Viva o Boi: análise comparada das manifestações culturais dos trabalhadores catarinenses e
pernambucanos no século XIX e início dos XX.1
Beatriz Brusantin, doutoranda em História Social da Cultura
IFCH/UNICAMP – CECULT
Nesta comunicação proponho uma análise comparada do folguedo Bumba meu Boi
dos estados de Pernambuco e de Santa Catarina que tinha como sujeitos trabalhadores negros,
brancos e mestiços. Cada um com sua particularidade, a intenção é uma investigação em
História social sobre a cultura dos trabalhadores do século XIX e início do XX que seja atenta
às realizações festivas dos trabalhadores escravos e livres como indícios da ação de resistência
cultural, social e política.
Assim, mais do que apresentar um trabalho pronto sobre o tema, mesmo porque isso
demandaria uma investigação documental minuciosa referente aos dois estados, a idéia
principal desta comunicação é refletir o uso da história comparada e das pesquisas sobre o
folclore brasileiro na área de História Social como caminhos pertinentes para os historiadores
responderem e elaborarem novas questões sobre os trabalhadores escravos e livres no Brasil.
Dentro das discussões sobre o uso da história comparada2, vale ressaltar que mais do
que apenas elencar diferenças e semelhanças entre duas localidades, a grande contribuição é
que se trata de uma metodologia para se levantar questões até então inquestionáveis sobre
determinadas temáticas ou, em casos que o historiador já tem interessantes questões para
responder, a análise comparada pode esclarecer da melhor forma o problema histórico que
precisa ser resolvido.
1
Texto prévio para apresentação. Pode ser que ocorram modificações até a data do Encontro.
Ver, por exemplo, BLOCH, Marc. Histoire comparée & Sciences sociales. Paris, Éditions de l´École dês
Hautes Études em Sciences Sociales..
2
1
Desse modo, acredito que propor um estudo comparado entre os Bumbas de Santa
Catarina e Pernambuco mais do que proporcionar um panorama das características das duas
manifestações, também abrirá portas para surgirem novas questões a respeito das formas de
sociabilidade e resistência dos trabalhadores rurais em tempos da abolição.Contudo, vale
ressaltar que existe uma outra modalidade da história comparada que é a Cross – Cultural
Comparasion3 que aborda o tema da imigração como uma problemática interessante para ser
refletida a partir da análise aprofundada dos fatores que englobam os processos imigratórios.
Temática, por exemplo, muito abordada nos estudos sobre escravidão transatlântica e a
cultura afro-americana. É nesse sentido que essa comunicação também vem chamar a atenção.
É interessante, portanto, ao estudarmos o Bumba meu Boi catarinense e pernambucano
pensar a cross-cultural como problemática. E no caso estou me referindo a cultura africana e
açoriana. No mais, utilizar o conceito de cultura como algo dinâmico e revelador dos
processos individuais de identidade que os trabalhadores transportados para o Brasil
construíram em momentos de sociabilidade.
Um segundo ponto para melhor discutirmos o tema das festas é lembrarmos da
discussão desenvolvida por Natalie Davis e E. P. Thompson sobre as manifestações dos
charivaris. Como coloca Natalie Davis, em vez de mera “válvula de escape” desviando a
atenção da realidade social, a vida festiva pode, por um lado, perpetuar certos valores da
comunidade (até garantido sua sobrevivência) e, por outro, fazer a crítica da ordem social. 4
Acredito assim, que é necessário ir além das análises de folcloristas que se interessam,
sobretudo, nas próprias formas ou nas suas origens e classificações. Além do mais, é
importante lembrar que a maioria dos nossos folcloristas era branca e da elite intelectual
brasileira. É, portanto, necessário estamos atento ao discurso apropriado dos folcloristas do
século XIX, (Pereira da Costa, por exemplo, fazia parte do grupo de intelectuais
pernambucanos que pertenciam ao Instituto, Histórico e Geográfico Brasileiro).
Uma das questões principais que pode ser abordada com a análise em História Social
dos folguedos é a reflexão sobre a função social dos trabalhadores açorianos e negros na
sociedade oitocentista nos dois estados. Uma das pontes que podemos traçar é entre o mundo
do trabalho e as festas. Em Pernambuco, o Bumba meu Boi tradicionalmente, segundo relatos
de ex-moradores dos engenhos da zona da mata norte acontecia no final da moagem: era a
3
BAILY, Sammuel. Cross-Cultural Camparison and the Writing of Migration History: some thoughts on How
to Study Italiasn in the New World. IN: Immigration Reconsidered. New York, Oxford Univeersity Press, 1990.
4
DAVIS, Natalie. Culturas do povo. Sociedade e cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro, paz e
Terra, 1990. THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo,
Cia das Letras, 1998.
2
pejada. Terminada a moagem, limpava-se a moita do engenho, retirando-se todo o olho de
cana que ficasse. Durante toda a noite os trabalhadores se divertiam, havia farta distribuição
de bolacha e aguardente. O feitor e o vigia estavam presentes para evitar qualquer excesso de
bebida e briga. O senhor de engenho comparecia com a família por algumas horas,
prestigiando a festa.5
Era, portanto, um teatro que se inseria no universo da cana, dos engenhos, da produção
do açúcar e das relações de trabalho escravista e paternalista na qual a mão de obra negra era
imprescindível. Em Santa Catarina não obtive informações se a periodicidade da festa tinha
uma relação estreita com a produção agrícola, porém, o enredo do teatro popular é pautado no
contexto rural.
Além disso, seus sujeitos também se assemelham. Nos dois estados ocorreram as
presenças dos açorianos, africanos e descendentes no trabalho rural e urbano. No caso de
Pernambuco como afirma Marcos Carvalho, houve algumas tímidas tentativas de promover a
migração de trabalhadores endividados açorianos para Pernambuco na segunda metade da
década de 1840. Aqueles trabalhadores embarcavam frequentemente sem passaporte e
comprometiam-se a pagar as passagens com a venda de seus serviços ao chegar ao porto de
destino. Dentro dos próprios navios, os açorianos eram escolhidos pelas elites pernambucanas
e, uma vez comprados os seus serviços pelo preço da passagem, eram desembarcados. No
entanto, as passagens custavam geralmente mais do que deveriam e, os salários oferecidos
eram abaixo da média local. Além disso, queixavam-se as autoridades portuguesas de serem
os trabalhadores selecionados a bordo dos navios, sem nenhum direito a escolha do patrão ou
de um contrato melhor. Segundo, Carvalho, a documentação portuguesa refere-se
frequentemente a importação dos açorianos como um verdadeiro “tráfico de escravatura
branca”. 6
Em Santa Catarina os folguedos relacionados ao Boi (farra do Boi e Boi de Mamão)
sempre foram vistos como uma forma de resistência cultural dos portugueses, portanto, dos
brancos. Vale ressaltar, no entanto, que ocorreu um movimento cultural de “resgate” da
cultura portuguesa na década de 80 que pode ter levado a uma visão reforçada dessa
identidade.7 Certamente a cultura portuguesa, com seus carnavais, máscaras e bois teve sua
importante participação na construção dos festejos do boi em Santa Catarina, todavia, não
5
PEDROSA, Petronilo. Engenho bangue: termos relativos a instrumentos de trabalho, atividades e fatos da
vida social. Faculdade de Nazaré da Mata, Nazaré da Mata – PE, 1977.
6
CARVALHO, Marcus Joaquim. A guerra dos Moraes ( a luta dos senhores de engenho na praieira).
Dissertação Mestrado em História. UFPE, Recife, 1986.
7
Ver: FERREIRA, Sergio. “Nós não somos de origem”. Populares de ascendência açoriana e africana numa
freguesia do sul do Brasil (1780-1960). Tese de doutorado, UFSC, Florianópolis, 2006.
3
podemos descartar a influência na brincadeira da cultura africana, mais especificamente bantu
e angolana.8
De antemão, sem nos apegarmos nas análises estéticas e de origem dos folguedos em
questão, como um trabalho em História Social, a principal questão aqui recai sobre os sujeitos
dessas brincadeiras. E um dado colhido por pesquisador Sergio Ferreira me chama muito a
atenção. Como coloca o autor, em janeiro de 1843 foi preso um “pardo praticando
divertimentos de boi fora do dia permitido”. Os dias permitidos eram os domingos e dias
santos, sobretudo, Natal e Páscoa. Fora desses dias não era permitido práticas o que hoje é
chamado de Farra do Boi.9
Assim, ainda que a nomenclatura tenha sido parda, acredito que negros se divertiam
com o Boi, ainda mais que, como veremos adiante, um dos instrumentos utilizados no
folguedo era a puíta, de origem bantu. Portanto, será uma cultura apenas européia? Ou
melhor, será apenas uma expressão cultural e de sociabilidade dos imigrantes brancos?
Um outro aspecto interessante abordado por Ferreira, foi a questão dos outsides em
uma certa freguesia em Santa Catarina. Segundo o autor, na cidade, no final do século XIX e
início do século XX, fora proibido o Boi na Vara, a Folia do Divino, o Terno de Reis e o
Entrudo. No entanto, nos arraias e freguesias a fiscalização era mais frouxa, os jornais não
tinham tanta influência, de modo, que tudo isso permaneceu entre os “ditos açorianos
fracassados”. 10
Em Pernambuco, o pesquisador Marcus Carvalho percebeu que entre 1830 e 1840 as
mulheres dos estratos médios e altos eram cada vez mais vistas nas ruas do Recife. As
presepatadas populares, os bumba-meu-boi e lundus, que tanto incomodavam os moralistas,
expressavam mudanças que alcançavam as camadas médias urbanas. A participação nesses
folguedos de mulheres que não eram negras nem escravas é um indício do afrouxamento dos
velhos costumes patriarcais de reclusão feminina, que mesmo em declínio ainda teimava em
não desaparecer.11
Nessa perspectiva de análise, podemos observar o Bumba meu Boi de Recife como um
dos meios de expressão das camadas subalternas que almejavam se livrar das amarras da
moral e propor um novo costume. Um novo costume que abrangia mulheres brancas, negras,
negros, mestiços, mulatos, caboclos, trabalhadores do campo. Se pensarmos nas mulheres
8
Ver Ver PIAZZA, W. A. Escravidão Negra numa província periférica. Florianópolis, 1999.
FERREIRA, Sergio. Op cit. 2006, p. 181.
10
FERREIRA, Sergio. Op cit. 2006, p.46.
11
CARVALHO, Marcus de. De portas adentro de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife,
1922 – 1850. In: Revista Afro-Ásia no 29/30 – 2003, p. 41
9
4
logo, sugerimos que estas estavam atacando a sociedade patriarcalista vigente. E se
pensarmos no negro, no branco pobre, trabalhador rural da década de 40 do século XIX?
A intenção aqui é sugerir que ao investigarmos os folguedos como, por exemplo, o
Bumba meu Boi, perceberemos formas de resistência das pessoas pertencentes aos setores
sociais marginalizados da sociedade brasileira urbana e rural dos oitocentos, que, muitas
vezes, eram imperceptíveis aos olhos da elite branca e, às vezes, a primeira vista, invisível nos
documentos oficiais.
Partindo dos vestígios mais remotos sobre a manifestação em Pernambuco,
encontramos o relato do Padre Lopes da Gama no ano de 1840 em um artigo intitulado A
estultice do Bumba Meu Boi:
De quantos recreios, folganças e desenfados populares há neste nosso Pernambuco,
eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e destituído de graça, como o aliás bem conhecido
Bumba-meu-Boi. Um negro metido debaixo de uma baeta é o boi; um capadócio enfiado pelo
fundo dum panacu velho, chama-se o cavalo-marinho; outro, alapardo, sob lençóis,
denomina-se burrinha; um menino com duas saias, uma da cintura para baixo, outra da
cintura para cima, terminando para a cabeça com uma urupema, é o que se chama a caipora;
há além disto outro capadócio que se chama o pai Mateus. O sujeito do cavalo marinho é o
senhor do boi, da burrinha, da caipora e do Mateus. Todo o divertimento cifra-se em dono de
toda esta súcia fazer dançar ao som de violas, pandeiros e de uma infernal berraria o tal
bêbado Mateus. (...)
Além disso o boi morre sempre, sem que nem para que, e ressucita por virtude de um
clister, que pespega o Mateus, coisa mui agradável e divertida para os judiciosos
espectadores. Até aqui não passa o tal divertimento de um brinco popular e grandemente
desengraçado, mas de certos anos para cá não há bumba-meu-boi que preste se nêle não
aparece um sujeito vestido de clérigo e algumas vezes de roquete e estola para servir de bobo
da função.
Quem faz ordinariamente o papel de sacerdote bufo é um brejeirote despejado e
escolhido para desenpenhar a tarefa até o mais ridículo; e para complemento do escárneo
esse padre ouve de confissão ao Mateus, o qual negro cativo faz cair de pernas ao ar o seu
confessor, e acaba, como é natural, dando muito chicotada no sacerdote. 12
Padre Lopes da Gama, o Carapuceiro como era chamado por conta da revista, não era
um religioso comum da sua época, como coloca Valente: faltava a caridade cristã, era
compulsivo e arrogante. Sem rédea nas línguas metia a boca nos costumes e por acidentes na
política, parafraseando seus escritos. Condenava o comércio de escravos, já em regime de
contrabando, e a propósito do cativeiro censurava o comportamento erótico do escravizador e
tudo o que fosse contra as leis, a Religião, os bons costumes e a saúde.13
A revista O Carapuceiro se encaixava nas publicações da época que faziam críticas de
costume usando e abusando do humor, das sátiras, das ironias e do grotesco. Possuía um perfil
12
A estultice do Bumba meu Boi, Padre Lopes da Gama, O Carapuceiro, 11/01/1840. IAHGPE/Recife.
VALENTE, Waldemar. O padre Carapuceiro: crítica de costumes na primeira metade do século XIX.
Departamento de Cultura da SEEC, Recife, 1969.
13
5
liberal, porém com conteúdo moral. O número 1 foi publicado em 7 de abril de 1832 e a
circulação foi até 1834. De 1835 a 1836 suas matérias foram divulgadas no Diário de
Pernambuco e em 1937 voltou a circular avulsamente até 1843.
Como coloca Ivana Lima,
citando Gilbeto Freyre, o período regencial brasileiro foi um momento de frequentes conflitos
sociais e de cultura entre grupos da população – conflitos complexos com aparência de
simplesmente político – que todo ele se distingue pela trepidação e pela inquietação.14
Para a autora, seria genérico demais considerar as disputas políticas do período como
de inspiração liberal, sem considerar um aspecto da cultura política específica daquele
momento, isto é, de seus valores, comportamentos e experiências singulares: o fato de que
eram disputas em torno da identidade. Identidade de “brasileiro” e, em segundo lugar, uma
identidade “racial”, referida às cores dos cidadãos. Porém, o tema das cores não deve ser
entendido não só como atributo físico; o sentido político do “cidadão de cor”, do “brasileiro
pardo” é muito mais rico e complexo do que cor de pele. Cabe-se assim para esse momento
da história uma historicidade das percepções e classificações raciais. E considerar os
múltiplos sentidos da mestiçagem é considerar a rua.15
Nesse relato sobre o Bumba meu Boi é interessante explorar a crítica que os
personagens-atores fazem da figura católica e como o Padre narrador se incomoda com as
cenas. Cenas que mostram claramente o prestígio da figura do Mateus, representando um
negro, em contraposição com a imagem do clérigo que servia de bobo da função. Era uma
cena de conflito entre estratos sociais e também entre as “cores” da sociedade.
Como um drama pastoril, o Bumba é uma teatralização do teatro: a ação não acontece
mais neste ou naquele lugar imaginário, mas no próprio lugar da função. Assim, não se trata
de um padre, mas de um ator representando um padre, numa farsa. Na farsa brinca-se com as
pessoas mais sérias, as de maior categoria social e nisto a farsa se assemelha à tragédia onde
os personagens mais altamente colocados são os que caem para, por contraste, causarem
maior impacto.
A comunicação entre atores e espectadores faz-se franca e informalmente, não só com
palavras, mas com vaias e assobios. Isso dinamiza o teatro uma vez que enriquece o
espetáculo de novos elementos de atração substituindo de elementos socialmente menos
14
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos citado por. LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da
mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003, p.20.
15
LIMA, op cit, p. 20.
6
válidos, por outros mais atuantes e mais condizentes com o gosto e os interesses
momentâneos da comunidade para o qual ele exibe. 16
Observando a forma do teatro do Bumba meu Boi pernambucano, percebemos o
quanto existia espaço no ato da cena para os seus atores (trabalhadores) realizarem através da
farsa críticas às autoridades religiosas e inversão de hierarquias sociais. Podemos tentar
verificar o mesmo no Boi catarinense, e da comparação propor novas questões.
Em Pernambuco e em Santa Catarina, conforme a localidade e a época utilizavam-se
um ou outro personagem. No geral a estrutura se mantinha, porém, os detalhes se inovavam.
Fato que nos leva a atenção justamente para o contexto que esses folguedos aconteciam.
Quanto a forma, é interessante perceber, por exemplo, o quanto em 1840, em Pernambuco se
valorizava a sátira e o deboche na figura do padre e o quanto a figura do Capitão, ou do
senhor ou do capitão do mato é destacada em outro momento. Por outro lado, em Pernambuco
a figura do negro sempre era encenada com o mesmo perfil: uma figura esperta que toma
conta da festa, quer enganar o capitão e toma conta do Boi. Já em Santa Catarina o
personagem Mateus era um ajudante do Vaqueiro que trazia o Boi, fazia suas toadas, brincava
com o público, mas não realizava gestos de afronta direta aos seus superiores. Mas seria isso
alguma representação da subordinação social?
Um bom exemplo para pensarmos essa questão é analisarmos as duas toadas
observadas em 1871 na ilha do Desterro e em 1906 na zona da Mata Norte de Pernambuco.
Nessas passagens há uma inversão: a figura do Cavalo Marinho (Capitão) em Pernambuco é
substitui a figura do Boi em Desterro, ou vice e versa. Em Desterro José Boiteux descreveu
que Pai Mateus ao entrar cena cantava:
Vem meu boi malhado
Vem fazer bravura
Vem dançar bonito
Vem fazer mesura
Vem dançar, meu boi.
Brincar no terreiro
Que o dono da casa tem muito dinheiro. 17
Nas narrativas de Pereira da Costa sobre o folguedo pernambucano, observamos que a
figura do Cavalo Marinho dança a toada:
Cavalo Marinho
Dança no terreiro,
Que o dono da casa
16
BORBA FILHO, Hermílo. Apresentação de Bumba meu Boi. Recife, Imprensa Universitária, 1967.
BOITEUX, José. Águas passadas. In: SOARES, Doralécio. Boi de mamão catarinense. Cadernos de Folclore
27,Rio de Janeiro, FUNARTE, 1978.
17
7
Tem muito dinheiro.
Cavalo Marinho
Que o dono da casa
Tem galinha assada,
Cavalo Marinho
Dança no tijolo,
Que o dono da casa
Tem cordão de ouro.18
Aqui talvez façamos a pergunta óbvia: por que em Santa Catarina o Boi dança a toada
de mesura que o Cavalo Marinho dança em Pernambuco?
Descrevendo o universo pernambucano, Gilberto Freyre interpretando as imagens do
cavalo e do boi coloca que:
A cultura da cana, no Nordeste, aristocratizou o branco em senhor e degradou o índio
e principalmente o negro, primeiro em escravo depois em pária. Aristocratizou a casa de
pedra-e-cal em casa-grande e degradou a choça de palha em mocambo. Valorizou o canavial
e tornou desprezível a mata.
Nesse sistema de relações que dividiu os homens e as suas habitações e a própria
paisagem, em metades tão diferente e até antagônicas, pode-se dizer, para efeito de
generalização, que o cavalo ficou no primeiro e o boi no segundo grupo. E estes foram os dois
grandes animais da civilização da cana de açúcar no Nordeste do Brasil.
Sem o cavalo, a figura do senhor de engenho do Nordeste teria ficado incompleta na
sua dignidade de dono de terras tão vastas e na sua mística de fidalgo de casas-grandes tão
isoladas. Incompleta nos seus movimentos de mando, nos seus gestos de galanteria, nos seus
rompantes guerreiros. 19 (grifos meus)
Acredito que ainda que Freyre venha banhado pela lógica do paternalismo pautada na
rígida divisão entre dominados e dominadores, desenvolvida em Casa Grande & Senzala, a
figura dos animais podiam realmente ser relacionada com a hierarquia vigente.
Em A presença do açúcar na formação brasileira, Freyre coloca que :
O escravo vindo da África não encontrou aqui melhor companheiro do que o boi para
seus dias mais tristes. Para os seus trabalhos mais penosos. Quando depois o boi associou-se
também aos dias alegres do negro de engenho - os de dança, de cachaça, de festa- na figura
do bumba meu boi - é natural que o negro tenha feito desse drama popular um meio de
expressão de muita mágoa recalcada: a glorificação do boi, seu companheiro de trabalho,
quase seu irmão. Já houve quem enxergasse no bumba meu boi a sátira do negro e do índio
oprimido contra a prepotência do branco talvez haja aí exagero e um pouco de retórica.20
Ainda que Freyre faça seu discurso coberto pela noção de raça do seu tempo,
principalmente, quando coloca que o negro via o boi como seu irmão, ainda sim, podemos
18
PEREIRA, Francisco Augusto da Costa. Folk-lore Pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974, p.
268.
19
FREYRE, Gilberto. O Nordeste do Açúcar (crônica -1937). RIEDEL, Diaulas. IN. Os canaviais e os
mocambos. Paraíba, Pernambuco e Alagoas. São Paulo, Editora Cultrix, ?
20
FREYRE, Gilberto. A presença do açúcar na formação brasileira. Rio de Janeiro, IAA, Coleção Canavieira
no 16, 1975, p. 41 e 42.
8
perceber que a imagem para o branco do Bumba meu Boi é a glorificação da figura do boi,
sua exaltação e sua apologia. E seguindo a lógica do autor, se a figura do Boi estava
estritamente ligada com a do escravo, o Auto era uma festividade próxima a essa etnia e ao
setor social que fazia parte.
Para Freyre, a imagem do cavalo fica clara no verso "Cavalo Marinho, maricas meu
bem", parafraseando um trecho na poesia do Bumba pernambucano. Segundo o autor, no
cavalo ele sente o animal meio maricas do senhor; o animal cheio de laços de fita e mesureiro,
o animal urbanizado, civilizado e capaz de graças e mesuras. Para Freyre, essa imagem
ultrapassa o drama do Bumba meu Boi e também se transparece nos nomes dados para
cavalos e bois nos engenhos nordestinos. Para cavalos nomeava-se: Marajá, Rajá, Príncipe,
Guararapes, Sultão, Capitão, Bonaparte, Serinhaém, Monjobem Maipió; para os Bois em
geral, Meia Noite, Malunguinho, Muleque, Tranquinho, Veludo, Desengano. Assim, para o
autor fica claro que se identificava o boi com o escravo negro e o cavalo com o senhor.21
Ainda em cima dessas considerações, podemos nos aprofundar no assunto se
desconstruirmos a visão que Gilberto Freyre tinha do sistema de relações que dividiu os
homens e as suas habitações e a própria paisagem, em metades tão diferentes e até
antagônicas. Prefiro acrescentar às considerações sobre as diferentes imagens do cavalo e do
boi, o conceito sobre paternalismo desenvolvido por E. P. Thompson onde longe está de uma
noção de metades sociais opostas onde as relações são construídas de forma unilateral e
generalizada, e sim a partir de uma construção cultural ambivalente e contextual. Em outras
palavras, sugiro que a forma como acontecia o folguedo evidencia o universo social e político
que estava inserido. Um universo onde as relações sociais entre senhores e trabalhadores
ocorriam hierarquicamente, mas não com uma divisão cultural independente, sem influências
entre dominados e dominadores.
Melhor dizendo, como expõe Thompson, podemos definir o controle nos termos da
hegemonia cultural. Porém, isso deve significar não a renuncia ao intento da análise, e sim
arquitetá-la para os tópicos necessários as imagens de poder e autoridade e as mentalidades
populares de subordinação.22 E por que não também as formas de resistência e/ou harmonia
cultural?
21
É interessante perceber que não eram poucos os processos crimes na região da zona da mata norte de
Pernambuco que envolviam roubou de cavalos. Provavelmente, bois também eram roubados, no entanto, a
pergunta é: qual era a relevância dada a um e outro caso? E as punições? E de outro modo, no "status quo" a
figura do cavalo carregava um signo social mais atrelado ao poder, do que na figura do boi.
22
THOMPSON, E.P. Folklore, anthropology and social history. In: The Indian Historical Review no 2, jan.
1977, v. III, pp 247 –66.
9
Assim, acredito que, em Pernambuco, seja possível uma apropriação da festa do Boi
por africanos vaqueiros, no caso da África central23, mais especificamente povos do sudoeste
da Angola, para expressarem possíveis contestações ao sistema e/ou cultivarem materiais
culturais de seus ancestrais como, por exemplo, a música e seus instrumentos (ganzá, bajo),
suas falas ou no uso de máscaras.
Julio Bello, m Memórias de um senhor de engenho, ao narrar a parte do teatro que
ocorre a morte do Boi, explica que ao aparecer um “fiscal” a exigir a retirada da carniça do
terreiro:
Trava-se a discussão entre ele, “Matheus” e “Catharina”, que são o casal de
palhaços do toda a funcção e se esforçam sempre em falar como os antigos pretos d´Angola
uma arrevesada algaravia, muita vez graciosa e original.24
Bello ao colocar antigos pretos d´Angola, talvez não estivesse falando especificamente
sobre essa nação. Todavia, certamente estava se referindo a uma linguagem, de outra nação
que não a portuguesa ou brasileira, e que de qualquer forma era utilizada como códigos
acessíveis aos brincantes e inteligíveis para as autoridades da platéia. Desse modo, acredito
sim que as figuras Matheus e Catharina fossem representantes de uma dupla resistência:
social, por criar uma linguagem de compreensão restrita a seu grupo, e cultural, por,
possivelmente, usar as falas que faziam referência ao mundo dos seus ancestrais. De certa
forma, estavam construindo a sua identidade.
E no caso de Santa Catarina? Apesar de ser recente a presença do negro na
historiografia sobre o sul brasileiro, as novas pesquisas mostram que mesmo sendo pequeno o
número de africanos e descendentes no estado, estes eram partes integrantes da economia
catarinense. Clemente Penna, por exemplo, aponta que o número de escravos em Santa
Catarina apresenta um grande crescimento a partir principalmente da década de 1830, período
em que teve início o boom do café no vale do Paraíba. O pesquisador José Augusto Leandro
afirma que no século XIX a região recebeu escravos vindos diretamente de portos africanos
durante o período de ilegalidade do tráfico, sendo que muitos deles possivelmente tinham
como destino as propriedades no litoral catarinense.25 Desse modo, é bem provável que
continuaram a entrar escravos na província mesmo a partir da década de 1850, com a
23
Ver artigo de Manolo Florentino, Alexandre Vieira Ribeiro, Daniel Domingues da Silva. Aspectos
comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). In: Afro-Ásia no 31 –2004, p. 83.
24
BELLO, Julio. Memórias de um senhor de engenho. Recife, Ed. Massangana, 1935.
25
PENNA, Clemente. Escravidão, Liberdade e os arranjos de trabalho na ilha de Santa Catarina nas últimas
décadas de escravidão (1850-1888). Dissertação de Mestrado, UFSC, Florianópolis, 2005. Apud: LEANDRO,
José Augusto. Gentes do grande mas Redondo: riqueza e pobreza na comarca de Paranaguá 1850-1888. Tese
de doutorado, UFSC, Florianópolis, 2003.
10
interrupção do tráfico atlântico e o fortalecimento da produção cafeeira. Ao mesmo tempo a
imigração também cresceu nesse período.
Diante dessas pesquisas, podemos sugerir que em Santa Catarina imigrantes brancos e
escravos conviveram no mundo do trabalho e socialmente através, principalmente, das festas
e brincadeiras populares. Não apenas como atores, mas também como sujeitos culturais, isto
é, como responsáveis por novos comportamentos, novas formas de sociabilidade e novas
condutas morais.
É curioso, perceber, por exemplo, que no folguedo de Santa Catarina, a figura do Boi
era mais louvada no Boi de Mamão do que no Cavalo Marinho (Bumba meu Boi)
pernambucano. E se pensarmos sobre a lógica de Freyre: se no Nordeste a figura do Boi
estava mais atrelada ao negro e do cavalo ao branco, será que podemos replantar essa imagem
também para Desterro?
Para Fernando Henrique Cardoso a relação senhorial foi acanhada em Desterro uma
vez que a os escravos majoritariamente ocuparam uma função de trabalho doméstica e não
tanto na área rural.26 No entanto, estudos recentes como de Penna mostra que os trabalhos da
casa e da lavoura se misturavam e os cativos exerciam atividades tanto na roça quanto na
casa.27 Portanto, era bem provável que existisse sim uma relação senhorial semelhante a dos
engenhos pernambucanos, onde o árduo trabalho de fabricação do açúcar se comparava a
dureza da fabricação de farinha de mandioca em Santa Catarina, ou mesmo da cana, uma vez
que, possivelmente, essa produção ultrapassou a outra no século XIX.28 De qualquer modo,
ambos os trabalhos exigiam disciplina, horas de esforço e ritmo desumanos.
Nesse mundo de trabalho como esses trabalhadores construíam seus espaços de
sociabilidade frente a um quadro de repressão social e de heterogeneidade cultural? Como
construíram sua identidade classista em tempos de abolição?
Refletindo um pouco sobre as análises dos folcloristas, destacamos duas origens do
Bumba meu Boi,: uma que coloca o Bumba meu Boi como um arremedo do auto de Gil
Vicente o “Monólogo do Vaqueiro” ou “Auto da visitação”, declamado na câmara da rainha
D. Maria I, em 7 de junho de 1502 e também com influência da tradicional Festa do Minho,
em Portugal.29 Arthur Ramos, por outro lado, salienta que na África havia cortejos e
procissões simbólicos com o Boi (exemplo: Boi Geroa, dos Vanianecas, de Angola). Ressalta
26
CARDOSO, Fernando Henrique. Cor e mobilidade Social em Florianópolis.
PENNA, Op. Cit, p.83.
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CARDOSO, Fernando Henrique, Cor e mobilidade social.
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MELO, G. T. Pereira de. A música no Brasil. Bahia, Tip. São Joaquim, 1908.
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que, para explicar a etiológica do Bumba meu Boi.30, não bastam as origens ameríndias e
européias. A própria nomenclatura Bumba segundo o dicionário de Macedo Soares lê-se :
“bumbo s.m., tambor grande, bombo.Etm. provavelmente do lat bombus tem, entretanto, na
linguagem da Angola, o correspondente mububim tambor grande, caixa redonda, cujo rad.
Bum deu o v. cu-bumbi, arredondar.
Em cima disso, vale destacar que os a base musical utilizada no século XIX no Boi
pernambucano era zabumba e ganzá, ambos de origem africana. E, em 1871, a base do Boi de
Desterro era viola, flauta, violão, e cavaquinho, maioria de origem européia, todavia, a base
era a puíta, instrumento trazido pelos negros bantu.
Diante desses vestígios folclóricos podemos concluir como já fizeram diversos
estudiosos, que essa tal Bumba meu Boi brasileiro que teve e tem suas aparições em vários
estados do país, manifestava-se de diferentes formas. No entanto, a intenção aqui é justamente
atrelar forma com contexto. Desse modo, os pontos cruciais são os sujeitos e suas ações.
Como e por que os trabalhadores do sul e os pernambucanos se apropriavam da brincadeira
como veículos de comunicação sobre seu cotidiano de modo X, Y ou Z?
Como colocamos acima, a discussão política do período regencial brasileiro estava
atrelada também à questão da cor, da identidade do brasileiro, da identidade racial. Falarmos,
portanto em resistência cultural nesse período, seja açoriana e africana, é também falarmos de
resistência racial e, portanto, política. Assim, refletir sobre a apropriação cultural e social do
Bumba meu Boi é questionar não apenas as marcas de um perfil negro ou branco nas festas
praticadas pelos trabalhadores, mas, sobretudo, reconstruir as representações e ações de
resistência ao um sistema hegemônico conforme seu contexto social.
O Boi de mamão (reparem que o boi de Desterro não tem Bumba) possivelmente,
carregava também consigo a cultura africana, pois, além, de verificarmos que negros estavam
presentes no cotidiano catarinense, também constatamos que entre os instrumentos europeus
que se tocava na festa, utilizava-se a puíta. Por outro lado, diferente do Boi pernambucano,
não verificamos dentro da farsa, a figura de grande representação senhorial: o Cavalo
Marinho. Apenas se dizia: cavalinho. Será, no entanto, que era por conta da ausência da
relação senhorial no contexto social ou por conta da lógica do subordinado que agia nesse
sistema social? Talvez seja justamente isso que Thompson nos chame atenção quando fala em
hegemonia cultural e em lógica do subordinado.
30
RAMOS, Arthur. O Folk-lore negro do Brasil. Rio de Janeiro, 1935.
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Assim, se diante dos olhos dos senhores pernambucanos, o teatro do boi era a
confirmação do seu poder na figura do Capitão, na visão dos “subordinados” se falava a
língua dos negros e quem comandava a festa era o negro Mateus com suas piadas e grosserias
acompanhadas pelos instrumentos de origem afro. Em Santa Catarina, com maior quantidade
de imigrantes açorianos entre os trabalhadores, a cultura européia era mais marcante. Na
lógica do espetáculo e de seus sujeitos, no entanto, o grande astro era o Boi que era
comandado pelo Vaqueiro, figura representativa também da origem cultural européia. E aí
temos uma surpresa. Segundo descrições de José Cláudio de Sousa do Boi de Mamão
catarinense diferente do auto nordestino, em vez de se dar a morte do Boi, fato ocorrente nas
outras versões, este é quem investe contra o Vaqueiro e derruba-o. E vem a toada:
Senhor doutor,
Com a sua razão
Vem curar o vaqueiro, ó maninha,
Que o boi botou no chão.31
A economia catarinense no século XIX teve como centro impulsionador a criação de
gado, principalmente na zona do planalto. Em Lajes, por exemplo, havia a exploração em
grande escala do gado, e essa dependia da mão de obra escrava. Existe, portanto, a
possibilidade do Boi de Mamão ter sido um veículo de comunicação e sociabilidade dos
trabalhadores da pecuária. Vale ressaltar, que a figura do Vaqueiro na farsa é derrubada pelo
Boi, que com grandes chances representava o escravo que trabalhava com o gado, mas no
sistema social estava subordinado ao Vaqueiro. Desse modo, sugiro que o folguedo
catarinense também propunha uma inversão social e cultural cotidiana.
Enquanto isso, em 1906, em Pernambuco a resistência se fazia diretamente contra a
imagem da opressão e violência senhorial do universo da cana:
Entra o capitão de campo, perseguindo Fidelis para prender e amarrar como negro fugido.
Canta o coro:
Capitão Colombo
Tome bem sentido,
Leve para casa
O negro fugido.
E o capitão atirando-se sobre Fidelis brada-lhe:
Eu te amarro, cão,
Eu te atiro, negro,
Eu te mato, ladrão.
E Fidelis responde:
Capitão me chama negro
Negro eu não sou não;
Quero que você me diga
31
SOUSA, José Cláudio. Boi de mamão – Ibecc/Cnf. In: DUARTE, Abelardo. Folclore Negro das Alagoas.
Maceió. Departamento Assuntos Culturais, João Pessoa, UFPB, 1974.
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Quantos contos deu por mim.
Tratava-se então uma luta entre ambos, e o Fidelis deitando por terra o capitão amarra-o
com a própria corda que trazia cantando então o coro a esta cena:
Capitão de campo,
Veja que o mundo virou;
Foi ao mato pegar o negro,
Mas o negro o amarrou.
Responde o capitão:
Sou valente e afamado
Como eu, não pode haver;
Qualquer susto que me fazem
Logo me ponho a correr.32
Apostando, portanto, que o negro se manifestava culturalmente e socialmente no
folguedo pernambucano como também no catarinense, vale ressaltar que nas duas farsas
ocorriam a divisão do boi com claras reminiscências ao ritual africano chamado repasto
totêmico, um ritual da caça e do totemismo. E segundo Renato Mendonça, tanto o povo
sudanês como os bantu eram povos totemistas.33
No mais, na historiografia sobre o tráfico negreiro verificamos que até 1852, a lei de
antitráfico foi desrespeitada e, muitos escravos ainda foram transportados para o Brasil. A
partir da década de 50 cessa o tráfico transatlântico e se intensifica o tráfico interprovincial.34
Os vestígios da manifestação popular do Bumba meu Boi em Pernambuco vem desde os anos
40 do século XIX como mostramos acima, e em Santa Catarina a mais remota data de 1871,
assim a probabilidade dos negros terem carregado consigo a tradição é bem grande. O fato, no
entanto é que os trabalhadores se reapropriaram do ritual para teatralizar seu cotidiano de
forma a resistir contra a cultura hegemônica. Pela nova apropriação já temos subsídios para
pensarmos mais afundo a consciência desses trabalhadores: negros, brancos, mestiços,
açorianos, enquanto grupo que conviviam cotidianamente em comunidade e que conforme a
dinâmica sócio- cultural e política desta criavam códigos de comportamento, formas festivas,
teatro, arte e, possivelmente, uma identidade classista.
Para finalizar, acredito que se observarmos os rituais como algo que permeia a vida
social, política e doméstica, podemos trazer à tona caminhos novos de interpretação sobre a
cultura dos trabalhadores como um campo repleto de tensões e resistência à ordem
hegemônica. No mais, pensar os fragmentos folclóricos catarinenses e pernambucanos em seu
32
Relato sobre o Bumba meu Boi de Goiana (PE) datado de 1907. IN: PEREIRA, Francisco Augusto da Costa.
Folk-lore Pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974. IAHGPE/Recife.
33
MENDONÇA, Renato. O negro no folk-lore e na literatura do Brasil. In: Estudos Afro- Brasileiros. Trabalho
apresentados ao 1º Congresso Afro-Brasileiro no Recife em 1934. Recife, FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988.
34
VERGOLINO, José. A demografia escrava no nordeste do Brasil: o caso de Pernambuco – 1800/1888.
Recife, PIMES, no 4, março de 1997.
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contexto reafirma a importância dos estudos sobre escravidão que lançam novos olhos sobre
seus sujeitos.
Concordo, portanto, com a crítica de Paulino Cardoso, quando coloca que um grande
equívoco que podemos cometer é superestimar a força dos sistemas normativos, e logo
confundir desejos e expectativas dominantes com a totalidade das experiências sociais
presentes na sociedade catarinense oitocentista. E que, buscar examinar as experiências, nos
leva a escrutinar o cotidiano em busca daquelas práticas sociais exercidas pelas populações de
origem africana que podem ter contribuído para tencionar até implodir o mundo dos senhores
de escravos, ou, pelo menos, significaram uma intensa resistência a despersonificação social,
a coisificação.35
Assim, acredito que é interessante analisarmos os mitos e ritos que envolvem uma
sociedade. Significados ritualísticos que só podem ser interpretados quando as fontes
(algumas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico, uma
"sobrevivência" e são inseridos no seu contexto total. Pois através deles muito se pode
encontrar sobre as formas de resistência e sobrevivência de comunidades que carregaram
consigo tradições e que no processo histórico e em novos espaços geográficos se
reapropriaram delas para construírem uma nova cultura comportamental e política.
Trabalhadores que livres ou escravos foram sujeitos de suas práticas sociais e a partir delas
delinearam suas histórias, e não a partir do que seus opressores quiseram contar.
35
CARDOSO, Paulino. História e populações de origem africana em Santa Catarina. Relendo Negro em terra
de branco. In: www.multiculturalismo.hpg.ig.com.br.
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