Pode a teoria dos campos de Pierre Bourdieu ser aplicada em
estudos de desenvolvimento territorial ?
Rircardo Abramovay1 & Arilson Favareto2
Notas para discussão no
Seminário do Projeto de Pesquisa “Territorios rurales en movimiento”
Salvador, Bahia, 24 a 27 de Setembro de 2008
Introdução
A abordagem territorial do processo de desenvolvimento ganha ímpeto a partir do início dos
anos 1980 com base na literatura neo-marshalliana que soube identificar nos laços diretos entre
atores sociais uma das razões para a formação de sistemas produtivos localizados, tão
importantes para a industrialização difusa. Os estudos rurais beneficiam-se particularmente desta
abordagem. Eles estimulam a percepção de que o meio rural vai muito além da agricultura. A
compreensão de sua dinâmica exige que se analise a maneira como nele se organiza e estrutura a
interação social. Curiosamente, porém, a literatura sobre desenvolvimento territorial é
marcadamente normativa e a ela faltam definições teóricas claras sobre a natureza dos laços
sociais que formam os territórios. Territórios podem ser estudados a partir da noção de campos,
de Pierre Bourdieu. Se os territórios são laços sociais, o mais importante é que se compreenda a
natureza da cooperação - das habilidades sociais, para usar a expressão de Neil Fligstein - que
neles se exprime. Os mercados existentes nos diferentes territórios também devem ser abordados
como campos de força em que diferentes atores procuram obter a cooperação alheia e obtêm, por
aí, suas possibilidades de dominação social.
A noção de território favorece o avanço nos estudos das regiões rurais ao menos em quatro
dimensões básicas.
a) Em primeiro lugar, ela convida a que se abandone um horizonte estritamente setorial, que
considera a agricultura como o único setor e os agricultores como os únicos atores - junto com os
demais integrantes das cadeias agroindustriais - que importam nas regiões rurais. Esta ampliação
de horizontes traz conseqüências decisivas.
b) A segunda virtude importante da noção de território é que ela impede a confusão entre
crescimento econômico e processo de desenvolvimento. A pobreza rural, por exemplo, não
pode ser encarada como expressão de insuficiência na renda agropecuária, mas enquanto
1
Professor Titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). Email:
[email protected] .
2
Professor Adjunto do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal da
região do ABC (UFABC). Email: [email protected] .
fenômeno multidimensional. A esmagadora maioria dos pobres rurais tem sua renda composta
por diversas atividades entre as quais a agricultura freqüentemente representa parte minoritária.
Compreender a pobreza exige que se estudem as diferentes atividades dos membros dos
domicílios rurais, os processos migratórios, o envio de dinheiro de quem vai para a cidade, a
contribuição das transferências públicas e as maneiras de garantir a reprodução por meio das
finanças informais. A abordagem territorial, além disso, exige a análise das instituições em torno
das quais se organiza a interação social localizada. Não se trata apenas - como é habitual na ótica
setorial dos sistemas agroindustriais - de examinar como se formam e como podem ser
reduzidos os custos de transação e sim de abordá-los sob um ângulo histórico e a partir da
influência que sobre eles exercem as forças sociais que os constituem.
c) Se é assim, o estudo empírico dos atores e de suas organizações torna-se absolutamente
crucial para compreender situações localizadas. É claro que estes atores provêem de vários
setores econômicos e possuem origens políticas e culturais diversificadas. Um dos principais
problemas das organizações territoriais de desenvolvimento em meio rural está na sua imensa
dificuldade em ampliar sua composição social além da presença dos representantes da
agricultura. Processos de cooperação entre municípios podem ser um meio de atenuar esta
propensão a que organizações territoriais adquiram, na prática, um perfil de caráter setorial. A
abordagem territorial do desenvolvimento estimula o estudo dos mecanismos de governança
pública subjacentes à composição e à atuação dos conselhos de desenvolvimento, por exemplo,
em torno da pergunta: são capazes de oferecer oportunidades de inovação organizacional que
estimule o empreendedorismo privado, público e associativo em suas regiões respectivas?
d) Por fim, o território coloca ênfase na maneira como uma sociedade utiliza os recursos de que
dispõe em sua organização produtiva e, portanto, na relação entre sistemas sociais e ecológicos.
Territórios são resultados da maneira como as sociedades se organizam para usar os sistemas
naturais em que se apóia sua reprodução, o que abre um interessante campo de cooperação entre
ciências sociais e naturais no conhecimento desta relação.
O objetivo destas notas é fazer uma rápida apresentação de alguns conceitos básicos da teoria
dos campos sociais de Pierre Bourdieu e sugerir modalidades concretas de sua aplicação à
análise do desenvolvimento territorial. Territórios não podem ser tratados, como o faz boa parte
da literatura, como atores. Isto encobriria toda a diferenciação interna a estas unidades sociais e
que respondem, em última instância, pelo sentido de sua trajetória; em outros termos pelo seu
estilo de desenvolvimento.
1. Os pilares da teoria bourdieusiana dos campos
Não deve ser mera coincidência a constatação de que a obra de Pierre Bourdieu se inicia, na
virada dos anos 50 para os anos 60 do século passado, justamente com seus estudos sobre as
mutações na vida econômica e social entre os Kabyla, na Argélia, diante do avanço da
racionalização e do cálculo econômico, e termina, próximo de sua morte já no início do Século
XXI, com dois livros dedicados respectivamente à sociologia da ciência e à sociologia da
economia. Seu projeto intelectual esteve assentado sobre a tentativa de compreender como as
mudanças nas estruturas sociais afetam as formas de classificação e organização do mundo social
ou, em outros termos, como essas mudanças nas estruturas afetam as instituições, com especial
ênfase no papel que diferentes atores aí desempenham, a partir de suas disposições interiores e
de seus recursos, ou do que ele chama de capitais.
Nessa empreitada, Bourdieu se opõe às duas tradições dominantes do panorama intelectual
francês e internacional de sua época: os diversos variantes da fenomenologia e os diferentes
estruturalismos. Diante da primeira tradição, tratava-se de enfatizar o que há de subjacente às
interações e ao caráter fenomênico dos processos sociais, determinando as conexões de
causalidade que respondem pela evolução do real. Diante da segunda tradição, tratava-se,
inversamente, de vislumbrar qual é a margem de manobra que resta à invenção humana, diante
dos constrangimentos e da tendência à reprodução emanada das estruturas. Em uma palavra, o
que ele tentou foi pôr em diálogo e unificar as mais fortes escolas do pensamento sociológico,
inspiradas na tríade formada pelos clássicos Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. E ao
fazê-lo, o intuito principal consistia em conferir centralidade ao indivíduo, mas levando em conta
os constrangimentos das estruturas sociais.
Este problema científico que está na raiz da obra bourdieusiana é enfrentado por meio de três
hipóteses, aqui expressas sucintamente sob a forma de três afirmações lapidares:
Primeira hipótese - As duas ordens de objetivação (estrutural e fenomênica) não
devem ser vistas como antagônicas, mas sim como momentos de análise. Isto é, não se
trata de procurar a explicação somente nos condicionamentos sociais emanados das
estruturas, nem tampouco somente nas interações por meio das quais os agentes
exercitam suas possibilidades e tentam escapar àqueles constrangimentos. Toda a questão
consiste em entender o sentido da ação social que é dado pelos agentes, mas dentro de um
campo de alternativas determinado e que nunca é o mesmo em diferentes contextos. Um
momento da análise deve, pois, ser dedicado a explicitar qual é o campo de possíveis
dado a um agente ou a um conjunto de forças sociais. E isto somente pode ser alcançado
através de um movimento analítico que envolva a história da formação desse campo,
onde seja possível ver o movimento das contradições e das oposições que levaram a
configuração que ele assume neste dado instante. Um segundo momento da análise deve
ser dedicado a entender como, dentro deste campo de possíveis, os agentes optam por
esta ou aquela estratégia, comportamento ou aliança.
Segunda hipótese - Existem estreitas correspondências entre as estruturas sociais
(expressas enquanto propriedades sociais incorporadas pelos agentes como maior ou
menor escolarização, como a sua trajetória de socialização) e as estruturas mentais
(expressas enquanto disposições adquiridas e que funcionam como propensão a agir desta
ou daquela maneira, como a propensão a cooperar ou a competir, a negociar ou
confrontar, a resignar-se ou empreender). A interpretação dos contextos e do que eles
trazem em termos de desafios e constrangimentos às tomadas de posição são sempre
resultado de formas de classificação que os agentes constróem no longo decorrer de sua
trajetória de vida. A experiência de situações passadas e do que pareceu ou não plausível
em cada situação de privação ou de possibilidade se sedimentam em formas de percepção
e classificação do mundo social com repercussões diretas para o que é franqueado aos
agentes fazer em novas situações. Estes comportamentos e tomadas de posição são, pois,
tributários da história, inseparavelmente individual e social dos agentes, e podem ser
alcançados a partir de elementos como a experiência escolar, a socialização pelo trabalho,
o maior ou menor descolamento do grupo social de origem nessa trajetória de vida, a
tendência ascendente ou descendente do grupo familiar, momentos traumáticos na
história individual e coletiva.
Terceira hipótese - As correspondências entre estruturas sociais e estruturas mentais
comportam implicações políticas, expressas sob a forma tácita do poder simbólico, ou
sob a forma explícita da distribuição desigual dos trunfos necessários ao pleno exercício
da vida social. A posse do diploma, o titulo da terra, a posição na hierarquia social da
comunidade local, são elementos materiais e simbólicos que assumem conotação de
instrumentos de dominação e, por aí, contribuem decisivamente para alterar a balança de
poder entre diferentes grupos sociais. Estas assimetrias funcionam claramente como
formas de bloqueio a que ocorra uma equalização entre as posições sociais dos agentes.
Por isso aspectos como o acesso a terra, a bens e equipamentos sociais básicos ou mesmo
a conhecimentos, não são somente uma questão de justiça social, mas têm efeitos mesmo
sobre a distribuição dos trunfos necessários a que o conjunto da sociedade liberte seu
pleno potencial de realização.
São três também os conceitos fundamentais que vão tornar essas hipóteses algo operativo para a
pesquisa empírica: campos, formas de capital e habitus.
Campo – Para Bourdieu o mundo social se estrutura em campos (ou o que Weber
chamou de esferas) interdependentes, mas cada um deles funcionando sob regras próprias
e dotados de relativa autonomia. Isso vale para o campo acadêmico, o campo religioso, o
campo econômico, o campo artístico. O que determina os contornos e a estrutura de um
campo é, de um lado, a localização diferenciada dos agentes sociais no seu interior. Por
sua vez, essa localização diferenciada é determinada pela distribuição desigual das
diferentes formas de capital de que eles dispõem. De outro lado, essa estrutura do campo
é determinada também por idéias e valores que funcionam como justificativa à ordem que
preside essa distribuição desigual de capital. A dinâmica do campo, por sua vez, será
sempre determinada pela luta que os agentes travam em busca das melhores posições em
sua estrutura.
Formas de capital – As formas de capital são os trunfos que os agentes mobilizam em
suas lutas pelas melhores posições no interior do campo. Não são apenas trunfos
econômicos, como enfatizado pela ciência econômica, nem apenas uma questão de
dominação e poder como enfatizado pela ciência política. Trata-se de recursos
intercambiáveis e que podem ser convertidos uns nos outros. As formas mais usuais são o
capital econômico, o capital político, mas importam igualmente o capital cultural, o
capital social ou o capital simbólico.
Habitus – O habitus é definido como as disposições adquiridas pelo aprendizado gerado
na exposição a sucessivos constrangimentos derivados da vida social do indivíduo. São
sistemas de esquemas adquiridos e que funcionam como categorias de percepção e de
apreciação, ou como princípios a um só tempo classificadores e organizadores da ação.
Nos termos do próprio Bourdieu, é uma noção criada para dar conta do paradoxo que
envolve o fato de as condutas poderem se orientar pela relação com os fins, sem ser
conscientemente dirigidas por estes fins. É isto o que permite ir além da dicotomia entre
consciente e inconsciente, ou entre causas determinantes e causas finais. Embora exista
aqui um conteúdo de reprodução, é preciso enfatizar que o habitus é também algo
fortemente gerador, algo que permite enxergar (ou bloquear) possibilidades de combinar
as formas de capital disponíveis, tentando convertê-las em trunfos necessários à
sobrevivência ou a luta no interior de determinado campo social.
Como estes conceitos funcionam juntos?
Vários são os casos, melhor seria dizer os campos específicos, em que Bourdieu aplica essa
tríade fundamental de categorias. Um exemplo clássico é o estudo sobre os camponeses do
Bearn, na França. Ali ele mostra como a mudança nas estruturas demográficas dos espaços rurais
franceses trouxe consigo toda uma desestruturação dos padrões de reprodução social das
famílias de agricultores. A maior proximidade entre o mundo rural e o mundo urbano –
proximidade física, mas também simbólica – alcançada nos meados dos anos sessenta, fez com
que se tornasse possível às filhas de famílias de agricultores experimentarem o acesso à vida
escolar. Isso, de maneira associada ao bloqueio que elas experimentavam na possibilidade de
assumir a sucessão à frente do empreendimento agrícola, posição sempre reservada aos homens,
fez com que houvesse um movimento de saída das mulheres dos campos. Elas não somente se
tornavam aptas a outras funções socialmente mais valorizadas, uma vez que se tornavam
portadoras de credenciais escolares exigidas para tanto, como rejeitavam a idéia de uma vida
com maiores privações e menos conforto do que aquela que poderiam obter nos meios urbanos.
O resultado foi um processo de envelhecimento e masculinização – algo também visto no Brasil
– cujo efeito ultimo foi a crise do padrão sucessório das unidades familiares de produção. Assim,
várias propriedades rurais foram abandonadas, não conseguiram seguir e atualizar padrões de
competitividade em um mundo rural em mudança, ou passaram às mãos de profissionais liberais
e outros não tradicionalmente vinculados à atividade agrícola, contribuindo assim para uma
ainda maior heterogeneização do tecido social local e aprofundando os efeitos da mudança
demográfica que se encontra na raiz deste fenômeno.
Nos termos da linguagem bourdieusiana, o entendimento dos movimentos nesse campo
específico em análise, a região do Bearn, mostra uma mudança no quadro de agentes sociais ali
presentes – de um campo estruturado em torno de oposições entre diferentes classes de
agricultores tem-se uma heterogeneização do campo com a entrada de novos agentes e de
novos termos de troca. Os capitais antes necessários à reprodução social e à luta pelas melhores
posições no interior do campo mudam igualmente: para ser agricultor no novo contexto não
basta mais somente a tradição e o conhecimento transmitido de geração a geração, mas a posse
de novos trunfos como a maior escolarização e tudo o que ela permite em termos de
racionalização do mundo e de acesso a conteúdos cada vez mais formalizados. Em termos de
habitus, trata-se de uma mudança profunda nos comportamentos enraizados na tradição para
outros onde a impessoalidade e a diversificação dos investimentos são o melhor caminho para a
mobilidade e a inserção competitiva nos mercados que perfazem o território: mercados de
produtos agrícolas, mas também mercados de bens simbólicos.
Esta desincronização entre habitus e campo também é o fator explicativo da mudança em
outro trabalho clássico de Bourdieu, também já mencionado: o estudo sobre os Kabyla, na
Argélia. Naquele livro, o sociólogo francês mostra de maneira magistral o resultado da
introdução do cálculo econômico na vida de comunidades tradicionais, algo que se explicita de
maneira quase dramática no conflito geracional, evidente quando um agricultor diz não
conseguir entender porque agora seu filho somente aceita trabalhar nas lides com a terra
mediante a remuneração por um salário, lógica e léxico antes totalmente ausentes do universo
relacional e cognitivo desse agricultor. O que acontece, de maneira semelhante ao caso anterior,
é que a nova geração entende que os padrões de reprodução se modificam e, com eles, muda a
estrutura de capitais necessária para tanto.
Mas não é apenas a desestruturação de tecidos sociais o que a teoria bourdieusiana permite
compreender. Alguns estudos de seguidores seus voltam-se justamente à tentativa de explicar
como ascendem determinados agentes e determinadas atividades econômicas. O estudo de
Marie-France Garcia-Parpet sobre o mercado de vinhos talvez seja o melhor exemplo disso. Ela
mostra que a grande reviravolta nesse mercado, com a revalorização da denominação de origem
e dos atributos que ela comporta, foram em larga medida derivadas da entrada dos vinhos da
Borgonha no mercado inglês. E isso não foi proporcionado pelos tradicionais fabricantes. Mas
justamente por um empresário que, deslocado de seu setor de origem, aproveitou toda a gama de
contatos trazida com a experiência anterior para, a partir deles, criar um mercado para um
produto especifico que, justamente pela instituição desse novo mercado, passa a gozar de maior
prestígio inclusive no mercado interno. Ou, nos termos da linguagem bourdieusiana, o estudo
mostra como o capital social deste empreendedor pesou mais do que o capital econômico e
político dos tradicionais produtores de vinho. Este capital social habilmente utilizado se
converteu em capital simbólico capaz de alterar a estrutura do campo, modificando o padrão
do que era considerado valorizado ou desvalorizado e abrindo toda uma nova perspectiva de
dinamização.
Howard-Greenville et al estudam quatro modalidades de intervenção empresarial nos mercados,
tendo em vista mudanças socioambientais e enfatizam o tipo de capital necessário ao
enfrentamento de cada uma delas. A primeira envolve a captura, por parte de uma empresa, ou
grupo de empresas, de questões socioambientais, sem alterar, porém, as relações entre seus
membros, ou as relações de poder existentes no setor. É necessário reunir capital cultural capaz
de persuadir formadores de opinião de que estas mudanças são reais e significativas, ainda que
não alterem as forças que dominam o mercado em questão. O esforço da indústria brasileira de
papel e celulose para que parte de sua matéria-prima venha de agricultores familiares pode servir
como exemplo deste primeiro tipo de ação. A segunda modalidade de intervenção é definida por
Howard-Greenville et al como construção de pontes: a criação de instâncias para discutir
temas socioambientais com ONG’s e movimentos sociais são disso um excelente exemplo.
Quando o presidente da UNICA (União Nacional das Indústrias de Cana-de-Açúcar) assina um
artigo de jornal com o presidente da FERAESP (Federação dos Trabalhadores Assalariados do
Estado de São Paulo) o que está em jogo, muito mais que poder econômico é capital social e
capital cultural que legitimam (dos dois lados) que esta conjunção de esforços não seja vivida
pelos participantes das bases de cada uma das organizações como sinal de capitulacionismo, nos
termos de Jank e Neves. A terceira modalidade de intervenção empresarial está no esforço de
criar um novo campo social e, em torno dele, organizar o mercado: alguns dos exemplos
citados por McDonough e Braungart sobre sua determinação em elaborar produtos não apenas
menos nocivos que os habituais, mas capazes de regenerar os sistemas ecológicos em que
interferem enquadram-se certamente nesta categoria: “queríamos ir além do design de uma
fábrica que não fosse prejudicial: queríamos um design nutridor”. O fato de sua proposta ter sido
rejeitada por sessenta companhias químicas antes de ser levada adiante mostra bem que se
tratava da implantação de um novo campo. Capital financeiro aqui é indispensável pois, muitas
vezes, estas iniciativas virão de pequenas empresas cujo sucesso depende de sua inserção em
redes diversificadas. Mas é fundamental também dispor de conhecimentos técnicos, capacidade
persuasiva, prestígio, reputação como inovador para que a mudança seja aceita tanto junto à
empresa que a leva adiante como no próprio mercado. McDonough dirige um prestigioso
escritório de arquitetura e é conhecido como conferencista de grande prestígio internacional;
Braungart tem experiência no setor público, por seu trabalho durante anos na agência ambiental
alemã: estes são recursos (capitais) decisivos para a legitimação de suas propostas inovadoras. A
quarta modalidade de intervenção refere-se à defesa, por parte das empresas, de um campo em
crise e onde se procura restaurar a confiança provocada por episódios especialmente marcantes,
como no caso dos vazamentos de petróleo, sem mudanças significativas. Neste caso, o peso do
capital econômico é maior que o do capital social ou cultural.
Distanciamento da ortodoxia (e de algumas abordagens heterodoxas)
Os exemplos citados deixam claro que o coração da sociologia bourdieusiana reside na
desnaturalização de processos de dominação que são vistos, pela maioria das correntes
interpretativas em economia e em sociologia, como meras decorrências dos processos de
mudança econômica. O que faz Bourdieu é inverter esta relação de causalidade, tentando,
mediante uma abordagem que mistura elementos históricos, políticos, econômicos e culturais,
captar o sentido das mudanças e sua tradução em possibilidades e constrangimentos à ação.
Possibilidades e constrangimentos que se apresentam sempre sob a forma de hierarquia e
dominação.
Mais do que iluminar um aspecto não valorizado pelas teorias do mainstream do pensamento
econômico, há aqui uma diferença ontológica fundamental. O sujeito nesta teoria social é muito
mais complexo em suas motivações à ação do que o individuo maximizador do seu bem-estar, tal
como preconizado pela economia neoclássica. No livro As estruturas sociais da economia,
Bourdieu pontua que o conjunto de disposições do agente econômico que são apresentados pela
ciência econômica (valeria dizer pelo mainstream da teoria econômica) como um dado, e que
assim fundam a ilusão de uma universalidade a-histórica, é na verdade o produto de uma longa
história coletiva. Para ele, não se pode reduzir o conjunto de interesses do indivíduo ao interesse
econômico nem ao cálculo racional. Sempre segundo seus termos, o universo da razão se enraiza
numa visão do mundo que confere lugar central ao princípio da razão, mas não tem
necessariamente a razão por princípio. A abstração originária da ciência econômica consistiria,
nessa critica, em « dissociar uma categoria particular de práticas, o cálculo racional, ou uma
dimensão particular de toda prática, da ordem social na qual toda prática humana está inserida ».
Em uma palavra, de uma concepção de homem compatível com a psicologia comportamental,
que age em resposta a estímulos e sanções, a teoria bourdieusiana se aproxima de uma visão
psicanalítica, segundo a qual os homens agem movidos por pulsões inatas, mas que não
determinam o resultado da sua ação. Para tanto, é preciso decodificar o processo que leva à
moldagem dos caminhos pelos quais essa pulsão inata vai ser encaminhada socialmente, como
sentimento de injustiça, de resignação, de confronto, de oportunidade.
Mas não é somente da ortodoxia explicativa que Bourdieu se distancia. Ele lembra que a
economia tenta fazer das instituições também algo a-histórico. Quando se pensa em todo o
trabalho de um dos maiores expoentes do institucionalismo contemporâneo, Douglass North, fica
relativamente claro que critica é essa. Apesar de todo o esforço em mostrar que a performance
econômica é dependente da qualidade das instituições, a principal crítica que se faz ao
pensamento da nova economia institucional é exatamente a ausência de uma explicação coerente
para a mudança institucional. Ela explica como as instituições influenciam a dinâmica
econômica, mas a explicação para o que leva à emergência das instituições eficientes – aquelas
capazes de reduzir custos de transação e aproximar taxas sociais e privadas de retorno –
permanece obscura. Na economia institucional também não entra em questão como os indivíduos
reagem às instituições, porque é presumido que o comportamento humano responderia sempre de
maneira similar aos estímulos e sanções que elas expressam.
Mesmo no trabalho de outros expoentes do institucionalismo contemporâneo essa lacuna resta
evidente. Assim acontece na tentativa de Geoffrey Hodgson em introduzir os hábitos como
variável chave: ele mostra como hábitos suportam instituições, mas não mostra como os hábitos
se formam. E assim acontece na tentativa de Elinor Ostrom em introduzir a aprendizagem como
fator explicativo da mudança: a aprendizagem seria gerada a partir de cálculos de custos e
benefícios diante de opções concorrentes e na informação disponível sobre a situação em
questão, mas nada diz sobre os diferentes encaminhamentos dados por agentes ou grupos sociais
que partilham um mesmo estoque de informações presentes e passadas.
Tudo isso é bem diferente da perspectiva de Bourdieu, para quem a questão crucial é justamente
compreender como os agentes percebem e classificam a informação, os estímulos, as sanções.
Algo que permite explicar porque instituições similares geram resultados diferentes para
distintos indivíduos ou grupos sociais.
Finalmente, além das perspectivas neoclássica e institucionalista, Bourdieu tenta também
distanciar-se da abordagem das redes. Para ele, o que os estudos baseados nas redes fazem seria
uma espécie de sociografia, pois não permitiriam explicar de onde vêm as redes e as disposições
que explicam sua morfologia, apenas descrevê-las e a seus resultados. A abordagem das redes
padeceria, em sua visão, de uma limitação tautológica: as redes se explicariam pelos recursos
que elas permitem mobilizar, e o volume e alcance destes recursos seriam medidos pela extensão
das redes.
O quadro a seguir mostra as principais diferenças, mas também as proximidades entre as
abordagens bourdieusiana, institucionalista e das redes (ao lado de outras importantes igualmente
importantes mas não abordadas nos limites deste texto). É bom lembrar, contudo que, muito
embora Bourdieu tenha se empenhado tanto em marcar as diferenças, ele próprio admite no seu
livro Esboço de auto-análise que ele e sua obra não estariam acima de sua teoria: isto é, também
ele é um agente lutando pela manutenção de sua posição de destaque perante a ameaça de
perspectivas teóricas concorrentes.
Quadro 1
Abordagens recentes em sociologia e economia
Economia
Rational
Nova Economia
Desenvolvimento
Sociologia
Sociologia
neoclássica
choice
Institucional
como liberdade
das redes
bourdieusiana
Concepção
Homo
Homo
Individualismo +
Individualismo
Homo
Homo
de homem
oeconomicus
oeconomicus
abordagem
+ instituições e
sociologicus
sociologicus
histórica
estruturas sociais
Diluídas na
Manifestas em
Morfologia
Campo e
ideologia, como
desigualdade e nos
das redes
distribuição
modelos mentais
pressupostos
desigual de
partilhados
normativos de uma
diferentes
filosofia moral
formas de
Estruturas
Ceteris paribus
-
sociais
capital
Mudança
-
-
Incremental ou
Incremental
-
Endógena ou
exógena ao
(expansão das
exógena ao
modelo
liberdades como fim
campo.
e como meio)
Desincronização
entre campo,
habitus e formas
de capital
3. De territórios como atores a territórios como campos – esboço de guia para
uma socioanálise do desenvolvimento territorial
O quadro que fecha a seção anterior permite duas conclusões. A primeira, que não são
propriamente excludentes as abordagens ali tratadas. Há aspectos em que as complementaridades
são muito maiores e mais profícuas do que as oposições, por exemplo entre a teoria dos campos,
a abordagem institucionalista e a teoria das redes. A segunda, e mais importante, é que os
territórios não podem ser tratados, como o faz boa parte da literatura, como atores. Isto
encobriria toda a diferenciação interna a estas unidades sociais e que respondem, em última
instância, pelo sentido de sua trajetória; em outros termos, pelo seu estilo de desenvolvimento.
Também como indicado na seção anterior, o método de Bourdieu começa com a reconstituição
da gênese do campo, neste caso de um território, como ele se diferencia, como ele se autonomiza
(relativamente, é claro) perante outras unidades espaciais, como se forma a hierarquia entre
agentes que hoje dá forma às principais oposições em seu interior. E avança com a reconstituição
da gênese das disposições sociais dos agentes do território (seus gostos, suas necessidades, suas
propensões, suas atitudes) e como elas conflitam ou suportam a estrutura do campo, a estrutura
do território. Um movimento, como se pode observar, destinado à gênese e estrutura do campo, e
outro movimento combinado e direcionado à gênese e estrutura das disposições dos agentes no
interior do campo.
As possibilidades de mudança, por sua vez, se inscrevem em dois componentes: a) nas relações
entre um campo, um território, e outros – isto permite identificar agentes novos que adentram o
território modificando a morfologia do espaço social ao seu redor, com a introdução de novas
necessidades e novos requisitos à reprodução social e à competitividade; b) na competição pelo
poder sobre o poder do Estado – pois é o Estado quem detém o monopólio de atuar em todas as
esferas da vida social, incluindo nisso aquelas que determinam os termos das trocas entre
territórios. Nestes termos, tecnologia, demografia, estilos de vida e o julgamento da situação dos
ecossistemas seriam efeitos indiretos, captáveis diferenciadamente de acordo com as posições no
interior do campo.
Estas idéias balizadoras da metodologia bourdieusiana são apresentadas a seguir sob a forma de
um esboço de roteiro possível de ser utilizado em um trabalho de campo voltado ao estudo de
dinâmicas territoriais.
Para compreender a gênese e evolução do campo
Quais são os conflitos estruturadores da lógica territorial e sua evolução? Conflitos
sociais, conflitos ambientais, conflitos econômicos, conflitos políticos e como eles
moldaram a trajetória do território.
Quais foram e quais são hoje os maiores detentores de recursos fundiários e econômicos
no território? De que forma estes capitais são associados a outros (cultural, social) que
corroborem ou, alternativamente, que questionem sua legitimidade?
Quais as forças que participam da legitimação deste poderes, ou, ao contrário, o colocam
em questão? Com que recursos estas forças contam para tanto? (pessoas com formação
universitária especializada trabalhando em ONGs voltadas a denunciar situações injustas,
por exemplo).
Como se dá a formação político-cultural dos principais segmentos que constituem os
dirigentes (privados, associativos e políticos) do território? Que propriedades sociais eles
têm incorporadas e como elas se traduzem emdisposições à ação (como empreender ou
resignar-se, negociar ou apostar no conflito, ampliar os leques de relações ou manter-se
próximos dos agentes com quem possuem maior similaridade de interesses, por
exemplo).
Quais são as tendências atuais da dinâmica territorial? Mudanças na morfologia do
campo como aumento de escolarização, heterogeneização intra-territorial, atividades
econômicas emergentes e decadentes, perfil populacional? O que essas mudanças
implicam para as sincronias ou disjunções entre habitus dos principais agentes e a nova
configuração do campo?
Quais as repercussões dessa história e dessas tendências em termos de distribuição
desigual das diferentes formas de capital e sua relação com o desenvolvimento territorial?
Para compreender as instituições e o habitus
Quais são as instituições do desenvolvimento territorial e em que suporte (econômico,
cognitivo, ou de poder) elas se baseiam? Que instituições formais e informais sustentam a
dinâmica territorial e a configuração do campo?
Qual é a aderência das instituições às estruturas sociais? Em que medida as instituições
absorvem e regulam o conflito que está na gênese e evolução do campo e em que medida
há descolamentos entre instituições passadas e tendências futuras?
Existem desincronizações ou disjunções entre habitus e instituições? Em que medida o
comportamento dos agentes interfere de fato ou é afetado de fato na relação com
instituições?
Para compreender a relação entre campo, habitus e instituições
Com base nas respostas às questões anteriores, por que são bloqueadas as possibilidades
de fazer convergir ganhos econômicos, sociais e ambientais na configuração atual do
território? Ou, inversamente, por que e como esses bloqueios foram removidos na
trajetória deste território e o que isto ensina para a possibilidade de se induzir dinâmicas
similares?
Alguns procedimentos para levar às respostas anteriores
Pesquisa sobre a gênese e evolução do território – O uso de dados secundários como
pesquisas históricas e séries de dados devem permitir a reconstituição da gênese e
evolução do território.
Pesquisa sobre tendências demográficas, econômicas e políticas do território – As
estatísticas mais recentes devem ser utilizadas para mapear as tendências atuais que
sinalizem mudanças capazes de alterar a configuração do desenvolvimento territorial.
Descrição densa da dinâmica territorial em perspectiva histórica e esboço de sua
caracterização atual como um campo estruturado – Com base nos dois procedimentos
anteriores e em entrevistas com informantes chave pode-se examinar a estrutura e a
evolução do campo, de sua gênese à configuração atual. Trata-se de mostrar o território
como um campo de posições e oposições no seio do qual existem conflitos em torno das
perspectivas de futuro que se fazem através da organização da economia e da política
local. Trata-se ainda de analisar as repercussões dessa determinada forma de
configuração estrutural-institucional do campo para a manifestação dos indicadores
econômicos, sociais e ambientais.
Análise de trajetórias exemplares – Entrevistas em profundidade com agentes
representativos da estrutura do campo (lideranças políticas, empreendedores, agricultores,
lideranças de movimentos sociais) visando identificar quais foram os elementos na
trajetória de cada um desses agentes representativos os responsáveis pela sua posição
atual no território. Trata-se de entender que capitais são necessários para ter acesso aos
benefícios do desenvolvimento territorial, que capitais foram bloqueados àqueles que não
se beneficiam do desenvolvimento territorial, de que habitus eles dispõem em suas
interações com os outros agentes e processos sociais que ocorrem no seu entorno e que
poderiam engendrar relações mais virtuosas. Trata-se de reconstituir a unidade entre
habitus, instituições e formas de capital na moldagem destas trajetórias sociais
exemplares e compreender suas repercussões sobre as possibilidades do desenvolvimento
territorial.
Identificação dos processos sociais que sustentam a path dependence cogntiva,
econômica e política – Com base nos procedimentos anteriores e em entrevistas com
informantes-chave pode-se identificar interdependências entre aspectos culturais,
econômicos e políticos que estão na base do estilo de desenvolvimento experimentado,
seja ele virtuoso ou deletério. Trata-se de analisar como, na história e configuração atual,
a distribuição desigual das formas de capital e a dinâmica institucional se sustentam
mutuamente.
A título de conclusão
Como todo autor polêmico, Bourdieu foi também objeto de fortes criticas. Cabe aqui citar as
duas principais. A primeira delas acusa uma certa rendição ao pensamento utilitarista e à
economia, algo que se poderia perceber pelo próprio uso intensivo da categoria de capital. Ela
pode ser encontrada em textos de autores como Caillé, Jenkins ou na Revue du MAUSS (sigla em
francês para Movimento Anti-Utilitarista em Ciências Sociais). A própria oposição que o
sociólogo francês faz ao pensamento econômico poderia servir como contraponto a isso, mas o
leitor interessado poderá encontrar uma contraposição sistemática a tal crítica no artigo escrito
como homenagem póstuma de Robert Boyer ao sociólogo francês, L’ anthropologie économique
de Pierre Bourdieu. A segunda crítica diz respeito a um diálogo supostamente iniciado mas não
concluído com a psicanálise, como apontado por exemplo nos textos de Bernard Lahire. Sobre
isso, o melhor contraponto pode ser encontrado na obra de Francyne Muel-Dreyfuss, uma das
mais próximas colaboradoras de Bourdieu, particularmente um texto seu apresentado no
Seminário Trabalhar com Bourdieu, outra homenagem póstuma, depois editada em livro com o
mesmo nome.
Apesar da evidente aderência da teoria bourdieusiana ao problema que envolve os processos de
desenvolvimento territorial, como se tentou mostrar nas páginas anteriores, não são muitos os
exemplos aplicados de seu uso neste campo temático. Muitos trabalhos se valem das idéias de
Bourdieu, mas de maneira muito parcial. O mais comum é se encontrar estudos que utilizam o
conceito de capital social, o que não pode ser considerado um uso consistente e abrangente da
teoria. Por isso, quem se interessar por um maior aprofundamento nas idéias aqui expostas pode
recorrer a alguns dos seguintes trabalhos. Do próprio Bourdieu, alguns de seus livros apresentam
de maneira sistemática seu corpo conceitual: o Esboço de auto-análise, Meditações pascalianas,
e Coisas ditas. E dele também em autoria com um de seus mais promissores discípulos, Loic
Wacquant, é de extrema importância o livro Réponses, talvez a obra onde sua teoria e as
implicações dela para as ciências sociais contemporâneas são mais esmiuçadas.
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Pode a teoria dos campos de Pierre Bourdieu ser aplicada em