Letramento digital na educação pública:
novos olhares, novas práticas
José Carlos LEANDRO (UFPE)
1
1. Introdução
O presente artigo aborda, em linhas gerais, a discussão emergente em torno
da utilização progressiva das novas tecnologias, em especial, do uso do computador
por adolescentes que aprendem a manusear com grande desenvoltura tais recursos
tecnológicos hoje disponíveis. A cada dia eles dominam o computador conectado à
internet e dele extraem as mais diferentes formas de comunicação e interação,
que geram acesso a informações e conhecimentos, sem necessariamente receber
incentivo das instituições oficiais de ensino. Eles parecem se apropriar de uma
série de competências e habilidades necessárias à sobrevivência cidadã no mundo
social e profissional contemporâneo.
Buscamos nesta pesquisa observar as estratégias de aquisição do que tem
sido chamado de “Letramento Digital” (Xavier, 2006) por iniciativa própria de um
grupo de adolescentes, estudantes de uma escola da rede pública estadual de
Pernambuco, localizada em um bairro de classe popular da periferia da cidade do
Recife. O acesso ao computador on-line ocorre a partir do laboratório de
informática da escola e de ciber-cafés existentes no bairro.
Conforme Xavier 2006, os adolescentes com acesso ao computador on-line
têm desenvolvido uma grande autonomia de aprendizagem e aumentado sua
capacidade de interagir com várias pessoas conhecidas e também desconhecidas à
distância. Em outras palavras, eles têm utilizado criativamente os recursos
disponíveis
na
relacionamentos
1
mídia
e
digital,
buscar
principalmente
informações
de
para
ampliar
seu
interesse.
sua
rede
Tudo
de
isso,
Mestre em Linguística/UFPE ( [email protected]) e Pedagogo (UFPE)
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independentemente de um projeto elaborado pela escola para possibilitá-los a se
apropriarem dessas competências.
Uma vez com acesso às novas ferramentas de comunicação (MSN, E-mail,
Blog, Flog, Orkut etc.), a grande parte dos adolescentes tem se auto-capacitado a
manusear essas ferramentas propiciadas pelo computador on-line com exímia
desenvoltura. Mas ter acesso a um equipamento ainda caro como o computador não
é tão fácil a adolescentes de baixa renda que moram em bairros de periferia, se
comparado aos adolescentes de classe média. Quando se trata de um computador
on-line essa dificuldade dobra. Seria de esperar que todos esses obstáculos fossem
suficientes para desanimar os adolescentes menos favorecidos economicamente
quanto aos domínios dos recursos da informática. No entanto, não é isso o que
acontece com uma boa parcela de adolescentes pobres brasileiros. Pelo menos não
é o que tem acontecido no bairro de Bola na Rede, região Norte da cidade do
Recife. Lá, em uma observação superficial, pode-se perceber um grande interesse
de muitos adolescentes pelas novidades tecnológicas, bem como um notável desejo
de inclusão digital. Para isso, eles utilizam as formas disponíveis de acesso ao
computador, tais como o laboratório de informática da escola pública do bairro e
as duas lan houses existentes na comunidade em que habitam.
Saber como efetivamente eles têm adquirido as competências e habilidades
próprias de um letrado digital será o desafio desta pesquisa, posto que as
adversidades para a apropriação de tais competências e habilidades são reais,
embora sua realização se dê em ambientes virtuais. A aquisição deste letramento
digital certamente propiciará aos adolescentes um ganho substancial quanto ao
usufruto de sua cidadania, pela qual poderá se conscientizar bem mais de seus
deveres e poderá reivindicar seus direitos de cidadão, inclusive por meio das
ferramentas tecnológicas.
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2. Jogos da linguagem
A dimensão hipertextual da vida contemporânea das pessoas é algo notório.
A complexidade das relações entre as pessoas é mediada por uma série de signos
lingüísticos e não-lingüísticos: sons, cores, gestos, entre tantos outros. Nesse
sentido, destaca-se a relevância da linguagem para possibilitar a inserção dos
indivíduos no contexto em que vivem. Wittgenstein, filósofo austríaco, afirma que
a linguagem se estrutura através de regras.
Ao relacionar a linguagem como uma trama semelhante aos jogos, Xavier
percorre a tese wittgensteiniana de que existe uma semelhança no funcionamento
da linguagem em seus múltiplos usos e os jogos. Para isso, baseou seus pressupostos
na obra do filósofo austríaco Investigações Filosóficas (1953/1974). Nesta obra,
Wittgenstein defende a idéia que a linguagem possui uma trama própria com
interações entre o sujeito locutor e um outro interlocutor. Segundo o autor, a
palavra agrega significação contextual a dado objeto referido.
Para fundamentar a perspectiva da linguagem como semelhante às
estratégias de um jogo, Xavier adota a teoria da cognição situada (Clancey,1997).
Essa teoria compreende que a aquisição do conhecimento acontece com o
envolvimento do sujeito na cultura em que está inserido. Mais do que uma
transmissão uniforme de saberes, tal teoria concebe a cultura como um conjunto
de conhecimentos entrelaçados e contextualizados. Nesse aspecto, a teoria da
cognição situada entende que a incorporação de novos saberes ocorre pelas tramas
dos processos de aprendizagem. É por essa razão que essa teoria servirá às análises
a serem realizadas neste projeto de pesquisa, uma vez que favorece uma
observação comportamental dos sujeitos os quais interagem com as diversas mídias
durante os caminhos da aprendizagem dos conteúdos que se lhes apresentam como
problemas a serem resolvidos. A contribuição principal dessa perspectiva teórica
está em investigar a relevância e os aspectos determinantes do contexto e do
ambiente (social e físico) de aprendizagem o qual está envolvido os indivíduos que
possuem acesso aos dispositivos tecnológicos voltados para a aquisição de novos
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conhecimentos, bem como se ocupa em estudar o papel das estratégias cognitivas
durante o processo de aprendizagem.
Para a teoria de Clancey (1997), a interação entre as partes relacionadas
durante a aprendizagem possui uma característica singular para a compreensão de
como
acontece
a
construção,
ou
a
(re)
construção
do
conhecimento,
especificamente quando se navega no ciberespaço. Ressaltamos que a linguagem é
a mediadora do processo cognitivo, ao dispor das ferramentas tecnológicas, cresce
a possibilidade dos sujeitos efetivamente aprenderem certos processos e
compreenderem determinados raciocínios.
3. Aprendizagem (re)construcionista
Segundo Xavier (2002, p.97), o hipertexto é compreendido como “a
tecnologia enunciativa que viabiliza o surgimento do modo de enunciação digital,
uma nova forma de produzir, acessar e interpretar informações”. A hiperleitura,
segundo Xavier, possui estratégias mais participativas do que a leitura em suporte
impresso. Essa característica possibilita ao hiperleitor a elaboração constante de
atitudes e percursos mentais específicos, os quais são conduzidos por formas
variadas, e, sobretudo, de uma ordem diferente.
Ao adotar a concepção da aprendizagem (re) construcionista, Xavier se
insere na perspectiva do sócio-costrutivismo vygotskiano e, dessa maneira, defende
a primazia do aprendiz ao (re) construir o saber a partir das tecnologias disponíveis
que oportunizam a emergência do conhecimento a ser construído. O processamento
da informação relevante pelo aprendiz, nesse sentido, estará associado as suas
necessidades, sejam no aspecto social ou mesmo no âmbito cognitivo. A abordagem
de Vygotsky enfatiza o contexto social em que se processa a aprendizagem. É ele
quem desenvolve o conceito de mediação como elemento fundamental para a
concretização da aprendizagem. O papel do mediador consiste em selecionar e
modular as experiências dos aprendizes.
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Para efetivar o processo de aprendizagem, segundo Xavier (2007a), o sujeitoaprendiz necessita desenvolver três habilidades centrais, quais sejam: a autonomia
de aprendizagem, a qual lhe confere um estatuto epistêmico próprio, o
desenvolvimento da criticidade diante dos conceitos e definições aprendidos e a
utilização deles de forma criativa em situações não previstas. Nesse sentido, a
partir da perspectiva (re)construcionista postulada por Xavier, o aprendiz necessita
potencializar a utilização que faz dos recursos e instrumentos tecnológicos em um
continuum permanente. Segundo o pesquisador, para a movimentação no ambiente
das novas tecnologias, o aprendiz deve possuir habilidades para gerenciar três
ações inseparáveis e complementares:
I) controlar o funcionamento dos dispositivos técnicos digitais;
II) transformar a informação bruta em conhecimento útil; e,
III)
aguçar
a
consciência
para
a
necessidade
de
aprender
a
aprender
ininterruptamente.
Toda essa prática vai desenvolver novas estratégias cognitivas num movimento
qualitativo a partir da inserção dos artefatos tecnológicos, vindo, dessa forma, a
estabelecer uma ordem processual para as informações desejadas pelos aprendizes.
4. A Internet e as suas ferramentas pedagógicas
As práticas de ensino vêm recebendo nos últimos trinta anos uma forte
influência dos avanços tecnológicos, principalmente no que se refere aos múltiplos
usos da linguagem. A aquisição dessa habilidade vem possibilitando aos internautas
(orkuteiros, chatters, blogueiros etc.) uma inserção mediada por uma prática social
que se desenvolve pelas ações comunicativas dos falantes de determinada língua.
À escola cabe suscitar reflexões e propor experiências de como seus
integrantes utilizarão desses recursos, bem como farão a transposição didática em
sala de aula dos múltiplos gêneros digitais que emergem nas práticas sociais dos
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sujeitos falantes. Segundo Xavier (2007, p.11), esses “gêneros digitais levanta
questões intrigantes para o mundo tradicional de lidar com a língua e com a
variação lingüística”. Nesse aspecto, consideramos que a heterogeneidade
lingüística, característica típica das línguas vivas, é um forte indicativo dos usos da
linguagem no espaço da virtualidade. Dessa forma, o papel da escola passa pela
criação permanente de espaços que permitam a circulação dos diversos gêneros
digitais nas múltiplas situações didáticas em sintonia com o processo de ensinoaprendizagem dos “e-alunos (info-alunos)”, os quais são sujeitos sociais do discurso
mediado pela tecnologia.
Defendemos que, ao permitirmos que os aprendizes façam uso dos
instrumentos tecnológicos como recursos pedagógicos que ressignificam suas
experiências de aprendizagem, estamos possibilitando a inclusão social de tais
aprendizes a partir da interação consciente entre as diversas experiências e da (re)
elaboração de seus saberes.
Esse novo saber-fazer auxiliado pelas novas tecnologias modifica as relações
socioculturais das pessoas e das sociedades, trazendo como conseqüência uma nova
forma de representar informações e formatar conhecimentos. Trata-se de
hipertextualização dos sabres adquiridos que são enunciados por linguagens para
além da verbal, incluindo, portanto, a visual e a sonoridade.
Concordamos com Xavier quando afirma que o hipertexto on-line é uma
estrutura enunciativa que transita em:
“um espaço virtual singular que apresenta, reapresenta e articula os recursos
lingüísticos e semióticos já em circulação centrados num só lugar de acesso
perceptual. Não se trata de um novo gênero de discurso, mas de uma forma outra
de dispor e compor entrelaçadamente as informações expostas em diferentes
linguagens. Cada linguagem que se ancora no hipertexto guarda suas peculiaridades
sígnicas, mas ao mesmo tempo cede a primazia de significação para que possa
cooperar com o propósito principal que é a construção do sentido pretendido pelo
sujeito-enunciador do espaço virtual” (Xavier, 2007b, no prelo).
Assim, aos alunos e integrantes da comunidade escolar, a fim de criar estratégias
significativas de aprendizagem, é necessário se apropriar das linguagens que
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possuem interfaces com a tecnologia digital. Nesse sentido, torna-se relevante
refletir sobre as influências no comportamento e na cognição dos indivíduos que
fazem uso dessa tecnologia:
“Logo, a inserção dos indivíduos em uma cultura tecnológica implica no domínio de
uma nova linguagem permeada por ícone que contempla a mixagem do som, da
imagem, e da palavra (Babin & Kouloumdjian, 1989), fazendo emergir conexões,
relações que caracterizarão a construção do conhecimento em rede, em forma de
um grande hipertexto”. (ALVES, 2000-76.)
5. A Escola e as tecnologias da informação e comunicação
A concepção de escola comprometida com a formação do cidadão requer um
currículo que tenha por objetivo o desenvolvimento cognitivo, social e emocional
de cada indivíduo, estimulando o auto-respeito, a autoconfiança, a auto-motivação
e a independência intelectual. Nesse sentido, o ensino é compreendido como uma
atividade específica da escola, que favorece a apropriação dos conhecimentos
científicos, tecnológicos, cultural, artístico, ético-moral, arcabouço de cidadania.
Essa visão determina que a prática avaliativa da aprendizagem deva ser
encaminhada no sentido de superar a simples verificação dos conteúdos
apropriados em um tempo pré-determinado, em direção à descoberta de
possibilidades de novas aprendizagens.
Desse modo, uma política educacional comprometida com o enfrentamento
dos desafios postos pelas condições objetivas das escolas deve contemplar, alem
das ações voltadas para a provisão das salas de aula de materiais indispensáveis
para o funcionamento da estrutura escolar em seus aspectos físicos, os mecanismos
de inserção da comunidade escolar nas diversas ferramentas tecnológicas da
inclusão digital. Nesse sentido, ainda no que concerne à concretização de um
ensino cidadão, vale destacar a necessidade de transformar os espaços escolares
em ambientes adequados ao processo pedagógico de ensino-aprendizagem mediado
pelas tecnologias da informação e da comunicação (TICs). Caminhar nessa direção
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pressupõe, ao mesmo tempo, a ampliação de espaços escolares e de apoio
pedagógico e a conscientização que a cidadania esta inserida na inclusão digital.
Nesse sentido, fala-se em reinvenção da escola, na qual haja espaços possíveis
para aliar o saber ao prazer e que se estabeleçam novas conexões entre a
tecnologia
e
a
educação
e
que
as
práticas
de
ensino
possibilitem
a
transversalidade, a diversidade e crie a ambiência para as transformações sociais.
Com isso, após rever e reavaliar seu papel, a escola poderá ressignificar sua prática
pedagógica para que possa estruturar espaços de interação com as novidades
tecnológicas numa postura rizomática, a qual instaurará um processo ensinoaprendizagem pautada pelo prazer.
6. Ressignificação das práticas de ensino-aprendizagem
A escola vem de uma tradição em que predomina as práticas milenares da
cultura letrada, racionalista e reducionista e na distribuição de um saber completo
e acabado, denominado de estoque (cf. Lèvy, Pierre. Educação e Cybercultura.
Porto Alegre, março de 2008. Disponível em //http: www.hotnet.net: Pierre
Levy.html. Acesso em 15/ 03/ 2008). O que se aprende nesta perspectiva não é
modificado, não sofre reformulações. Contudo, nos dias atuais, existe toda uma
reflexão que problematiza esta visão de conhecimento imutável e propõe um
conhecimento que rompa o perfil uniformizador.
(...) o que deve ser aprendido não pode mais ser planejado, nem precisamente
definido de maneira antecipada. Os percursos e os perfis de competência são todos
eles singulares e está cada vez menos possível canalizar-se em programas ou
currículos que sejam validos para todo mundo. Devemos construir novos modelos do
espaço dos conhecimentos. (Lèvy, 2008:1)
7. Conceito(s) de letramento(s)
Para Kato (2000), o sujeito é letrado à medida que for capaz de fazer uso da
linguagem para o próprio crescimento cognitivo dele, atendendo às várias
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demandas de uma sociedade. A partir de então, o termo passa a circular com maior
freqüência no discurso escrito e falado de especialistas.
Kleiman (1995, p.19) o define como “um conjunto de práticas sociais que
usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetivos específicos”. Ou seja, letramento são as práticas sociais
de leitura e escrita que o indivíduo adquiriu e que as põem em ação conforme o
contexto, para atingir um determinado objetivo. Mais adiante, Kleiman (1998)
aborda letramento “como práticas e eventos relacionados com uso, função e
impacto social da escrita”. Além das práticas sociais de leitura e escrita apontadas,
a referida autora acrescenta os eventos nos quais tais práticas são colocadas em
ação, bem como as conseqüências delas sobre a sociedade. É, portanto, em função
da interação, ou seja, da necessidade que cada indivíduo letrado, utilizando-se as
mais diversas estratégias de leitura para se inserir na sociedade, em função dos
seus objetivos e expectativas.
Para Soares (2000), letramento é “o resultado da ação de ensinar ou de
aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou
um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita”. Em nossa
proposta de análise, entendemos que o letramento é um fenômeno cultural e
historicamente situado. O indivíduo, diante das demandas sociais que fazem uso da
escrita e da leitura, apropria-se de um conjunto de práticas sociais, constituídas
como novos eventos que envolvem a língua.
Foi nesta perspectiva e como conseqüência das novas tecnologias de
comunicação que o termo letramento, a nosso ver, passou a ser chamado, por
pesquisadores das áreas de educação, comunicação, sociologia e literatura, de
letramento digital, e que se mostra como um evento que reclama novas
epistemologias. Falar em letramento digital implica, portanto, “abordar práticas de
leitura e escrita um tanto diferentes das formas tradicionais de letramento”
(Xavier, 2002). Pièrre Lévy (1993) compreende, segundo Soares (SOARES, Magda.
Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. www.scielo.br.
Acessado em 20 de março de 2008), que os efeitos da nova modalidade de
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letramento possui uma relação imbricada com a inteligência. As tecnologias da
inteligência não determinam os processos cognitivos e discursivos. Contudo, para
Lévy, elas condicionam aquelas atividades. Soares sugerirá “que se pluralize a
palavra letramento e se reconheça que diferentes tecnologias de escrita criam
diferentes letramentos” (SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita:
letramento na cibercultura. www.scielo.br. Acessado em 25 de março de 2008).
O fenômeno do letramento digital, a nosso ver, possibilita ao leitor digital
desenvolver estratégias de leituras e análises diferenciadas diante dos modelos
tradicionais. A perspectiva social em relação ao letramento torna seu processo na
modalidade digital algo diferente, pois os caminhos criados durante a navegação
deixam o texto, ou melhor, o hipertexto, mais interativo e aberto a múltiplas
interpretações dentro de em um mesmo espaço. Desta forma, ao navegar na web, o
hiperleitor cria espaços, estando on-line, de interação com outros indivíduos. Ele
irá desenvolver competências discursivas e cognitivas especificas que o habilitam e
o inserem na cultura do letramento digital. Ou seja, na web, a leitura é sempre
uma navegação onde o hiperleitor pode mergulhar em vários caminhos e traçar
trajetos que mais lhe agradem e que possuam uma relação com seu propósito
inicial de leitura, ou não.
O ser humano não está preso a uma “organização natural”. Sua humanidade
é construída a partir do exercício de uma liberdade guiada pelo espírito criativo de
re-inventar e ressignificar as relações com o cosmo e com os demais indivíduos a
partir da comunicação. No processo de reinvenção da sociedade, o ser humano
muda a concepção individual de si mesmo e, de repente, estrutura o pensar a
partir de paradigmas novos. Ressignificar o mundo e, por conseguinte, a si mesmo,
representa uma tarefa exigida constantemente em nossos dias. Assim, as relações
sociais, sobretudo aquelas realizadas pelas várias linguagens, são compreendidas
como possibilidades de concretização das mudanças desejadas.
Portanto, compreendemos que o processo de ressignificação é uma
construção contínua que se realiza nas diversas práticas das pessoas. Nesse sentido,
defendemos que através da utilização das tecnologias da informação e da
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comunicação os indivíduos passam a compreender a sociedade de uma forma em
que a informação é considerada como conhecimento, pois está inserida nas suas
práticas sociais de uma maneira relevante. Compreendemos que o processo
educacional pelos quais as práticas pedagógicas, especialmente as que utilizam as
ferramentas tecnológicas atuais, necessita ser reorientado na sua forma de
compreender o mundo a partir de paradigmas novos (ressignificação), buscando
reorientar a ação dos indivíduos e dos grupos sociais (reinvenção) para fomentar
uma práxis política que possibilite a transformação do ser humano e crie homens e
mulheres novos. A dimensão pedagógica, incluindo a educacional, em seus
processos múltiplo de construção do saber, mediado pela competência do
letramento digital como política de inserção social, representa este espaço
inovador e formador de novas práticas. A partir da efetivação dessa realidade,
poderemos contemplar, em diversos setores da organização social, e também
escolar, o exercício da cidadania como expressão da liberdade e autonomia dos
indivíduos.
8. Considerações finais
Acreditamos que a trajetória evolutiva do pensamento científico possibilita
embasarmos uma discussão, incipiente, mas, relevante, diante da emergência do
letramento digital em nossas práticas de leitura e escrita. Parece-nos importante
destacar
que
o
movimento
de
mudança
paradigmática
é,
como
visto
anteriormente, fruto de uma discussão progressiva em busca de uma solução
compartilhada (cf. Kuhn). O letramento digital, conforme analisamos acima, está
inserido nesse processo dialético em busca de uma “visão de mundo” que vai
adquirindo adeptos. O momento é, pois, de um estado de crise, pois o modelo de
letramento tradicional, em nossa perspectiva, já não responde, conceitualmente,
nem no aspecto das praticas discursivas, às possibilidades surgidas do ambiente
digital. Neste sentido a crise possui uma dimensão criadora ao possibilitar a
emergência de novas teorias que podem se converter em paradigmas. Na
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abordagem kuhniana, um novo paradigma está “prenhe” de inovações, no sentido
de se saber que existe uma novidade, mas, ainda, é estranha aos indivíduos.
O processo de leitura no letramento digital se assemelha com as “costuras”
propostas pela epistemologia piagetiana. A partir dos fragmentos, o sujeito
reelabora o conhecimento. Dessa forma, ocorre a ampliação das capacidades do
letramento, como numa atividade engendrada, onde os usos sociais dos diferentes
suportes criam contornos que circulam dialeticamente por espaços cognitivos que
inventam e reinventam novas formas de conceber o conhecimento.
Enfim, ou, até aqui, defendemos que uma sociedade que fomenta a análise de
suas práticas de leitura e escrita (letramentos) em suportes digitais busca incluir
seus participantes numa nova lógica de inclusão atenta para a emergência das
novas tecnologias da informação e da comunicação: “a inclusão digital representa
um canal privilegiado para equalização de oportunidades da nossa desigual
sociedade em plena era do conhecimento” (NERI, 2003). Diante disso, afirmamos
que o letramento digital, ao possibilitar ao leitor o papel-ou melhor, a
possibilidade de uma nova navegação nos mares dos múltiplos sentidos dos textos,
instaura um condicionamento cognitivo, social e, sobretudo, discursivo que o
diferenciou significativamente das praticas e usos da cultura do papel. Instaurouse, a nosso ver, com isso, um novo espaço mais interativo e dinâmico, sem
fronteiras, ágil, cheio de cores, o qual se configura como um novo espaço de
construção do conhecimento.
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