DO ÓCIO CRIATIVO AO LÚDICO NO TRABALHO 1
Valéria Neves Kroeff Mayer2 - [email protected]
Resumo
Criatividade não é privilégio de alguns, todos a temos. Algumas pessoas, no entanto, abrem-se
a ela e a deixam fluir, outras não acham tempo para o lúdico e acabam esquecendo seu
potencial criativo. Lúdico diz respeito ao prazer, um prazer que pode estar presente tanto no
ato de brincar das crianças, como na leitura de um livro, na audição de uma música, na
conversa com um amigo e até mesmo, na realização de tarefas cotidianas. Prazer é
absolutamente subjetivo, o que é prazer para uma pessoa, pode ser um verdadeiro fardo para
outra. O objetivo da Minioficina Do ócio criativo ao lúdico no trabalho é propor um momento
de reflexão sensorial, a profissionais e estudantes, sobre a capacidade criativa de todo ser
humano, assim como do uso deste potencial criativo no trabalho ou no estudo, de modo a
tornar estes momentos mais eficientes, produtivos e prazerosos.
Palavras-Chave: criatividade, ludicidade, jogo, ócio criativo
1 Introdução
A idéia de discutir (e fazer sentir) o tema Do ócio criativo ao lúdico no trabalho, vem da
necessidade urgente de que possamos refletir sobre o potencial criativo existente em cada um
de nós, assim como repensar o uso deste potencial no trabalho e no estudo de modo a tornar
estes momentos tanto mais eficientes quanto mais prazerosos.
Por esta razão é que este artigo propõe uma reflexão sobre a necessidade dos momentos
de descanso e descontração como imprescindíveis para a criatividade, bem como a
possibilidade de associarmos trabalho, jogo (pensado aqui como elemento lúdico) e
aprendizagem, a qualquer tarefa profissional ou acadêmica desempenhada por nós.
Para iniciar esta discussão, no entanto, vale lembrar que para falar “do jogo e da
trajetória no jogo é preciso considerar a situação imaginária como característica principal do
jogo” (Negrine,1994). Assim, para que possamos pensar no jogo como elemento lúdico, seja
associado a um momento de lazer ou a uma atividade profissional ou escolar, é preciso que
esteja presente ali o componente simbólico.
Neste sentido é que Albornoz (2001) afirma que o lúdico nem sempre está presente no
jogo, na brincadeira ou na tarefa. Segundo a autora, numa situação de jogo, para um jogador
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Minioficina realizada no VII Fórum FAPA (2008), idealizada a partir do Workshop homônimo.
Professora da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), é Mestre em Educação pela UFRGS (2007) e em
Desenvolvimento Regional pela UNISC (2001); Especialista em Educação Especial e Graduada em Fisioterapia.
É idealizadora da Oficina "O brinquedo e o brincar: (re)pensando o lúdico, o terapêutico e o pedagógico” e do
Worshop "Do ócio criativo ao lúdico no trabalho”.
que está perdendo, tenso e preocupado, “talvez o jogo, não tendo mais prazer, não retenha
mais o elemento de ludicidade; mas, para outro que está ganhando, para quem há o prazer de
estar perto da vitória, possivelmente o lúdico é possível. Assim, a noção de lúdico nos parece
ligada a de prazer.”
Esta associação entre lúdico e prazer, feita por Albornoz (2001), é bastante pertinente
para a nossa discussão, pois ao nos referirmos à possibilidade de haver ludicidade no fazer
profissional ou acadêmico, nos apoiamos sobretudo na fala desta autora.
Embora para muitos o termo ludicidade ainda remeta às brincadeiras infantis, lúdico e
brincadeiras infantis não são sinônimos. Como lembra Albornoz (2001), lúdico diz respeito ao
prazer. Um prazer que pode estar presente no ato de brincar das crianças, como pode estar
presente na leitura de um livro, na audição de uma música, na conversa com um amigo e até
mesmo, na realização de tarefas cotidianas.
2 O espaço do ócio e do lúdico na transição para a vida adulta
A transição para a vida adulta é marcada por diversos eventos, entre eles está a aquisição
da independência financeira. Toda criança quer ser grande e todo adolescente quer tornar-se
dono do próprio nariz e por isso sonha com a própria independência.
Freqüentemente este processo de transição vem acompanhado de outras mudanças como
a vestimenta, os assuntos discutidos e o timbre da voz. Busca-se uma postura mais adulta,
com gestos mais contidos e roupas mais discretas. Abre-se mão, muitas vezes, do sorriso
espontâneo, do cantarolar sozinho, do “sorriso na mão”, dos apelidos afetivos, dos tênis, das
calças de brim e do chimarrão do sábado à tarde com os amigos. Abre-se mão dos pequenos
prazeres que sustentam a vida.
Vestimos outro personagem, mais sério e atarefado, sem muito tempo (ou tempo algum)
para o ócio. E convivemos tanto com este personagem que acabamos por nos tornar ele.
Lutamos tanto para conquistar a nossa independência que acabamos por encontrar outras
formas de aprisionamento. Assim sendo, tornamo-nos dependentes do cotidiano da vida
adulta e de tudo que o constitui: as tarefas, a sisudez, a mídia, a moda, a violência, as
cobranças e assim por diante.
Quando lutamos pela nossa independência, sem nenhuma reflexão ou questionamento,
conquistamos com ela (num pacote fechado) o cansaço, o stress, o mau humor e as dores nas
costas. É como se fosse preciso matar a criança para nascer o adulto, não nos damos conta de
que a criança que fomos é absolutamente constitutiva do adulto que somos.
Não deveríamos tentar sufocar a criança que habita em nós, nem mesmo tirar dela o
direito de brincar, pois segundo Winnicott (1975) “é com base no brincar que se constrói a
totalidade da existência experiencial do homem”. Assim sendo, deveríamos nos questionar se,
ao deixarmos de brincar, ao extrairmos (ou limitarmos) o componente lúdico de nossas vidas,
não estaríamos nos privando de aprendizados que poderiam ampliar nossa existência?
2.1 O brincar como elemento constitutivo do homo complexus3
Segundo Santos e Cruz (2002) “o brincar [...] está presente em todas as dimensões da
existência do ser humano”, e de modo muito especial na vida das crianças. “As crianças
brincam porque esta é uma necessidade básica, assim como a nutrição, a saúde, a habitação e
a educação”. Pelo brincar a criança é capaz de “exteriorizar seus medos, angústias, problemas
internos e revelar-se inteiramente, resgatando a alegria, a felicidade, a afetividade e o
entusiasmo”, dizem as autoras.
Mas “o que quer que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também aos adultos”,
afirma Winnicott (1975). É claro que o brincar do adulto é diferente, já não jogamos
amarelinha, nem cinco-marias, embora as meninas continuem brincando de casinha e os
meninos jogando futebol, mesmo depois de bem crescidos. Segundo Winnicott (1975), o
brincar do adulto pode também “manifestar-se [...] na escolha das palavras, nas inflexões de
voz e [...] no senso de humor”.
Namoramos e fazemos jogos amorosos. Gostamos de estar com os amigos e de
conversar com eles, de ir ao cinema, ao barzinho, à danceteria, ao teatro, aos shows.
Gostamos de muitas coisas que são capazes de nos proporcionar prazer, embora muitas vezes
não nos dediquemos a investir o tempo adequado para estas tarefas. Mas sabemos muito bem
o que nos dá prazer e o que, de fato, nos oportunizaria momentos lúdicos.
2.2 O ócio criativo e o lúdico no trabalho: uma perspectiva atual
O ócio é um capítulo importante dessa nossa discussão. Embora, segundo Domenico De
Masi, seu conceito seja carregado de um sentido negativo para grande parte dos adultos
responsáveis.
Em síntese, o ócio pode ser muito bom, mas somente se nos colocamos de acordo
com o sentido da palavra. Para os gregos, por exemplo, tinha uma conotação
estritamente física: ‘trabalho’ era tudo aquilo que fazia suar, com exceção do
esporte. Quem trabalhava, isto é, suava, ou era escravo ou era um cidadão de
segunda classe. As atividades não físicas (a política, o estudo, a poesia, a filosofia)
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Para Morin (2002), se o homem é, “ao mesmo tempo sapiens e demens, afetivo, lúdico, imaginário, poético,
prosaico, se é animal histérico, possuído por seus sonhos e, contudo, capaz de objetividade, de cálculo, de
racionalidade, é por ser homo complexus”.
eram ‘ociosas’, ou seja, expressões mentais, dignas somente dos cidadãos de
primeira classe (DE MASI, 2000).
Nesta perspectiva podemos pensar que o ócio não diz respeito , necessariamente, a um
não fazer nada. Para De Masi (2000), um não fazer nada pode não ser tão prazeroso quanto
um fazer criativo. É possível pensar no ócio como momentos de fruição, onde podemos fugir
às tarefas rotineiras e nos permitir investirmos tempo em atividades que nos sejam verdadeira
e unicamente prazerosas.
Mas a reflexão aqui proposta não diz respeito apenas ao ócio, ela se propõe também a
nos fazer pensar no trabalho (profissional ou acadêmico) por uma outra perspectiva. Segundo
Palieri (2000), “o futuro pertence a quem souber libertar-se da idéia tradicional do trabalho
como obrigação ou dever e for capaz de apostar numa mistura de atividades, onde o trabalho
se confundirá com o tempo livre, com o estudo e com o jogo”.
O ócio criativo, proposto por Domenico De Masi, diz respeito ao fato de sermos capazes
de aliar a toda ação, trabalho, jogo e aprendizado. Nas palavras de Palieri (2000), o ócio
criativo reside na capacidade de conseguirmos, para cada tarefa realizada, criar um valor e a
ele associarmos divertimento e formação.
Para De Masi (2000), “a principal característica da atividade criativa é que ela
praticamente não se distingue do jogo e do aprendizado”. No entanto, estamos tão
acostumados a desempenhar atividades mecânicas, sejam elas físicas ou mentais, que é
necessário um grande esforço de nossa parte para que possamos “aprender uma atividade
criativa, digna de um ser humano”, lembra o autor.
3 Conclusão
Criatividade não é privilégio de alguns, todos a temos. Algumas pessoas, no entanto,
abrem-se à ela e a deixam fluir, outras não acham tempo para o lúdico e acabam, aos poucos,
apagando o seu potencial criativo.
Devemos não esquecer que, segundo Winnicott (1975), “é no brincar, e somente no
brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade
integral. E é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu eu – self”.
Como dito anteriormente, a criança que fomos é absolutamente constitutiva do adulto
que somos. Além disso, Fonseca (1998) aponta para o fato de que “a metamorfose da criança
é o espelho da história natural e social do homem”. Assim sendo, não devemos perder de vista
as possibilidades de aprendizado que a criatividade própria da infância nos ensina.
Se nossa infância está aí, escondidinha, é possível resgatá-la. As sensações que
aprisionamos em nosso corpo são capazes de acionar boas ou más lembranças, cabe à nós
fazer o filtro e escolher quais lembranças vão fazer parte do nosso imaginário e trazê-las
novamente ao convívio.
Cabe a cada um acreditar no próprio potencial, traçar metas possíveis e sonhos
realizáveis. Caso contrário, a vida em todas as suas dimensões (pessoal, profissional,
acadêmica) será sempre frustrante. E o será não por predestinação, mas porque não damos
chance dela ser diferente.
Finalmente, não devemos esquecer da afirmação feita por Palieri (2000) quando, ao
referir-se ao ócio criativo proposto por De Masi, diz que o futuro pertence àqueles que
souberem se libertar da idéia de trabalho como um fardo, uma obrigação e forem capazes de
se arriscar numa combinação, onde o trabalho se confunde com o tempo livre, com o estudo e
com o jogo.
Nossa concepção sobre o fazer profissional e acadêmico ainda é muito inflexível e
sisuda. Veja bem, quando julgamos que alguém não está levando seu trabalho a sério,
geralmente dizemos que aquela pessoa está brincando. Mas existe alguém mais centrado e que
leve tão a sério seu trabalho do que uma criança brincando? Pense como o mundo seria se os
adultos fossem capazes de se dedicar ao seu trabalho com o mesmo prazer e concentração
com que o fazem as crianças em suas brincadeiras? Nesta perspectiva é que se debruça a
concepção do lúdico no trabalho. Quando vivemos assim, vivemos criativamente e o ócio
criativo já faz parte do nosso cotidiano.
TITLE: From creative idleness to ludic work
ABSTRACT
Creativity is not a privilege of a few, we all have it. However, a few people open to it and let
it flows, others do not take the time for the ludic and end up forgetting their creative
potential. Ludic is connected to pleasure, a pleasure that might be present in a child’s
playtime, as well as in reading a book, listening to a music, talking to a friend and even when
performing everyday tasks. Pleasure is absolutely subjective, something that a person
considers a pleasure might be a burden to someone else. The goal of the mini workshop
“From creative idleness to ludic work” was to propose a moment of sensorial reflection to
professionals and students about the creative capacity of all human beings as well as how to
use this creative potential at work or studies so to make these moments more efficient,
productive and pleasurable.
Key-words: creativity, ludic, game, creative idleness
Referências
ALBORNOZ, Susana. Jogo e trabalho: do homo ludens, de Johann Huizinga, ao ócio
criativo, de Domenico de Masi. In: Revista Cinergis. V.2, n.º2, jul/dez.2001; páginas 7-36.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 9.ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
FONSECA, Vitor da. Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese. 2.ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1998.
MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2002.
NEGRINE, Airton. Aprendizagem e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Predil, 1994.
PALIERI, Maria Serena. Introdução. In: DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 9.ed. Rio de
Janeiro: Sextante, 2000.
SANTOS, Santa M. e CRUZ, Dulce. Brinquedo e infância: um guia para pais e educadores
de creche. 4.ed. Petrópolis: vozes, 2002.
WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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