O IMAGINÁRIO NA PRODUÇÃO JUVENIL CONTEMPORÂNEA: UMA
POSSIBILIDADE DE LEITURA DAS OBRAS AULA DE INGLÊS E SAPATO DE
SALTO, DE LYGIA BOJUNGA NUNES
Profª Drª Alice Atsuko Matsuda (UTFPR-Curitiba/GP-CRELIT-UENP-CP)
[email protected]
Profª Drª Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira (FEMA-SP/CRELIT-UENP-CP)
[email protected]
INTRODUÇÃO
Lygia Bojunga Nunes utiliza, como poucos, a palavra escrita, construindo
significados que nos emocionam. Em uma linguagem acessível, escreve como quem
conversa com seus leitores, envolvendo-os e levando-os à reflexão acerca da realidade
social. Além disso, possui habilidade para mesclar aspectos da escrita com outros da
oralidade. Assim, a presente comunicação, ligada à linha de pesquisa “Literatura infantil
e juvenil brasileira: crítica literária”, do Grupo de Pesquisa CRELIT, da UENP-CP,
analisa as obras: Aula de inglês e Sapato de salto, ambas de 2006, consideradas pelos
críticos, como voltadas para o público juvenil.
Para tanto, apresentamos brevemente essas obras. Em seguida, procuramos
verificar, por meio das contribuições da crítica sociológica, o tema abordado, o modo
como o texto foi enunciado, enfim, o trabalho da autora com a linguagem literária.
Esperamos, com esse estudo, contribuir para o mapeamento das obras juvenis
contemporâneas, sobretudo, no que concerne, conforme a estética da recepção, aos
elementos que determinam o papel do leitor implícito.
Constrói-se, neste texto, a hipótese de que a estratégia da escritora em tratar de
questões sociais contemporâneas, utilizando-se para tanto da oralidade, permite ao seu
leitor contato com um texto atraente que lhe faculta a ampliação de conceitos prévios,
pois solicita reflexão crítica. Além disso, a concepção de que a leitura literária pode
atuar como fator de valoração da identidade do jovem leitor, pois por meio dela, ele se
reconhece como herdeiro de um patrimônio cultural, norteia a análise dessas obras.
Alguns temas, pouco comum na Literatura Infantil e Juvenil, são abordados por
Lygia Bojunga em suas obras, por meio de uma linguagem literária clara e sem
preconceitos. Entre essas obras estão Aula de inglês e Sapato de salto. A seguir,
apresentamos uma análise de ambas, respectivamente.
AULA DE INGLÊS: AULA DE VIDA
Em Aula de Inglês, observa-se o tema do relacionamento amoroso tratado de
três formas: amor de menino a uma mulher madura; amor de um homem de sessenta
anos por uma jovem de dezenove; amor de uma jovem a um homem de quarenta.
Observa-se que a necessidade do relacionamento conjugal está presente em qualquer
idade, muitas vezes, indo contra o “politicamente correto”. No entanto, a obra
oportuniza ao leitor se posicionar, fazer a sua crítica, sem fechar a interpretação.
A história é enunciada por um narrador observador, contudo, como este
relativiza seu lugar no relato, ou seja, não faz uso absoluto da palavra, a narrativa
apresenta o predomínio de discursos diretos, nos quais se encontram os diálogos entre
as personagens. Essa é uma característica da linguagem teatralizada da autora. Além
disso, há a presença dos pensamentos do professor de Inglês, personagem protagonista,
que são colocados entre aspas, principalmente, quando ele foca a visão das pessoas com
quem ele conversa, analisando o seu comportamento, como se estivesse com uma
câmara fotográfica. Ele adquiriu esse hábito desde criança, visto que era apaixonado por
fotografia. Nota-se a habilidade artística da escritora nos recursos narrativos, pois as
descrições que apresenta provocam esse efeito de sentido no leitor, o de uma lente que,
gradualmente, se aproxima do objeto retratado.
Aula de Inglês não segue o padrão de narrativa linear, obedecendo a um enredo
cronológico bem marcado, com início, meio e fim. Nem sua trama é organizada na
mesma ordem da fábula, pois os acontecimentos ou fatos comunicados pela narrativa
não são ordenados, lógica e cronologicamente, pelo contrário, aparecem em uma
sequência nem sempre correspondente àquela, por meio da qual eles são apresentados
ao leitor (FRANCO JÚNIOR, 2005, p.33-34). Tomachevski explicita bem a diferença
de trama e fábula ao afirmar que a
[...] fábula opõe-se à trama que é constituída pelos mesmos
acontecimentos, mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a
sequência das informações que se nos destinam. [...] Na realidade, a
fábula é o que passou; a trama é como o leitor toma conhecimento [do
que se passou] (apud FRANCO JÚNIOR, 2005, p.36).
Em Aula de Inglês, a narrativa inicia com um diálogo entre o professor de
Inglês e sua aluna Tereza Cristina no dia do aniversário de 19 anos desta. A conversa
acaba remetendo ao passado. Nesse momento, a história retrocede, por meio da
analepse, e o leitor tem possibilidade de saber da história do primeiro amor do Professor
pela sua tia Penélope, carinhosamente chamada de Penny, quando ele tinha apenas 11
anos.
A mulher era uma escocesa que casou com o irmão da mãe do Professor. O tio
dele a conheceu quando foi fazer um curso de aperfeiçoamento em Glasgow. Eles se
apaixonaram e se casaram, mas o marido vem a falecer em um acidente. Depois de um
tempo, ela escreve à família do Professor dizendo que gostaria de conhecer a terra do
ex-marido e se poderia passar uns dias com eles. Acabou ficando mais de um ano.
Nesse meio tempo, o Professor aprende a língua inglesa e se apaixona pela tia Penny.
A aprendizagem da língua se dá de forma prazerosa, nas conversar durante os
chás com cakes, toast e scone, regadas de belas histórias escocesas de “[...] monstros
que moravam em lagos; reis e rainhas que disputavam poder; feiticeiras que apareciam
quando o nevoeiro baixava nos campos...” (p.17).
A narração do primeiro amor de uma criança por uma mulher madura é feita de
forma singela, emocionante que toca a sensibilidade do leitor. O sentimento puro, sem
malícia, de admiração e de frustração, é expresso por meio das palavras bem escolhidas
e enunciadas literariamente pela escritora Lygia Bojunga. Pode-se perceber essa
característica da autora no momento em que narra a frustração do Professor ao saber que
a tia Penny irá casar novamente com um dinamarquês e que irá voltar à Grã-Bretanha.
As suas conjecturas a respeito do abraço, de como deve despedir-se dela, criando
suposições, traduzem muito bem o sentimento de um garoto que sofre a sua primeira
decepção amorosa. O primeiro amor infantil é logo curado, mas a doce lembrança
acompanha-o sempre em suas recordações.
Durante a conversa em que o professor vai travando com sua aluna Tereza
Cristina, ele vai enquadrando-a por meio de uma lente de máquina fotográfica como se
estivesse fotografando-a, analisando as suas expressões. Agora, aos sessenta anos, o
professor vive uma nova paixão: Tereza Cristina. Ele nutre um amor platônico pela
jovem de 19 anos. Sua paixão não chega a ser explicitada à garota, fica apenas
subentendida, nas entrelinhas, nas lacunas, nos gestos. Ele consegue apenas escrever
uma carta que pretendia entregar-lhe, mas acaba não fazendo isso também.
O professor, para Tereza Cristina, é uma espécie de confidente. Ela o vê como
um grande amigo que a escuta confidenciar suas alegrias e tristezas, um verdadeiro pai.
Não consegue perceber o amor oculto, guardado em segredo, que o Professor sente por
ela, conforme pode ser comprovado pelo trecho seguinte:
O presente que você ganhou de aniversário, isto é, a sua próxima
partida, me atormenta. Faz um ano e dois meses que a minha vida se
apóia nas terças e quinta; e as terças e quintas são Tereza Cristina,
Você indo, minha vida desaba, só fica o vazio. (p.55).
A jovem sequer desconfia da grande paixão que o Professor sente por ela. Tanto
que, ao voltar no outro dia para pegar a capa de chuva, após ter anunciado que iria
embora, morar em Moçambique, na África, ela confidencia ao Professor o motivo que a
levou a participar de uma Ong voltada ao combate à miséria do povo na área rural de
Moçambique, por meio de projetos de formação de cooperativas agrícolas. Ela começa a
contar sua grande paixão arrebatadora por um homem de uns 40 anos, escritor do livro
A prisioneira. Ao ler a obra, ela se identifica tanto com a personagem que se sente
como se fosse ela. Além disso, ao assistir a uma entrevista do escritor dizendo que
estava com dificuldades de prosseguir com a história que estava escrevendo, deduziu ser
a pessoa certa para auxiliá-lo a sair dessa estagnação, visto que ficou perdidamente
apaixonada por ele. O novo romance é “[...] em torno de uma relação que uma leitora
estabelece com um escritor a partir de um livro que ele escreveu e que ela amou
adoidado” (p.77). Assim, ela se vê no papel dessa personagem e propõe ao escritor viver
um romance, a personagem Penélope da obra, para que assim ele tenha inspiração para
escrever e saia do “empacamento literário”.
Tereza Cristina é uma jovem preocupada com as causas sociais, com as
diferenças econômicas da sociedade. Uma noite, ao sair para jantar em Copacabana com
Octávio Ignácio, depara com os miseráveis na calçada que a deixam transtornada. Esse
episódio faz com que o escritor dê uma guinada na história e resolva fazer com que ela
se dedique a uma causa nobre. Assim, manda-a participar dessa Ong. Ele prepara toda
tramitação da viagem da jovem. Os pais de Tereza Cristina desconhecem o pacto
absurdo de sua filha e nem imaginam o seu envolvimento com o escritor. Ela, além de
ocultar esse fato, apenas apresenta alguns membros da Ong, fazendo com que seus pais
acreditem que ela estava mesmo se aventurando nessa causa devido ao seu espírito
solidário.
O professor, após o relato de sua aluna, percebe a cilada em que ela se envolveu,
o pretexto que o escritor encontrou para se livrar de Tereza Cristina, pois ele não iria
junto nessa aventura. Ele pede para ela escrever tudo que acontecesse na África, como
nos seus diários, e que mandasse uma cópia para ele. A garota não enxerga a situação
cômoda de Octávio Ignácio e o sacrifício que ela teria que fazer.
Cega de paixão e submissa aos caprichos do amado, ela parte para essa viagem.
No entanto, o Professor não desiste e vai à procura do escritor e acaba comprovando a
sua hipótese. Descobre um ser cínico e arrogante, e o quanto ele usa de Tereza Cristina,
sem escrúpulos.
Desesperadamente, vai atrás de Tereza em Londres, visto que ela ficaria um
tempo lá em curso preparatório antes de seguir para a África. Mesmo relatando a
comprovação da farsa do escritor, a jovem não muda de decisão e parte no dia seguinte
para a África, pedindo ao Professor para esquecê-la, após um longo e ardente abraço.
Decepcionado por não ter conseguido abrir os olhos de sua aluna, nem tê-la
conquistado, o professore sente vontade de voltar o mais rápido possível ao seu
apartamento, junto de seus objetos, de suas coisas. Consegue trocar a passagem para o
dia seguinte e, enquanto isso, resolve dar uma volta com sua máquina fotográfica,
companheira inseparável. Lembra de sua antiga mestra, sua paixão de infância, e
resolve procurá-la. O encontro entre os dois revela momentos de grande nostalgia e
singeleza.
Juntos relembram os belos momentos de felicidade vividos no Rio de Janeiro, a
busca de seus sonhos, os amores experienciados e a vida solitária que levam. Durante
essas reminiscências, o Professor confessa o amor que sentiu por ela durante a estadia
dela no Rio.
A narrativa mostra que, de certa forma, a sociedade impõe que, para as pessoas
serem felizes, é preciso ter alguém, uma companhia, viver um relacionamento conjugal.
No entanto, percebe-se nas entrelinhas do texto que nem sempre a felicidade está
presente nessas relações. O Professor não consegue manter relação estável alguma de
felicidade plena, de acordo com as notas de rodapé dos “*Breves dados cinzentos da
vida do Professor” (p.59). Namorou pouco na juventude, aos 30 anos se casou e teve um
filho, mas a relação não deu certo e se separou. Depois, teve mais encontros amorosos
que casos. Suas grandes paixões foram: tia Penny, Tereza Cristina e a fotografia.
Depois de mais uma frustração amorosa, verifica-se que a sua felicidade está nas
pequenas coisas, no aconchego de seu lar, nos objetos, nos livros (p.158). Da mesma
forma, para tia Penny, depois de dois casamentos frustrados, encontrou a felicidade nas
pequenas coisas cotidianas, habituou-se a ser feliz sozinha (p.179). Para superar a
solidão, revive os melhores momentos de felicidade, relembrando o casamento com o
seu primeiro marido (p.190).
Tereza Cristina, jovem de 19 anos, parece também constatar que a felicidade não
está no relacionamento homem X mulher. Embora tenha se envolvido em uma paixão
avassaladora, percebe-se que o sentimento era apenas dela, não houve uma
reciprocidade, uma troca, uma cumplicidade amorosa, sentimental. Octávio Ignácio
apenas se aproveita do sentimento da garota para se inspirar e escrever o seu livro. A
verdadeira felicidade de Tereza Cristina está no seu ato solidário, ajudando o próximo a
superar a situação de miséria nas colônias portuguesas da África.
Verifica-se, portanto, que ser feliz não depende do outro, mas de cada um. O
modo como cada pessoa encara a sua vida, valoriza cada momento, vive, fará um ser
feliz ou infeliz, realizado ou frustrado.
As relações amorosas tratadas na obra revelam o reflexo da sociedade atual em
que as pessoas se sentem solitárias e necessitam de um relacionamento conjugal. No
entanto, não percebem que, dependendo da relação em que as pessoas se envolvam,
acabam se tornando mais solitárias e frustradas ainda.
A forma como o discurso é enunciado na obra retrata a busca do ser humano
pela “felicidade conjugal”. O Professor realiza esse itinerário, possibilitando ao leitor
tirar suas próprias conclusões a respeito do tema tratado, sem direcionar a interpretação.
Nota-se, portanto, que o texto solicita a participação ativa do leitor, que ele seja co-autor
da obra, dialogue e interaja a todo instante com a narrativa.
De acordo com Candido, a arte é
[...] um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela
pressupõe o jogo permanente de relações entre os três [obra, autor e o
público], que formam uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e
realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo
modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. (2000,
p.33).
Percebe-se essa relação entre a obra, o autor e o público, em Aula de Inglês,
visto que é dado ao leitor um papel preponderante na narrativa. A autora termina a
história, oferecendo ao leitor dois epílogos e deixa a escolha ao leitor: “Então, aqui te
deixo os dois momentos em que o Professor fica ciente do que aconteceu com Tereza
Cristina depois que os dois se separam lá em Londres. Quero que você fique com o
momento que preferir” (p.214).
O capítulo, intitulado “Prá você que me lê”, deixa clara a interação da autora de
interagir com o leitor, fazer com que ele participe da narrativa. Desse modo, sua
produção enfatiza a ideia de que é na recepção do leitor que o texto se completa,
atendendo assim à teoria da Estética da Recepção, de Jauss. Nessa teoria, o leitor tem
um novo estatuto, o texto só se efetiva, enquanto comunicação, quando alguém o lê e
lhe dá sentido. Conforme Zappone:
[...] os textos são lidos sempre de acordo com uma dada experiência
de vida, de leituras anteriores e num certo momento histórico,
transformando o leitor em instância fundamental na construção do
processo de significação desencadeado pela leitura de textos (sejam
eles literários ou não). (ZAPPONE, 2005, p.154).
Para Jauss, a “[...] literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no
horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros,
ao experienciar a obra” (1994, p.26). Portanto, para o teórico,
A qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das
condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tãosomente de seu posicionamento no contexto sucessório do
desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do
efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios
estes de mais difícil apreensão (1994, p.7-8).
Portanto, pode-se afirmar que Aula de Inglês é uma obra que solicita um leitor
participativo e, ao mesmo tempo, lhe possibilita produzir o efeito de sentido do texto.
Esse leitor tem papel predominante na leitura e na sua interpretação.
SAPATO DE SALTO: UM SALTO PARA A VIDA
Em Sapato de Salto, o relacionamento amoroso, quando movido por uma
paixão incontrolável, é tratado como meio de perdição das personagens. Assim, pode-se
notar, na obra, que três mulheres submetem-se à tirania dos homens que amam,
perdendo sua individualidade. Dessas mulheres, somente uma conseguirá libertar-se.
Desse modo, pode-se notar que o enredo da obra envolve a busca de identidade,
refletindo um dos mitos mais essenciais e abrangentes da humanidade.
Conforme Karin Volobuef (1999, p.46-7), o objetivo de uma busca é
desenvolver uma forma de vencer o conflito entre os anseios dos indivíduos e as
imposições do mundo concreto ao redor. Nessa acepção, situam-se a protagonista,
Sabrina, uma menina de dez anos de idade, órfã, assistida por uma instituição de
caridade; Inês, sua tia, mulher de classe social desfavorecida, e Paloma, mulher casada
de classe social prestigiada. Elas realizam jornadas em busca de si mesmas.
Sabrina fora abandonada ainda bebê pela mãe, Maristela, que, sem seguida,
atira-se a um rio, com uma pedra amarrada para afundar mais rápido. Essa mulher
comete suicídio, pois se envergonha de ter engravidado aos quinze anos de um homem
bem mais velho e casado, destruindo assim o sonho de sua mãe, Dona Gracinha, de
torná-la professora. Essa senhora, abandonada pelo marido, trabalhava exaustivamente
como lavadeira e passadeira para educar as duas filhas; Inês que ambicionava tornar-se
bailarina e Maristela.
Maristela, ao engravidar, é abandonada pelo amante, com vergonha da mãe, sai
de casa e precisa se prostituir, mesmo grávida, para conseguir o mínimo à sua
subsistência. Depois de sua morte, a família desconhece o paradeiro da criança, Dona
Gracinha fica muito abalada com a notícia e sente-se culpada, pois repreendera
severamente a filha. Por sua vez, Inês fascina-se pela vida noturna de Copacabana,
apaixonando-se perdidamente por um homem dez anos mais velho, sem escrúpulos e
sedutor que a leva a se drogar e prostituir. Dona Gracinha percebe que a filha muda seu
comportamento e não ouve seus apelos. Em sua tentativa de convencê-la a não sair de
casa, segura firmemente a sua mala, mas a jovem a empurra, ela cai, mas a filha sequer
volta o olhar para saber o que houve. A senhora fica gravemente perturbada depois do
tombo, sua patroa a encaminha para um asilo para pessoas carentes com problemas
mentais.
Anos depois, Inês tem notícias da sobrinha e descobre o paradeiro da mãe, sentese culpada por sua insanidade. Descobre que Sabrina fora trabalhar como babá na casa
de uma família e vai buscá-la. Assim, Inês resgata a mãe e a sobrinha, as três mudam-se
do Rio de Janeiro e vão para uma pequena cidade do interior. Nesse local, Inês, já
liberta das drogas e da prostituição, busca reconstruir sua vida, como professora de
dança.
Sabrina sente-se feliz na nova casa, pois tinha necessidade, como qualquer
criança, de receber afeto e atenção, além de descobrir o que é ter liberdade para comer,
tomar banho, abrir a geladeira na hora em que desejar. Como tem confiança na tia,
revela-lhe que, na casa da família em que trabalhava como babá, sofrera abuso sexual.
A experiência de vida da tia permite que esta compreenda a situação a que foi exposta a
menina. Em momento algum, ela manifesta julgamentos, ainda, afirma para que Sabrina
se tranquilize em relação a seu medo de que sua mãe a condenaria, pois ela também
sofrera, fora enganada e precisara se prostituir para sobreviver.
Inês começa a ministrar aulas a Andréa Doria, um menino de 13 anos, filho de
Paloma, apaixonado pela dança. Em uma dessas aulas, percebe que Sabrina possui a
mesma paixão e um dom imenso para a dança. Avó, tia e sobrinha permanecem juntas
até aparecer o antigo amante de Inês. Ele vem para buscá-la e reconduzi-la à
prostituição. Inês recusa-se, afirmando que se libertara desta vida, ele não aceita e, em
meio a uma discussão, ele a assassina com três tiros. Sabrina presencia toda cena, e
mesmo sem ajuda de ninguém, com o pouco dinheiro que a tia deixara, paga as despesas
do funeral e cuida da avó. Ambas começam a passar privações, assim Sabrina decide
prostituir-se para prover alimento na casa. Andréa Doria descobre e tenta ajudar
Sabrina, convidando-a para almoçar em sua casa.
Paloma, após a perda de sua filha recém-nascida, cai em depressão e é acusada
pelo marido por não ter optado por uma cesárea. Ela que já possui afinidades com filho,
volta-se também para sua amizade com Sabrina. Aos poucos, aproxima-se da menina e
de sua avó. Descobre as privações por que ambas passam e que Sabrina já se prostituíra
para comprar alimentos. Passa, então, a pagar pelas aulas de Andréa, alegando que
Sabrina o ensina a dançar.
O casamento de Paloma é um fracasso, o marido autoritário e machista não
aceita que a mulher tenha independência financeira. Além disso, revolta-se com as
angústias do filho em relação à própria sexualidade e com um relacionamento afetivo
que ele mantém com um rapaz seis anos mais velho. O casamento de ambos entra em
crise quando Paloma, após longo período de reflexão e busca de si mesma, afirma que
não mais se comportará como ele quer. Ela deseja adotar Sabrina e até mesmo sua avó,
e ter independência. O marido, então, opta por partir, já que a casa é herança de família
de Paloma.
Como na obra Aula de Inglês, a narrativa de Sapato de Salto também
apresenta a necessidade de relacionamento afetivo em qualquer idade, muitas vezes,
indo contra o “politicamente correto”. No entanto, a obra oportuniza ao leitor se
posicionar, fazer a sua crítica, sem fechar a interpretação. A história também é enunciada por um narrador observador e este também relativiza seu lugar no relato,
predominando o discurso direto das falas entre as personagens. Além disso, nota-se a
mesma característica da linguagem teatralizada da autora, em que com pensamentos,
configurados entre aspas, as personagens simulam situações de diálogo com outras,
buscando assim antecipar respostas que as auxiliem a tomar decisões. A habilidade
artística da escritora nos recursos narrativos, aparece também nas descrições
metonímicas que apresenta, provocando no leitor o efeito de sentido de uma lente em
close up que, gradualmente, se aproxima do objeto retratado. Um exemplo aparece na
cena em que Sabrina abre a porta da casa em que trabalha e se depara com Inês:
Primeiro, o olho da Sabrina se prendeu no olho da mulher; depois,
subiu pro cabelo: ruivo, farto, uma mecha loura daqui, um
encaracolado de lá; desceu pra orelha: argolona dourada na ponta;
atravessou pra boca: o lábio era grosso, o batom bem vermelho;
mergulho no pescoço: conta de vidro dando três voltas, cada volta de
uma cor; o olho ganhou velocidade, atravessou o decote ousado, meio
que tropeçou na alça da bolsa e foi despencando pro cinto gruo (que
cinturinha que ela tem!) e pro branco da saia, e pra perna morena e
forte, que descansava o pé num sapato de salto. Bem alto. Unha da
mão pintada da mesma cor do batom. (p.28).
Sapato de Salto segue o padrão de narrativa linear, obedecendo a um enredo
cronológico. Entretanto sua trama é permeada de analepses, sobretudo, quando as
personagens adultas reavaliam atitudes tomadas na juventude que determinaram a
situação presente em que vivem. Assim, vê-se Inês, no escuro do quarto, relembrando
do empurrão que dera na mãe, e Paloma, sentada em sua poltrona, avaliando sua relação
com o marido e as atitudes que deixou de tomar ao longo dos anos para submeter-se às
suas vontades.
A narração de Bojunga de fatos dramáticos revela-se enxuta, sem adjetivos. Essa
opção da escritora permite ao narrador apresentar a cena sem tecer julgamentos de
valor, como se a cena falasse por si e dispensasse comentários. Um exemplo poder ser
visto quando Sabrina vai morar na casa da família Gonçalves. Sua ingenuidade aparece
na submissão a aceitar trabalhar sem salário só pela alimentação e abrigo. Além disso,
inicia suas funções como babá de duas crianças, um menino de quatro anos e uma
menina de três, sendo ela própria uma criança, ainda, de dez. Aos poucos, a dona da
casa, Matilde, obriga-a a realizar outros afazeres domésticos, além de atender ao
telefone e realizar pequenas compras na padaria, no mercado etc. A quantidade de
tarefas é desproporcional à alimentação, pois Sabrina está sempre pensando na próxima
refeição. Entre suas ocupações, a mulher determina à menina deixar a porta do quarto
aberta a fim de atender às crianças, caso elas chorem de noite. Sabrina, realmente,
afeiçoa-se às crianças.
Matilde percebe a competência da menina, mas mesmo assim não manifesta
afeto algum. Seu marido, Gonçalves, enaltece para a esposa a inteligência da menina e
começa a lhe trazer pequenos presentes em segredo. Assim, cativa-a gradualmente até
adentrar seu quarto um dia à noite e começar a acariciá-la e despi-la. Sabrina se assusta,
justificando que, para ela, Gonçalves era como pai. Esse argumento não o dissimula de
sua intenção, mesmo quando menina resiste e pede tremendo: “– Não faz isso! Por
favor! Não faz isso!” (p.20), o narrador informa: “Fez.” (p.20). Nota-se que ocorre
elipse da cena de concretização do ato sexual, instaurando um silêncio, seguido de uma
constatação de que o ato foi efetivado, por meio do verbo fazer. Esse verbo marca a
ação de um único sujeito, no caso de Gonçalves, conotando que Sabrina fora apenas
paciente da ação verbal. Assim, fica para o leitor deduzir o que aconteceu e interpretar
essa ação unilateral.
Gonçalves retorna em algumas outras noites, transformando a vida de Sabrina
em um inferno. Ela sente desejo de partir, medo de ser descoberta por Matilde,
vergonha, enfim angústia, mas permanece onde está, pois não tem para onde fugir. A
mulher, uma noite, acorda e percebe movimentação no quarto de Sabrina. Ao deduzir o
que está acontecendo, passa a castigar fisicamente Sabrina, mas não enfrenta o marido,
nem lhe pede explicações.
Pode-se notar, então, que as condições sociais determinam a vida das
personagens Sabrina, Inês, Maristela, Gracinha, Paloma e até da comodista dona
Matilde. A violência que sofrem no meio social, Inês e Maristela, sendo obrigadas a se
prostituírem, ainda, a violência doméstica da qual são vítimas Gracinha, pela própria
filha Inês, Paloma pelo marido autoritário, e Sabrina, são vistas como sintomas sociais
de uma realidade desumana, brutal para o indivíduo que, ao se submeter a isso, perde
sua autoestima.
A narrativa mostra, então, como em Aula de inglês, que, de certa forma, a
sociedade impõe que, para as pessoas serem felizes, é preciso ter uma família, uma
companhia, ou viver um relacionamento afetivo. Todavia, percebe-se, nas entrelinhas,
que nem sempre a felicidade está presente nessas relações afetivas ou familiares. Para
Inês, a felicidade foi obtida após a emancipação de sua condição de submissão a um
homem e às drogas. Para Sabrina, como criança, no apoio para se encontrar e se
reconhecer como tal e não como prostituta. Para Paloma, no resgate e na imposição de
suas vontades, como dona de si e da sua própria vida. Além disso, como é generosa, na
possibilidade de auxiliar o filho e compreendê-lo, assim como auxiliar Sabrina e a avó.
O próprio Andréa, de apenas treze anos, sente-se muitas vezes humilhado em seu
relacionamento com o intelectual Joel, de 18 anos. Este o deprecia e chama de
ignorante, pois não conhece literatura. Embora apaixonado, Andréa ao confidenciar suas
angústias com o tio, Leonardo, ouve deste que não compreende as atitudes de Joel e
pensa que ele também não as entende às vezes. Assim, esse tio acaba por auxiliar o
sobrinho a ter uma visão mais crítica desse relacionamento.
Como em Aula de Inglês, pode-se deduzir, pela leitura, que ser feliz não
depende do outro, mas de cada um, quando se é adulto. O modo como cada pessoa
encara a sua vida, valoriza cada momento, vive, fará um ser feliz ou infeliz, realizado ou
frustrado. Contudo, o que a autora deixa bem claro para o leitor de Sapato de Salto é a
necessidade da criança e do jovem de serem amparados, assistidos e ouvidos pelo
adultos. Sabrina, sem o apoio de um adulto, não teria outra opção para a sobrevivência
além da prostituição. Andréa poderia perder sua identidade na busca por sempre agradar
a Joel. O que distingue a ambos das demais personagens é a franqueza com que expõem
seus pontos de vista, além da capacidade de dialogarem com as pessoas em que
confiam. A sinceridade de Sabrina pode ser vista na cena em que Paloma lhe indaga se
ela já se perguntara se: “[...] ‘ia se puta’, [...], caso sua tia não tivesse morrido? Quer
dizer, caso a Inês continuasse tomando conta da família?” (p.219). Sabrina responde
com franqueza:
– Não! não! é ruim! Eu sou pequena aqui também. Dói quando entra,
é ruim, não gosto. É ruim quando acaba também, e, às vezes, a gente
quer tomar banho e não pode; é ruim o jeito que eles olham pra gente,
feito coisa que a gente é... sei lá, mas é ruim. Eu gostava de estudar.
(p.219).
A garota revela que a agressão se efetiva em dois planos, no físico e no
emocional, ou seja, no corpo e na dor moral, proveniente da sensação de se sentir
“suja”, vista como objeto, enfim, reificada como um objeto descartável.
As relações, entre adultos e crianças, tratadas na obra revelam o reflexo da
sociedade atual em que as pessoas se sentem solitárias, mesmo na companhia do outro.
As adultas, muitas vezes, se submetem, as jovens são vítimas de agressões. Inês e sua
irmã, iludidas por homens experientes e bem mais velhos, apaixonadas e cegas, não
percebem que, ao se envolverem nessa relação, dão início a um processo de
autodestruição. Paloma é a única mulher adulta que supera uma relação destrutiva, mas
também ela recebe ajuda do irmão inteligente e sensível que sempre soubera que seu
casamento não teria sucesso. Além disso, recebe carinho e conta com a compreensão do
filho.
No epílogo da obra, Bojunga apresenta um texto, intitulado “Pra você que me
lê”, sob a forma de uma carta datada em fevereiro de 2006, escrita em Londres. Nessa
carta, a autora afirma que deixa as personagens e vem para um espaço criado para ela e
o seu leitor ou leitora. Usando de metalinguagem, ela diz que esse espaço é móvel, em
alguns livros, pode aparecer no começo, em outros, no fim, às vezes, é só uma
informação. Justifica sua existência com o objetivo de explicar para o leitor o porquê de
o próximo tópico ser denominado “Expressões”.
Assim, explica que Sapato, originalmente se chamara Sandália dourada, mas
suas personagens eram bem diferentes. Deste original, só salvou duas ou três cenas.
Assim, diz que em 2002, ao terminar Retratos de Carolina, começou Aula de Inglês,
justo quando formava sua própria editora. Nesse processo, relegou a escrita do livro a
segundo plano e, ao retomá-lo, encontrou entre seus papéis, uma das personagens de
Sandália Dourada, Sabrina. Com ela, chegaram outras personagens e Aula de Inglês
foi abandonado. Mas Sapato empacou e ela retomou Aula.
Desse modo, os dois livros foram escritos concomitantemente, então, ela decidiu
fazer o último capítulo de Sapato a partir de um enfoque adotado pelo protagonista de
Aula de Inglês, o professor. Como este era fotógrafo, a escritora influenciada por ele
utiliza-se de enquadramentos nas descrições do próximo item.
De fato, as últimas cenas são metonímicas e sinestésicas. Paloma chega na casa
de Sabrina com uma broa e Dona Gracinha aspira fundo e afirma: “[...] quero um
pedaço desse cheiro!”. (BOJUNGA, 2006, p.257). O diálogo entre ela, com a ajuda de
Andrea, para contar a Sabrina que desejava adotá-la é tenso e marcado por expressões
faciais e olhares. As personagens se comunicam pelos olhos e as sensações são
transmitidas por eles. Quando Paloma tranquiliza a menina de que sua avó também será
adotada e caso não dê certo, se compromete a arrumar lugar para ela se tratar, a
manifestação de alegria de Sabrina efetiva-se nos gestos e ações descritas por closes em
partes de seu corpo: “Sabrina se levantou num pulo. Abraçou a Paloma; abraçou o
Andréa Doria; abraçou a dona Gracinha; correu pro som; botou música; pé, braço,
cabelo, corpo, tudo desatou a dançar, celebrando a nova estação de vida que ia
começar.” (BOJUNGA, 2006, p.260).
Desse modo, como em Aula de Inglês, em Sapato de Salto, Bojunga também
enfatiza que sua produção efetiva-se na recepção do leitor, conforme preceitua a
Estética da Recepção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, suas obras são emancipatórias, pois pela dialogia com o leitor e
com outros textos diversos, de diferentes autores, convocam-no a rever conceitos
prévios e a ampliar seu horizonte de expectativa acerca de: relações afetivas; relações
sociais e familiares; infância; condução sexual; casamento; prostituição e abuso sexual.
O jovem leitor pode perceber que a criança vítima de abuso, às vezes, está dentro da
própria casa que supostamente a acolhe, no seio de uma família. Além disso, pode notar
que os adultos nem sempre têm bom caráter, chegando a ser coniventes com a violência
da qual a criança é vítima.
Em síntese, ambas narrativas revelam ao leitor que as mudanças efetivas surgem
de dentro para fora, graças a um processo de internalização, reflexão e maturação, enfim
de busca de si mesmo. Assim, a primeira revolução do sujeito é interna, voltada para a
descoberta de suas competências, ao realizá-la, ele se firma como indivíduo e, só assim,
pode ter coragem para enfrentar e modificar a realidade circundante, sobretudo, para
auxiliar e amparar os que dele precisam.
Portanto, espera-se com a análise das duas obras de Bojunga, ter contribuído
para difundir a crítica literária de obras voltadas ao público juvenil, visto que ainda são
escassos os estudos nessa área.
REFERÊNCIAS
BOJUNGA, Lygia. Aula de Inglês. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2006.
______. Sapato de Salto. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2006.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8.ed. São Paulo: T. A. Queiroz;
Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro).
FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura narrativa. In: BONNICI, Thomas;
ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.). Teoria Literária – abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 2.ed. ver. e ampl. Maringá: Eduem, 2005.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à Teoria Literária.
São Paulo: Ática, 1994.
VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do Romantismo na Alemanha
e no Brasil. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.
ZAPPONE, Mirian Hisae Yagashi. Estética da recepção. In: BONNICI, Thomas;
ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.). Teoria Literária – abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 2.ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2005.
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Alice Atsuko Matsuda (UTFPR-Curitiba) e Eliane Aparecida Galvão