A CONTRIBUIÇÃO DE KOHLBERG À SOCIOLOGIA
KOHLBERG’S CONTRIBUTION TO SOCIOLOGY
Marcos Rolim1
Resumo
A obra de Lawrence Kohlberg tem exercido uma extraordinária influência na teoria e nas
práticas educacionais em todo o mundo. Sua teoria de desenvolvimento cognitivo a
respeito dos estágios de moralidade, baseada nas contribuições de Piaget, foi
incorporada aos debates contemporâneos nas ciências sociais e tem servido de
inspiração para currículos de muitas escolas em diferentes países. Para Kohlberg, a
educação comprometida com o desenvolvimento moral é uma educação para a justiça
que deve recusar, ao mesmo tempo, tanto as visões dogmáticas quanto o relativismo
moral. Este texto oferece um breve resumo da teoria de Kohlberg sobre o
desenvolvimento moral, sustentando sua importância para a Sociologia.
Palavras-chave
Kohlberg, desenvolvimento moral, atmosfera moral, princípios universais, comunidade
justa
Abstract
Lawrence Kohlberg’s work had an immense influence on the theory and practice of moral
education worldwide. His cognitive-developmental theory of stages of moral reasoning,
based on Piaget’s contribution, was incorporated in the contemporary discussions in social
sciences and had been served as a basis of numerous curricula in schools in different
countries. Kohlberg argued that education for development through the moral stages was
education for justice witch must to refute dogmatical perpectives as well moral relativism.
This paper offers a brief synthesis of Kohlberg’s theory about moral development, arguing
their relevance to Sociology.
Key words
Kohlberg, moral development, moral athmosfere, universal principles, just community
1
Professor da Cátedra de Direitos Humanos do Centro Metodista de Educação, IPA, Jornalista,
consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos, mestrando em Sociologia na UFRGS, autor,
entre outros livros, de “A Síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no
século XXI” (Zahar, 2006).
2
A CONTRIBUIÇÃO DE KOHLBERG À SOCIOLOGIA
Marcos Rolim
I - Introdução
Em que pese a importância do seu trabalho sobre o desenvolvimento moral, de
aplicação mais ampla em escolas em todo o mundo, Lawrence Kohlberg segue
sendo um autor pouco referido pela tradição sociológica2. No Brasil, apenas
alguns sociólogos já se valeram da teoria de Kohlberg em suas pesquisas e, se
desconsiderarmos estas exceções, pode-se afirmar que sua contribuição é ainda
pouco valorizada entre nós.
2
Mesmo na Psicologia, em que pese o interesse crescente por sua teoria, não são muitas as
referências a Kohlberg no Brasil. O trabalho de Ângela Biaggio é, neste particular, um marco cujo
pioneirismo não foi ainda suficientemente destacado. Mais recentemente, começam a surgir
aplicações interessantes da teoria de Kohlberg na sociologia, como, por exemplo, o interessante
trabalho de Fedozzi (2002) a respeito da evolução moral dos conselheiros do Orçamento
Participativo em Porto Alegre.
3
Por certo, concorrem para este distanciamento muitas razões. Primeiro, Kohlberg
foi um psicólogo e não um sociólogo. Seu trabalho esteve sempre muito vinculado
ao construtivismo piagetiano e à idéia da psicogênese do conhecimento. Para uma
visão mais tradicional e estreita em Sociologia, esta formação e área de atuação já
seriam motivos suficientes para o desinteresse. Em segundo lugar, a teoria de
Kohlberg situa-se dentro de uma tradição filosófica identificada mais amplamente
com as perspectivas morais universalistas inauguradas por Kant. Assim, sua base
teórica vinculou-se ao estruturalismo psicogenético e inspirou-se pelo ideal
humanista de uma moral universal. Por um lado e por outro, assim, tudo em sua
reflexão
parece
se
afastar
dos
temas
propriamente
sociológicos
e,
destacadamente, do pressuposto de que seu objeto, o processo de formação do
senso moral, pudesse ser compreendido enquanto um fenômeno social.
Este texto pretende oferecer uma síntese da teoria de Kohlberg e, ao mesmo
tempo, sustentar alguns argumentos pelos quais entendo que ela deva ser
incorporada à reflexão propriamente sociológica como uma contribuição
pertinente.
II - A Teoria de Kohlberg
a) Construtivismo pós-piagetiano
Quando Kohlberg propôs sua teoria a respeito da formação das noções morais, a
partir de pesquisas empíricas com crianças e pré-adolescentes, a visão
largamente predominante a respeito do tema era a de que a moralidade deveria
ser compreendida, simplesmente, como uma resultante do processo de
socialização. Assim, os valores morais seriam introjetados, “de fora para dentro”,
na consciência. Esta compreensão era comum não apenas na Sociologia, mas
4
também na Psicologia, a partir dos modelos oferecidos pela teoria psicanalítica, de
um lado, e pelo comportamentalismo (behaviourism), de outro. A decorrência
lógica desta forma de compreender a formação do juízo prático deveria, portanto,
suportar a conseqüência do relativismo moral. Com efeito, se as noções morais
são apenas o resultado de fatores sociais específicos, teremos tantas morais
quantas forem estas influências.
Para Kohlberg, entretanto, toda criança é “um filósofo moral”, no sentido de que
ela constrói ativamente seu senso moral em relação com o mundo que
experimenta e segundo certas estruturas invariantes e progressivas de
moralidade. Os pressupostos teóricos de Kohlberg, assim, foram definidos na linha
de desenvolvimento das concepções de Piaget de quem ele, aliás, sempre se
considerou um seguidor.
Segundo Piaget, a criança formava seu pensamento e desenvolvia sua
capacidade cognitiva a partir de um processo construtivista marcado pela
interação entre estruturas cognitivas definidas biologicamente e a influência do
meio social. Em estudos transculturais, Piaget e seus colaboradores identificaram
quatro estágios fundamentais e universais que seriam percorridos pelo ser
humano em sua psicogênese: um estágio sensório-motor, um estágio préoperacional, um estágio de operações concretas e, por fim, um estágio de
operações formais.
No primeiro estágio, sensório-motor, a criança adquire noções espaciais e exercita
constantemente seus órgãos sensoriais, desenvolvendo a coordenação motora.
Ao longo dos dois primeiros anos de vida, o infante irá apreender a correlacionar
sons e imagens, inicia a estabelecer as primeiras noções de causalidade e
aprimora seus sentidos, vinculando as impressões olfativas, gustativas, visuais e
auditivas, com os objetos que toca. No segundo estágio, pré operacional, entre os
2 e os 6 anos, a criança desenvolve a linguagem. É o momento privilegiado da
afirmação dos símbolos. Nesta fase, a criança ainda não tem noções que
5
requerem uma capacidade de abstração como, por exemplo, a idéia de
conservação. No terceiro estágio, operacional concreto, a criança inicia a
desenvolver seu pensamento lógico. Nesta fase, entre os 7 e os 12 anos, já possui
a noção de conservação e as operações matemáticas mais simples como soma,
subtração, multiplicação e divisão são compreendidas perfeitamente. Por fim,
Piaget identificou no quarto estágio, o das operações formais, o período onde, já
na adolescência, se tornava possível a realização de operações mais complexas
de pensamento, que exigiam um grau de abstração até então inexistente. Nesta
fase, passa-se a lidar com raciocínios hipotéticos, o que torna possível um
conhecimento mais complexo.
Já em 1932, em sua obra “O Julgamento Moral na Criança”, Piaget sustentava
que o desenvolvimento moral das crianças seguia uma seqüência paralela de
estágios. Observando o comportamento das crianças em jogos comuns e suas
opiniões sobre as regras que deveriam orientar estas brincadeiras, Piaget
percebeu que, em um primeiro momento, as crianças exercitam seus sentidos,
sem que sigam propriamente qualquer regra. Um pouco maiores, as crianças
começam
a
seguir
regras
fixadas
pelos
adultos,
mas
se
comportam
egocentricamente e, muito comumente, jogam sozinhas. Do ponto de vista do
juízo moral, Piaget perguntava às crianças nesta fase quem tinha feito a coisa
pior: um menino que havia quebrado 12 copos, sem querer ou outro menino que
havia quebrado um copo intencionalmente. Na fase pré-operacional, as crianças
respondiam que o primeiro havia feito algo mais grave, porque “12 copos eram
mais do que um”. Na fase seguinte, as crianças já haviam evoluído para a
compreensão moral que separa conseqüências e intenções. Percebiam, então,
que o garoto que quebrou um só copo, mas de propósito, fez algo mais grave.
Neste período, as crianças passam a colaborar umas com as outras e já
entendem que os jogos possuem regras que devem ser observadas para que eles
possam “funcionar”. Por fim, no estágio das operações formais, percebem que as
regras no jogo são o resultado de convenções. As noções disciplinares também
6
evoluem desde as noções meramente retributivas (castigo) até às idéias de
recuperação do culpado e reparação do dano.
Após entrevistar crianças de 10 e 13 anos e adolescentes de 16 anos, Kohlberg
percebeu que a intuição de Piaget sobre a existência de estágios de
desenvolvimento do juízo moral estava correta, passando a elaborar uma teoria
mais complexa sobre o tema.
b) Os estágios de consciência moral e a formação dos juízos práticos
Kohlberg identificou três níveis básicos de consciência moral. Em cada um destes
níveis haveria 2 estágios diferentes. Assim, a tipologia de Kohlberg propõe a
existência de 6 estágios de desenvolvimento moral, segundo o seguinte padrão:
1) Nível Pré-convencional-
Orientação para a punição e a obediência
Postura hedonista (orientação instrumental)
2) Nível Convencional -
Moralidade do bom garoto/garota
Orientação para a lei e a ordem
3) Nível Pós-convencional -
Orientação para o contrato social
Validade dos princípios universais
No primeiro nível de consciência moral, marcado pela postura auto-centrada e
egoísta, o “estágio 1” é aquele em que as condutas são orientadas segundo suas
possíveis conseqüências físicas e imediatas. Se uma determinada ação for
punida, então é avaliada como incorreta; caso contrário, estará moralmente
justificada. Neste ponto rudimentar de consciência moral, o sujeito não reconhece
os interesses dos outros, nem é capaz de relacionar duas perspectivas morais
distintas. O “estágio 2”, por sua vez, é aquele onde a conduta do agente é
7
justificada e aparece plena de sentido quando sua ação produz um prazer, um
ganho imediato. Neste estágio, vigora uma concepção de “justiça” rudimentar
baseada na reciprocidade do mal (“olho por olho”). As pessoas já reconhecem os
interesses dos demais, mas entendem que cada um deve perseguir seus próprios
objetivos.
No nível convencional de consciência moral, o “estágio 3” caracteriza a situação
daqueles que orientam suas condutas segundo o que imaginam ser os valores
prezados por seu grupo. Trata-se de um nível de moralidade conformista. Neste
estágio, ainda se tem uma perspectiva egocêntrica, mas já orientada para o
objetivo da adaptação. O “estágio 4” é aquele marcado pelo respeito à lei. É mais
comum entre os adultos e define um tipo de comportamento orientado pelo
objetivo de manter a ordem social. A noção de justiça é fortemente marcada pela
crença na punição dos transgressores, “para que a lei possa se impor”. Neste
estágio, as pessoas sustentam o sistema social e avaliam as relações sociais a
partir do lugar que ocupam no sistema.
Por fim, no nível pós-convencional, encontraremos a competência moral
imprescindível à formação de uma consciência transformadora da realidade. O
“estágio 5” é definido pela compreensão de que nem sempre as leis são justas e
que há circunstâncias onde seria legítimo descumpri-las. Neste ponto se toma,
então, consciência da diferença entre moralidade e legalidade. A necessidade de
aperfeiçoamento legal é destacada e percebida dentro dos procedimentos normais
em um quadro democrático. O “estágio 6” de desenvolvimento moral seria aquele
onde o sujeito orienta suas ações pela validade de princípios morais universais.
Aqui já não importam mais as condições de lugar e tempo ou qualquer outra
circunstância. Trata-se de observar a efetividade dos princípios universais, ainda
que isto implique em violar a lei e, mesmo, os procedimentos democráticos. A
idéia de desobediência civil se funda nesta compreensão. Neste estágio de
moralidade, o princípio proposto por Kant segundo o qual as pessoas devem ser
concebidas como fins e nunca como meios seria, finalmente, alcançado.
8
Para Kohlberg, apenas uma minoria entre os adultos (3% a 5% deles) chegaria ao
“estágio 6” de moralidade. Houve mesmo um período em que o autor chegou a
duvidar da existência empírica do “estágio 6”, cogitando que ele fosse apenas uma
construção teórica. Posteriormente, novas pesquisas ofereceram a Kohlberg e a
seus colaboradores a certeza da realidade fática daquele estágio avançado de
consciência moral3.
Para medir o grau de desenvolvimento moral de uma pessoa, Kohlberg se utilizou,
basicamente, de dilemas morais, sendo o mais conhecido deles o “Dilema de
Heinz”4. Neste tipo de dilema, mais do que a solução oferecida pelo entrevistado,
o que importa é o tipo de justificativa apresentada. Atento à necessidade de criar
um instrumento fidedigno de entrevista que reduzisse tanto quanto possível o
momento subjetivo de avaliação das justificativas, Kohlberg construiu o “Manual
de avaliação da entrevista de julgamento moral”, aperfeiçoado em sucessivas
versões. Pelo sistema proposto, a avaliação consiste em atribuir pontos às
respostas que variam nos marcos de um mínimo de 100 (para 100% de “estágio
1”) e um máximo de 600 (para 100% de “estágio 6”). Este método permitiu que os
entrevistados fossem situados em fases de transição, ou intermediárias, entre um
e outro estágio.
A teoria moral de Kohlberg, como se percebe, é formal e não “conteúdista”. Ela
não propõe este ou aquele valor moral como expressão do bem, nem sugere a
adesão a determinados valores; antes, valoriza as formas pelas quais as pessoas
3
Ver Kohlberg, Boyd e Levine (1990). O retorno do estágio 6: seu princípio e ponto de vista moral
in: Biaggio (2006: 89-116).
4
Neste dilema, a esposa de Heinz estava com uma doença muito grave, um tipo de câncer. Havia
apenas um remédio que os médicos achavam que poderia salvá-la. Era uma forma de radium pela
qual o farmacêutico estava cobrando dez vezes mais que o preço de fabricação da droga. Após
tentar, sem sucesso, levantar o dinheiro com empréstimos, Heinz retornou ao farmacêutico
explicando a urgência que tinha e se propondo a pagar a diferença que não possuía depois. Mas
o farmacêutico não aceitou vender o remédio a prazo. Então Heinz tomou a decisão de assaltar a
farmácia para ter acesso ao remédio.
9
raciocinam moralmente. O que o método de Kohlberg procura assegurar é que os
indivíduos sejam expostos – em discussões em grupos pequenos – a um conjunto
de situações hipotéticas que condensam conflitos morais (dilemas). Tal processo
viabilizaria um conflito cognitivo individual que, por sua vez, tornaria mais provável
a construção de novos raciocínios morais e, assim, a evolução a um estágio
superior de moralidade. O processo de evolução se daria na forma de “superação”
do estágio anterior de moralidade, o que significa que as concepções anteriores
não são suprimidas, mas conservadas criticamente. Por isso, os indivíduos
compreendem os raciocínios morais que caracterizam os estágios anteriores
àqueles em que eles próprios se encontram e os identificam como incorretos ou
indesejáveis, mas não conseguem compreender um raciocínio moral situado dois
estágios acima. Os dilemas morais devem, então, lidar sempre com a
possibilidade de “deslocamento” da consciência moral para um estágio
imediatamente superior, respeitando a escala invariante.
Há uma série de outros instrumentos inspirados pela teoria de Kohlberg que têm
sido construídos e aplicados em diferentes partes do mundo. Segundo Biaggio
(1997), a maior parte das pesquisas realizadas em dezenas de culturas distintas
têm oferecido suporte empírico para a noção dos estágios de moralidade, com
pequenas diferenças que poderiam ser atribuídas a fatores culturais, mas que não
colocam em xeque o pressuposto universalista de Kohlberg5. Na última fase de
sua vida, Kohlberg passou a entender que os testes por ele aplicados
combinavam, na verdade, uma parte psicométrica (expressa, no caso, pelas
pontuações atribuídas aos entrevistados) e uma parte hermenêutica, vinculada à
interpretação qualitativa das justificativas em seu contexto.
Revisando sua teoria e respondendo aos seus críticos, Kohlberg admitiu que as
considerações em torno do tema da justiça não esgotam o conceito de
moralidade. Seria preciso, então, considerar que determinados sentimentos ou
disposições como o amor, a caridade ou a fraternidade também integram a
5
A este respeito ver Biaggio (2006: 30 e 31).
10
moralidade. Neste particular, Kohlberg parece ter “aberto” sua concepção teórica,
incorporando a crítica que lhe havia sido endereçada pela perspectiva feminista
representada, com destaque, por Carol Gilligan. Esta autora sustentou, ao início
dos anos 80, que os estudos empíricos de Kohlberg haviam produzido uma
distorção “de gênero”, pois suas amostras eram todas integradas por homens. As
mulheres teriam um tipo de moralidade mais orientada pelo “cuidado”,
característica que não pôde ser observada por Kohlberg. O tema suscitado por
Gilligan, de qualquer maneira, segue agregando polêmica.
Kohlberg também trabalhou em uma tentativa de especificar ainda mais os
estágios de desenvolvimento moral, procurando identificar em cada um deles um
momento de maior heteronomia e outro de maior autonomia (idéia de sub-estágios
“A” e B”) e passou a cogitar da possibilidade de existência de um “7º estágio” de
moralidade, mais vinculado a uma ação orientada por perspectivas éticas ou
religiosas que transcendem a idéia de justiça.
c) A “Comunidade Justa”
A teoria de Kohlberg foi também ampliada permitindo a análise sociológica das
normas morais e regras disciplinares vigentes em grupos sociais ou em
instituições. Kohlberg denominou este espaço comum de regras aceitas pelo
grupo e que definem um padrão de comportamento com a expressão “atmosfera
moral”. Neste ponto, Kholberg foi bastante influenciado por Durkheim para quem
as escolas promoveriam a educação moral não apenas pelos conteúdos de suas
disciplinas, mas pelo seu “currículo oculto”, vale dizer: pelas normas e regras
disciplinares vigentes na instituição. Partindo também de uma experiência pessoal
que teve em um Kibutz, durante uma visita a Israel, Kohlberg percebeu o quanto a
formação de um senso de comunidade poderia exercer influência na formação dos
11
jovens, a ponto de lhes permitir alcançar os estágios de moralidade convencional
antes dos grupos de mesma idade que estudavam nas cidades6.
Kohlberg, então, passou a desenvolver uma proposta de organização fundada em
pressupostos democráticos, procurando se aproveitar do senso de comunidade
que o coletivismo induzia, tentando, ao mesmo tempo, neutralizar os efeitos
conformistas a ele associados. Surgiram, assim, nas décadas de 60 e 70, nos
EUA, as chamadas “escolas alternativas”.
Kohlberg coordenou a experiência da Escola Cluster, que funcionava com 64
alunos dentro da Cambridge High School. Nesta experiência, uma vez por
semana, os alunos e os professores da escola se reuniam para debater temas
referentes ao funcionamento da instituição, solucionar conflitos e definir regras,
formando, assim, uma “comunidade”. Cada membro da comunidade, não
importando se aluno ou professor, possuía direito a um voto nas decisões
coletivas. Nesta experiência, as eventuais punições aos que transgrediam alguma
regra eram tomadas por comissões menores formadas por alunos e professores e
o objetivo das sanções não era “retributivo” – aos moldes do direito penal
moderno, mas “restaurativos”, no sentido de “curar as feridas” da comunidade.
Para a “Comunidade Justa”, a própria noção de autoridade não pode ser
concebida à parte da noção de pertencimento de todos os indivíduos a um grupo
organizado de forma democrática.
Inspirados na idéia da “Comunidade Justa” de Kohlberg, alguns de seus
seguidores desenvolveram instrumentos para a avaliação da “atmosfera moral”
das escolas, ponderando itens como a estrutura arquitetônica dos prédios e o
ambiente físico, os aspectos atinentes à organização escolar (relações entre
6
WITTE (2002) sustenta que pesquisas comparativas a respeito do desenvolvimento moral dos
trabalhadores alemães do Leste e do Oeste, evidenciaram uma predominância de orientações
“conseqüencialistas” (hedonista e utilitária) entre os trabalhadores na Alemanha Ocidental,
enquanto os egressos da experiência do “Socialismo real” possuíam uma conduta mais fortemente
orientada pela obediência às leis. Tal diferença permite muitas interpretações, mas parece sugerir
uma correlação entre coletivismo e o nível convencional de moralidade.
12
professores e alunos, os métodos de ensino, etc.), o “fator humano”
(características dos indivíduos) e o clima social (resultante da interação dos três
fatores anteriores). Tais avaliações procuravam, na verdade, conhecer qual a
natureza das normas prescritas pela instituição para a ação e, ato contínuo, qual a
efetividade delas. Nesta particular, importaria distinguir a presença dos seguintes
significados aderentes às normas: a) a necessidade de apoiar as normas, b) a
expectativa de que os demais as sigam, c) a necessidade de persuadir aqueles
que não as estejam cumprindo, d) identificação dos que não seguem as normas,
e) aceitação de alguma responsabilidade pelo fato de não se ter alcançado
adesão total às normas e f) intenção manifesta em recuperar os desviantes. A
idéia é a de que quanto mais os membros do grupo possuírem estas razões, mais
coletivizadas estarão as normas da instituição.
Em seu trabalho em escolas, Kohlberg pretendeu demonstrar que era possível a
educação moral das crianças e dos adolescentes a partir de um “método
socrático” pelo qual os professores estimulariam o raciocínio moral em torno de
dilemas, ao invés de tentarem doutrinar seus alunos com os valores morais por
eles considerados mais desejáveis. Tal escolha evita as posturas dogmáticas e,
ao mesmo tempo, fecha as portas para o relativismo moral já que a teoria sustenta
que os diferentes estágios de moralidade são ordenados de forma hierárquica,
sendo que, em linha crescente, a cada estágio se encontra, também, uma
perspectiva mais justa ou mais desejável.
Tratava-se, em síntese, de estimular nos alunos a busca pela solução dos dilemas
morais. O pressuposto do construtivismo justifica este método pelo qual o
processo de conhecimento exige a participação do sujeito na resolução de
problemas. Nas palavras de Habermas (1989:50):
“O processo de aprendizagem deve poder se compreender
internamente como a passagem de uma interpretação ‘X1’,
de um dado problema, para uma interpretação ‘X2” do
mesmo problema, de tal modo que o sujeito que aprende
possa explicar, à luz de sua segunda interpretação, por que
13
a primeira é errada. É na mesma linha de pensamento que
Piaget e Kohlberg estabelecem uma hierarquia de níveis ou
estágios de aprendizagem distintos, sendo que cada nível
particular é definido como um equilíbrio relativo de
operações que se tornam cada vez mais complexas,
abstratas, gerais e reversíveis ”
III – Kohlberg e a sociologia contemporânea
Tanto para Kohlberg, como para Piaget, as estruturas cognitivas que existem
anteriormente à capacidade das pessoas de produzir juízos morais não
“migraram“ da sociedade à consciência (influência cultural), nem estavam ali,
prontas, como uma simples herança genética (determinação biológica). Elas
expressam o resultado de um processo complexo de interação pelo qual os
sujeitos re-criam constantemente uma estrutura cognitiva anterior que já não dá
conta da resolução de problemas concretos.
Segundo Koller e Bernardes (1997:227):
“O modelo de desenvolvimento moral proposto pelos cognitivistas
diverge fortemente da teoria psicanalítica e da teoria
comportamental tradicional e apresenta algumas similaridades
com o modelo sócio-cognitivista de Bandura. As crianças não são
concebidas como seres passivos, dirigidos por pulsões ou por
forças externas. Ao contrário, agem sobre o ambiente, interpretam
e organizam os estímulos, comportam-se como seres inteligentes.
De acordo com Piaget (1932/ 1965), a inteligência inclui todas as
funções cognitivas, sendo o principal fator para a adaptação do
indivíduo. O desenvolvimento cognitivo resulta da interação entre
as estruturas mentais e os eventos do ambiente, apresentando-se
como uma seqüência de estágios hierárquicos e invariantes”.
14
Pode-se, assim, sustentar que a perspectiva sociológica do construtivismo é
relacional e não “estruturalista”. Vista sob este ângulo, a teoria de Kohlberg
oferece à Sociologia um caminho onde hipóteses compreensivas a respeito do
desenvolvimento moral poderiam ser formuladas tendo em conta tanto as
influências sociais quanto as estruturas cognitivas programadas geneticamente.
Um programa teórico deste tipo haveria, ainda, de considerar o que o saber e as
evidências colhidas pela psicologia social podem oferecer para a compreensão da
formação da consciência moral e da competência específica pressuposta pelo ato
de exercer juízos práticos, além de dialogar constantemente com os pressupostos
da filosofia moral. A exigência aqui é, claramente, a da interdisciplinaridade.
Especialmente se desejamos tratar do desenvolvimento moral, parece evidente a
necessidade de uma relação mais próxima e complementar entre a Sociologia e a
Psicologia, o que, como se sabe, oferece novos questionamentos, nem todos
exatamente teóricos ou metodológicos. Ainda hoje é comum que os programas
dos cursos de graduação e pós-graduação nas universidades brasileiras não
contemplem sequer a criação de oportunidades acadêmicas de contato entre
ciências distintas. Por mais que tal distanciamento seja percebido como uma
limitação, o fato é que a definição de “territórios” demarcados rigidamente parece
responder melhor aos interesses particulares dos grupos docentes hegemônicos;
interesses que, assinale-se, são por definição exteriores aos seus deveres
acadêmicos prima facie.
O resultado é que, não raro, especialistas de cada uma destas áreas carecem de
informações básicas a respeito dos acúmulos teóricos produzidos fora de seu
campo específico de interesse, o que condiciona o desenvolvimento de projetos
de pesquisa paralelos sobre temas que seriam melhor compreendidos caso
fossem estudados desde ângulos distintos e inquiridos por sensibilidades teóricas
diversas. Uma opção que não deixa de revelar determinada alienação, segundo
Adorno (1967):
15
“Sociologia e Psicologia, na medida em que funcionam
isoladamente, caem freqüentemente na tentação de projetar a
divisão do trabalho intelectual no seu objeto de estudo. A
separação da sociedade e da psique é uma falsa consciência:
perpetua conceitualmente a divisão entre o sujeito vivo e a
objetividade que governa os sujeitos mas que se deriva deles.
Mas a base desta falsa consciência não pode ser removida por
um meto dictum metodológico. As pessoas são incapazes de se
reconhecer na sociedade e reconhecer a sociedade nelas, até
porque estão alienadas umas das outras e da totalidade.”
Se aceitarmos como correta a existência de estágios hierarquizados de formação
do
juízo
prático,
correspondentes
à
evolução
de
estruturas
cognitivas
problematizadas pela interação dos sujeitos com a realidade social e se,
especialmente, for aceito como verdadeira a identificação de um estágio de
moralidade pós-convencional – o que parece razoavelmente confortado pelas
evidências empíricas – teremos que os seres humanos são dotados de uma
possibilidade universal pela qual as próprias injunções culturais que os formatam
podem ser ativa e criativamente negadas.
A teoria de Kohlberg, assim, se
incorpora a uma perspectiva teórico-crítica comprometida com a superação dos
limites objetivos definidores do presente.
Com os juízos práticos do nível pós-convencional os sujeitos alcançam a condição
mais desenvolvida da competência moral, o que lhes permite valorizar os
procedimentos democráticos – pelo reconhecimento da legitimidade das
pretensões dos demais (estágio 5) – e orientar suas ações por princípios éticos de
natureza universal – com os quais se relacionam, concretamente, com o conjunto
da humanidade (estágio 6).
O reverso desta possibilidade virtuosa é a realidade do sujeito situado em níveis
inferiores de competência moral o que, pelo menos tendencialmente, o faria
menos capaz de reconhecer nos demais a contraditória condição de humanidade
que o define. Indivíduos menos aptos ao julgamento prático estariam, por
decorrência, mais próximos da injustiça ou, se assim o desejarmos, mais próximos
16
da realidade do mal. Não por acaso, estudo de revisão realizado por Arbuthnot,
Gordon e Jurkovic (1987) sobre várias pesquisas que compararam as
competências morais de pessoas condenadas com aquelas que nunca
responderam a um processo criminal, encontraram que as primeiras possuíam,
como regra, padrões de respostas morais inferiores às últimas. Os que haviam
praticado delitos tendiam, também, a considerar várias situações violentas e
delituosas como mais aceitáveis do que as demais pessoas. Os autores
assinalaram que, mesmo considerando determinadas exceções – representadas
por alguns condenados que possuíam uma consciência moral superior às demais
pessoas – o estudo encontrou largo apoio para o modelo de Kohlberg.
A importância de sugestões como esta para setores tão distintos como a
criminologia e a educação, parecem evidentes, tanto quanto as repercussões para
a Sociologia contemporânea.
Uma sociologia da violência, por exemplo, que desconsidere a contribuição de
Kohlberg estará perdendo, no mínimo, uma hipótese heurística potente. O mesmo
poderia ser dito de uma sociologia da justiça ou de uma sociologia da ação
política.
Mas a teoria de Kohlberg, como vimos, não se resume a uma hipótese sobre o
desenvolvimento moral. Ela introduz a possibilidade de, com o uso de adequados
instrumentos de pesquisa, medir a “atmosfera moral” (ou o “currículo oculto”, para
usar a expressão de Durkheim) de instituições como escolas, presídios, hospitais,
etc., possibilitando, desta forma, novas abordagens diagnósticas sobre o
funcionamento daqueles espaços.
17
Especialmente em um país como o Brasil onde, segundo Dias (1999), estudos
sobre a influência da escola no desenvolvimento da consciência moral dos alunos7
encontraram, inequivocamente, a predominância de um “modelo heterônomo, de
caráter coercitivo e uniformizante”, características que são, em tudo, contrapostas
aos princípios de dialogicidade e comunicação inerentes à proposta de Kohlberg
da “comunidade justa” e em uma realidade histórica, não apenas nacional,
marcada por uma dimensão indescritível de violência produzida pelas chamadas
“instituições totais” (GOFFMAN, 1974), um recurso do tipo não parece desprezível.
7
Os trabalhos citados pela autora são:
ARAÚJO, U.F. (1996). O ambiente escolar e o desenvolvimento do juízo moral infantil. Em L.
Macedo (Org.), Cinco estudos de educação moral (pp.105- 135). São Paulo: Casa do Psicólogo;
DIAS, A. A. e CAMINO, C. (1993). A escola e o desenvolvimento moral. [Resumo]. Em Associação
Brasileira de Psicologia Social (Org.), Resumos de comunicações científicas do VII Encontro
Nacional de Psicologia Social (p.21). Itajaí, SC; DIAS, A.A., LATINI, G. e VASCONCELOS, V.M.R.
(1998). Educação infantil e ensino de valores. [Resumo]. Em C.S. Hutz (Org.), Resumos de
comunicações científicas do II Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento (pp.21-22).
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