A CENTRALIDADE DO TRABALHO NA CONFORMAÇÃO DO
ESTILO DE VIDA DE MORADORES DE RUA
TULLER, Pâmela Daniele Ramos1
FERREIRA, Maria da Luz Alves2
Introdução
A presença de pessoas sem abrigo, comumente denominadas de moradores de rua,
é um fenômeno que continua a demarcar as grandes e médias cidades. Os estudos pertinentes
a essa população podem primar pelos aspectos estruturais da questão, quando, então, eles
passam a ser considerados excluídos (de algo ou de algum sistema, no caso, da órbita social).
A realização de pesquisas com moradores de rua na cidade de Montes Claros/MG,
relativamente às ocupações remuneradas desenvolvidas pelos mesmos (TULLER, 2013),
permitiu identificar o desenvolvimento de comportamentos diferenciados, levando a supor
que eles não constituem grupos homogêneos, mas, contrariamente a isso, que desenvolvem
estilos de vida particulares e distintas estratégias de sobrevivência.
Parece que, num primeiro momento, esses indivíduos congregam similares
características ou pré-condições inseridas num contexto macrossocial, tais como as
relacionadas à educação, desemprego, uso de entorpecentes, fragilidade ou rompimento dos
laços familiares, dentre outras, sendo elas responsáveis pela exclusão social, possivelmente
em sua forma mais extrema, que os acomete. Entretanto, com o correr dos anos (e geralmente
eles permanecem por longos períodos na rua), os modos de vida, diferenciados em relação às
pessoas que não moram na rua, indicam certa margem de atuação desses sujeitos, ao mesmo
tempo em que se desponta como um empecilho à superação da situação de rua, isto é, à saída
da rua.
Particularmente, os questionamentos que motivaram o presente estudo concernem
à emergência de duas categorias internas a essa população, quais sejam, a dos que
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social, Unimontes. Texto inédito, produzido a
partir de pesquisas realizadas no contexto de elaboração de dissertação de mestrado. Email:
[email protected].
2
Doutora. Professora no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social, Unimontes. Email:
[email protected].
17
desenvolvem ocupações remuneradas, os que trabalham, no sentido amplo da palavra, e dos
que não as realizam, não trabalham.
Foi possível detectar, entre a população que trabalha e a que não trabalha, a
prática de comportamentos distintos. A título de exemplo, a utilização dos serviços
disponibilizados pelo Centro de Apoio à População de Rua, o Centro POP, foi percebida entre
indivíduos que não trabalhavam. Os que trabalhavam compreendiam a si mesmos como
autônomos prestadores de serviços no exercício do trabalho que realizavam, mesmo quando
patente a caracterização de uma relação de emprego.
Deste modo, o trabalho pode assumir diferentes significações para a população de
rua e ser uma determinante na representação que os próprios têm acerca de si mesmos, do
reconhecimento de seus pares e das ações que praticam, enfim, do desenvolvimento de estilos
particulares de vida.
Atendo-se a isso, este estudo tem como objetivo realizar uma análise comparativa
da centralidade do trabalho na conformação dos estilos de vida dos moradores de rua, tendo o
trabalhador assalariado com tipo ideal.
Os aspectos relevantes a serem considerados no estudo restringem-se,
incialmente, às significações do trabalho para as categorias escolhidas, especialmente na
forma de satisfação de suas necessidades básicas, na utilização dos espaços, nas relações
sociais travadas entre o conjunto da população de rua, na compreensão de si mesmos e dos
outros, na participação das políticas públicas de atendimento à população de rua, dentre outras
que se revelarem pertinentes.
Para alcançar os objetivos propostos será feito um estudo bibliográfico acerca do
trabalho e modelagem do modo de vida do trabalhador assalariado. Posteriormente, serão
realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns moradores de rua encontrados na cidade
de Montes Claros/MG. Após a coleta dos dados, pretende-se classificar os estilos de vida
desenvolvidos por ambas as categorias de moradores de rua. Uma vez determinadas as
características de cada um dos estilos de vida, almeja-se confrontá-los na tentativa de
identificar as similitudes e as diferenças.
Além das entrevistas, o estudo utiliza resultados parciais da pesquisa realizada no
âmbito da execução de projeto de pesquisa desenvolvido no PPGDS, sobretudo das anotações
lançadas em diário de campo mantido pela autora a partir de observações realizadas ao longo
de 03 anos.
18
Labor e estilo de vida: a centralidade do trabalho
O trabalho assume, para Marx (1991), um valor de uso. É através dele que os
homens garantem a manutenção própria, de sua família e comunidade. O trabalhador, por sua
vez, desenvolve uma relação de propriedade com as condições objetivas de seu trabalho, isto
é, ele é o proprietário da terra - nesse caso, um proprietário comunal -, enquanto seu
laboratório natural, dos instrumentos necessários ao trabalho e dos frutos importantes à
manutenção do trabalhador durante o processo de produção.
A disposição dos sujeitos enquanto trabalhadores é, segundo Marx (1991), um
produto histórico. Para que o trabalhador, no sistema capitalista, deixasse de constituir uma
condição da produção, de modo que apenas a sua força de trabalho o fosse, a relação de
propriedade anteriormente mencionada começa a ser negada, resultando num trabalhador
livre. Assim, o trabalhador é despojado das condições objetivas de produção, noutros dizeres,
da terra/solo, dos instrumentos e frutos do trabalho, tornando-se imperiosa a venda de sua
força de trabalho.
A posição no salariado, mais do que o trabalho em si, é a grande responsável,
segundo Castel (2007), por promover a inserção social dos sujeitos. Essa posição congrega
uma renda, um status, proteções e identidades pertinentes.
A condição salarial, subsequente às condições proletária e operária, constitui-se
numa forma dominante de consolidação das relações de trabalho na sociedade industrial e, ao
mesmo tempo, numa modalidade de relação estabelecida entre o mundo do trabalho e a
sociedade. (CASTEL, 2009)
Enquanto para Marx (1991) as lutas de classes impulsionam a história, fazendo
sobrepor formações econômicas que estruturam a vida, Castel (2009) compreende a condição
salarial como um construto forjado a partir de diversas intervenções no curso da história.
A condição de assalariado surge com a industrialização, mas a relação salarial
moderna encontra lugar na grande empresa. No início da industrialização, os salários
perfaziam uma renda mínima necessária à reprodução do trabalhador e de sua família, o
consumo é limitado, inexistiam garantias legais e a relação do trabalhador com a empresa se
mostrava instável, principalmente por consequência da recorrente mudança de empregadores
e do desemprego “voluntário” temporário. (CASTEL, 2009)
Uma relação salarial consolidada comporta, segundo Castel (2009),
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um modo de remuneração da força de trabalho, o salário – que comanda amplamente
o modo de consumo e o modo de vida dos operários e de sua família –, uma forma
de disciplina do trabalho que regulamenta o ritmo da produção, e o quadro legal que
estrutura a relação de trabalho, isto é, o contrato de trabalho e as disposições que o
cercam. (CASTEL, 2009, p. 419).
Conforme Castel (2009), essa definição retrata, de modo preciso, a relação salarial
praticada no fordismo, portanto se trata de uma relação maturada relativamente à
experimentada no início da industrialização. Essa passagem foi garantida graças a
mecanismos implementados para que as condições subjacentes ocorressem.
Em primeiro lugar, fez-se necessário separar aqueles que efetivamente
trabalhavam dos inativos ou semiativos. Somente a população ativa, agora definida sem
ambiguidades, deve compor o mercado de trabalho, pois é a que proporciona ganhos de
produtividade.
O passo seguinte consistiu na regulação do mercado de trabalho, notadamente
para controlar o seus fluxos frente à existência de trabalhadores intermitentes e que
rechaçavam a submissão a disciplinas rigorosas. Assim,
para quem quiser trabalhar uma vez por semana e ficar na cama o resto do tempo, a
agência de empregos tornará esse desejo irrealizável. Para quem quiser encontrar um
emprego precário de tempos em tempos, a agência de colocação tornará pouco a
pouco impossível esse gênero de vida. Pegará essa jornada de trabalho que ele
queria ter e a dará a qualquer outro que já trabalhe quatro dias por semana e, assim,
permitirá a este último ganhar decentemente sua vida. (CASTEL, 2009, p. 421)
Uma vez demarcada a órbita dos verdadeiros trabalhadores (interinos) e os que
deverão ser excluídos do mercado de trabalho (se válidos, isto é, justificadamente não
puderem trabalhar, como as crianças e idosos, serão submetidos a formas coercitivas de
assistência), foram implementadas diversas ações - coerções técnicas do próprio trabalho voltadas para regular a conduta operária, já em 1847, como se percebe na fala do barão
Charles Dupin: “Há, pois, uma extrema vantagem em fazer os mecanismos operarem
infatigavelmente, reduzindo à menor duração os intervalos de descanso. A perfeição
lucrativa seria trabalhar sempre” (apud CASTEL, 2009, p. 425).
Essa organização quase científica do trabalho logrou eliminar a margem de
liberdade e iniciativa ainda preservada. De modo semelhante, ela é responsável por
homogeneizar a classe operária e revolver a compartimentação de ofícios: o trabalhador não
se pensa carpinteiro ou ferreiro, senão operário. (CASTEL, 2009)
20
Os modos de consumo acompanham a homogeneização das condições de
trabalho. Através da elevação dos salários, para além do nível da simples subsistência, o
operariado também se torna consumidor da produção de massa. Essa medida se tornou
vantajosa,
guardadas
as
devidas
proporções,
para
empregados
e
empregadores.
Particularmente a este último, convém ressaltar que o aumento de salários representava
excelente mecanismo de coerção à disciplina industrial, como também aumentava a produção,
agora consumida, em parte, pelo próprio trabalhador. (CASTEL, 2009)
Finalmente, o acesso à propriedade social e a serviços públicos, nisso incluindo as
seguridades atreladas ao trabalho, e a subordinação do trabalho e trabalhador a um quadro
normativo, contribuem para a garantia da transformação da relação salarial estruturante da
condição salarial.
Nessa mesma linha de raciocínio, Polanyi (2000) teoriza a respeito do mercado de
trabalho como sendo ele mesmo uma construção, sobremaneira elaborado por intermédio do
Estado.
A economia de mercado, e, inclusive, o credo liberal, é interpretado por Polanyi
(2000) também como um construto, edificado em função de três pilares elementares, a saber,
o padrão outro, o livre comércio e o mercado de trabalho. Ela não decorre naturalmente de
processos espontâneos de mudança social.
A crença na “geração espontânea” e inevitável da economia de mercado reduz o
comportamento cotidiano humano àquele voltado para a maximização de lucros, noutros
dizeres, à racionalização absolutamente econômica, o que não se mostrou verdadeiro na
história da humanidade. Polanyi (2000) elenca diversas intervenções promovidas com a
finalidade de consagrar a economia de mercado, todavia, interessa primordialmente ao
presente estudo os aspectos concernentes à criação do mercado de trabalho.
Em qualquer outro sistema econômico anterior à economia de mercado, a
atividade produtiva, inclusive os aspectos motivacionais e circunstâncias de seu
desenvolvimento, inseriam-se no arranjo geral das sociedades. No sistema de guildas, vale
ilustrar, todas as condições do artesanato, como os salários e número de aprendizes, eram
reguladas pelas normas costumeiras, praticadas na própria guilda e local de inserção. Nem
mesmo o mercantilismo, nitidamente inclinado ao comércio, colocou em causa as proteções
que recaíam sobre os elementos básicos da produção, isto é, o trabalho e a terra. (POLANYI,
2000)
21
Esses elementos foram deixados de fora do comércio, até porque eles
correspondem aos próprios seres humanos (composto estruturante das sociedades) e ao
ambiente no qual subsistem. Entretanto, o trabalho e a terra, ao lado do dinheiro, são os
elementos fundamentais à indústria, que logrou integrar, através do conceito de mercadoria, o
mecanismo do mercado aos seus diversos elementos constitutivos. Daí a necessidade de se
organizar também o trabalho em um mercado. (POLANYI, 2000)
O desenvolvimento fabril modifica de modo significativo a importância do
comércio e da indústria. A produção industrial deixa de ser acessória ao comércio, nele se
instalando como meio principal de produção dos itens comerciáveis. Na medida em que ela
demanda investimentos de longo prazo e carrega riscos que somente poderiam ser superados
se garantida fosse a continuidade da produção, a formação de mercados para os principais
elementos da produção industrial, então considerados mercadorias, fez-se imprescindível.
(POLANYI, 2000)
Mas considerar o trabalho como mercadoria somente pode significar uma ficção,
em virtude de que essa atividade é intrinsecamente ligada à vida humana. Ele pertence aos
homens, é realizado nos e pelos homens e sua administração afeta diretamente aquele que
carrega em si mesmo essa mercadoria. “Ao dispor da força de trabalho de um homem, o
sistema disporia também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do
"homem" ligado a essa etiqueta”. (POLANYI, 2000, p. 95)
Tendo em vista essa impossibilidade de se desvincular o profundo imbricamento
existente entre trabalho e trabalhador, a identidade do homem que trabalha, rigorosamente
falando, que vende sua força de trabalho no mercado, é moldada a partir dos vínculos reais e
simbólicos que mantém com o trabalho. Na condição salarial, esse vínculo ocorre
especificamente com a posição ocupada pelo sujeito no salariado. Esse relacionamento vai
determinar a legitimidade, como ainda a dignidade dos sujeitos, já que interfere nas
representações feitas das atividades desenvolvidas nas ocupações/posições salariais.
(ESCOREL, 1999).
Ao estudar especificamente os moradores de rua, Escorel (1999) percebeu que a
identificação que os moradores de rua fazem de si, na qualidade de trabalhadores, escapa à
cultura desenvolvida na prática do trabalho industrial. Quer isto dizer que os aspectos
correlatos ao vínculo ocupacional formal e regular, tais como disciplina e a carga horária,
podem ser objetados como excessivos.
Segundo Escorel (1999),
22
a identidade do trabalhador que se depreende da realização de certas atividades
qualificadas como indignas, humilhantes e degradantes pode ter como contrapartida
que o seu exercício possibilita, ainda que precariamente, cumprir o papel de chefe
provedor e com isso readquirir os atributos de dignidade, legitimidade, autoridade e
respeito. (p. 205)
As ocupações consideradas humilhantes e degradantes são aceitas, inclusive
pelos moradores de rua, não tanto em virtude do sentido econômico que carrega, mas pelo
simbólico e social. Os rendimentos auferidos com o desempenho de semelhantes atividades
logram permitir a sobrevivência física dentro dos limites da pobreza e indigência, mas mesmo
esse tipo de trabalho sustenta a sobrevivência social, na exata medida em que a miséria e
super-exploração experimentadas são ofuscadas pelo afastamento da rejeição moral, do não
ser um vagabundo, mas um trabalhador. (ESCOREL, 1999)
É corrente identificar os moradores de rua como não-trabalhadores, apesar de
grande parte deles se ocuparem de atividades atreladas ao mundo do trabalho. Escorel (1999)
chama a atenção para a existência de uma diferenciação na auto-representação dos moradores
de rua a partir do exercício do trabalho. Os trabalhadores, no que se acrescentam os
desempregados, são distinguidos dos mendigos e ladrões. Isso denota importante assimilação
de valores genéricos de uma sociedade que consagra o trabalho como mecanismo único de
garantir
uma
vida autônoma. Podendo, ademais, ser um indicativo de que os estilos de vida praticados
pelos diversos grupos classificados como moradores de rua se constroem a partir do trabalho,
ou melhor, da ocupação no salariado.
Trabalho, trabalhadores e não-trabalhadores na rua
Atento ao propósito deste estudo (uma análise comparativa da centralidade do
trabalho na conformação dos estilos de vida dos moradores de rua, tendo o trabalhador
assalariado com tipo ideal) procedeu-se à coleta de informações capazes de alcançá-lo.
Os dados foram obtidos a partir de observação participante e da realização de
entrevistas semiestruturadas. No tocante à consecução das entrevistas, os entrevistados foram
abordados nos locais onde costumam fixar-se para pernoitar, tendo o contato sido facilitado
em virtude de a pesquisadora participar de um grupo que mantém contato semanal, há mais de
03 anos, com significativa parcela da população de rua alocada onde as entrevistas foram
23
realizadas. Esse fator se tornou relevante para evitar a recusa de parte dos entrevistados e
fortalecer o acesso a informações mais particulares.
O local escolhido foi a cidade de Montes Claros/MG, devido à forte presença
dessa população. O universo estudado, ao seu turno, restringiu-se às pessoas que desenvolvem
atividades remuneradas lícitas, aqui denominadas de trabalhadores, e as que não trabalham
mas são potenciais trabalhadores, com exceção dos desempregados involuntários, doravante
intitulados de não-trabalhadores. O motivo dessa separação se deve à heterogeneidade da
população assinalada como moradora de rua, que também congrega adolescentes, idosos,
portadores de sofrimento mental e toxicômanos. Estas subcategorias, em virtude de suas
condições particulares, foram ressalvadas do dever do trabalho, sendo, pois, válida a posição
ocupada (ou não ocupada) e proteções que os amparem. Também privilegiou-se a entrevista e
observações dos que moram na rua há mais de 06 meses. Assim, a escolha dos moradores de
rua a serem entrevistados e observados obedeceu a critérios de julgamento e acessibilidade.
Como a pesquisa tem viés qualitativo, não se mostra necessário estabelecer prévia
e rigorosamente uma amostra. A estratégia adotada, desta forma, foi a da exaustão das
informações colhidas nas entrevistas, ou seja, na medida em que não surgiram elementos
inovadores, as entrevistas e observações se apresentarão em número suficiente.
No que concerne às entrevistas, foi elaborado um questionário com duas ordens
de perguntas. Pela primeira, as respostas deveriam ser arroladas dentre as opções escolhidas
pela pesquisadora; pela segunda, as respostam eram livres.
A primeira ordem de perguntas teve como objetivo traçar um possível perfil da
população entrevistada e observada. Embora esses dados tenham relevância, os mesmos serão
apenas apontados no presente trabalho, em virtude de o segundo grupo de questões subsidiar,
com maior evidência, o alcance dos objetivos propostos.
Os entrevistados eram predominantemente homens, adultos, vivendo sem
companheiro(a), embora muitos sejam ainda civilmente casados, negros, com filhos,
moradores na rua há mais de mais de 02 e menos de 10 anos, com baixa escolaridade e que
trabalham.
No grupo da segunda ordem de perguntas os entrevistados foram questionados a
respeito das atividades remuneradas que realizavam (tipos de atividades, frequência,
renumeração, destinação dos rendimentos, local onde as atividades são prestadas,
deslocamentos necessários para acessar o local de trabalho), do trabalho (seus possíveis
significados econômicos e morais/sociais), das atividades corriqueiras, da participação como
24
beneficiários de políticas públicas destinadas aos moradores de rua - nestes dois últimos casos
buscando relacioná-las com o trabalho -, e, finalmente, da identificação dos outros moradores
de rua a partir do trabalho.
A análise das entrevistas, como também das notas lançadas em diário de campo
mantido pela pesquisadora, permitiu conjecturar a respeito do trabalho na conformação dos
estilos de vida praticados por moradores de rua.
Os entrevistados que trabalham ocupam a cadeia produtiva das FLVs (frutas,
legumes e verduras) ou da reciclagem, atuando também na prestação de serviços,
notadamente na guarda e limpeza de veículos.
Na cadeia produtiva das FLVs quatro tipos de atividades foram identificados, a
saber, a venda direta dos produtos, como ambulantes, a carga e descarga, como “chapas” dos
veículos que transportam os produtos comercializados na central de abastecimento de gêneros
alimentícios (CEANORTE) - ou no mercado municipal de Montes Claros -, e a preparação
dos veículos destinados à venda direta dos produtos.
Os trabalhadores combinam pelo menos duas das atividades descritas, perfazendo
uma remuneração que varia entre R$ 100,00 e R$ 300,00 semanais. As rendas mais altas são
obtidas a partir de atividades que demandam realização diária e prolongada, como ocorre na
venda das FLVs e na preparação dos veículos para a comercialização das mesmas. Por outro
lado, embora a coleta de materiais recicláveis também exija o dispêndio de largo espaço de
tempo diário, ela gera rendas inferiores, mas não as menores.
Apesar de a coleta de materiais recicláveis ser elencada como preferível dessa
população, grande parte dos entrevistados, ao serem questionados os motivos pelos quais não
a praticavam, responderam, quase unanimemente, tratar-se de uma ocupação que os deixa
bastante sujos e malcheirosos, o que, associado ao fato de estarem frequentemente
malvestidos e habitando as ruas, provoca maior repulsa nas demais pessoas.
Esse tipo de atividade é considerado humilhante e degradante e a recusa em
praticá-la revela uma assimilação da representação que se faz em relação ao status pertinente
às ocupações salariais, como dissertou Escorel (1999). O significado social não de qualquer
trabalho, no sentido econômico, mas moral, é fortemente evidenciado nesse fato.
A jornada diária de trabalho executada (entre 04 e 12 horas) rege-se pelo tipo de
atividade desenvolvida e, como se percebeu, em alguns casos, com a disposição pessoal do
entrevistado em trabalhar. Alguns trabalham por apenas um período ininterrupto, outros
somente se recolhem para dormir e outros trabalham apenas em finais de semana, revelando
25
certa liberdade na determinação do tempo dedicado ao trabalho. Essa atuação faz com que a
rotina do trabalho industrial, pelo menos em relação à carga horária e disciplina, seja negada.
O local de trabalho é, por vezes, também o local de morada, de realização das
demais atividades da vida privada. A escolha desses locais de moradia parece sofrer
influência das relações mantidas com o trabalho. Existem 04 principais locais onde os
moradores de rua se agrupam, quais sejam, o mercado municipal, o Hospital Universitário
Clemente de Farias (HU), o Cariki (maior centro de compra de materiais recicláveis) e a Praça
Francisco Sá (conhecida como Praça da Estação).
Os grupos, com algumas exceções, não acessam os espaços utilizados pelos
outros. A entrada no grupo e a utilização dos espaços ocorre mediante autorização dos
membros. Os critérios utilizados para admissão no grupo e espaço guardam relação com
diversos aspectos, mas o trabalho se apresentou como um dos principais.
No entorno do mercado municipal vivem entre 05 e 153 pessoas que trabalham em
atividades nele desenvolvidas. Os que não trabalham, mas ocupam habitualmente o entorno
do mercado municipal, demonstraram manter vínculos de natureza diversa da do trabalho,
como o familiar e afetivo (irmãos, filhos, amigos de infância, etc.).
O trabalho se apresentou para os entrevistados que habitam o mercado como
fundamental para a satisfação das necessidades pessoais. Os rendimentos auferidos são
utilizados para custeio da alimentação, pagamento de eventuais dívidas, ajuda a familiares,
como filhos, e manutenção de vícios (álcool e crack). Quando questionados sobre a
importância do trabalho, as respostas dadas ultrapassaram o custeio das necessidades básicas.
Nesse tocante, o senhor J. (residente no mercado há anos) afirma: - Se eu não trabalhar, como
é que eu vou comer, aí eu vou pedir, pegar coisas dos outros e eles não vão confiar mais.
As atividades no mercado são prestadas a vários tomadores de serviços distintos.
Somente é aceito nas imediações do mercado (durante o dia e noite) as pessoas consideradas
de confiança, isto é, as que trabalham, não pedem e não cometem furtos ou apropriações
indevidas. O senhor J. relatou que um adolescente havia sido expulso do local em razão de ter
se apropriado de dinheiro de um feirante, que o havia pedido para trocar em notas de menor
valor. De Menor, como é chamado o adolescente, foi agredido pelo feirante, fato este
aprovado pelos moradores de rua. O senhor J., ao comentar o assunto, afirmou que o ato de
pedir e furtar “derruba a pessoa” e dificulta o acesso ao trabalho.
3
O número de moradores de rua pode variar em função dos diversos períodos anuais. Em geral, os que
coincidem com o frio registram o menor índice de pessoas vivendo na rua.
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No mercado municipal percebeu-se também a formação de uma espécie de
reserva de mercado (de trabalho). Existe disputa pelos postos de trabalho oferecidos e quem
habita o local tem preferência na ocupação dos mesmos.
A utilização do espaço de trabalho para moradia foi apontada como facilitador
para o exercício do trabalho. – A gente já acorda tendo o que fazer. As horas de descanso são
intercaladas com o trabalho, que ocorre inclusive durante a noite, sobretudo para a vigilância
das barracas e produtos armazenados.
Outros, porém, demonstraram interesse em residir longe do local de trabalho a fim
de não mais passarem as noites no entorno do mercado. A justificativa seriam os riscos
advindos com o correr da noite.
Os moradores de rua do mercado municipal demonstraram recusar a coleta de
materiais recicláveis pelos motivos anteriormente explicitados, bem como também porque a
atividade demanda longas horas de caminhada e compele ao contato com o lixo, o que
desagrada bastante, segundo informaram.
O HU, localizado igualmente numa região central, reúne entre 03 e 10 pessoas4.
O grupo daqueles que habitualmente são encontrados nas imediações desse hospital é bastante
heterogêneo. Quando realizado, o trabalho ocorre de modo esporádico. Em geral ele consiste
na coleta de materiais recicláveis. Os não-trabalhadores dedicam-se à mendicância, dependem
da ajuda governamental e de outras atividades não identificadas.
A palavra trabalho foi largamente proferida sempre que falavam a respeito de
melhores condições de vida e da saída da rua. “Arranjar um emprego”, ao lado do “largar as
drogas”, foram frases muito recorrentes, tanto entre os trabalhadores como entre os nãotrabalhadores: “- Ele vai sair da cadeia, vai arranjar um trabalho e a gente vai sair da rua”
(afirma L, grávida de um morador de rua recentemente recolhido à prisão).
Foi relatado certo desprezo pelo trabalho ou dificuldades em se submeter à rotina
por ele demandada, entre os não-trabalhadores. “- Eu preciso trabalhar, mas sou muito
preguiçoso, a verdade é que eu não gosto de trabalhar” (P., morador desde quando era
criança, há mais de 20 anos).
O Centro POP nunca foi utilizado por muitos dos moradores de rua, normalmente
pelos que trabalham. Quanto maior a jornada de trabalho maior a negativa. Um morador de
rua que afirmou trabalhar mais de 9 horas por dia disse não frequentar “esse tipo de lugar”,
4
Aqui o número pode variar em função da presença de pessoas oriundas de outras cidades para se submeter a, ou
acompanhar terceiros em tratamentos médico-hospitalares.
27
em manifesto desdém. P., que afirmou não haver desenvolvido gosto pelo trabalho, disse ficar
todo o dia nas dependências do Centro POP.
Como se percebe, apesar de povoarem zonas de exclusão (da órbita de uma
sociedade condicionada pelo salariado) o trabalho foi assimilado por muitos como algo
valoroso (aspecto moral). Ele é a principal fonte de sustento (aspecto econômico), dentro dos
limites da indigência, mas impedindo a mendicância e a prática de atos ilícitos, isto é,
possibilita “ganhar dignamente a vida”, afastando a rejeição moral (ESCOREL, 1999).
O desenvolvimento do trabalho se difere em relação ao trabalhador assalariado no
que concerne à utilização do tempo. Enquanto estes cumprem jornadas rigorosas, os
moradores de rua têm certa “liberdade” para estabelecer o tempo de trabalho. Isso se traduz
tanto no excesso de trabalho, considerando que alguns nunca deixam o local de trabalho e
estão sendo sempre à disposição dos empregadores, quanto na mínima realização. Outros, os
que não trabalham, praticam muito esporadicamente o trabalho, recorrendo a outras
estratégias para sobreviver, incluindo a mendicância.
O padrão de consumo também guarda muitas diferenças entre as categorias
estudas. O trabalhador assalariado aufere o necessário para suprir sua subsistência e para
consumir um pouco mais (isso considerando dentro dos parâmetros de integração das
sociedades salariais). No entanto os moradores de rua não demonstraram ambicionar a prática
de consumos típicos desta sociedade de consumo. Além do necessário para comer, manter os
vícios e “pagar umas dívidas”, as aspirações consistiam principalmente em adquirir um local
para moradia.
Conclusões
A identidade do trabalhador, do que vende sua força de trabalho, molda-se a partir
dos vínculos reais e simbólicos mantidos com o trabalho. Especificamente na condição
salarial, esse liame decorre da posição ocupada pelos sujeitos no salariado (que comporta
status e proteções pertinentes).
A população de rua compõe-se de diversos subgrupos heterogêneos, os quais
desenvolvem estilos de vida distintos, por vezes tendo o relacionamento com o trabalho como
um dos elementos centrais em suas conformações. Esses modos de vida, mesmo no caso dos
que trabalham, escapam à cultura desenvolvida pelo trabalhador assalariado, mas o trabalho
vai servir de referencial para a satisfação dos sentidos que o trabalho assume, sejam eles
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econômicos (forma de alcançar a subsistência e satisfazer o consumo), morais (trabalhar para
se manter, não pedir ou furtar) e sociais (estabelecer o valor relativo entre os próprios,
determinar a utilização de certos espaços e a inserção nos grupos identificados). Por outro
lado, o trabalho, incluindo seus valores mais genéricos, revelou-se pouco significante para os
que não trabalham.
Referências
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis:
Vozes, 2009.
ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.
MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas – Introdução de Eric Hobsbawn. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
POLANYI, Karl. As metamorfoses da questão social: as origens de nossa época / Karl
Polanyi. Trad. Fanny Wrabel. – 2ª ed. Rio de Janeiro: Compus, 2000.
TULLER, Pâmela Daniele Ramos. O lugar do excluído na produção. In: Coninter, 2013, Belo
Horizonte/MG. Anais do II Coninter, 2013.
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