornar-se um
depósito onde o lixo era incinerado.
Indelével: que não pode ser apagado; que não se pode extinguir ou destruir.
Lúgubre: Que exprime ou inspira sombria tristeza; fúnebre: aparência lúgubre, lúgubres lamentos.
Lustros: período de cinco anos; brilho, polimento.
Ominosa: agourento, azarento, detestável.
Paestum: antiga cidade da Grécia
Palingenesia: eterno retorno. Renovação, regeneração, renascimento
Panteísmo de Fichte: o filósofo alemão Fichte desenvolve uma espécie de panteísmo do eu, considerando o espírito como o
criador de todas as coisas, incluindo as próprias regras disciplinadoras do espírito.
Principium individuationis: ideais do filósofo alemão Arthur Schopenhauer.
Poeta de Teos: Anacreonte - foi um poeta lírico grego.
Refluir: Retroceder, retornar.
Refugo: coisa desprezada, considerada como inútil.
Rubra: vermelho intenso.
Tacitamente: timidamente
Têmporas: Parte lateral da cabeça, compreendida entre o olho, a fronte, a orelha e a bochecha; fonte.
Vertigem: Sensação de falta de equilíbrio no espaço, que faz parecer ao indivíduo girarem todos os objetos à sua volta;
tonteira.
Voláteis: Que tem a faculdade de voar; voador; inconstante.
134
Compreensão do conto
1- Por que o narrador-personagem do conto diz que o “tal fogo”, sentido por sua
amiga Morella, não vinha de Eros? Quem foi Eros?
2- Se o narrador-personagem não estava apaixonado e, tampouco, amando
Morella, por que, então, se casou com ela?
3- Quando casados, como era o convívio entre os dois? Como era a rotina, o dia
a dia?
4- Em sua opinião, por que Morella possuía uma inteligência excepcional?
5- O que o narrador- personagem quer dizer com “[...] até que essas melodias
surgiam infectadas de terror [...] aqueles sons de outro mundo deixando-me
pálido e trêmulo por dentro”? Por que ele fica “pálido e trêmulo”? O que
significa?
6- Qual(is) é(são) a(s) principal(is) diferença(s) entre o conto anterior, “O leitor”,
e esse de Edgar Allan Pöe?
7- Quando Morella começa a enfraquecer fisicamente, como o esposo a
descreve?
8- Em sua opinião, qual era a natureza de Morella?
9- O narrador-personagem afirma que houve um tempo em sua vida que todo o
encanto, o mistério e a beleza de sua esposa passaram a lhe oprimir. Por
quê?
10-Leia o seguinte trecho “[...] mas quando encontrei seus olhos carregados de
sentimento minha alma tornou- se sombria e sofreu uma vertigem como as
vertigens que acometem aqueles que lançam seu olhar para dentro de algum
abismo lúgubre e insondável”. O que essa passagem representa? Como se
relaciona às características do gênero conto de terror?
135
11-O que você pode inferir sobre “[...]
mas aquele espírito frágil apegouse à argila que o hospedava, por
muitos e muitos dias, semanas e
meses fatigantes [...]”?
12- Quem era o espírito frágil? O que
representa a “argila”? E por que
os meses tornaram-se fatigantes,
cansativos?
13-No dia em que Morella morreu,
como o esposo descreve esse
momento?
14-Por que será que Morella diz que
embora
esteja
morrendo,
continuará a viver? E por que o
esposo irá adorá-la depois de
morta?
15-Ao morrer, Morella dá à luz a uma
criança.
Como
o
narradorpersonagem descreve a criança?
O que ele percebe no decorrer do
desenvolvimento da criança?
16-Quando a criança estava com dez
anos de idade o pai resolve
batizá-la. Qual nome é escolhido?
O que o levou a escolher tal
nome? O que a criança responde?
17-O pai ao sepultar a filha percebe
que a sepultura da mãe estava
vazia. Em sua opinião, a que se
deve isso?
Fique ligado!
Observe que as escolhas de palavras que
remetem a um mesmo universo (pressentia um
espírito ominoso/ mão fria/exumava das
cinzas/infectadas de terror/ sombra se abatia
sobre a minha alma/outro mundo/pálido e
trêmulo/ horror/ etc.), bem como a provável
repetição de
palavras
são recursos linguísticos
Fique
ligado!
que contribuem para a construção de possíveis
sentidos deÉumaimportante
narrativa.
saber que
caracterização
Professor,
1- Que relação pode haver entre a
epígrafe do conto e o enredo?
da
personagem e do ambiente
Observe que a temática tratada no conto anterior
está relacionada
com o dia a dia,a acriação
rotina dede
deve proporcionar
uma pessoa: trabalhar, ir à escola, fazer
faculdade, uma
coisas
relacionadas
à cidade
etc,as
atmosfera
coerente
com
aparentemente, “reais”. Ao observar os seres
humanos, reflexões
o autor dá despertadas
vida a personagens
pelos
complexas que, envolvidas em situações
fatos
e sensações
desvairadas,
revelam
segredos presentes
e tudo queno
podem ter de típico, bizarro, estranho. Ao passo
conto
mente
do leitor.
que o cerne
do na
conto
“Morella”
está no agir
sobrenatural, no psicológico, em coisas atinentes
Veja
o
que
Braulio
Tavares
ao mundo espiritual, místico e oculto, visto
que é
um conto de terror.
(2010, p.187), organizador do
O conto de terror, portanto, é caracterizado
pelo terror
atormenta
livropsicológico
que vocêqueestá
lendo, ediz
enfraquece a alma. Veja que o conto “Morella” é
impregnado
de palavras
lúgubres que remetem
sobre
o conto:
ao mundo, às vezes, obscuro, desconhecido,
místico do“’Morella’
existir humano,
ademais, conto
fala dasde
é o primeiro
coisas da alma. Os cenários dos contos de terror
uma castelos,
série cujo
temafamílias
podemos
são os velhos
antigas
da
Europa edenominar
seus medos, angústias,
ódios
A
Mulher
seculares, pessoas que parecem possuídas por
Transfigurada. É um conjunto de
espíritos malignos. Portanto, os contos de terror
histórias de Edgar
em Allan
quePoe são
uma
(terror psicológico)
sempre narrados
na primeira
pessoa, morre
sugerindo
personagem
feminina
eé
prováveis acontecimentos de sua própria vida.
substituída
quee ade
Os personagens
vivem por
entre outra,
a lucidez
loucura; sofrem
alguma
e quase
certa de
forma
se doença
equivale
a ela,
sempre cometem atos infames. Conforme Gotlib
sugerindo,
em
certos
casos,
(1999, p.32), “a teoria de Poe sobre o conto recai
no princípiouma
de uma
relação: entre a extensão
do
transmigração
de almas.
conto e a reação que ele consegue provocar no
Por ordem cronológica esses
leitor ou o efeito que a leitura lhe causa”.
contos são: ‘Morella’ (1935),
‘Ligeia’ (1838) e ‘Eleonora’
(1841)
(TAVARES,
2010,
p.187).
Fique ligado!
Debatendo com a turma, o professor e o
autor
a
Epígrafe – é uma sentença
colocada no início de um
capítulo de livro, de um
discurso, de uma composição
poética etc.
2- Em sua opinião é possível existir um
ser como Morella? Por quê? O que a diferencia das outras mulheres?
136
3- É possível saber em que época e lugar essa história se passou? É possível
ambientá-la? Caracterize esse contexto.
4- Você acha que a escolha de palavras e expressões, que culminam para uma
ambientação sóbria e macabra, influencia nos efeitos da narrativa sobre o
leitor? Por quê?
Para terminar
1- Durante a leitura desse conto, que sensações você sentiu?
2- O que você achou do desfecho? Foi como você esperava?
3- Em sua opinião, Morella era um ser sobrenatural? Ou será que existe alguma
explicação lógica para o que aconteceu?
4- O que faz com que o conto cause sensações como medo, terror e espanto?
5- Você gostou do estilo de Edgar Allan Poe? Caso tenha se interessado,
procure ler os outros contos dessa coletânea. Há também filmes e séries
inspirados em suas obras, por exemplo, o filme “Os crimes da Rua Morgue”
que foi inspirado no conto “Os assassinatos da Rua Morgue” (Murders in the
Rue Morgue, 1932). Recentemente o canal de televisão fechado FOX lançou
uma série baseada também nos contos de Poe. Veja o link na internet:
<http://www.canalfox.com.br/br/videos/view/26428483700-contos-do-edgarproximos-episodios>
6- Escreva um parágrafo sobre a imagem43 abaixo, a qual é cena do filme “O
Corvo”, baseado no poema de mesmo nome e em várias outras obras de
Edgar Allan Poe. Depois, aproveite para ler o poema e/ou assistir ao filme. O
que você acha que irá acontecer (ou o que já aconteceu) com esse casal?
Observe as vestes de cada um, os acessórios e as expressões. O que elas
sugerem? Pense nesses aspectos para você escrever.
43
Disponível em <http://www.filmescontados.com/2012/09/o-corvo.html>, acessado em 16/04/2013 às 20h25min.
137
Leitura 3
Conto: Um sonho no estádio vazio
Autor: Moacyr Sclyar
Duração: 4 aulas
Objetivos:
 Conhecer a “história do conto” (de modo conciso) pelo olhar de Moacyr Scliar
através do conto “O conto se apresenta”.
 Aprender a observar imagens que “conversam” com o conto lido.
Professor,
O conto a seguir é muito eficaz para os alunos reconhecerem algumas das características
do gênero conto. O mais interessante é que o narrador é o próprio conto (o conto se
personifica), ou seja, ele conta a própria história. Esse conto faz parte da coleção
Literatura em minha casa – contos (Biblioteca da Escola – FNDE/Ministérios da
Educação) cuja distribuição é gratuita. É importante dizer para os alunos que o autor
Moacyr Scliar escreveu esse conto exclusivamente para essa coleção. Após a leitura
cuidadosa desse conto, faça uma roda de conversa com os alunos, na qual vocês
poderão falar sobre o fato do conto ser a personagem, o narrador. Pergunte: O que os
alunos acharam disso? O conto é mesmo antigo, não?! O que o narrador fala sobre a sua
história antes da escrita? E depois? Por que as pessoas contam histórias? Como o conto
se apresenta às pessoas? E o que elas fazem após a apresentação? O narrador diz que
os contos de hoje em dia “Já não são histórias sobre deuses, sobre criaturas fantásticas.
Não, são histórias sobre gente comum”. Por que ele diz isso?
138
Antes da leitura do conto...
1- Primeiramente, faça uma leitura silenciosa, grifando aquilo que considerou
importante ou de difícil compreensão. Veja se há, nesse texto, alguma
característica sobre o conto já mencionada em outro momento. Grife-a e,
depois, numa roda de conversa compartilhe com a turma.
O conto se apresenta
Olá!
Não, não adianta olhar ao redor: você não vai me enxergar. Não sou uma pessoa como você.
Sou, vamos dizer assim, uma voz. Uma voz que fala como você ao vivo, como estou fazendo agora.
Ou então que lhe fala dos livros que você lê.
Não fique tão surpreso assim: você me conhece. Na verdade, somos até velhos amigos. Você
já me ouviu falando de Chapeuzinho Vermelho e do Príncipe Encantado, de reis, de bruxas, do SaciPererê. Falo de muitas coisas, conto muitas histórias, mas nunca falei de mim próprio. É o que eu vou
fazer agora, em homenagem a você. E começo me apresentando: eu sou o Conto. Sabe o conto de
fadas, o conto de mistério? Sou eu. O Conto.
Vejo que você ficou curioso. Quer saber coisas sobre mim. Por exemplo, qual a minha idade.
Devo lhe dizer que sou muito antigo. Porque contar histórias é uma coisa que as pessoas
fazem há muito, muito tempo. É uma coisa natural, que brota de dentro da gente. Faça o seguinte:
feche os olhos e imagine uma cena, uma cena que se passou há muitos milhares de anos. É de noite
e uma tribo dos nossos antepassados, aqueles que viviam nas cavernas, está sentada em redor da
fogueira. Eles têm medo do escuro, porque no escuro estão as feras que os ameaçam, aqueles
enormes tigres, e outras mais. Então alguém olha para a lua e pergunta: por que é que às vezes a lua
desaparece? Todos se voltam para um homem velho, que é uma espécie de guru para eles. Esperam
que o homem dê a resposta. Eu, o Conto. Surjo lá da escuridão e, sem que ninguém note, falo
baixinho ao ouvido do velho:
Quem é...
Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1937. Foi médico e autor
de mais de setenta livros. Ganhou o prêmio Jabuti de Literatura nos anos de 1988, 1993 e
2009. Tem textos adaptados para o cinema, teatro, tevê e rádio. Moacir Scliar faleceu em
fevereiro de 2011.
– Conte uma história para eles.
E ele conta. É uma história sobre um grande tigre que anda pelo céu e que de vez em quando
come a lua. E a lua some. Mas a lua não é uma coisa muito boa para comer, de modo que lá pelas
tantas o grande tigre bota a lua para fora de novo. E ela aparece no céu, brilhante.
Todos escutam o conto. Todo mundo: homens, mulheres, crianças. Todos estão encantados.
E felizes: antes, havia um mistério: por que a lua some? Agora, aquele mistério não existe mais.
Existe uma história que fala de coisas que eles conhecem: tigre, lua, comer – mas fala como essas
coisas poderiam ser não como elas são. Existe um conto. As pessoas vão lembrar esse conto por
139
toda a vida. E quando as crianças da tribo crescerem e tiverem seus próprios filhos, vão contar a
história para explicar a eles por que a lua some de vez em quando. Aquele conto.
No começo, portanto, é assim que eu existo: quando as pessoas falam em mim, quando as
pessoas narram histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fantásticas. Histórias que
atravessam os tempos, que duram séculos. Como eu.
Aí surge a escrita. Uma grande invenção, a escrita, você não concorda? Com a escrita, eu
não existo mais somente como uma voz. Agora estou ali, naqueles sinais chamados letras, que
permitem que pessoas se comuniquem mesmo a distancia. E aquelas histórias – sobre deuses, sobre
monstros, sobre criaturas fantásticas – vão aparecer um forma de palavras escritas.
E é neste momento que eu tenho uma grande idéia. Uma inspiração, vamos dizer assim.
Você sabe o que é inspiração? Inspiração é aquela descoberta que a gente faz de repente, de
repente tem uma idéia muito boa. A inspiração não vem de fora, não; não é uma coisa misteriosa que
entra na nossa cabeça. A boa idéia já estava dentro de nós; só que a gente não sabia. A gente tem
muita boas idéias, pode crer.
E então, com aquela boa idéia, chego perto de um homem ainda jovem. Ele não me vê.
Como você não me vê. Eu me apresento, como me apresentei a você, digo-lhe que estou ali com
uma missão especial – com um pedido:
– Escreva uma história.
Num primeiro momento, ele fica surpreso, assim como você ficou. Na verdade, ele já havia
pensado nisso, em escrever uma história. Mas tinha dúvidas: ele escrever uma história: Como
aquelas histórias que todas as pessoas contavam e que vinham de um passado? Ele, escrever uma
história? E assinar seu próprio nome? Será que pode fazer isso? Dou força:
– Vá em frente, cara. Escreva uma história. Você vai gostar de escrever. E as pessoas vão
gostar de ler.
Então ele senta, e escreve uma história. É uma história sobre uma criança, uma história muito
bonita. Ele lê o que escreveu. Nota que algumas coisas não ficara muito bem. Então escreve de
novo. E de novo. E mais uma vez. E aí, ele gosta do que escreveu. Mostra para outras pessoas, para
os amigos, para a namorada. Todos gostam, todos se emocionam com a história.
E eu vou em frente. Procuro uma moça muito delicada, muito sensível. Mesma coisa:
– Escreva uma história.
Ela escreve. E assim vão surgindo escritores. Os contos deles aparecem em jornais, em
revistas, em livros. Já não são histórias sobre deuses, sobre criaturas fantásticas. Não, são histórias
sobre gente comum – porque as histórias sobre as pessoas comuns muitas vezes são mais
interessantes do que histórias sobre deuses e criaturas fantásticas: até porque deuses e criaturas
fantásticas podem ser inventados por qualquer pessoa. O mundo da nossa imaginação é muito
grande. Mas a nossa vida, a vida de cada dia, está cheia de emoções. E onde há emoção, pode
haver conto. Onde há gente que sabe usar as palavras para emocionar pessoas, para transmitir
idéias, existem escritores.
Alguns deles – grandes escritores – você vai conhecer agora. O José Paulo Paes, que já
morreu, escrevia poemas, escrevia artigos, escrevia contos... Ele adorava crianças e adorava
140
palavras: e, por causa disso, escreveu A Revolta das Palavras. Você já imaginou isso, as palavras se
revoltando? Pois é. Se o Conto pode falar, as palavras podem se revoltar, não é verdade? Isso é o
que José Paulo Paes diz. E depois tem o Milton Hatoum. Ele é do Norte, de Manaus. E escreve uma
linda história que se passa em Xapuri, no Acre. E o Marcelo Coelho, que é jornalista, fala sobre o
primeiro dia na escola. Lembram disso? Lembram do primeiro dia na escola? O Marcelo vai ajudar
vocês a lembrar. Já o Drauzio Varella é médico, um grande médico que é também escritor. Mas os
médicos, e os escritores, também tiveram infância, também fizeram travessuras, e é disso que o
Drauzio vai falar pra vocês.
E, já que eles estão aqui, posso ir embora, porque agora vocês estão em muito boa
companhia. Vou em busca de outros garotos e outras garotas. Para quem vou me apresentar:
– Eu sou o Conto.
Moacyr Scliar. Era uma vez um conto. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
Um sonho no estádio vazio
Desde criança ele vivia o tradicional sonho brasileiro: queria ser um grande jogador de futebol, destes
que fazem carreira meteórica, que são convocados para a seleção, que ganham grandes quantias
em dólar ou, melhor ainda, em euro. Um sonho que o acompanhava constantemente, mas que,
infelizmente, seria difícil de realizar. Porque ele era muito ruim no futebol. Muito ruim, não: ele era
espantosamente ruim. Como é que um cara pode ser tão ruim, perguntavam os amigos, espantados.
Ele errava os chutes, ele tropeçava na bola, ele não sabia fazer um passe. Até um gol contra
conseguiu fazer, e foi o único de sua vida. Desiste, era o conselho que lhe davam os pais, os irmãos,
os colegas de escola. Mas ele não desistia. A sua vida teria, de qualquer maneira, um estádio de
futebol como cenário.
O que acabou acontecendo, mas não da maneira como esperava. De família pobre, cedo
precisou arranjar um emprego. Como entendia alguma coisa de gramados (trabalhara como ajudante
de jardineiro), foi contratado por um grande time da capital para fazer exatamente isso, cuidar do
gramado. No que era imbatível. O gramado era uma perfeição, elogiado por jogadores, por juízes, por
torcedores, pela imprensa. Gratificante, mas insatisfatório. Ele não queria cuidar do gramado, queria
correr sobre o gramado, usando o uniforme do clube.
E um dia resolveu fazê-lo. Tendo chegado muito cedo ao estádio, viu-se absolutamente
sozinho ali. Mais: no vestiário encontrou um uniforme que um dos jogadores tinha deixado ali, e que
ainda cheirava a suor. Junto, uma bola. Ou seja: uma mensagem do Destino.
Ele não hesitou. Tirou a roupa, vestiu o uniforme, pegou a bola e adentrou o gramado.
Colocou a bola no centro do campo e, ouvido um apito imaginário, deu início à partida. Com alguma
dificuldade (Deus, ele era ruim mesmo), mas incentivado pela torcida igualmente imaginária, partiu em
direção à goleira adversária, guarnecida (imaginariamente, claro) por um gigantesco goleiro. E aí, de
curta distância, chutou no canto esquerdo.
Errou, claro. Errou feio. A bola, fraca, passou a uns 5 metros da trave.
Naquele silêncio sepulcral, ele catou a bola e voltou com ela sob o braço para o vestiário.
Vestiu as roupas de jardineiro e foi trabalhar. Grandes jogadores precisam de grandes gramados.
Disso ele cuidaria. Era sua missão. Era a sua maneira de vencer a partida da vida.
Moacyr Scliar. Contos e crônicas: para ler na escola. 2011
Acervo PNBE 2013
Glossário
Meteórica: carreira deslumbrante
Sepulcral: pertencente ou relativo a sepulcro; triste, fúnebre (silêncio sepulcral).
Compreensão do conto
141
1- O conto, que você acabou de ler, aborda
que assunto?
2- Quem narra o conto? Qual é o tipo de
narrador?
3- Em sua opinião, o que significa “Um
sonho no estádio vazio”?
4- Qual é a semelhança entre o conto “O
leitor” e esse?
5- Se reúna com um colega de classe a fim
de contarem, um para o outro, os seus
sonhos. Ao terminar essa etapa, escreva
em seu caderno qual é o sonho de seu
colega e apresente para a turma.
Professor,
Nessa atividade 6, sua
participação é imprescindível, por
isso seja o primeiro a contar sobre
um sonho seu. Pode ser um
sonho antigo ou presente, ou,
ainda, um sonho de alguém que
você conhece: amiga, mãe, irmã,
vizinha, namorada etc. Ademais,
diga aos alunos que ao recontar a
história do colega, poderão
acrescentar outros elementos, por
exemplo, dá outro fim ou mudar
alguns acontecimentos.
6- Sabemos que os contos de Moacyr Sclyar são tidos como contemporâneos –
do nosso tempo, da nossa época, século XXI -, ao passo que o conto do
Edgar A. Pöe são considerados de terror. Em sua opinião, em quais aspectos
eles se diferem?
7- Com que possíveis intenções o narrador diz “[...] que ganham grandes
quantias em dólar ou, melhor ainda, em euro”? Por que ganhar em “euro” é
ainda melhor?
8- O narrador elenca vários fatores que fazem com que esse rapaz seja
considerado não apenas um jogador ruim, mas “espantosamente ruim”.
Quais?
9- Em que momento o personagem do conto percebe que realmente não
conseguirá ser um jogador de futebol?
10- Será que ele conseguiu, apesar de ser um jardineiro, ter um estádio de futebol
como cenário em sua vida?
11- As palavras, que o narrador escolhe para narrar o conto, remete-nos a um
mesmo universo: o futebol. Quais são elas?
12- Em sua opinião, o que é “o tradicional sonho brasileiro”?
Debatendo com a turma, o professor e o autor
Observe bem as imagens e depois converse com a turma e o professor:
142
44
Imagem 1 - Um menino africano jogando futebol
45
Imagem 2 - Meninos da classe média brasileira jogando futebol
1-
Que sensações essas imagens causam em você?
2Observe as cores, as bolas, os campos, os pés: qual imagem você acha mais
forte/ emocionante? Por quê?
3-
Observe bem as imagens e diga em que elas diferem.
4Como você sabe, o continente africano é o mais pobre do mundo, onde estão
os maiores índices dos portadores do vírus HIV (vírus causador da doença AIDS) do
planeta, bem como o da fome, da miséria, dos conflitos armados (guerras civis) e do
avanço de epidemias.
a)
Em sua opinião, a imagem 1 colabora para essa afirmação? Como é possível,
mesmo em tais condições, alguém ainda ter forças, ânimo para jogar futebol? O que
explica isso?
b)
O que simboliza o futebol é a bola. Observe novamente a imagem 1 e
responda: o que a bola de futebol desse menino representa?
Disponível em <http://anaberriel.wordpress.com/2010/05/28/o-futebol-na-africa/>, acessado em 17/04/2013 às 21h01min.
Disponível em <http://www.colegiomedianeira.g12.br/atividades-complementares/esporte/futebol-de-campo/>, acessado
em 17/04/2013 às 20h51min.
44
45
143
5As duas imagens tratam de contextos sociais diferentes, no entanto o que há
de comum entre elas?
6Pensando no contexto brasileiro, na nossa cultura, o que o futebol
representa?
7-
Observe essa imagem46 e responda:
a)
Qual é a intenção do autor ao produzir esse texto?
b)
O que significa a expressão “o circo nós já temos... falta o pão”? Ela se refere
a uma frase muito antiga historicamente, qual? Caso não saiba, visite ao blog:
http://paulo-veras.blogspot.com.br/2009/09/pao-e-circo-para-o-povo.html e leia o texto:
“Pão e circo para o povo”.
c)
Como essas frases se relacionam? Considere que a frase original diz “Pão e
circo ao povo” e a da imagem “o circo já temos... falta o pão”.
d)
Observe que a criança da imagem está segurando uma vasilha com algumas
migalhas de algum tipo de alimento e veste uma camiseta azul com imagens de
bandeiras de seis países. Quais são eles? Em sua opinião, o que isso representa?
e)
Agora que você leu o texto “Pão e circo ao povo”, faça um comentário
refletindo sobre: Como pão e circo se relacionam? O que eles representam? Apesar
de essa frase ter sido dita há muitos séculos atrás, ela ainda é real em nossa
sociedade?
Disponível em <http://www.engenhariae.com.br/colunas/brasil-sem-miseria-x-copa-do-mundo/>, acessado em 17/04/2013
às 22h26min.
46
144
f)
Por
que
o
imperador
romano
Vespasiano disse isso? Qual deve ter sido
sua intenção?
g)
O que você pensa sobre a Copa do
mundo 2014? Quais são suas expectativas,
tendo em vista que Cuiabá será uma das
sedes da copa? O que você espera?
Professor,
Nessa última atividade, seria
bom fazer um debate ou uma
roda de conversas, a fim de
ouvir as opiniões dos alunos.
h)
Você sabia que o Governo brasileiro irá
investir bilhões e bilhões em construções de “Arenas” (como o antigo Coliseu grego
que você leu no texto “Pão e circo para o povo”)? A propósito, a Arena Pantanal terá
um custo de R$ 518,9 milhões, você sabia? O que você pensa sobre isso?
i)
Será que a ideia de “pão e circo para o povo” não seria uma “estratégia” do
governo brasileiro, aliás, de todo País Subdesenvolvido? Em sua opinião, a que se
deve isso?
Para terminar
1Hoje em dia os futebolistas de grandes clubes ganham milhões, será que
sempre foi assim? Cite o nome de algum jogador famoso.
2Em sua opinião, você considera “justo” os salários que os futebolistas, por
exemplo, Neymar, ganham? Por quê?
Leitura 4
Conto: A medalha
Autora: Lygia Fagundes Telles
Duração: 4 aulas
Objetivos:
 Levar os alunos à leitura de um conto que alia o texto impresso e o
audiovisual;
Professor,
Agora iremos ler o conto “A medalha” e assistir a uma interpretação do mesmo, feita pela atriz
Maria Luiza Mendonça. O vídeo, que iremos assistir, foi produzido pelo programa “Contos da Meia
Noite”
da
TV
Cultura
e
pode
ser
encontrado
no
site
Youtube
http://www.youtube.com/watch?v=iYQxUzL9rVU. É importante que os alunos acessem ao site,
pois, assim, poderão se interessar por outros.
145
Quem é...
Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo no dia 19 de abril de 1923. Publicou muitos
livros de contos, romances - um romance muito conhecido é Ciranda de Pedra (1954)
que, segundo Antônio Cândido, é a obra na qual a autora alcança a maturidade literária.
É na adolescência que Lygia Fagundes Telles se apaixona pela literatura. Os seus contos
abordam temáticas, cujos aspectos mais sombrios da alma humana, são desvelados e
investigados com uma ousadia surpreendente, ou seja, seus contos são especulações e
questionamentos dos limites da verdade aparente.
Antes da leitura do conto...
1- Observe a capa, a contracapa, o sumário do livro “A estrutura da bolha de
sabão” da autora Lygia Fagundes Telles e, depois, leia a sinopse do livro.
Pense sobre o título do conto que você irá ler, “A Medalha”, e, então,
responda: o que você supõe que vá acontecer nessa história?
A MEDALHA
Ela entrou na ponta dos pés. Tirou os sapatos para subir a escada. O terceiro degrau rangia.
Pulou-o apoiando no corrimão.
A moça ficou quieta, ouvindo. Teve um risinho frouxo quando se inclinou para calçar os
sapatos, Ih! que saco.
Fez um afago no gato que lhe veio ao encontro, esfregando-se na parede. Tomou-o no colo.
– Romi, Romi.... Então, meu amor?
– Adriana!
Assustado com o grito, o gato fugiu espavorido pela escada abaixo. Ela prosseguiu sem
pressa, arrastando os pés. O quarto estava iluminado. Empurrou a porta.
– Acordada ainda, mãe?
A mulher fez girar a cadeira de rodas e ficou defronte à porta. Vestia uma camisola de
flanela e tinha um casaco de tricô atirado nos ombros. Os olhos empapuçados reduziam-se a dois
riscos pretos na face amarela.
– Precisava ser também na véspera do casamento? Precisava ser na véspera? – repetiu a
mulher agarrando-se aos braços da cadeira.
– Precisava.
– Cadela. Já viu sua cara no espelho, já viu?
A moça encostou-se no batente da porta. Abriu a bolsa e tirou o cigarro. Acendeu-o.
Quebrou o palito e ficou mascando a ponta.
– Acabou, mãe? Quero dormir.
A mulher aproximou mais a cadeira. Fechou no peito cavado a gola do casaco. Falou em
voz baixa, com suavidade.
– Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara no espelho? Já se olhou
num espelho?
– e daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à beça. Vou dar uma
beleza de noiva, mãe, você vai ver. Preferia me meter no meu colante preto mas seu genro é
romântico, aquelas ondas...
– Cínica. Igualzinha ao pai. Ele ia achar graça se te visse assim, aquele cínico.
– Não fale do meu pai.
– Falo! Um cínico, um vagabundo que vivia no meio de vagabundos, viciado em tudo quanto
é porcaria. Você é igual, Adriana. O mesmo jeito esparramado de andar, a mesma cara
desavergonhada...
– Ele era bom.
– “Bom” aquilo então era bondade? Hein? Um debochado, um irresponsável completamente
viciado, igualzinho a você. Imagine, bom... Estou farta desse tipo de bondade, quero gente com
caráter, sabe o que é caráter? É o que ele nunca teve, é o que você não tem. Na véspera do
146
casamento...
– Na véspera ou no dia seguinte, que diferença faz?
A mulher sacudiu-se na cadeira.
– Às vezes nem acredito. Uma filha assim, eu não acredito.
A moça esfregou os olhos congestionados. O rímel das pestanas deixou nas pálpebras dois
grossos aros de carvão.
– Sou ótima, mãe. Uma ótima menina, é o que todo mundo diz.
A mulher quis abotoar o casaco. Faltavam botões. Fechou a gola na mão.
– Por que não se casa com ele? Hein? Vamos, Adriana, por que não se casa com ele?
– Com ele quem?
– Com esse vagabundo que acabou de te deixar no portão.
– Porque ele não quer, ora.
– Ah, porque ele não quer – repetiu a mulher. Parecia triunfante. – Gostei da sua franqueza,
porque ele não quer. Ninguém quer, minha querida. Você já teve dúzias de homens e num quis, só
mesmo esse inocente do seu noivo...
– Mas ele não é inocente, mãezinha. Ele é preto.
A mulher respirou com dificuldade. Abriu nos joelhos as mãos cor de palha. Inclinou-se para
a frente e baixou o tom de voz.
– Por que você diz isso?
Adriana deixou cair o cigarro e vagarosamente esmagou a brasa no salto do sapato. Passou
a mão indolente pelos cabelos oxigenados de louro. Apanhou uma ponta mais comprida, levou-a
até a cara e ficou brincando com o cabelo no lábio arregaçado.
– Olha só o meu bigode, mãe, agora tenho um bigode!
– Responda, Adriana, por que você diz isso? que ele é preto.
A moça abriu a boca para bocejar. Desatou a rir.
– Oh! meu Deus... Porque é verdade, querida. E você sabe que é verdade mas não quer
reconhecer, o horror que você tem de preto. Bom, não deve ser mesmo muito agradável, concordo,
um saco ter uma filha casada com um preto, ih! que saco. Preto disfarçado mas preto. Já reparou
nas unhas dele? No cabelo? Reparou, sim, mas meu sangue é podre. Então é o sangue dele que
vai vigorar, entendeu? Seus netos vão sair moreninhos, aquela cor linda de brasileiro.
– Chega, Adriana.
– Não chega não, eu queria dormir, lembra? Então é isso daí, nunca vi ninguém reconhecer
preto assim fácil como você, um puta faro. O tipo pode botar peruca, se pintar de ouro e de repente
num detalhe, aquele detalhinho...
Inclinou-se para apanhar a bolsa que caiu. Catou vacilante o pente e o espelho, quis ainda
alcançar o lápis que rolou no assoalho, desistiu do lápis, Ih!...Levantou-se apertando a bolsa contra
o peito, a outra mão apoiada na maçaneta da porta. Respirou penosamente, a boca aberta. Encarou
a mulher.
– Tudo bem?
– Tudo bem, Adriana. Tenho é muita pena desse moço. Seu noivo. Casar com uma coisa
dessas, imagine.
– Mas ele vai ser podre de feliz comigo, mãezinha. Podre de feliz. Se encher muito,
despacho o negro lá pros States, tem uma cidade lindinha, como é mesmo?... O nome, eu sabia o
nome, ah! você já ouviu falar, você adora ler essas notícias, não adora? Espere um pouco... pronto,
lembrei. Little Rock! Isso daí, Little Rock. A diversão lá é linchar a negrada.
A mulher retesou-se inteira, como se fosse saltar. Ficou de repente maior, os olhos mais
brilhantes. O tronco se aprumou com arrogância, rejuvenescido. Mas, aos poucos, foi afrouxando os
músculos. Voltou a diminuir de tamanho, a cabeça inclinada para o ombro. A voz começou a baixa.
– Você não pode mais me ferir, Adriana. Ele também não conseguia. O seu pai. Podia fazer
o que quisesse, dizer o que quisesse. Não me atingia mais. Ficava aí na minha frente com essa sua
cara, a se retorcer feito um vermezinho viciado e gordo...
– Emagreci seis quilos.
– E gordo. Nada mais me atinge, Adriana. É como se ele voltasse, nunca vi uma coisa
assim, vocês dois são iguais. Ele morreu e encarnou em você, o mesmo jeito mole, balofo. Sujo. Na
minha família todas as mulheres são altas e magras. Você puxou a família dele, tudo com cara
redonda de anão, cara redonda e pescoço curto, olha aí a sua cara. E a mãozinha de dedinho
gordo, tudo anão.
Adriana continuava segurando a maçaneta, o corpo vacilante, o risinho frouxo. Apoiara-se
numa perna, a outra ligeiramente flexionada. Calçava e descalçava o sapato decotado, com uma
147
fivela de pedrinhas verdes.
– Acabou, querida? Quero dormir.
A luz da manhã já se insinuava na vidraça. A mulher fez um gesto mortiço na direção da
janela.
– Fiz o que pude.
– Então, ótimo. Tudo bem, agora queria dormir um pouquinho, posso?
– Um instante ainda – disse a mulher e a voz subiu fortalecida, veemente. – Ah, me lembrei
agora, era Naldo, não era? O nome daquele seu primo, o primeiro da lista. Nem quinze anos você
tinha, Adriana, nem quinze anos e já se agarrando com ele na escada, emendada naquele devasso.
– Ele não era devasso.
– Não? E aquelas doenças todas? Vivia dependurado em negras, viveu anos com aquela
empregada peituda, pensa que não sei?
– Ele não era um devasso. E ele me amou.
– Amou... Fugiu como um rato quando foram pilhados, o safado. Fugiu como fugiram os
outros, nenhum quis ficar, Adriana, nenhum. Vi dezenas deles, casados, divorciados, toda uma corja
te apertando nas esquinas, detrás das portas, uma corja que nem dinheiro tinha para o hotel. Um
por um, fugiram todos.
– Ele me amou.
Um galo tentou prolongar mais seu canto e o som saiu difícil, rouco. A mulher fez um
movimento de ombros e o casaco escorregou para o assento da cadeira. Apontou a cômoda.
– Vai, abre aquela caixa ali em cima... Abriu? Tem dentro uma medalha de ouro que foi da
minha avó. Depois passou para minha mãe, está me ouvindo, Adriana? Antes de morrer minha mãe
me entregou a medalha, nós três nos casamos com ela. Tem também a corrente, procuro depois.
Você se casa amanhã, hum? Leva a medalha, é sua.
– Bonita, mãe.
– Só espero que não enegreça no seu pescoço – disse e fez um vago gesto na direção da
porta. – Por favor, agora suma da minha frente.
Adriana pegou a medalha que luzia no fundo da caixa de charão. Apertou os olhos turvos
para vê-la melhor. Depois, ainda olhando para a medalha, fez com a outra mão um ligeiro aceno e
foi saindo a arrastar os pés. Fechou a porta. Quando já estava no corredor penumbroso, o gato
veio ao seu encontro e no mesmo ritmo ondulante entraram no quarto. O vestido estava estendido
na cama e sobre o vestido, o véu alto e armado, descendo em pregas até o chão. A luz da manhã já
era mais clara do que o halo amarelado da lâmpada pendendo do teto. O gato pulou na cama.
– Dormir, Romi, dormir – ela sussurrou fechando a janela. – Anoiteceu outra vez, viu? Gato
à toa. Sacana. Vai amassar tudo – resmungou, puxando o gato pela orelha. O gato miou, chegou a
se levantar. Voltou a se deitar enrodilhado no meio do véu. Adriana apoiou-se na cama enquanto
abria a gaveta da mesa de cabeceira. Abriu o tubo de vidro e fez cair duas pílulas na concha da
mão. Engoliu as pílulas, fez uma careta. – Não vai me buscar um copo d’água, não vai? Sacana,
amassou tudo. Podia me trazer água, tanta sede, porra. – Deitou-se molemente na cama e
apanhando uma ponta do véu, tentando achar o gato. Desistiu. Ficou olhando a lâmpada através
das lágrimas. Você fugiu. Por que você fugiu de mim na escada? Eu precisava tanto de você,
precisava tanto. Está me escutando? Você não devia me largar sozinha naquela escada, foi horrível,
amor, eu precisava tanto de você...
Arrepanhou furiosamente o véu e sufocou nele os soluços. Atirou longe os sapatos. Ficou
rolando docemente a cabeça no travesseiro, se acariciando no tecido da fronha. Agora as lágrimas
corriam mais espaçadas, mais limpas. – Eu não podia ficar sozinha naquela escada, não podia –
repetiu e abriu a mão para ver de novo a medalha. Ardiam os olhos borrados. Esfregou-os e
recomeçou a rir baixinho. Voltou-se para o gato. – Você vai ganhar um presente, seu sacana... Quer
um presente, quer?
Levantou-se cambaleante. Apertou os olhos contra as palmas das mãos e seguiu
estonteada por entre os móveis. Abriu as portas do armário, abriu a gaveta. Atirou as roupas no
chão. – Uma fita, aqui uma fita, não tinha? Uma fitinha vermelha – choramingou e ficou de joelhos. –
Espera, espera... Ih! achei, a glória, beleza da fita, Romi vai vibrar, espera... deixa enfiar aqui nesta
droga de argola, hein? Assim... uma droga de argola apertada, tem que entrar neste buraco, espera
aí...
Quando ela tombou para o lado, bateu a cabeça na quina da gaveta. Ficou gemendo e
esfregando a cabeça. Merda. Ainda de joelhos, foi avançando ao lado da cama, segurando na mão
fechada a fita com a medalha, a outra mão tateando aberta por entre o véu até alcançar o
travesseiro onde o gato cochilava. Agarrou-o com energia pelo rabo. – Não foge não, seu sacana,
148
você vai ganhar um presente! – anunciou e sacudiu a medalha dependurada na fita. Concentrou-se
no esforço para respirar. Abriu a boca. Inclinou-se e repentinamente prendeu o gato entre os
cotovelos. Amarrou-lhe no pescoço a fita com a medalha e abraçou-o com alegria. – O sacana me
arranhou!... Ganhou um puta presente e me arranhou, me arranhou... – ficou repetindo. Com a ponta
do dedo, fez a medalha oscilar, Ih! ficou divino, olha aí, um vira-lata condecorado com ouro!...
O corredor estreito continuava escuro. Adriana parou para segurar melhor o gato que
começou a se agitar. – Calma, Romi, calminha... – ela sussurrou, palmilhando devagar o assoalho
nas solas dos pés. Quando chegou ao quarto no extremo do corredor, apoiou-se na parede e ficou
ouvindo. Abriu a porta. Espiou. A mulher conduzira sua cadeira até ficar defronte da janela, exposta
ao vento que fazia esvoaçar seus cabelos tão finos como fios despedaçados de uma teia. Adriana
ainda quis verificar se a medalha continuava presa ao pescoço do gato. Impeliu-o com força na
direção da cadeira. Fechou a porta de mansinho.
Lygia Fagundes Telles. A estrutura da bolha de sabão. São Paulo: Companhia da Letras,
2010.p.13-20.
Acervo PNBE 2013
Glossário
Charão – um tipo de verniz, serve para envernizar móveis.
Espavorido – amedrontar (-se), apavorar(-se), assustar(-se).
Empapuçados – inchado, cheio de papos ou pregas.
Indolente – negligente, desleixado, descuidado.
Luzia – luzir - emitir luz, refletir a luz.
Penumbroso – vem de penumbra – sombra incompleta, meia- luz; isolamento.
Compreensão do conto
1- O conto aborda que assunto?
2- Quem narra à história? O narrador participa ou não? Ele conhece as
fraquezas, emoções, dores, traumas das personagens? Demonstre com um
excerto do texto.
3- Onde se passa o conto, em que ambiente? Quanto tempo demora a ação?
4- Quando a mãe de Adriana usa a expressão “na vés-pe-ra”, que sentimento a
mãe devia estar sentido? Que sentido você pode estabelecer para essa
expressão?
5- Que indícios o narrador apresenta para demonstrar que a mãe de Adriana
não ama a filha? Como mãe e filha se relacionavam? Retire do texto excertos
que comprovem.
6- Apesar de odiar a Adriana, a mãe lhe dá uma medalha de ouro que passou de
geração em geração, por quê? O que a medalha representava? O que isso
demonstra acerca do caráter da mãe de Adriana?
7- Como a mãe se comporta, quando a Adriana afirma que irá se casar com um
negro?
8- Percebemos que, a todo instante, a personagem Adriana se mostra bastante
irônica em suas ponderações. Retire um trecho da narrativa que confirme tal
evidência. Em seguida, compare com a interpretação televisiva, observando
se há diferença/semelhança entre ler o conto e assisti-lo.
149
9- Qual foi a sua sensação ao assistir a interpretação do conto “A medalha”?
Observe que a atriz fez umas pequenas adaptações. O que você achou?
Ficou muito diferente? Comprometeu a compreensão do conto? Você acredita
que continua sendo o mesmo conto de Lygia Fagundes Telles?
10-Observe novamente o conto e diga como podemos descrever a personagem
Adriana. Por exemplo: O humor? A personalidade? Aparência física? É triste
ou alegre? Demonstre com passagens do conto.
11-Quando a Adriana está sozinha no quarto começa a chorar, porém abafa o
choro. Por quê?
12-Tendo em vista o ano de produção do conto e os feitos das personagens, é
possível supor a cidade ou região em que ambas viviam?
Conversando com a turma, o professor e o
autor
A foto abaixo revelou a intolerância racial que
os Estados Unidos vivenciaram durante décadas.
Ela foi tirada por uma estudante chamada Hazel,
uma garota branca, numa manhã de 1957, em
Litte Rock, quando a então Elizabeth, a moça
negra da foto, tentava ir à escola.
Professor,
“Little Rock” é a capital e maior
cidade do estado norteamericano do Arkansas. Para
maiores informações visite o
site
http://revistapiaui.estadao.co
m.br/edicao-62/anais-dafotografia/odio-revisitado
Há também um filme muito
interessante e relevante para a
temática em questão: Histórias
Cruzadas (The Help). Para
mais informações visite o site
http://historiascruzadas.com.br/
O flagrante orbitou pelo mundo e o rosto de uma adolescente de 15 anos tornou-se a imagem oficial da intolerância
racial na América47.
1- Para refletir: por que a Adriana diz que a mãe adora notícias vindas de Little
Rock?
2- Como essa imagem se relaciona ao trecho em que Adriana diz “Se encher
muito, despacho o negro lá pros States, tem uma cidade lindinha, como é
mesmo?... O nome, eu sabia o nome, ah! você já ouviu falar, você adora ler
essas notícias, não adora? Espere um pouco... pronto, lembrei. Little Rock!
Isso daí, Little Rock. A diversão lá é linchar a negrada”?
47
Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-62/anais-da-fotografia/odio-revisitado
150
3- O que você conseguiu apreender dessa imagem? Seria possível escrever um
conto tendo essa imagem como a ação, isto é, o acontecimento do conto? Se
sim, quem seriam as personagens? Onde a trama se passaria? Em qual
época? Qual seria o motivo das intrigas? E o assunto? Como seriam as
relações entre as pessoas? Como seria o desfecho (o fim)? Anote em seus
cadernos os seus apontamentos.
4- Em sua opinião, mãe e filha eram
racistas? Faça seus apontamentos,
comentários no caderno. Demonstre
com passagens do texto.
5- Tendo em vista que o conto “A
Medalha”, escrito nos anos 1978,
contextualize sócio e historicamente
a comunidade brasileira dessa
época, principalmente, os jovens.
(Para resolver essa atividade
converse com o professor de
História ou pesquise em sites,
revistas, livros na biblioteca).
Professor,
A autora, Lygia Fagundes Telles, em
seu livro A Estrutura da Bolha de
Sabão (1991), explica o motivo da
mudança de título. Seria interessante
compartilhar com os alunos tal
informação. Ademais, nesse livro, há
um posfácio do Alfredo Bosi bastante
relevante para o seu trabalho.
6- Na verdade o livro A Estrutura da Bolha de Sabão (1991), foi publicado pela
primeira vez com o nome de Filhos Pródigos, em 1978. Portanto, que relação
pode ser feita entre o conto A Medalha e o primeiro nome do livro Filhos
Pródigos? Pesquise no dicionário o significado de pródigo. Aproveite para
conhecer a história do Filho Pródigo da Bíblia. Depois, faça seus comentários
no caderno.
Para terminar...
1- Você gostou do desfecho do conto? Por quê?
2- E o vídeo, você gostou? Por quê?
3- Em que as personagens Morella e Adriana se diferem? Em sua opinião, quais
das duas personagens poderiam existir na vida real? Por quê?
4- Você indicaria esse conto para alguém ler? Por quê?
5- Ao longo desse projeto de leitura, você leu quatro contos com temáticas,
modos de narrar, ambientes e personagens, além, é claro, das histórias bem
diferentes. Com qual você mais se identificou? Que sensações despertaram
em você? Escreva um pequeno texto, sintetizando a sua opinião. Não se
esqueça de escrever o nome do conto e do autor. E lembre-se: autor/escritor
não é o mesmo que narrador!
Produção Escrita
151
Nessa etapa final, você e mais três colegas irão produzir, conjuntamente, um
conto que, depois de pronto, será lido numa Ciranda de Leitura, lembrando que
temos lido e estudado os contos ditos como modernos, caso tenha dúvidas volte ao
primeiro conto “O leitor” e retome a discussão do que significa um conto moderno.
Para a Ciranda de Leitura, é bom que cada conto produzido, após a reescrita,
seja digitado para facilitar a leitura e evitar possíveis problemas com a grafia.
1- Planejamento
 Retomem os apontamentos feitos na atividade 3 da seção “Conversando com
a turma, o professor e o autor”, assim como outros apontamentos que
exploram as características do conto;
 Conversem entre si, a fim de chegarem a uma conclusão sobre qual será a
temática do conto, as personagens (ou personagem), o lugar, a época, a
história que vocês irão narrar, o tipo de narrador, o tipo de interlocutor
(inicialmente o interlocutor será os seus outros colegas e o professor), a
linguagem que será empregada etc. Lembre-se: o tempo verbal predominante
nos contos é o pretérito perfeito e imperfeito.
2- Elaboração
 Observem as anotações que fizeram no caderno;
 Comecem a escrever o conto, mas prestem bastante atenção, pois o conto
terá que causar expectativa no leitor;
 Escolha as palavras apropriadas para causar o efeito de sentido que vocês
desejarem;
 Escolham um título para o conto.
3- Avaliação e reescrita
 Releiam o seu conto. Imaginem que vocês são os leitores do conto. O conto
consegue prender a atenção? Causa expectativa no leitor? O conto está
claro?
 Após essa etapa, junte-se com outros colegas e leiam o conto que eles
produziram a fim de avaliarem o texto de cada um. Lembrem-se, não é
apenas para criticar ou até mesmo rir de seus colegas. A ideia é que avaliem
o conto, porém com respeito. Observem se o texto escrito apresenta as
características de um conto.
 Depois, entregue ao professor para ele ler e dar as suas sugestões.
 Reescrevam o seu conto, observando as sugestões feitas pelos colegas e
pelo professor.
152
 Agora que seu conto está pronto, podem lê-lo na Ciranda de Leitura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, nesta pesquisa, fizemos uma coleta de dados em determinada
escola estadual de Cuiabá, Mato Grosso, cujo intuito foi descrever as práticas de
leitura e letramento dos alunos entrevistados.
Os dados revelaram que uma grande incidência de alunos tinha o costume de
ler textos literários, inclusive o conto, como já dito no capítulo 4. Procuramos,
portanto, embasados em Vygotsky (1930), partir daquilo que o aluno já apreciava ou
tinha contato. De modo que os dados obtidos através dos questionários
direcionaram a nossa escolha do gênero discursivo conto como objeto deste
trabalho.
Quando perguntamos aos alunos que tipo de textos eles costumavam ler na
escola, o livro didático foi a resposta da maioria. Em relação às práticas escolares,
nossos dados revelaram que as atividades de copiar textos e exercícios do quadro
negro ainda são frequentes na sala de aula, revelando, assim, uma prática escolar já
consagrada e contrária ao que recomendam os PCNLP (BRASIL, 1998).
Por essas razões, passamos, também, a analisar o Livro Didático “Viva
Português” (LDVP) utilizado pelos alunos, a fim de observarmos o tratamento dado à
leitura de contos nesse material. Além disso, percebemos que não há muitas
pesquisas que discutem o ensino do texto literário e do letramento literário no livro
didático, como afirma Melo e Magalhães (2009), “muitas reflexões têm surgido sobre
153
o livro didático de língua portuguesa (LDLP), contudo poucos ainda são os estudos
sobre o ensino da literatura no livro didático” (MELO&MAGALHÃES, 2009, p. 171).
Dessa forma, esta pesquisa teve os seguintes objetivos:
1. Conhecer as práticas de leitura dos discentes da etapa final do ciclo do
Ensino Fundamental de uma escola pública mato-grossense;
2. Conhecer as propostas de didatização de ensino-aprendizagem de leitura do
gênero conto da coleção didática de Língua Portuguesa “Viva Português”
adotada pela escola;
3. Elaborar uma proposta de didatização do gênero conto para o nono (9º) ano
do Ensino Fundamental.
A partir desses objetivos, procuramos responder a três questões de pesquisa:
1. Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino
Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar?
2. Qual o tratamento dado ao gênero conto, nas atividades de leitura da coleção
didática adotada na escola?
3. Que capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero
conto?
No que se refere à primeira questão de pesquisa, notamos, por meio dos
questionários aplicados aos alunos, que esses estão inseridos em diversas e
variadas práticas de leitura e letramento, revelando, assim, uma característica da
sociedade atual.
Os dados dos questionários revelaram que alguns alunos costumam ler livros
de ficção, ainda que de vez em quando. Além disso, mostraram que mais da metade
dos alunos participam de eventos culturais e, boa parte, faz algum curso extra.
Também observamos que alguns discentes concebem a leitura como uma prática de
154
fruição, de prazer. Contudo, quando questionados sobre “Quais textos são lidos na
escola?”, grande parte dos alunos respondeu ser o livro didático.
Esse achado, em boa medida, revela que as principais atividades de leitura,
em âmbito escolar, parece está envolto do livro didático. E que, portanto, esse é o
principal material didático que medeia o processo de ensino-aprendizado de leitura
do aluno. Além disso, podemos inferir que, talvez, isso se justifique pelo fato de que
nem todos os professores da rede pública básica têm acesso: a uma formação inicial
adequada para atender essa nova geração que está imersa no universo tecnológico
e uma formação continuada que vise à discussão das novas pesquisas.
Entendemos, assim, que para a formação de leitor literário se tornar uma
realidade em nossa sociedade, é importante que o professor seja, primeiramente,
um leitor e apreciador de textos literários. Além disso, é imprescindível que o Estado,
juntamente com a comunidade, invista em campanhas de incentivo a prática da
leitura literária, assim como em boas bibliotecas nas escolas e nas comunidades.
Em relação a nossa segunda questão - qual o tratamento dado ao gênero
conto, nas atividades de leitura da coleção didática adotada na escola? -,
constatamos que a coleção não tem contribuído para o desenvolvimento da
proficiência da leitura reflexiva dos alunos, tampouco, desperta o gosto pelo ato de
ler, uma vez que as atividades de leitura de conto estão apenas no nível básico de
extração informativa e de compreensão.
Os dados ainda mostram que poucas vezes a coleção desenvolve atividades
em que os aspectos discursivos sejam contemplados, por exemplo. Averiguamos,
ainda, que questões relacionadas à apreciação estética são irrisórias, o que parece
indicar um trabalho que pouco contribui para a formação do leitor literário.
A leitura literária, portanto, não é tomada como um ato de desvelamento, de
descobertas, de encontros entre leitor e autor ou ainda leitor e personagens. Nesse
sentido, concordamos com Kraemer (2013) que, fundamentada em Fiorin (2000),
assevera que,
[...] na busca do conhecimento linguístico, os alunos de ensino
fundamental e médio devem ser expostos a todos os gêneros
discursivos, em que se destaca o literário, por mobilizar diferentes
funções e dimensões da linguagem. Há, nesse movimento, a
transição de uma realidade cotidiana à outra, na qual se criam novas
percepções e experiências diversas, provocando a interação verbal,
marcada pela natureza sensível do processo. Se este possuir um
155
caráter emocional favorável, facilitará a aprendizagem (KRAEMER,
2013, p.20).
Entendemos, portanto, que o ato de ler um texto literário é uma atividade em
que o sujeito leitor reage, replica e responde ativamente de modo constante, tendo
em vista que, por várias razões, aprecia ou não determinada obra; sente prazer, de
modo que se envolve, ou acha feio o resultado da construção autoral; aprecia o belo
que se configura por meio da linguagem, levando-o a interromper a leitura ou
direcionando-o a outros textos. Concordamos, pois, com o que afirma Bakhtin (2010
[1952-1953]), o sujeito é um ser ativo e respondente que age e reage na vida.
Por várias vezes, o livro aponta que irá trabalhar com os gêneros textuais,
porém não avança para além do texto, portanto, a coleção, em todos os volumes
observados, trabalha com uma concepção de leitura como atividade de
decodificação.
Associado a isso, pudemos observar, também, que a coleção propõe muitas
atividades de gramática nos capítulos, nos quais deveria ser trabalhada a
compreensão leitora. Há muitas atividades de identificação e/ou cópia de
informações, mobilizando, dessa forma, capacidades mínimas de leitura – em
especial às capacidades de decodificação. Assim, percebemos que as atividades de
leitura quase nunca permitem ao aluno um posicionamento crítico sobre o texto lido,
ou seja, o aluno não é direcionado a dialogar, a refletir, a reagir, de maneira que o
gosto pela leitura literária venha a ser desenvolvido, o que poderia colaborar para
torná-lo um apreciador de textos literários. Além disso, sabemos que é na escola e,
quase sempre, por meio do livro didático que o aluno tem a oportunidade de fazer
leituras literárias.
Partindo dessas reflexões, delineou-se a nossa terceira pergunta de pesquisa,
que diz respeito à elaboração de uma proposta de leitura do gênero conto: Que
capacidades devem ser mobilizadas no ensino-aprendizagem do gênero conto?
O objetivo da proposta de leitura de didatização do conto foi contemplar as
capacidades discursivas e apreciativas de leitura. Tal proposta foi elaborada na
forma de projeto de leitura, alicerçada na visão enunciativo-discursiva, buscando a
participação reflexiva e crítica dos alunos. Assim, a leitura foi concebida como um
processo de compreensão/réplica ativa em que o leitor sempre é um sujeito que age
e reage ao objeto contemplado. E, por conseguinte, reelabora e reacentua o “já dito”,
156
de forma que acrescenta outros ou mais elementos, transformando a palavra alheia
em palavra-alheia-minha. Apresentamos, além dos textos verbais, textos não
verbais, preocupamo-nos em elaborar uma proposta em que todos os contos fossem
de fácil acesso para os alunos e professores, por isso, todos compõem o acervo do
Programa Nacional Biblioteca da Escola.
Esperamos que este trabalho venha contribuir para a reflexão sobre a
questão da leitura no Brasil, em especial, da leitura literária, assim como para a
discussão sobre o ensino do letramento literário através do livro didático nas escolas
públicas.
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ANEXO 1 – O homem que enxerga a Morte
165
166
167
168
169
ANEXO 2 – Cinco ciprestes, vezes dois
170
171
ANEXO 3 – Um amigo para sempre
172
173
174
ANEXO 4 – Brincadeira
175
176
177
ANEXO 5 – O coração comido
178
179
180
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