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O AMOR NA HISTERIA CONTEMPORÂNEA
Cláudia Domingues, Cláudia Henschel de Lima e Cristina Ferreira Vaz.
1. Introdução
Este trabalho aborda a direção de tratamento da neurose histérica na
contemporaneidade. A clínica da neurose não se furtou à fenomenologia dos sintomas
contemporâneos: significações absolutas (sou anoréxica, tenho pânico), irrupção do
imperativo superegóico materno, baixa operatividade da função paterna. Tais
indicadores evidenciam a complexidade do manejo clínico já que não é clara a presença
de uma interrogação que remeta a divisão subjetiva. Supõe-se que a direção de
tratamento desses casos dependa do que a demanda de tratamento por parte do sujeito
possa revelar sobre o ponto de desestabilização da estrutura que, no caso feminino, está
localizado no amor ao pai. Duas vinhetas clínicas de histeria feminina exemplificarão o
vetor da direção do tratamento desses casos: a localização para a paciente do ponto de
desestabilização de sua estrutura histérica em relação à parceria amorosa sintomática, a
constituição do laço transferencial com a analista e a produção de uma consistência
crescente da função paterna na estrutura subjetiva.
2. O que há de clássico nos sintomas contemporâneos.
O tema dos sintomas contemporâneos - bulimas, anorexias, toxicomanias,
depressão, hiperatividade – teve sua inserção na temática mais ampla do programa,
elaborado pelo Campo Freudiano, entre os anos de 1996 e 1998, para a pesquisa das
psicoses ordinárias. Esse programa gerou três conversações: Conciliábulo d’Angers
Conversação de Arcachon e Convenção de Antibes.
No contexto dessas conversações, discutiu-se sobre a natureza de uma gama de
casos clínicos, cujos sintomas não obedeciam à orientação epistemológica do primeiro
ensino de Lacan, formulada em De uma Questão Preliminar a Todo Tratamento
Possível da Psicose (1998/1955-56)1: centrado na hegemonia do simbólico, na eleição
de um significante privilegiado, um S1 – o Nome-do-Pai (NP) – como critério na
disciplina do diagnóstico diferencial entre neurose e psicose, e como fundamento de um
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LACAN,J. “De Uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose” (1955-56). Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998.
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modelo clínico ancorado no Ideal do pai, para a direção de tratamento das
psicopatologias.
Tais casos apresentam como evidência clínica primeira a ocorrência de um
núcleo de satisfação pulsional mortífera, não regulado, pelo Ideal transmitido pelo
Nome-do-Pai. O que desafia a direção de tratamento já que não obedecem à orientação
clínico-conceitual centrada no binômio recalcamento-foraclusão (NP-NPo). As neuroses
histéricas, na contemporaneidade, não se furtam à essa problemática. Leda Guimarães
em artigo recente (2008)2 apresenta uma faceta contemporânea do sintoma na neurose
histérica, que não obedece ao mesmo atributo do sintoma no sentido clínico conferido
por Freud para o diagnóstico e direção de tratamento das neuroses histéricas e
obsessivas: ou seja, como mensagem cifrada cujo sentido é ignorado pelo sujeito. AO
contrário, nas neuroses contemporâneas, tem-se verificado as seguintes características:
1. Não fixação da estrutura psíquica neurótica, pelo Nome-do-Pai, para conceder
as coordenadas do funcionamento psíquico.
2. Circulação livre das pulsões impondo uma satisfação que se alimenta das
piores renúncias, sem a interferência do recalcamento das pulsões pelo ideal.
3. Pregnância de significações absolutas ancoradas no imaginário, que obedecem
à fórmula ‘se... então sou’ e que produzem a redução do funcionamento da realidade
psíquica à denominações monosintomáticas do tipo sou anoréxica, sou depressiva.
O comentário de Jacques-Alain Miller (2003) 3 a respeito do índice de
operatividade do Nome-do-Pai, na impossibilidade de se orientar no tratamento dos
sintomas contemporâneos pela metáfora paterna já fixada na estrutura, é uma indicação
precisa para a direção de tratamento desses casos. De fato, discutindo sobre a clínica
diferencial centrada no binômio NP-NPo, o autor se apóia no último ensino de Lacan
(2008/1975-76)4, que acentuara a relevância da crença no amor ao pai como condição
para a propriedade borromeana da realidade psíquica e, portanto, para a consolidação da
estrutura neurótica. Miller (2003) defende a importância desta operação na constituição
da estrutura psíquica, obscurecida pelos monosintomas contemporâneos, recorrendo à
curva de Gauss para elaborar, no campo das neuroses os diferentes níveis de
operatividade do Nome-do-Pai na efetuação da estrutura.
2
GUIMARÃES, L. “Que direção da cura para as ‘mal-ditas histéricas’?. Revista Falasser. Delegação
Paraíba. Escola Brasileira de Psicanálise. n3.ano2008. João Pessoa, Paraíba. Brasil.
3
MILLER, J.A. et al. La Convención de Antibes.Buenos Aires : Paidós, 2003, pp.202-203.
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LACAN,J. O Seminário. Livro 23. O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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Com base nesta formulação, Guimarães (2008:1) denomina de mal-ditas
histéricas, as mulheres que estão “inseridas no campo da neurose, mas que não podem
ser concebidas enquanto histéricas (...), já que no seu lastro de gozo sintomático,
enquanto nó que fixa a estrutura, nele ainda não consiste de modo operativo o amor ao
pai”. E, consequentemente, torna-se vulnerável à incidência do supereu na realidade
psíquica A autora concede ao termo uma duplicidade homofônica:
1. Mal-ditas: pela posição ética do sujeito na neurose, verifica-se a
preponderância de um núcleo de gozo mortífero (adicção, anorexia, depressão) e de
sentimentos paranóicos associados à uma autoridade externa anônima e pública.
2. Malditas: pela posição contratransferencial do analista, que inadvertidamente
pode interpretar sua pregnância de seu modo de gozo como “insuportável”.
3. Gênese do supereu e histeria contemporânea
O conceito de supereu representa, na psicanálise, o momento em que Freud isola
a presença de um ponto de anomia na transmissão da lei pelo pai.
Em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1980/1921:141)5 Freud fizera do pai
o modelo de exercício de poder e o ideal em torno do qual gravita o processo
identificatório, que resulta no recalcamento dos representantes psíquicos das pulsões e
na constituição da subjetividade. Todavia, as preocupações de Freud relativas ao destino
da modernidade deixam entrever a presença de uma relação conflituosa entre a
experiência subjetiva e as insígnias paternas. De fato, o sujeito faz do modelo paterno,
o objeto de uma relação sintomática, alternando entre admiração-ideal e rivalidadeculpa. Sendo assim, apesar de Freud conceber o pai como instância simbólica de
transmissão da lei, como bússola de orientação para o sujeito, ele isola, a partir da
evidência do sentimento de rivalidade-culpa, um ponto de discordância, um modo
desregulado e imperativo de funcionamento da lei.
Esse ponto de discordância leva Freud (1923[1976]) 6 a decompor o pai em duas
instâncias - o ideal do eu e o supereu – e a concentrar no supereu a dimensão
imperativa, pulsional, da lei.
A divisão da função paterna permite à Freud (1980/1927) 7 localizar o ponto de
anomia da lei, que faz do ingresso do sujeito na sociedade uma exigência desmedida de
renúncia da satisfação pulsional. Em 1930, Freud interrogará o estatuto desta renúncia à
5
.FREUD,S. “Psicologia de Grupo e Análise do Eu”, Obras completas. vol. XIX.
FREUD,S. “O Ego e o Id.”, Obras completas. vol. XIX.
7
FREUD,S. “O Futuro de uma Ilusão.”, Obras completas. vol. XXI.
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4
satisfação pulsional, através da formação do julgamento moral do que é bom e do que é
mau (Freud, 1980/1930[1929])8 . Sua hipótese é que na organização do funcionamento
psíquico, o que é mau, frequentemente o é, por ser prazeroso para o eu.
Ao isolar a existência de uma satisfação que apodera da renúncia, Freud pode
avançar na investigação da incidência da exigência civilizatória de renúncia à satisfação
pulsional, em nome do Ideal, e a formação do sentimento de culpa, sobre a posição ética
da neurose histérica: submetida ao medo da perda do amor ao pai e vulnerável à
devastação decorrente da exigência de renúncia, da qual se torna objeto para manter
intacto esse amor. Assim, Freud (1980/1930[1929]) definirá o amor ao pai como a força
motriz do supereu. A seqüência freudiana para a instalação do supereu na estrutura
neurótica é a seguinte:
1. O medo da perda do amor da autoridade externa resulta na renúncia à pulsão .
2. Após a instalação de uma autoridade interna, pelo recalcamento, a renúncia à
pulsão ocorre devido ao medo da consciência.
Ao longo da produção pertencente a segunda teoria pulsional, Freud (1980/1923,
1980/1924, 1980/1930[1929]) mostra que a estruturação do supereu se faz sob a base de
vicissitudes da pulsão de morte. Para a cota de pulsão que não pode ser direcionada para
o objeto externo e que se mantém retida no eu, sob a forma do masoquismo erógeno
primário, uma outra vicissitude da pulsão de morte é acrescentada: uma cota de pulsão
de morte, que estava à serviço do erotismo, é desviada da finalidade de satisfação direta
para um objeto, no momento em que esse objeto sofre uma dessexualização por usa
transformação de objeto erótico em objeto de identificação. Nessa transformação, a
pulsão de morte retorna sobre o eu e aumenta a severidade do supereu. A partir dessas
vicissitudes da pulsão de morte, se estabelece um laço erótico entre as exigências
sádicas que passam a ser direcionadas ao eu e a submissão à essas exigências por parte
do masoquismo primário do eu que, desse modo, se constitui em masoquismo moral:
sentimento de culpa é a denominação de Freud (1980/1930[1929]) para designar a
satisfação extraída desse dinamismo pulsional que fixa a estrutura do supereu. Freud
pode, então, formular que o supereu se constitui como o mais poderoso representante da
pulsão de morte e afirmar que, na histeria, o sentimento de culpa é hegemônico.
4. Direção de tratamento na histeria contemporânea
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FREUD,S. “O Mal-Estar na Civilização.”, Obras completas. vol. XXI.
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Os norteadores para a direção de tratamento das neuroses e psicoses são
estabelecidos nas entrevistas preliminares. Nelas, são definidas as condições de entrada
em análise a partir do sintoma, a modalização da transferência e o diagnóstico
diferencial. Um dos elementos centrais para a fixação da transferência na neurose
contemporânea é a localização da operatividade do Nome-do-Pai na regulação do gozo
e, consequentemente, a incidência do supereu sobre o sujeito. A partir das considerações
de Freud a respeito do tema, sustenta-se que o medo da perda do amor tem prevalência
central na neurose histérica: verificado pela necessidade de ouvir palavras de amor do
parceiro como esforço incessante e falho para neutralizar esse medo e pelo medo de ser
descoberta evidenciado em enunciados do tipo o que vai pensar de mim? Como o outro
vai reagir ao saber o que fiz? São tormentos de caráter paranóico que invadem o sujeito
histérico exigindo a renúncia desmedida da satisfação pulsional. Esses dados clínicos
demonstram que o traço principal do primeiro momento de instalação do supereu
continua prevalecendo na histeria apresentando-se clinicamente na forma de um medo
da perda do amor associado ao “medo da autoridade externa”.
Duas vinhetas clínicas esclarecem o que, aqui, se desenvolveu.
A. ANA ( 30 anos). Chegou ao consultório apresentando como queixa inicial
um pedido de salvação: “preciso que a senhora me salve e me cure”. Relata, entre
interrupções da fala, que sentia uma pressão no peito muito forte e uma dificuldade de
sair à rua para realizar seus afazeres. Seu primeiro tratamento psicológico, foi
interrompido a partir de uma condição imposta pela terapeuta: a de que não falasse mais
de sua decepção amorosa, arranjasse um emprego e saísse de casa.
As entrevistas preliminares evidenciaramos seguintes pontos à serem
considerados no estabelecimento do laço transferencial para a direção de tratamento:
1. O pedido de salvação e a pergunta, ao término das sessões, se seria abandonada
pela analista.
2. A ocorrência de um ponto de desestabilização da estrutura neurótica: a decepção
amorosa.
3. A colocação de uma condição, no primeiro tratamento, que empurra a estrutura
subjetiva para um ponto de impossibilidade: não elaborar a decepção amorosa
que desestabilizou a estrutura.
Para o estabelecimento do laço transferencial, a posição assumida pela analista
foi na contramão do primeiro tratamento, propondo escutar, sem censurar, o ponto em
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que ocorreu a perda do amor. A posição de Ana na parceria amorosa consistiu em
trabalhar dedicadamente, ao longo de 2 anos, para que a relação desse certo – o que não
impediu seu parceiro de terminar tudo pelo telefone. Trabalhar para manter a relação –
indica o modo de parceria com o Outro. De fato, em casa, a posição subjetiva de Ana
frente ao Outro materno é a de trabalhar incansavelmente para ele, submetendo-se ao
regime da posição psicótica da mãe. Esse trabalho a exaure física e mentalmente, na
medida em que dedica todo o seu tempo cuidando para que a mãe não seja maltratada
pelo pai ou saia pela rua sem destino. Com a saída do pai de casa essa situação se
agrava, sendo o marco para a consolidação desta posição na parceria com o Outro:
trabalhar para não perder o amor do Outro, ao preço da redução de seu laço social, do
recuo da perspectiva de independência financeira e da submissão a autoridade externa
da mãe e dos irmãos. Isso explica sua inibição em sair de casa, e a dificuldade em
dedicar-se ao tratamento. Sente-se, também, discriminada pela mãe e irmãos por não ter
um emprego. Saber a posição de Ana na parceria amorosa, permitiu à analista operar
uma retificação subjetiva: “vecê trabalha muito...”. Após essa intervenção, Ana começa
a vir às consultas com mais frequência e coloca a seguinte pergunta sobre o motivo do
término da relação com o namorado, a partir da perspectiva de sujeito desejante: “será
que eu que fui forte e em vez dele ter terminado comigo eu que o afastei de mim?”.
B. SÔNIA (30 anos). Casada, estudante universitária, chega à primeira sessão e
ao ser interrogada sobre o motivo que a fez procurar análise, responde: “sou casada há
oito anos, meu marido é alcoolista e não consigo me separar dele”. Nesse caso de
neurose, uma vez mais, o ponto de desestabilização da estrutura se localiza na relação
amorosa: descobre que seu marido já fora casado, tinha dois filhos, é alcoolista, e
constata que, progressivamente, deixa de honrar com as contas de casa. O que se repete
regularmente nas entrevistas preliminares é a experiência de vazio e desesperança, que a
faz julgar que vive por viver, já que o ideal de um grande amor e de uma família feliz
não se realiza. O motivo de Sônia buscar tratamento, a partir da declaração de que não
consegue se separar do marido, parece apontar para os seguintes elementos: 1. a
devastação produzida pela parceria amorosa com um alcoolista; 2. sua impotência por
não conseguir se separar do marido; 3. sua consideração de que essa parceria ainda é a
melhor alternativa ao retorno a casa dos pais. Sua devastação se apresenta clinicamente
na forma do sentimento de desesperança, justificando sua concepção de viver por viver.
Seu ponto de fuga são os vários amantes que possui simultaneamente ao casamento,
sobre o fundo do recuo do ideal de ter uma família e ser feliz. Esse recuo surge
7
precisamente porque Sônia mostra-se submissa aos imperativos maternos ofensivos (por
ex., “nunca será feliz em casamento algum”), evidenciando a incidência do supereu em
sua estrutura psíquica e correlativamente, a palidez do NP. Uma cena condensa esses
fatos de sua história clínica: relata que quando pequena apanhava da mãe, por qualquer
motivo, a ponto de ter sua mão quebrada, e que seu pai nada fazia.
A presença desses dados clínicos, fixa uma série de pontos fundamentais da
ética da psicanálise a serem considerados na direção de tratamento da histeria
contemporânea:
1. Perspectiva do sujeito: devido a articulação entre medo da perda de amor e
medo da autoridade externa, a posição ética assumida pelo sujeito histérico ao longo da
vida é a posição de quem acredita mais no juiz do que na lei (Guimarães,2006) 9. Ao
localizar o medo da perda do amor, na autoridade externa, e não em uma instância
interna, o sujeito histérico acaba acreditando no juiz projetado imaginariamente na
figura do pai, do parceiro amoroso, de um professor ou qualquer outra figura do público
anônimo. E se torna vulnerável à devastação.
2. Perspectiva do analista: é importante frisar essa prevalência imaginária
infantil nos caso de histeria, verificando o que Freud afirmara a respeito do supereu na
menina: o seupereu sofre do tempo indeterminado em que a menina se mantém no
édipo. A posição do analista está em ruptura com o discurso universitário (onde o saber
se apresenta como autoridade) e com o discurso do mestre(onde um S! é imposto pela
pessoa do analista), precipitando a redução do sujeito ao objeto que resulta na
devastação.
9
GUIMARÃES,L. “ As mulheres acreditam mais no juiz do que na lei” In Latusa: sinthoma, corpo e
laço social. Rio de Janeiro: EBP/RJ, n.10, 2005.
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O Amor na Histeria Contemporânea - Associação Universitária de