Escutas sob Escuta
José Miguel Júdice
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1. Estamos seguramente em época propícia a tempestades. Sobretudo às que ocorrem dentro de um copo de
água. Estamos todos muito sensíveis. Sobretudo ao que não temos o cuidado de ler com atenção. Só isso
explica muito do que foi dito e escrito a partir de propostas que fiz para o Congresso para a Justiça e para a
Cidadania sobre escutas telefónicas. Vamos então a alguns factos e comentários adicionais.
2. A Constituição, no art. 34 nomeadamente, toma posição muito forte contra as escutas telefónicas. Todas as
normas legais que as permitam devem ser interpretadas de forma muito restritiva. Se não gostam que assim
seja, podem propor a revisão da Constituição num sentido securitário, que depois falamos.
3. As escutas telefónicas são um instrumento legítimo de investigação criminal e, portanto, um elemento do
Estado de Direito. Essa é a posição da Ordem dos Advogados e a minha própria. Não vale a pena por isso
tentar afirmar o contrário. É habilidoso, mas não é verdadeiro.
4. O regime legal das escutas telefónicas está mal pensado, mal concretizado e tem de ser modificado. Adiante
detalharei, mas diga-se desde já que coloca no Juiz de instrução (ou até no Juiz do julgamento) competências
que deveriam caber ao Ministério Público, ao arrepio do regime geral. Aí nascem grande parte dos problemas
que estigmatizo. E é sabida a minha posição (que é também a da Ordem dos Advogados), que tive ocasião de
afirmar antes das eleições legislativas de 2002, com apoio unânime do Conselho Geral: acho que o MP deve
dirigir o inquérito e não apenas coordená-lo e fiscalizá-lo. Nas escutas telefónicas nada disso acontece.
5. Existe em Portugal – e noutros países, valha a verdade – uma deriva securitária que tudo pretende justificar
em nome da eficácia da luta contra a criminalidade. Contra isso nunca me calarei, doa a quem doer, custe o
que custar, pague os preços que tenha de pagar. Pois isso foi o que aprendi com uma linha coerente de
Bastonários que honraram a Ordem dos Advogados e defenderam a Cidadania. Como exemplo dessa deriva – e
poderia dar centenas – menciono o facto de quando cheguei à Ordem estar a ser prevista que outras polícias,
que não apenas a PJ, adquirissem sistemas de escutas, o que creio ter sido evitado. Lembro-me aliás que
contra isso estava o Desembargador Salvado, que aproveito para afirmar que me merece toda a confiança
como Homem e como Magistrado cumpridor das leis e dos deveres de respeitar os princípios do Estado de
Direito.
6. As escutas telefónicas, em relevantes aspectos que adiante detalharei, não são controladas nem fiscalizadas
pelo poder judicial nem por nenhum Juiz. A Sra. Ministra da Justiça quando afirmou o contrário na RTP na
passada 3ª feira, 23 de Setembro, falava do que não sabia ou sabia do que não falava. Para dar apenas alguns
exemplos, nem na lei nem na prática o Poder Judicial ou algum Magistrado tem qualquer papel
(1) Na escolha de quem se ocupa dos aspectos logísticos na PJ relacionados com as escutas,
(2) Nas opções concretas sobre a “indicação das passagens das gravações ou elementos análogos (sic)
considerados (re-sic) relevantes para a prova” (ver art. 188, nº1 do CPP),
(3)
Na fiscalização concreta sobre se das gravações não são feitas cópias, tomadas notas ou se são
utilizadas fora do processo para que foram autorizadas,
(4) Na fiscalização e controle dos actos de destruição (que. nos termos do nº 3 do art 188 do CPP) das
gravações que o Juiz entendeu não serem relevantes para a prova
(5) Do rastreio dos números de telefone que são mencionados nos pedidos de autorização
para saber se realmente correspondem a arguidos.
A lei não impõe nem sequer sugere nenhum papel para o Juiz de instrução nestes campos. Nada disto também
é controlado pelo MP, mas tão-somente e eventualmente pelas inspecções do Ministério da Justiça, o que para
separação de poderes – ao menos na interpretação que ouvi da Sra. Ministra – estamos conversados. Isto são
factos e para aí chegar basta ter a paciência de ler a lei.
7. Mas, para além disso, por razões evidentes de praticabilidade e de eficiência, algumas das determinações
legais não estão a ser cumpridas nem podem realisticamente sê-lo. É o caso, por exemplo de
(1)
A PJ levar ao Juiz de Instrução em regra já transcrito o que entendeu dever sugerir, e não como
determina a lei as gravações com a indicação das passagens que entende relevantes,
(2) Mesmo quando a PJ as faz acompanhar das gravações é materialmente impossível a qualquer Juiz de
instrução ouvir tudo para ver se a selecção transcrita ou até as indicações das passagens relevantes
são as adequadas e se, por exemplo, não foram desvalorizadas passagens que podiam beneficiar a
defesa. E
(3) As escutas são coordenadas a nível central em Lisboa – o que está bem e não era assim antes da
chegada do novo Director Nacional, tornando ainda mais difícil o auto-controle – e podem ser
autorizadas por Juízes desde Bragança a Vila Real de Santo António, de Porto Santo às Flores. O que
significa que a PJ não tem qualquer controle de ninguém – que não seja dos serviços de inspecção do
M. Justiça, desde que erradamente se tirou ao MP o poder inspectivo – sobre estas tarefas.
8. As escutas telefónicas são utilizadas muitas vezes como medidas de carácter cautelar e preventivo, o que é
ilegal: Cito a este propósito o Dr. Ataíde das Neves, Director da Polícia Judiciária de Coimbra, a que voltarei:
“não deve ser admitida a escuta (telefónica) de nenhum cidadão em relação ao qual não existam indícios
suficientes que permitam a aplicação de medidas de coacção”. E diz também (cito do “Diário as Beiras” de 22
de Setembro) que se pode recorrer a todos os meios de investigação “inclusive as escutas telefónicas, desde
que existam indícios fortes que justifiquem o seu pedido e que sejam autorizadas por um juiz”. Estou
totalmente de acordo com o Dr. Ataíde das Neves e, conhecendo-o bem, nada do que diz me espanta. O que
me espanta é que, como se sabe, não seja assim que ocorrem as coisas muitas vezes, sendo colocados sob
escuta cidadãos contra os quais não há quaisquer indícios, como forma de investigar indícios eventualmente
existentes em relação a terceiros.
9. As escutas telefónicas não podem ser decretadas por “dá cá aquela palha”. È precisa (“só podem ser
ordenadas ou autorizadas” diz a lei) que sejam “de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a
prova” (art. 187, nº 1). E a melhor doutrina claramente que exige a fundamentação de que não sejam
adequadas outras formas menos intrusivas e menos portadoras de potencial crise sobre o modelo
constitucional. Infelizmente todos sabemos que nem sempre assim acontece, o que constitui uma má
interpretação da lei que – estando em áreas essenciais de direitos constitucionais – não pode ser permitida,
devendo pois clarificar-se o texto legal.
10. As fitas gravadas das escutas telefónicas devem ser levadas “imediatamente” ao “Juiz que tiver ordenado
ou autorizado as operações” (art. 188, nº1 do CPP). A jurisprudência definiu que dez dias é o prazo máximo
que cumpre o preceito legal, mas infelizmente todos sabemos que não é assim que se passam sempre os
factos. Acresce que a lei nada diz sobre a necessidade de regularmente se reexaminar a necessidade ou a
possibilidade de manter escutas, o que faz com que – de novo a jurisprudência o revela – se renovem
automaticamente (chegando – como foi contado no debate organizado pela Comissão dos Direitos Humanos da
Ordem dos Advogados – a durarem 2 anos para terminarem com o arquivamento, sem que o escutado tenha
vez alguma sido interrogado). É preciso legislar no sentido que proponho no texto que enviei para o Congresso
da Justiça ou de outra forma idêntica.
11. Aproveito para realçar – embora seja de tal forma absurda a acusação que chegava oferecer o merecimento
dos autos – que nada nas minhas propostas pode ser interpretado como significando qualquer intromissão,
limitação, redução ou perturbação do poder judicial, da sua independência ou do princípio da separação dos
poderes. Nada permite afirmar que queira entregar a qualquer entidade o que deve ser competência do Juiz,
não podendo nem devendo desse modo ser interpretado a proposta para colocar sob controlo do MP o que hoje
é controlado pelo PJ. Nada terei a opor a que seja o poder judicial a controlar no futuro o que hoje ninguém
controla e que manifestamente não pode ser controlado pelo Juiz que ordenou ou autorizou as escutas.
12. Do que se trata com a proposta da famosa Comissão que serviu de pretexto para espalhar fumo e fugir à
análise das questões essenciais, é tão simplesmente de ir buscar à legitimidade democrática mecanismos de
controlo de operações técnicas que estão a montante (selecção e fiscalização dos agentes executivos que se
ocupam da audição, indicação ou transcrição das gravações) ou a juzante da intervenção judicial (controle da
destruição das escutas, segurança de que não são copiados ou anotados elementos dela retirados). No fundo
trata-se de comissão semelhante à que sem perturbação ou gritos de espanto existe para o SIS (se faz bem ou
mal o seu trabalho é outra coisa...). Jamais admitiria que fosse possível a tal comissão ter acesso às gravações
ou ocupar um milímetro que fosse do espaço de reserva da Juiz. Mas nada terei a opor a qualquer outra
solução, como seja a de subordinar as escutas ao controle do MP ou a nomeação de um Juiz para ser o fiscal
permanente do funcionamento do sistema. O que não posso admitir é que as coisas fiquem como estão. Por
muito que a Sra. Ministra ache que tudo está bem e por muito que a Associação Sindical da PJ ache que alguém
tem de me controlar.
13. Também quero esclarecer que nada tenho contra a PJ e contra os seus inspectores e agentes, que louvo no
esforço – às vezes heróico – de defesa do Estado de Direito em sede de luta contra a criminalidade. Conheço
muitos e sei do que falo. Juro que sou contra quem ande criminalmente a atear incêndios (e na modéstia do
meu património fundiário fui até vítima de um incêndio este verão), que sou contra a criminalidade organizada
(e até a desorganizada), que quero que sejam punidos quem se prove que abusou sexualmente de crianças
(para mim um dos mais desprezíveis crimes que faz parte do catálogo). Mas nada disso tem a ver com o que
digo. E que continuarei a dizer, mesmo que me acusem dessas e doutras tropelias.
14. A tão falada nota de rodapé de onde se concluiu um ataque ao meu Amigo Dr. João Ataíde das Neves (além
do mais um Magistrado Judicial de elevadíssima qualidade moral e intelectual), à luta contra os incêndios
criminosos ou até o desejo perverso de que o País ardesse, está esclarecida: o Director da PJ de Coimbra
afirma agora que nunca mandou fazer escutas sem autorização judicial prévia (nem me passou pela cabeça o
contrário), que só as solicitou para cidadãos em relação aos quais existiam “fortes indícios da prática do crime”
e que, evidentemente, não as pediu antes de existir processo de inquérito em curso. Não as requereu,
portanto, a título preventivo, não embarcando na tese de que se deviam colocar sob escutas “os suspeitos do
costume” (ou até prendê-los antes do Verão todos os anos, como vi defendido!). Ainda bem que assim foi. E
com todo o gosto afirmo que fui eu seguramente que percebi mal quando o ouvi afirmar logo no início da onda
de incêndios que já estavam muitas pessoas sob escuta. Afinal a Justiça está a funcionar muito melhor do que
esperava, pois dois dias depois dos incêndios deflagrarem já havia fortes indícios, requerimento aos inúmeros
Juízes das inúmeras comarcas onde ocorreram incêndios (a menos que também existissem já nesse momento
fortes indícios de criminalidade altamente organizada ou associação criminosa nos incêndios e não apenas
ideias como “não pode deixar de ser”, “foram vistos aviões”, “é coincidência a mais”, “tem haver alguém
interessado”, etc) e esses requerimentos tinham sido despachados respeitando integralmente os apertados
limites da Constituição e da Lei.
15. Que fique claro. No que se refere à defesa do Estado de Direito e das garantias dos Cidadãos, o Bastonário
da Ordem dos Advogados só tem um controle, que é o lei e dos seus pares. E só tem e aceita um limite: o da
Constituição e do Estatuto da Ordem dos Advogados. Provavelmente os que não gostam que assim seja vão ter
de aguentar ainda algum tempo mais. Mas não tenham ilusões, que a seguir a mim virá outro Bastonário que
fará exactamente o mesmo. Como sempre foi desde que a Ordem é Ordem e os “suspeitos do costume”, as
“medidas de segurança”, as “escutas” eram feitas em nomes de outros interesses e de outros poderes.
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