A RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA RURAL/DO CAMPO: os
desafios de um objeto em construção1
Maria Amália de Almeida Cunha2
Introdução
Pode-se dizer que os estudos versados sobre o mundo rural e do campo vêm
deixando de ser ‘um não lugar’ na agenda acadêmica (CANÁRIO, 2008), para
ocupar um importante espaço no debate atual. De acordo com Portes, Campos e
Santos (2008), tal fato pode estar atribuído à própria complexidade dos fenômenos
sociais que as populações que aí habitam vêm enfrentando desde a segunda metade
do século XX, em detrimento da penetração do sistema capitalista nos modos de
produção dos pequenos camponeses e agricultores. Segundo Vendramini (2004),
a modernização da agricultura favoreceu a concentração da propriedade de terra e
a subordinação do trabalhador do campo às novas exigências das agroindústrias,
destruindo as pequenas unidades de produção. Como consequência, uma série de
pesquisas e estudos relacionados à educação rural e do campo ganharam centralidade
no debate acadêmico, debate este que enfatizou os problemas concernentes a esta
modalidade de ensino, a realidade das escolas rurais, a formação do corpo docente,
a situação socioeconômica das famílias rurais, o processo formativo do professor,
a situação dos alunos/trabalhadores e das professoras que se dedicam também à
colheita, o currículo, o transporte dos estudantes, a emergência dos movimentos
sociais no campo e suas propostas educativas específicas (ARROYO, 1982;
ARROYO, 2003; ARROYO, CALDART E MOLINA, 2004; FERNANDES,
2003; NETO, 2003).
Pensando em contribuir para a transformação de um ‘objeto social’ em
‘objeto de investigação científica’, este artigo pretende realizar uma reflexão acerca
dos processos de socialização familiar e escolar no contexto rural/do campo. Para
tanto, utilizamos como ponto de partida as impressões e registros dos alunos do
curso de licenciatura do campo da UFMG, turma de 2008. A discussão ensejada faz
parte do planejamento das atividades do Tempo Comunidade, momento em que os
Agradecimentos: Agradeço à colega Isabel A. Rocha, pelo convite à parceria intelectual, acadêmica
e afetiva. À turma do LECAMPO 2008, pelo convite ao desafio.
2
Profª Adjunta da Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais
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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
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alunos, escolarizados em um regime de alternância, podem debruçar-se sobre temas
importantes de análise trabalhados durante o curso.
Como bem sublinham Portes, Campos e Santos (2008), a relevância de estudos
desta natureza diz respeito, no campo da pesquisa concernente a uma sociologia da
educação de cunho mais qualitativo, à escassez de trabalhos que reflitam sobre as
práticas de escolarização das famílias rurais. De acordo com os autores (2008),
nos últimos anos, é possível observar um afluxo de trabalhos que versam sobre as
práticas familiares/de escolarização dos filhos, que vão desde as camadas populares
urbanas (PORTES, 2001; 2003; SOUZA E SILVA, 1999; VIANA, 2003; ZAGO,
2003), à baixa classe média (ROMANELLI, 2003), e passam pelas classes médias
propriamente ditas (ALMEIDA, 1999; NOGUEIRA, 2003), encerrando-se com
as elites (ALMEIDA, 2004; NOGUEIRA, 2002), por outro lado, como mostra a
pesquisa bibliográfica levada a cabo pelos autores, pouco se tem pesquisado sobre
as práticas de escolarização das famílias rurais/do campo. A relação cotidiana que
estas mantêm com a escola é ainda muito pouco investigada.
Em se tratando especificamente da educação do campo, Fernandes e Molina
(2004, p. 64) destacam a emergência de um novo paradigma como sendo resultado
do conjunto de práticas pedagógicas desenvolvidas por diferentes movimentos
sociais. Nesse sentido, de acordo com esses autores:
A ideia de Educação do Campo nasceu em julho de 1997,
quando da realização do Encontro Nacional de Educadoras
e Educadores da Reforma Agrária (Enera), no campus da
Universidade de Brasília (UnB) promovido pelo Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em parceria com
a própria UnB, o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef), a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (Unesco) e Conferência Nacional de Bispos
do Brasil (CNBB).
A partir de então, têm surgido diferentes empreendimentos da própria
população rural, por meio de suas diferentes organizações e movimentos sociais,
visando colocar em pauta suas demandas, bem como construir uma identidade das
escolas do campo. Destacam-se, assim, os convênios entre Movimentos Sociais,
Universidades, Organizações Não-Governamentais, Instituições Públicas e Igrejas,
entre outros, na produção de ideias e ações que atribuem um sentido renovado à
214 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
concepção de escola no/do campo.
Nesse contexto, podemos destacar as diversas práticas de escolarização que
vêm sendo realizadas no país vinculadas ao conceito da educação do campo, com
o objetivo precípuo de trabalhar a partir da realidade do aluno, considerando as
demandas e as necessidades locais em que esse está inserido.
No campo da legislação, podemos ressaltar a aprovação e a publicação
da Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002, que instituiu as Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, reconhecendo as
especificidades do campo e da educação a ser oferecida nesse espaço.
Já no campo teórico, de acordo com Portes, Campos e Santos (2008, p. 6),
a problematização sobre a emergência da concepção do campo em detrimento de
uma educação rural reflete as limitações desta última em termos da abrangência
da diversidade dos problemas e desafios colocados pelo mundo rural. Enquanto
a educação do campo é percebida como espaço de resistência, produtor de vida e
cultura, a educação rural é associada a uma concepção mais instrumental e por isso
mesmo pouco ativa em relação aos desafios mencionados; ela é tida como uma
educação tradicional desvinculada dos modos de vida da população camponesa e
das relações sociais existentes no campo, cuja ideia de escola parece alheia ao seu
local geográfico.
Em contraposição a um modo tradicional e refratário às mudanças, a educação
no/do campo, segundo Caldart (2002), relaciona-se a uma reflexão pedagógica que
surge das diversas práticas de educação desenvolvidas no campo e/ou pelos sujeitos
do campo. É uma reflexão que reconhece o campo como lugar onde não apenas se
reproduz, mas também se produz pedagogia, reflexão que desenha traços do que se
pode constituir como um projeto de educação ou de formação dos sujeitos que ali
vivem.
Desta forma, como aponta Portes, Campos e Santos (2008), os elementos
pontuados para a caracterização da educação rural e da educação do campo
demonstram que os dois conceitos se distanciam um do outro, uma vez que
apresentam visões dicotômicas nas formas de pensar o campo, a educação e seus
sujeitos.
Pensando nesses desafios, as análises que aqui se seguem refletem a
importância da interface entre o ensino e a pesquisa, considerada esta o pilar
para o aprofundamento das temáticas que envolvem a educação no campo.
Se a dinâmica escolar no campo ainda está presente de maneira subliminar nas
pesquisas sociológicas sobre este universo (PORTES, CAMPOS E SANTOS, 2008;
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
215
VENDRAMINI, 2004; CALDART, 2003), ouvir o que têm a dizer os sujeitos deste
processo parece constituir um meio eficaz de desvendar o interior desta ‘caixa preta’.
Os documentos e arquivos responsáveis pela descrição, registro e memória deste
contexto particular nem sempre estão disponíveis e/ou sistematizados. Deste modo,
os alunos de licenciatura em educação no campo são eles mesmos protagonistas e
autores das fontes que poderão servir como registro para futuros estudos.
A família e a escola no contexto rural/do campo: práticas de
socialização dissonantes?
Pode-se dizer que os modos de socialização, tanto familiar quanto escolar,
constituem um campo fértil de análise na sociologia da educação. Todo grupo
social, como condição de sua continuidade, precisa transmitir à geração seguinte
a experiência acumulada no tempo. O próprio nascimento ilustra a necessidade de
renovação, dinamizando a necessidade de transformar a experiência acumulada de
toda uma vida para além dos espaços da memória individual para que justamente
essa memória se organize e seja registrada em um tempo histórico. Normalmente,
quando o indivíduo nasce ele já encontra uma série de regras, classificações e
modelos de comportamento e de conduta que são anteriores e exteriores a ele. A
esse processo Durkheim (1955) chamava de socialização: modos de ser, pensar e
agir que fazem parte da ação de uma geração de adultos sobre a mais jovem e que
tem como objetivo imprimir uma natureza social ao indivíduo. A educação seria o
meio mais eficaz, para Durkheim (1955), de tirar da criança a condição de tabula
rasa e transformá-la em um ser social.
O processo de socialização é também fundamental para se analisar o
papel da escola na sociedade. Em uma concepção tradicional (funcionalista, cujo
principal expoente é Émile Durkheim), é por meio do processo de socialização que
a escola e a família permitem, através de sua ação complementar, a integração dos
alunos na sociedade, levando-os a assimilar valores, princípios, normas e regras de
comportamento etc.
Todavia, quando se trata de perscrutar a dinâmica de duas das maiores
instâncias de socialização, no contexto rural, a sociologia da educação parece ainda
dialogar timidamente com esse universo.
216 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
Práticas de socialização familiar
As práticas de socialização familiar em um contexto do campo devem ser
pensadas à luz do uso diferenciado que a família rural faz do espaço e dos serviços
da escola, estabelecendo uma relação íntima entre as duas instituições- escola e
família-, não apenas no que se refere à apropriação dos saberes escolares, mas
também aos serviços e práticas que a escola pode oferecer à família, sobretudo
à mãe trabalhadora rural, no cuidado dos seus filhos (tempo dedicado às crianças
e fornecimento de alimentação, pela merenda escolar etc.) (DE VARGAS, 2003,
p.95). A escola também frequentemente se confunde com os espaços destinados à
família, uma vez que não raras vezes as aulas ainda são ministradas nas casas das
professoras, nas Igrejas, em salas comunitárias, entre outras.
Assim, no contexto de uma educação no/do campo, a linha de delimitação
entre essas duas instituições se apresenta de forma bem mais tênue, embora cada
uma delas continue representando espaços distintos de organização social (DE
VARGAS, 2003, p.96).
(...) na zona rural as famílias não se encontram preparadas
para enfrentar ou solucionar os problemas propostos pelos
educadores de seus filhos. No campo os pais quase não têm
tempo para participar dessa parceria, pois na maioria das
vezes vão trabalhar nas plantações logo cedo e só voltam ao
entardecer, para garantir o sustento da família. Seus filhos
também perdem aulas ou abandonam a escola devido às suas
tarefas domésticas, tais como arrumar a casa, tomar conta dos
irmãos menores e ainda ajudar nas plantações (MARIA LÚCIA,
ANDRÉIA PAULA, LUCILENE, SELMA - Turma de 2008)
Na minha comunidade ocorreram algumas mudanças na
participação da família com relação a hoje. Antes, na
escola, não se falava da realidade local, como por exemplo,
a agricultura, cultura, crenças, que são diferentes em cada
comunidade. Hoje se percebe que o diálogo da escola com
a família está melhorando, a comunidade está participando.
A mudança deve acontecer ainda mais, pois a família deve
estar cada vez mais engajada na escola e vice-versa. A escola
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
217
influencia a vida das pessoas na comunidade e a mesma reflete
na sua cultura, costumes, etc. Dentro da sala de aula e fora das
paredes da sala (EZEQUIEL, Turma de 2008).
Fiz uma observação em uma escola primária do campo, no
município de Limeira do Oeste, MG e durante uma semana
observei a rotina dos alunos desta escola, que atende crianças
de várias comunidades, como o assentamento PA Reserva,
Iaje, Iama, banco da terra (projeto do INCRA) etc. Percebi
que as condições dos alunos do assentamento são muito mais
precárias e eles parecem ser mais discriminados do que os
outros (...). Eles dizem que a vida no campo é boa, mas não
tem casa, energia e muitas outras coisas. Ajudam seus pais a
tirar leite, juntar os bezerros, na colheita e tudo mais que eles
pedem (LUCIANA, MARÍLIA, ROSIMEIRE - Turma de 2008).
A relação da família com a escola, no contexto pesquisado, parece difícil se
levarmos em conta a própria dinâmica das escolas, com a crescente ‘pedagogização
do cotidiano’, uma vez que, via-de-regra, a temporalidade e o ritmo da escola não
levam em consideração a lógica do tempo das famílias que trabalham com a terra.
A prática do dever de casa, por exemplo, é apenas mais um indício desta
dissonância. A esse respeito, Resende (2008) lembra da importância em se
compreender a lógica que as famílias de diferentes meios sociais imprimem à
escolarização. Lahire (1997) e Thin (2006) lembram também que quando se
fala em dever de casa, torna-se necessário ir além da categoria classe social para
poder analisar as configurações singulares de fatores ou traços que podem compor
diferentes perfis familiares dentro de uma mesma classe. Assim, apesar de, no seu
conjunto, as famílias de camadas populares tenderem a seguir lógicas socializadoras
que, em vários aspectos, se opõem às lógicas escolares (THIN, 2006), há famílias
oriundas das classes populares que manifestam traços favorecedores de maior
adesão dos filhos às exigências do mundo escolar. É o caso, por exemplo, de
famílias que valorizam de forma especial, dentro das suas possibilidades, a cultura
escrita ou a própria cultura escolar.
De acordo com Resende (2008), o dever de casa é tido como toda atividade
pedagógica elaborada e proposta por professores, destinada ao trabalho dos alunos
fora do período regular de aulas. Inclui, assim, exercícios escritos, pesquisas,
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resolução de problemas, atividades práticas, dentre outras. Dessa forma constitui,
por um lado, um dos dispositivos curriculares por meio dos quais a escola concretiza
seu trabalho pedagógico. Pode-se dizer que o dever de casa faz parte de uma das
rotinas curriculares instituídas pela escola e tacitamente aceitas pelos atores sociais
nela envolvidos. Por outro lado, o dever de casa permeia também o cotidiano das
famílias, redefinindo, em certa medida, o lar como uma extensão da sala de aula.
Desta forma, o dever de casa constitui apenas uma das dimensões da relação
família-escola, entre tantas outras que têm sido objeto da sociologia da educação.
Entretanto, sabe-se ainda muito pouco dessa cooperação no âmbito das famílias
que vivem no campo. Faz-se necessário o aprofundamento de estudos etnográficos
que possam dar conta da diversidade do campo e que possam igualmente mapear
as dinâmicas de socialização assentadas na relação família-escola para que, de fato
e de direito, a escola faça sentido na vida desses alunos.
Em nossa atividade de pesquisa, orientada no Tempo Comunidade, os alunos
puderam fazer alguns registros acerca da percepção desta prática para algumas
famílias, incluindo alunos e professor. Alguns relatos ilustram parte dessa rotina
que envolve tanto a família quanto a escola:
A cultura escolar do ‘pára-casa’, que é uma estratégia
metodológica para maior absorção e fixação dos conteúdos,
na maioria das vezes é vista pelos alunos/as como castigo e
punição, pois esta cultura nem sempre é contextualizada na
realidade local, e não considera as condições pessoais. Na
zona rural é muito comum encontrar estudantes que tem pai ou
mãe com pouca escolarização e até mesmo analfabetos, o que
torna a tarefa de fazer o dever de casa um compromisso difícil,
penoso e desagradável (JOSILMA, MARLÚCIA, MARIA DO
CARMO, MARIA ELIZABETE, SIMONE E HELENA - Turma
de 2008).
Uma visita às famílias da zona rural do Município de Governador
Valadares mostrou como é difícil falar com eles. O professor
que entrevistamos, Edson, nos relatou que sempre que chegava
às residências dos alunos, estes estavam desempenhando
alguma atividade, algumas vezes estavam próximos à casa e
interrompiam a atividade para lhe dar atenção e na maioria
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
219
das vezes estavam em algum mutirão (é uma cultura da região
trabalhar uma família para outra e se paga com um dia de
trabalho e não com dinheiro) ou estavam trabalhando em
algum lugar distante que nem era possível conversar com o
estudante (...) (JOSILMA, MARLÚCIA, MARIA DO CARMO,
MARIA ELIZABETE, SIMONE E HELENA - Turma de 2008).
“(...) quando este povo faz as tarefas de casa que eu e os demais
professores passam”? Perguntou o professor Edson. “Foi aí
que entendi o motivo pelo qual na maioria das vezes chegavam
com as tarefas de casa sem fazer ou sem concluir. E decidi
não passar mais os ‘pára-casa’ e os convidei a pensar comigo
uma forma de dar maior qualidade para a disciplina, e juntos
pensamos em ter uma atividade bimestral para fazer em grupo,
definida no início do bimestre de forma que eles tivessem
vários fins de semana para se dedicarem à tarefa, eu e eles/as
avaliamos que foi muito mais produtivo que as tarefas em doses
homeopáticas de ‘pára-casa’ e que criava sempre dificuldades
para executá-las” (JOSILMA, MARLÚCIA, MARIA DO
CARMO, MARIA ELIZABETE, SIMONE E HELENA - Turma
de 2008).
Esses pequenos excertos ilustram a dificuldade em fazer concordar duas
lógicas socializadoras que muitas vezes apresentam-se como assimétricas no campo.
A chamada ‘pedagogização do cotidiano’ não encontra espaço em um ambiente
marcado pela lógica da subsistência, enfatizando a centralidade do trabalho na vida
dessas famílias. A baixa escolaridade dos pais, a precariedade das escolas, as longas
distâncias a serem percorridas para poder estudar, entre outras, dificulta a realização
de uma dinâmica marcada pela forma escolar hegemônica.
Práticas de socialização escolar
A concepção tradicional que temos a respeito da socialização escolar,
ancorada no legado de Durkheim (1955), funda-se então em uma separação entre
o mundo escolar e o mundo social. A escola deve estar protegida das paixões do
mundo. A socialização tem por objetivo criar no homem um novo ser, o ‘ser social’.
220 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
Durante muito tempo, foi este modo hegemônico visto como o mais adequado
para se compreender como se transmitia o ensino e, consequentemente, a maneira
mais eficaz de se compreender como ocorria a aprendizagem.
Na sociologia, foi a partir do final da década de 1960 que um novo modo
de socialização passou a ser pensado. Um modo talvez menos centrado no papel
da escola e mais atento às transmissões que ocorriam no ambiente doméstico. Tal
abordagem permite inferir que o modo de socialização familiar pode trazer vantagens
e desvantagens na educação dos filhos e que serão cumulativas no processo de
aprendizagem vivido no ambiente escolar. Desta forma, a escola pode tirar proveito
pedagógico da condição da educação vivenciada no ambiente doméstico e deste
modo favorecer ainda mais os já favorecidos e desfavorecer os já desfavorecidos.
Pode-se dizer com isso, que para a teoria da reprodução cultural, cujo
principal expoente é Pierre Bourdieu (1998), o que temos é uma teoria da ‘nãosocialização’escolar, uma vez que esta é determinada primeiro pela cultura da classe
de origem do indivíduo, depois pela reprodução da ordem social através da escola.
A escola, segundo Bourdieu, impõe o chamado ‘arbitrário cultural’, uma vez
que ela não faz senão reconhecer ‘os seus’, isto é, aqueles que estão já de antemão
socialmente destinados a ser reconhecidos por ela, identificados por seu habitus de
classe.
A transmissão do saber para Bourdieu (1998) apóia-se no postulado da escola
reprodutora das hierarquias sociais. Isto porque uma das principais funções da
escola, para o autor, é a de assegurar o ajustamento entre as origens sociais e os
destinos sociais estatisticamente previsíveis dos indivíduos.
Pode-se dizer que o papel da socialização escolar para Bourdieu (1998) é o de
legitimar uma ordem social contestável. A cultura escolar que funda a socialização
está longe de ser universal e objetiva, como pretendia Durkheim. Ao contrário, ela
está muito próxima da cultura familiar dos alunos socialmente favorecidos com
quem se estabelece uma espécie de conivência tácita. Se os herdeiros têm assim
a capacidade natural de compreender as regras do jogo, um ‘sentido imediato de
localização’ e de estratégia, os outros se acham sempre defasados, incapazes de
desvelar as ‘astúcias’ da dominação e os obstáculos presentes no jogo escolar. Estes
últimos manifestam, via- de- regra, expectativas limitadas em relação ao futuro
escolar.
Estes dois modos de conceber o processo de ensino/aprendizagem são
reveladores de uma prática que dificilmente conjuga as duas habilidades. Tanto
na teoria funcionalista quanto na teoria da reprodução, o processo de socialização
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
221
parece ser algo que acontece de modo independente da vontade do indivíduo. É
como se este desempenhasse um papel passivo diante das instituições.
Segundo Iturra (1994), ensino e aprendizagem são processos que se
acompanham um ao outro durante todo o processo educativo. Para o autor, o ensino
seria a prática de transferir conhecimentos provados ou acreditados pela população
que educa a população que se estima desconhecer as formas, estruturas ou processos
que ligam as relações sociais com as coisas: a prática de fixar o estereótipo do social
(...). Já a aprendizagem seria a prática de colocar questões por parte da população que
ensina, que envolvem alternativas de respostas à população que começa a entender
o funcionamento do mundo, onde a resposta encontra o iniciado, não sendo a sua
atividade substituída pelo iniciador. Em síntese, para Iturra (1994), o ensino encerra
uma repetição, criando uma subordinação entre aquele que ensina e aquele que
aprende, ao passo que a aprendizagem é descobrir, decodificar o instituído criando
alternativas, pressupondo uma relação de interlocução e de diálogo entre aquele
que ensina e seu aprendiz.
Para Iturra (1994), na prática educativa escolar ocidental, estas habilidades
estão separadas. Para os antropólogos a transmissão de um saber repousa no
legado mais importante em qualquer tribo ou clã: a genealogia. Isto quer dizer, o
conhecimento da ascendência e da descendência de cada indivíduo, o seu lugar na
estrutura de relações: a quem pertence e para onde deve circular, bem como quais
suas obrigações e os seus limites no acesso ao conhecimento. O conhecimento
da sua genealogia pode ser descrito como uma prática de aprendizagem onde a
ausência da escrita na vida cotidiana coloca um forte peso no desenvolvimento de
estruturas mentais porque não tem depois de um texto onde ir lembrar o que fazer
quando a memória se esgota ou a conjuntura muda e fornece outros contextos.
Há mesmo um ditado em algumas tribos africanas que diz que quando um ancião
morre em alguma aldeia, é toda uma memória viva que se esvai, um conjunto de
livros que fenece.
De maneira geral, os dicionários não distinguem claramente os conceitos
de educação, ensino e aprendizagem. Como afirma Vieira (2006, p. 525), para os
dicionários de língua portuguesa, por exemplo, educar, ensinar e aprender tem um
denominador comum: a ideia de instruir. Mas todo esse processo que envolve:
educar, ensinar e aprender ocorre sempre dentro de um contexto e supõe aquilo
que Paulo Freire (1920-1998) chamava de curiosidade epistemológica, ou seja,
compreender os processos pelos quais os indivíduos educam, ensinam e aprendem
é essencial para entendermos o alcance deste processo. Pode-se com isso dizer que
222 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
semear não é difícil, o difícil é compreender a variedade dos modos de tratar aquilo
que já brotou.
O processo educativo é a rotina que mais imprime uma marca em nossa
maneira de agir e de sentir. Por isso mesmo, é o comportamento mais cotidiano de
nossas vidas, na medida em que todos nós, de um jeito ou de outro, ensinamos a
alguém e também aprendemos algo com alguém. Assim entendido, pode-se dizer
que o processo educativo é algo muito mais amplo do que é caracterizado o ensino
nas instituições especializadas (ITURRA, 1994).
Todavia, a descontinuidade que parece se observar entre ensino e aprendizagem
diz respeito ao modo como nas sociedades modernas e contemporâneas, o modo
de socialização escolar se impôs a outros modos de socialização, pretendendo-se
tornar o modo de socialização hegemônico (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001,
p. 11). Neste sentido, o modo de socialização escolar tornou-se, por assim dizer,
o modo legítimo de socialização. A forma escolar de relações sociais só se capta
completamente, na ligação com a transformação das formas de exercício do poder.
Como modo de socialização específico, isto é, como espaço onde se estabelecem
formas específicas de relações sociais, ao mesmo tempo em que transmite saberes
e conhecimentos, a escola está fundamentalmente ligada a formas de exercício do
poder.
Para Vincent, Lahire e Thin (2001, p.18), qualquer forma de relação social
implica ao mesmo tempo na apropriação de saberes construídos como objetivados,
legitimados, explícitos, sistematizados, codificados etc., e na ‘aprendizagem’ de
relações de poder. A Constituição do Estado moderno pressupõe uma cultura que
se distancia cada vez mais das aprendizagens, no ‘saber-fazer’, para dar lugar
a uma cultura grafocêntrica, centrada no modo de produção de uma escrita, na
generalização da alfabetização e da forma escolar e na construção de uma relação
distanciada da linguagem e do mundo. Anterior a este modo de socialização
dominante, o que existiam eram as formas sociais orais de ensino e aprendizagem.
Os saberes e o saber-fazer eram operados na e pela prática, de situação em situação,
de geração em geração; a aprendizagem era incorporada pelo fazer e pelo ver fazer,
não passando necessariamente pela linguagem verbal.
Para Canário (2008, p.39), a escola nasceu historicamente em ruptura com
as comunidades locais, cujas solidariedades representavam um entrave à afirmação
da lógica de mercado. A atividade pedagógica situa-se, tendencialmente, fora do
espaço social e fora da flecha do tempo: o espaço e o tempo escolares são distintos
dos espaços sociais e do tempo histórico, evidenciado a descontinuidade entre
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
223
ensino e aprendizagem. A escolarização, como modo de socialização dominante e
hegemônico, supôs a desvalorização dos modos de socialização anteriores.
Todavia, é preciso considerar que a aprendizagem acontece no decorrer da
prática e não separada das práticas. É um tipo de saber que não existe fora das
situações de sua efetivação, de sua mobilização. O processo de aquisição supõe a
repetição e a identificação de algo que se vê, ou seja, algo no seu estado incorporado.
Isso é particularmente visível nas sociedades sem escrita, em que o saber herdado
só pode sobreviver no seu estado incorporado (VINCENT, LAHIRE E THIN,
2001, p.25). Neste contexto descrito, o saber não é em nenhum momento separado
das práticas sociais do grupo, mas se transmite na prática, no âmago da prática, em
uma participação, imitação, identificação entre o dito e o feito.
De acordo com esta lógica social, não há uma distinção entre a linguagem e o
mundo, isto porque, como diria Paulo Freire, a leitura do mundo antecede a leitura
da palavra. Esta lógica social onde estão ancorados os processos de aprendizagem
se difere completamente das formas sociais escriturais, ou seja, formas sociais
escolares de relações sociais. De acordo com Vincent, Lahire e Thin (2001, p.29), as
formas escriturais encerram uma relação de poder e revelam, por meio da escrita, a
existência de saberes objetivados. Isto porque é a escrita que permite a acumulação
da cultura até então conservada no estado incorporado e que vai tornar cada vez
mais indispensável a aparição de um sistema escolar. A escola torna-se o lugar
cada vez mais central, o ponto de passagem obrigatório para um número cada vez
maior de sujeitos sociais que se destinam a atividades e a posições sociais muito
diferentes.
A forma social da escrita, tal como a forma social oral, fazem parte de
um conjunto da formação social. Em uma sociedade “grafocêntrica”, como as
sociedades ocidentais, as formas sociais de escrita são consideradas dominantes e as
formas orais dominadas, o que pressupõe uma relação de poder entre ambas, já que,
quem fala conforme as regras, coloca-se objetivamente em uma relação de poder.
Aqueles que dominam as regras dominam, também, as formas de relações sociais.
Assim, a oposição entre linguagem oral e linguagem escrita, conforme lembra
Lahire (2000, p.52) não é técnica, mas social. Para este autor, as crianças ingressam
familiarmente na escrita de diferentes maneiras; é nas relações de interdependência
entre os membros da constelação familiar que se constroem as formas de controle
de si e dos outros, as relações com a ordem organizam e intensificam, ainda que não
deliberadamente, a aprendizagem da escrita e da leitura, as formas de autoridade
tornam possíveis ou dificultam a construção de disposições culturais mais ou menos
224 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
compatíveis com as políticas disciplinares próprias à ordem escolar (LAHIRE,
1997, p.141).
Pode-se inferir, com essa discussão, que a forma escolar é forma predominante
no modo de socialização das nossas formações sociais, por isso ela é tida como a
forma social dominante. Ela encerra uma organização racional do tempo, transforma
o ensino em uma repetição de exercícios cuja função consiste em aprender conforme
as regras.
Esse modo de socialização dominante, que transforma, por meio de um
trabalho metódico, esquemas mentais em esquemas sociais, é essencial para a
produção e a reprodução das nossas formações sociais, que consiste na reprodução
das hierarquias, das classes, bem como de uma cultura legítima- porque legitimada
por aqueles que estão em condição de julgar e de classificar aqueles que não
dominam a forma dominante de socialização.
Tal predominância justifica-se, para Vincent, Lahire e Thin (2001, p. 38) pelo
fato do modo escolar de socialização ter transbordado largamente as fronteiras da
escola e atravessado numerosas instituições e grupos sociais, como a família, por
exemplo, instituição que aprendeu a pedagogizar o cotidiano. Como lembram os
autores, a tendência de numerosas famílias (principalmente nas classes superiores e
médias) é multiplicar as atividades ‘extra-escolares’ dos filhos, com isso, espera-se
que estes últimos interiorizem a aprendizagem da disciplina, o gosto pelo esforço, a
importância do trabalho metódico, racional e que se curva ao rigor das horas. Todas
as atividades organizadas regulam e estruturam o tempo das crianças: tendem a
garantir sua ocupação incessante, ocupação cuja função consiste não tanto em
enquadrar e vigiar, mas gerar disposições em relação à regularidade, ao respeito
pelo emprego do tempo (2001, p. 41).
Para os autores supracitados, nas classes superiores e médias os pais- e
singularmente as mães- tendem a se tornarem verdadeiros pedagogos para
transformar a relação com os filhos em relações educativas, pedagógicas. Já as
classes populares, sobretudo as mais dominadas no plano cultural, estão mais
distantes do modo escolar de socialização.
Com isso, pode-se inferir que desde Émile Durkheim, há uma teoria global
da socialização que procura colocar em evidência a maneira como a instituição
escolar deve inculcar os saberes, os valores e as normas que permitirão a integração
de todos os cidadãos em um modelo de sociedade: racional e científica, responsável
pela difusão dos valores da modernidade. Neste modo de socialização hegemônico,
as pequenas escolas rurais e do campo foram pouco a pouco sendo vistas como
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
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sinônimos do atraso, de certos particularismos e valores tradicionais que não se
coadunavam mais com o projeto de modernidade, da qual a escola é a grande
partícipe.
A esse respeito, a literatura internacional e nacional concernente à temática
mostra como a transição para uma lógica de pensamento centrada em outros valores
particulares ao mundo rural foi sentida de maneira tão dolorosa no processo de
escolarização para as crianças do campo. A passagem de um esquema prático para
um esquema mental, da casa para a escola, trouxe o seguinte dilema: ter sucesso
na escola pode representar uma ruptura com os valores familiares (ALPE, 2008, p.
185). Como a escola pode continuar mantendo seu projeto, sem deixar de integrar
aqueles que não estão inseridos nesta lógica?
Pouco a pouco o discurso em torno das escolas rurais demonstrou que era
preciso retirá-la de um espaço geográfico que está na contramão do desenvolvimento,
dando margem a uma série de políticas centradas na racionalidade e eficiência dos
gastos públicos e talvez a nucleação das escolas rurais reflita hoje parte destas
preocupações.
A nucleação das escolas do campo
O trabalho de campo da turma de 2008 do curso de licenciatura em educação
no campo resultou em uma ‘pequena cartografia’ acerca da implementação e
desenvolvimento das escolas no espaço onde vivem, bem como a situação atual
das escolas no contexto em questão. O tema da ‘nucleação’ foi recorrente durante o
processo de observação empírica.
O resultado desta pequena ‘sondagem’ revela o quanto ainda há muito por
fazer em termos de políticas públicas para tornar explícito aquilo que ainda parece
implícito. As informações encontram-se ainda truncadas, pois muitos alunos
encontraram dificuldades de naturezas diversas, que vão desde a justificativa da
inexistência dos dados até a indisponibilidade de alguns funcionários públicos em
disponibilizar as informações (ROCHA & MARTINS, 2009).
O problema da nucleação das escolas já aparecia como um desafio para a
política educacional do campo desde o levantamento de Ribeiro (2007), no âmbito
do projeto realizado por meio do edital da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação (ANPEd) nº 2/2006, cujo objetivo era mapear os
trabalhos e pesquisas desenvolvidos no âmbito da Educação do Campo vinculadas
ao Projeto Básico: Educação como exercício de diversidade: estudo e ações em
226 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
campos de desigualdades sócio-educacionais, apoiado pela Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade vinculada ao Ministério da Educação
(SECAD/ MEC).
De maneira geral, é possível perceber, no levantamento realizado por Ribeiro
(2007), as diversas dificuldades que ainda persistem no contexto educacional
do campo. A precariedade continua sendo uma marca da educação no campo e
em vários trabalhos constata-se a recorrência de problemas relacionados à infraestrutura escolar, as escolas distantes do espaço de vivência da população do campo
e que faz com que professores e alunos devam percorrer longas distâncias a pé,
além de colocarem a vida em risco em veículos em condições inadequadas para o
transporte escolar. A merenda e o material didático são, muitas vezes, insuficientes.
Esse último apresenta ainda temáticas estranhas à cultura camponesa.
Nota-se que mesmo havendo uma legislação específica para a educação do
campo, em muitas realidades ela é ignorada. Assim, seja de maneira explícita ou
subliminar, a questão da nucleação das escolas do campo ainda aparece como um
problema e ao mesmo como um desafio colocado aqueles que dependem dessas
escolas.
A realização de uma espécie de ‘cartografia escolar’3 permitiu a coleta das
seguintes impressões:
Tivemos várias dificuldades em acessar os dados (...). Eu fui
com antecedência na secretaria de educação, mas a secretária
me pediu duas semanas para conseguir os dados. Após esse
prazo, quando fiz contato a mesma relatou que ainda não
havia conseguido. Outras duas vezes fui à prefeitura e na casa
dela, mas não a encontrei, deixando sempre recado. Quando a
encontrei, nas vésperas de vir para o LECAMPO, ela disse que
A cartografia é a ciência que tem a proposição de representar o ambiente terrestre em diversas
escalas através de mapas, cartas e recursos gráficos digitais. Têm como origem tempos remotos
quando o homem primitivo representava seu ambiente e a disposição de certos recursos importantes
à sua sobrevivência através de pinturas rupestres. Do início das grandes navegações européias
no século XV aos dias atuais, foram sendo desenvolvidos métodos e tecnologias de captação e
agrupamento de dados matemáticos e astronômicos mais precisos, buscando alcançar maior
exatidão nas representações cartográficas. No campo educacional a cartografia parte do princípio
de que o aluno deve elaborar primeiro um mapa menta a respeito da escola em que está se formando
para atuar. Posteriormente, ele deve fazer o contato com as escolas e ao mesmo tempo proceder
às descrições daquele universo observado: como a escola está organizada e estruturada, quais a
condições físicas e materiais daquela escola, quem são os sujeitos que habitam esse universo, etc.
3
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
227
não teve acesso aos dados porque a prefeitura é recente e não
fez esses dados (ANDERSON E ALBERTO MARTINS).
O que muito me chamou a atenção neste processo de busca
foi justamente a falta de informações referente às questões
solicitadas. O que fica evidente é que os órgãos responsáveis
por documentar e arquivar a ‘vida’ do município não tem
demonstrado a preocupação em registrar essa memória, ou se
tem simplesmente não disponibiliza. E isto não é uma limitação
apenas da secretaria da educação, pois o mesmo aconteceu na
secretaria de saúde do município (HELENA).
Como ressaltam Rocha e Martins (2009), mesmo diante das limitações os
estudantes recorreram a outras fontes, como banco de dados disponíveis em sites
governamentais, livro e ainda o registro oral de moradores da região. No transcorrer
da pesquisa, os estudantes chamaram a atenção para a precariedade das escolas do
campo, seja em relação aos recursos materiais, humano e físico:
As escolas em funcionamento precisam, nos prédios, de
algumas reformas como cercamento do espaço, a construção
de uma área para a prática da educação física, colocar água
tratada e fossa séptica, equipamentos e móveis, além da oferta
de uma merenda adequada (...) no campo político pedagógico
parece estar ineficiente a orientação pedagógica, o material
didático e principalmente, precisa-se da reabertura das escolas
fechadas (JOSILMA - Turma 2008).
Encontramos a maioria dos prédios em condições precárias,
feitos de paredes pré-fabricadas, com mais de 10 anos de
construção, com o telhado em estado de deterioração. As
escolas têm pouco material didático e de consumo. A grande
maioria não está adaptada para a educação infantil, apesar de
ter demanda (HELENA -Turma de 2008).
Um dado significativo presente nestes relatos e evidenciado por Rocha
e Martins (2009) diz respeito à redução do número de escolas no campo. Como
apontam os autores, se as décadas de 1960 a 1980 estiveram marcadas pela
implementação de escolas nas comunidades pesquisadas, a década de 1990 surge
228 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
como o momento do refluxo desta expansão. A diminuição do número de escolas no
campo neste período coincide com o processo denominado de nucleação escolar4 .
Nele, escolas do campo são extintas ou paralisadas e seus alunos remanejados para
escolas pólos, geralmente situadas nas sedes do município. A redução das escolas
pode ser percebida na tabela abaixo:
Município ou comunidade
Virgolândia
Turmalina
Jordânia
Cruzília
Taiobeiras
Sobrália
Frei Inocêncio
Total
Escolas nas décadas de 1960 a
1990
13
55
17
14
26
09
10
144
Escolas nos anos finais da
década de 1990 a década de
2000
04
18
13
03
11
02
03
54
A escola depende da família e a família precisa da escola, a
problemática desta questão está na politização do ensino. A
nucleação rompeu com os laços culturais escolar, impondo sua
política educacional (Alexandre; José Aparecido- Turma de
2008).
Considerações finais
Segundo Canário (2008, p. 33), a heterogeneidade das escolas rurais pode
ajudar a produzir novas práticas pedagógicas, talvez menos alienantes do que o
trabalho escolar que é produzido no contexto das formas escolares hegemônicas.
Por isso, argumenta o autor, a escola rural pode ser um laboratório para se pensar
um outro modelo de escola. Entretanto, as práticas escolares no contexto rural são
ainda pouco estudadas, por isso é importante transformar esse objeto social em
objeto de investigação (CANÁRIO, 2008, p. 34).
Como diz Vidal (2009), invadir a ‘caixa- preta’ da escola, máxima reiterada
nas investigações recentes, tem significado também perscrutar as relações
interpessoais constituídas no cotidiano da escola, seja em função das relações de
poder ali estabelecidas, seja em razão das diversas culturas em contato (culturas
Segundo Vendramini (2006, p. 162) a nucleação escolar refere-se ao processo de agrupamento
de escolas do campo e tem como projeto racionalizar a estrutura e a organização das pequenas
escolas, que contam com reduzido número de alunos e diminuir o número de classes multisseriadas,
orientando-se pelo Plano Nacional de Educação (Projeto de lei 4.173/98).
3
EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
229
infantis, juvenis e adultas, culturas familiares e religiosas, dentre outras). Nessa
perspectiva, a percepção das tensões e conflitos no ambiente escolar e nas formas
como a escola se exterioriza na sociedade vêm matizando a visão homogeneizadora
da instituição escolar como reprodução social (VIDAL, 2009, p. 26).
Se há um consenso de que o surgimento da escola, como vimos, marca
um lugar específico e separado das outras práticas sociais, onde se constituem
saberes escritos formalizados, produzem-se efeitos duráveis de socialização sobre
os estudantes, disseminando a aprendizagem das maneiras de exercício de poder
e propagando o ensino da língua na construção de uma relação escritural com a
linguagem e o mundo, configurando aquilo que Vincent, Lahire e Thin chamaram
de ‘forma escolar’, por outro lado, deve-se reconhecer que a cultura escolar guarda
uma cota de permeabilidade ao câmbio, à troca por parte dos sujeitos envolvidos no
processo educativo, muitos dos quais não se conformam à exterioridade das regras
e buscam construir suas próprias experiências no percurso escolar.
Para Vidal (2009, p. 30), longe de querer desconhecer e desconsiderar a
força dos elementos estruturantes da escola na sua constituição e consolidação
como instituição social, faz-se interessante igualmente reconhecer e valorizar as
alterações que foram sendo inseridas no cotidiano escolar, seja pela iniciativa das
políticas públicas, seja pela ação dos sujeitos escolares. Sendo assim, não obstante
a forma escolar constituir em uma forma homogênea e dominante de socialização,
ela comporta também um lugar de fronteira cultural, de zona de contato, uma vez
que a cultura escolar pode ser percebida como uma cultura híbrida.
Para a autora (2009), os sujeitos também fazem a história da escola e não
são categorias abstratas, impassíveis diante do curso da história. Professores, pais
e alunos passam a ser vistos como sujeitos privilegiados do processo de ensinoaprendizagem, pelas escolhas que efetuam e pelos saberes que produzem (VIDAL,
2009, p. 36). Deste modo, a cultura escolar não deixa de ser uma importante
ferramenta teórica que permite vislumbrar as tensões presentes entre sociedade e
cultura espelhadas pelo jogo escolar e que revelam todas as tensões e contradições
presentes nesta relação.
O tratamento de uma temática considerada ainda incipiente na agenda
investigativa reascende o debate a respeito da emergência de novas práticas
educativas que nos ajudem a pensar criticamente a respeito da forma escolar
instituída. A relativa escassez sobre os modos de socialização escolar e familiar no
contexto rural revela a maneira como o mundo rural é ainda equacionado: de maneira
simplista, como um problema exclusivamente associado ao desenvolvimento,
230 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE
em contraposição ao mundo urbano industrializado. O diagnóstico a respeito
dos ‘problemas do mundo rural’ é ainda percebido pela ótica do déficit cultural
e material: ausência de recursos, falta de racionalidade pedagógica, insuficiência
instrumental etc. A leitura é sempre realizada pela negativa quando Canário (2008,
p. 37) lembra que é justamente a emergência do ‘desvelamento da caixa preta nas
escolas rurais’ o que pode permitir nos desembaraçarmos de uma visão pragmática
que prejudicou o pensamento educativo. Sendo assim, parece fundamental o
exercício da produção de estudos etnográficos no campo que ofereçam elementos
para uma ação mais eficaz tanto do Estado, dos movimentos sociais, quanto da
própria Universidade e seu compromisso com a esfera pública.
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A RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA RURAL/DO CAMPO