Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Resumo Este texto mostra que as ligações entre a arte e a matemática vêm desde a antiguidade, ambas originadas no desejo humano de lidar com a complexidade dos fenômenos da natureza. São apresentados alguns aspectos históricos e filosóficos da escola pitagórica sendo destacada a sua importância nas investigações entre as relações entre a matemática e a música. É enfocada a importância dada à música na educação desde a antiga Grécia até a Idade Média, quando compunha o quadrivium, ocupando lugar de destaque ao lado da matemática. No presente artigo é explicitado que, da época da escola pitagórica até a Idade Média não houve uma divisão entre ciência e arte. O conhecimento das relações entre música e matemática possibilita a realização de atividades pedagógicas de modo que o estudante estabeleça conexões entre diferentes áreas do saber. Palavras‐chave: Matemática. Música. Educação. Pitágoras. Enilso Jablonski Escola de Educação Básica Raulino Horn [email protected] Tânia Baier Fundação Universidade Regional de Blumenau [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier Introdução No mundo da escola brasileira, o conhecimento é usualmente apresentado aos alunos de forma fragmentada, separado em disciplinas e ministrado por professores com diferentes formações. Os Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática (2001) recomendam que os conteúdos matemáticos trabalhados na escola estejam ligados com os temas das diversas disciplinas. No entanto, constata‐se que ainda se encontra presente na escola o entendimento de que matemática e arte são áreas do conhecimento completamente distintas, separadas pela objetividade científica, sendo aceita a dicotomia estabelecida pela visão de mundo cartesiana. Neste artigo visa‐se explicitar alguns aspectos históricos das relações entre matemática e música, focando o experimento de Pitágoras e a filosofia da escola pitagórica, sendo delineada a sua influência na música ocidental europeia e sua presença na educação. Para Souza (2012), matemática e música foram elencadas para comporem o currículo escolar na Idade Média, ambas igualmente valoradas, mas, na atualidade, na educação escolar, é dada grande importância para o ensino de matemática sendo praticamente inexistente o estudo da música. Tanto a ciência quanto a arte, no que se refere ao ato de criar, respondem à necessidade humana de ordenação, num constante processo de transformação do homem e da realidade que o cerca. Na verdade, nunca foi possível existir ciência sem imaginação, nem arte sem conhecimento. Tanto uma como a outra são ações criadoras na construção do devir humano. O próprio conceito de verdade científica cria mobilidade, torna‐se verdade provisória, o que muito aproxima estruturalmente aos produtos da ciência e da arte. (BRASIL, 1997, p. 34). Os Parâmetros Curriculares Nacionais orientam que a aprendizagem da matemática deve estar relacionada à compreensão, ou seja, à apreensão de significados, sendo que: O significado da matemática para o aluno resulta das conexões que ele estabelece entre ela e as demais disciplinas, entre ela e seu cotidiano e das conexões que ele estabelece entre os diferentes temas matemáticos. (BRASIL, 2001, p. 20). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier No decorrer do tempo, além de representar as imagens observadas, o ser humano passa também a representar, através de figuras, imagens idealizadas, ou seja, fruto apenas de situações imaginadas, aproximando‐se assim da ideia de abstração, da representação simbólica dos elementos. Referindo‐se a tais idealizações, Heisenberg (1995, p. 83) afirma que “[...] podem ser consideradas como parte da linguagem humana, tendo nascido do relacionamento entre nós e o mundo, resposta humana ao desafio da Natureza.” Desde os primórdios da história humana o homem percebeu e admirou a beleza da harmonia em meio à desordem e organizar tal desordem passou a ser um dos principais objetivos do ser humano. Tal organização inicia com a percepção dos padrões de regularidades visíveis. Heisenberg (1995, p. 51), coloca a esse respeito que: Segundo nossos sentidos, o mundo consiste de uma variedade infinita de coisas e eventos, sons e cores. Mas a fim de entendê‐lo, temos que introduzir algum tipo de ordem, e ordem significa reconhecer o que seja igual [...]. Segundo Abdounur (2003), as possíveis ligações entre arte pictórica e matemática desde a pré‐história, levam a crer que em determinado momento, o homem tenha conjecturado relações também entre a matemática e a música, seja pelo som produzido pela corda esticada do seu arco usado para disparar flechas ou pelos diferentes sons produzidos ao soprar ossos de diferentes tamanhos. Esta hipótese reforça‐se através de um artigo publicado na revista Scientific American de setembro de 1997, referente a um osso de urso com idade entre 43.000 a 82.000 anos encontrado nos Alpes da Eslováquia em 1995, apresentando uma configuração de buracos capaz de produzir intervalos musicais de tons e semitons, elementos fundamentais da escala diatônica moderna, como por exemplo dó‐ré‐mi‐
fá‐sol‐lá‐si‐dó. (ABDOUNUR, 2003, p. 7). O ato de contar e desenhar possibilitou ao homem reproduzir em seu mundo um pouco da ordem que ele percebia na natureza. A arte e a matemática estão relacionadas com o desejo humano de entender e se relacionar com o Universo, tendo sido criados diversos modos de expressar: Tanto a ciência quanto a arte construíram, no correr dos séculos, uma linguagem que veio permitir que possamos falar sobre as partes mais recônditas da Realidade; e os conjuntos consistentes de conceitos da ciência, assim como os estilos de arte, são como palavras ou grupo de palavras diferentes nessa mesma linguagem. (HEISENBERG, 1995, p. 84). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier A matemática surge em diversos continentes, com suas características próprias, porém sempre buscando a solução de questões relacionadas ao espaço, à contagem e a explicação dos fenômenos da natureza. De modo similar, artistas de diferentes culturas se expressaram de diversos modos, no decorrer do tempo, criando vários estilos. Um estilo de arte pode também ser definido por um conjunto formal de regras que são aplicadas ao objeto dessa particular arte. Tais regras não poderão, talvez, ser representadas stricto sensu, por um conjunto de conceitos e de equações matemáticas, embora seus elementos fundamentais estejam bem de perto relacionados com entidades básicas da matemática. Igualdade e diversidade, repetição e simetria estarão provavelmente presentes e certas estruturas de grupo (no sentido matemático do termo) terão um papel fundamental tanto em arte quanto em matemática. (HEISENBERG, 1995, p. 83). A seguir são apresentados alguns aspectos históricos das relações entre matemática e música, iniciando na escola pitagórica e desembocando na Idade Média. Matemática e Música: uma breve visão histórica da escola de Pitágoras A investigação de Pitágoras sobre as relações entre uma corda vibrante e matemática a música originaram o sistema musical desenvolvido no mundo europeu ocidental. Pitágoras foi um filósofo e matemático grego, nascido na ilha de Samos, por volta de 570 a.C. e 580 a.C. Sua biografia é cercada de lendas, pouco se pode afirmar com certeza sobre sua vida, em parte, devido à inexistência de documentos daquela época. Pitágoras, com seu monocórdio, teria realizado uma das primeiras experiências registradas na história da ciência. Esse instrumento, composto por uma única corda estendida, poderia ser tocado em lugares calculados e assim, gerava sons agradáveis ao ouvido humano e que mantinham relações aritméticas. Pitágoras é visto como uma figura imprecisa historicamente no que se refere às suas obras, pois nenhuma delas sobreviveu ao tempo (BOYER, 1996). As informações sobre Pitágoras e sua escola são apoiadas em tradições persistentes ou em manuscritos e relatos escritos vários séculos depois da sua existência. Uma dessas fontes de apoio é do século V d.C., o Sumário Eudemiano de Proclus: Um discípulo de Aristóteles chamado Eudemo de Rodes (viveu por volta de 320 a.C.) escreveu uma história da matemática. Essa perdeu‐se, mas X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier antes de desaparecer alguém resumiu ao menos parte dela. O original desse resumo também se perdeu, mas, durante o quinto século de nossa era, informação extraída do sumário foi incorporada pelo filósofo neoplatônico Proclus (410‐485) nas páginas iniciais do seu Comentário sobre o primeiro livro de Os elementos de Euclides. (BOYER, 1996, p. 32, grifos do autor). Este autor considera que Pitágoras tenha viajado pelo Egito, Babilônia e Índia e, desses antigos centros do conhecimento, talvez tenha trazido saberes sobre geometria, astronomia e religião. No retorno de suas viagens teria se instalado em Crotona, na costa sudeste da atual Itália, e fundado uma sociedade secreta que ficou conhecida como escola pitagórica. Ela foi uma espécie de confraria mística e filosófica que se propunha a purificação do corpo e do espírito e teve, como uma das principais características, a confiança que mantinha no estudo da matemática e da filosofia como base moral para a conduta. Conforme Sousa (1996), a purificação do corpo se daria pela austeridade do viver e alimentação adequada, enquanto a purificação do espírito seria alcançada através do cultivo da ciência pura, objetivando a sabedoria. Segundo Boyer (1996), as palavras filosofia (ou amor à sabedoria) e matemática (ou o que é aprendido) teriam sido criadas por Pitágoras para definir suas atividades intelectuais. Em sua investigação sobre a história da medicina, Sousa (1996) constata que os membros da escola pitagórica formavam uma comunidade que seguia normas rígidas de conduta, bem como um conjunto de regras de cuidado com o corpo e com a alma. O estilo de vida saudável dos pitagóricos, fundamentado em uma dieta com proibição de certos alimentos como carnes e feijões, estabeleceu um modo de praticar a medicina ainda presente na atualidade. Segundo Heródoto, historiador grego nascido no século V a.C., os pitagóricos usavam sempre uma bata branca e limpa, estudavam, praticavam o silêncio, a meditação, exercícios físicos e eram vegetarianos. Sousa (1996, p. 42) avalia que, antes de Pitágoras, o conceito de doença tinha um caráter sobrenatural e, a partir de seus ensinamentos, passou a ser visto de forma mais científica: Também a vida e a saúde dependem da harmonia das qualidades dos componentes do corpo. Compreende‐se que, para os pitagóricos, a doença resulte da quebra ou da perturbação desta harmonia e que os meios mais adequados para restabelecer a saúde sejam os jogos e os X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier exercícios ginásticos, os passeios ao ar livre, a audição de música suave, a alimentação frugal e a vida austera. Boyer (1996, p. 33) sugere que o vegetarianismo era praticado “[...] porque o pitagorismo aceitava a doutrina da metempsicose, ou transmigração das almas, com a preocupação consequente de que se podia matar um animal que fosse a nova moradia da alma de um amigo morto”. A doutrina da metempsicose ou transmigração de almas, seguida pelos pitagóricos teve suas origens no orfismo, que cultuava Orfeu, um dos personagens da mitologia grega, com habilidades musicais. Segundo a mitologia grega, os homens ganharam dos deuses o dom da melodia, porém não sabiam usá‐lo até surgir Orfeu (filho da musa Calíope e do deus Apolo), um poeta de grande habilidade musical. Orfeu foi o primeiro mortal capaz de entender a arte da música. Seu canto, acompanhado do som de sua lira, presente de seu pai, exercia grande poder sobre a natureza, sendo capaz de acalmar mares e fazer animais, pedras e árvores dançarem ao som de sua música. O orfismo, um culto religioso da antiga Grécia, tinha como uma de suas características a crença na imortalidade da alma, bem como a sua transmigração, ou seja, seus adeptos acreditavam que após a morte do corpo de um indivíduo, sua alma migraria para outro corpo, num ciclo penoso, como sendo um processo de purificação da alma. A partir do orfismo é introduzida na civilização grega uma nova interpretação da existência humana. Até então a concepção que se tinha era a do homem com uma alma desconhecida, sendo que esta se perdia após a morte, pondo um fim definitivo na existência do indivíduo. Com o orfismo essa concepção muda, pois, além de proclamar a alma como sendo imortal, também atribui a ela a personalidade do indivíduo, e lhe credita a capacidade de evoluir, nesta e em outras vidas, até chegar próxima da perfeição. Para os órficos, os meios de purificação da alma eram as celebrações e os ritos simbólicos que ajudavam o homem a ter um total controle de sua vida, buscando aperfeiçoar‐se, com o objetivo de encerrar o ciclo de reencarnações (REALE, 1993). Os gregos antigos davam especial importância à música em suas celebrações, pois acreditavam em práticas religiosas que conduzissem ao entusiasmo. Mas se orfismo e pitagorismo coincidem em remeter o sentido da vida a um ultraterreno fim escatológico e em atribuir às “purificações” o meio X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier para libertar a alma do ciclo das reencarnações e levá‐la a unir‐se com o divino ao qual pertence, diferenciam‐se em seguida nitidamente na escolha dos instrumentos e dos modos com os quais acreditam obter a purificação da alma. (REALE, 1993, p. 88). Pitágoras e seus seguidores, mesmo conservando muitas das crenças órficas, mudaram os meios para se chegar ao objetivo da purificação de suas almas, concentrando‐se inicialmente na música e em seguida no estudo da matemática: “[...] começaram a atribuir à música e, posteriormente, à ciência, o meio de purificação [...]” (REALE, 1996, p. 386). Para Boyer (1996), o interesse dos pitagóricos estava no estudo das propriedades dos números. Acredita‐se que a escola pitagórica tinha sua filosofia baseada no lema Tudo é Número. Para eles, número era harmonia e o número estaria em todas as coisas. Nesse sentido, estudar a estrutura numérica existente em todo o Universo seria o equivalente a um processo de purificação da alma: A purificação da alma dos pitagóricos era realizada em parte por um regime físico estrito e em parte por ritos que lembram os dos adoradores de Orfeu e Dionísio; mas as harmonias e mistérios da filosofia e da matemática eram partes essenciais desses rituais. (BOYER, 1996, p. 34) O número era considerado pelos pitagóricos como sendo a essência de tudo o que existe e sem ele nada poderia ser conhecido: “[...] é um universo constituído pelo número, como o número e segundo o número. E não só na sua totalidade, mas também nas suas partes individuais e em cada uma das coisas nele contidas [...]” (REALE, 1993, p. 85). O autor relata que os pitagóricos tinham o número como princípio fundamental de todas as coisas e pretendiam conhecer a linguagem da harmonia do universo ao se dedicarem ao estudo da aritmética, da geometria, da música e da astronomia. Na visão pitagórica, todos os elementos do universo deveriam estar em harmonia e esse universo seria constituído pelo número, não só na sua totalidade, mas em cada uma das coisas que nele existem. Sendo assim, para que todo o universo estivesse em harmonia, ele deveria estar ordenado pelos princípios dos números. Estudando os variados fenômenos desse universo ordenado, perceberam a presença determinante de leis numéricas em inúmeras situações, como por exemplo, na determinação das estações do ano, no período de incubação de um embrião e nos ciclos de desenvolvimento da vida de diversos seres. A partir dessa crença no poder do número, o mundo deixa de ser X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier domínio de forças misteriosas e torna‐se transparente ao espírito humano. Além dos pitagóricos utilizarem a música para curar o corpo e elevar a alma, eles acreditavam também que a música terrestre era uma espécie de eco da universal música das esferas (REALE, 1993). Bronowski (1992) comenta que Pitágoras e seus seguidores consideravam a possibilidade de calcular órbitas dos corpos celestes relacionando‐as aos intervalos musicais, pois, para eles, todas as regularidades naturais eram musicais. Acreditava‐se naquela época que cada uma das esferas planetárias correspondia a uma diferente nota da escala musical. Pitágoras dizia que cada um dos sete planetas produzia, através de sua órbita, uma nota da escala musical de acordo com sua distância do centro imóvel que era a Terra. A combinação desses sons foi denominada de Música das Esferas. Essa música estaria presente em todos os lugares e regeria todos os ritmos da natureza, ou seja, seria como o som da harmonia do universo. A esse respeito, Reale (1993, p. 86) comenta que se todo o universo é harmonia e número e que a própria música é harmonia e número, não parecerá admirável que os pitagóricos pensassem que os céus, girando segundo o número e harmonia, produzissem belíssimos concertos, uma celeste música das esferas: música que nós não ouvimos, ou porque, habituados a ouvi‐la desde o nascimento, não a distinguimos mais, ou porque nossos ouvidos são inadequados para percebê‐la. Porém, a ideia de número concebida pelos pitagóricos difere um pouco daquela que temos dele atualmente. Hoje, entendemos o número como algo puramente abstrato, que só existe na nossa mente. Já os pitagóricos viam o número no seu sentido mais original, representando‐o como um conjunto de pedrinhas ou de pontos desenhados, dando a eles um caráter geométrico espacial, uma vez que essas figuras ocupavam espaço. Dessa forma, relacionar os números (figuras) às coisas se torna mais natural. “Números e coisas são, portanto, pensados como espacialmente determinados, vale dizer, são postos no mesmo plano.” (REALE, 1993, p. 84). Segundo Boyer (1996), os números eram vistos na escola pitagórica como entes com características de sexo e personalidade. A classificação dos números em masculinos ou femininos era feita de uma forma análoga aos ímpares e pares, apenas com exceção do número 1, que não era nem masculino, nem feminino, pois representava a unidade e X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier era capaz de gerar todos os outros números a partir da adição de si mesmo. Os pitagóricos tinham uma admiração especial pelos quatro primeiros números. O número 1 era o número da razão; o número 2 era o primeiro número feminino e simbolizava a opinião e a diversidade; o número 3 era o primeiro número masculino e representava equilíbrio, harmonia; o número 4 era o número da justiça e era o segundo número feminino. A soma desses quatro primeiros números (1+2+3+4=10) compunha a tetractys ou década que representava o número perfeito, símbolo da saúde e da harmonia do universo. O tetractys servia aos pitagóricos como uma espécie de chave para realizar as diversas interpretações numéricas nas disciplinas por eles cultivadas (aritmética, geometria, música e astronomia). O pitagórico Filolaus escreveu sobre ele como sendo “grande, todo‐poderoso e gerador de tudo, o começo e o guia da vida divina e terrestre.” (BOYER, 1996, p. 37). Uma das interpretações numéricas é a que se aplica aos intervalos musicais. Os pitagóricos perceberam que esses intervalos são produzidos por diferentes sons que correspondem a medidas inteiras e estudavam essas relações de som a partir de um instrumento de uma única corda, chamado monocórdio. Reale (1993, p. 79) considera que: [...] os pitagóricos notaram como a música (que cultivavam como meio de purificação) era traduzível por número e por determinações numéricas; a diversidade dos sons que produzem os martelos ao bater sobre a bigorna depende da diferença do seu peso; a diversidade dos sons de um instrumento de cordas depende da diferença do comprimento das cordas; e, em geral eles descobriram as relações harmônicas de oitava, de quinta e de quarta e as leis matemáticas que as governam. Segundo Doczi (1990, p. 8), Pitágoras descobriu que “cordas tangidas ao mesmo tempo soam melhor quando são iguais ou quando uma tem 1/2, 2/3 ou 3/4 do comprimento da outra”. Os comprimentos das cordas tangidas se relacionam fundamentalmente em proporções expressas nos números inteiros: 1, 2, 3 e 4. A proporção 1:1, que é a identidade, é chamada de uníssono. A proporção 1:2, que produz o mesmo som da corda inteira, apenas mais agudo, é chamado de oitava porque alcança os oito intervalos da escala (as oito teclas brancas do teclado). Os gregos chamavam a essa proporção diapason: dia, “através”; pason, de pas ou pan significando “tudo”. O som agradável da proporção 2:3 era chamado diapente (penta, cinco), hoje em X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier dia chamado de quinta, por abranger cinco intervalos. A consonância da proporção 3:4 era chamada diatessaron (tessares, “quatro”) ou quarta. (DOCZI, 1990, p. 8). Dado o fascínio que os pitagóricos tinham pelos números, em especial pelos quatro primeiros que compunham o tetractys, pode‐se entender a interpretação que tiveram quanto aos sons gerados pelas divisões da corda nessas razões: O pensador de Samos justificou a subjacência de pequenos números inteiros às consonâncias pelo fato de que os números 1, 2, 3 e 4 – envolvidos nas frações mencionadas‐ geravam toda a perfeição. Os pitagóricos consideravam o número quatro – primeiro quadrado par – origem de todo o universo, todo mundo material, representando a matéria em seus quatro elementos integradores: o fogo, o ar, a terra e a água. (ABDOUNUR, 2006, p. 6). Talvez a direção do pensamento pitagórico tenha levado a importante descoberta matemática: a teoria das proporcionais. Supõe‐se que Pitágoras tenha conhecido na Mesopotâmia as três médias: aritmética, geométrica e harmônica, bem como a proporção áurea que relaciona duas delas “[...] o primeiro de dois números está para sua média aritmética como a média harmônica está para o segundo número” (BOYER, 1996, p. 38). Importantes contribuições na teoria musical foram atribuídas ao pitagórico Arquitas de Tarento (428 – 347 a.C.) que, dedicando‐se principalmente às proporções musicais, relatou em seus trabalhos que, “[...] diante de uma consonância, o ouvido exigiria a escuta de apenas um som, ou seja, apesar de haver duas ou mais notas, estas fundir‐se‐iam ouvindo o acorde resultante como um som único.” (ABDOUNUR, 2006, p. 15). Ainda segundo esse autor, atribui‐se a Arquitas a caracterização do som como resultado de pulsações de ar que produzem sons mais agudos ou mais graves, dependendo da velocidade como são propagados. Tal enunciado de Arquitas precede assim a relação de frequência com altura musical explicada mais tarde por Galileu. A música na educação Para Pitágoras e seus seguidores, o sistema de sons e ritmos musicais, regidos pelo número correspondia à harmonia do cosmos, e também Platão, alguns séculos mais tarde, tomou a música das esferas como modelo ideal do cosmos e também da vida em X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier sociedade. Na antiga Grécia, a música como forma de expressão, tinha o poder de influenciar e modificar a natureza moral do homem e do estado. Segundo Wisnik (1989), para Platão, a música pode funcionar tanto como elemento de harmonia, como de destruição, dependendo do gênero musical. Devido à questão problemática da correspondência entre o ideal da harmonia das esferas e a realidade concreta da música e da sociedade, é que Platão discute amplamente em sua obra, A república, o papel político‐pedagógico da prática musical. Platão busca estabelecer um crivo que separa a música adequada à ordem pública daquela considerada dissolvente, que arruinaria os fundamentos da vida social. Em primeiro lugar estariam as músicas que ajudam o cidadão a encontrar o equilíbrio, a elevação, ou seja, a aproximação com os deuses. Esta seria a música gerada pela lira, pela cítara. Todos os outros tipos de música levariam os homens à decadência, à degeneração. Seriam estas as músicas rítmicas, enfim, todas as músicas populares. Deste modo [...] a música é ambivalentemente um poder agregador, centrípeto, de grande utilidade pedagógica na formação do cidadão adequado à harmonia da pólis e, ao mesmo tempo, um poder dissolvente, desagregador, centrífugo, capaz de pôr a perder a ordem social. (WISNIK, 1989, p. 101). Conforme Grout e Palisca (2001), Aristóteles, filósofo grego, também tentou explicar como a música agia sobre a vontade humana através da doutrina da imitação. Segundo ele, a música representa os estados da alma (brandura, ira, coragem, temperança, bem como seus opostos). Isso significa que se ouvirmos músicas inadequadas poderemos nos tornar pessoas más, enquanto que, se ouvirmos músicas adequadas, tenderemos a nos tornar pessoas boas. Tanto Platão quanto Aristóteles concordavam que seria possível, através da educação, produzir indivíduos bons para a sociedade. Essa educação seria pautada na disciplina do corpo (através da ginástica) e na do espírito (através da música): Na República, escrita por volta de 380 a.C., Platão insiste na necessidade de equilíbrio entre estes dois elementos na educação: o excesso de música tornará o homem efeminado ou neurótico; o excesso de ginástica torná‐lo‐á incivilizado, violento e ignorante. “Àquele que combina a música com a ginástica na proporção certa e que melhor as afeiçoa à sua alma bem poderá chamar‐se verdadeiro músico”. (GROUT e PALISCA, 2001, p. 21). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier Em muitos momentos históricos observa‐se a proibição de determinados tipos de músicas, como por exemplo: nas primeiras constituições de Atenas e Esparta, nos escritos dos padres da Igreja, nas ditaduras (fascistas e comunistas) que procuravam exercer certo controle sobre as atividades musicais. Ainda hoje a igreja estipula quais tipos de música serão aceitos nos seus ofícios religiosos, bem como ainda há entre os educadores a preocupação sobre o tipo de música, imagens ou textos expostos aos jovens (GROUT e PALISCA, 2001). Monroe (1972, p. 45) relata que a música, como componente do currículo grego era entendida num conceito mais amplo do que aquele que temos dela nos dias de hoje. Ao termo música como disciplina, estavam incluídas as atividades: poesia, drama, história, oratória, ciência e a própria música no seu sentido mais restrito. Era nas escolas de música que os jovens gregos passavam grande parte do seu tempo, quando não estavam realizando atividades de lutas e exercícios ginásticos. Nessas escolas, desde os primeiros anos da infância, os jovens dedicavam‐se a decorar os poemas homéricos. Em seguida, incluíam‐se as obras de poetas líricos e didáticos. Porém, além da memorização de poemas, as atividades escolares também consistiam na explicação do significado de palavras e frases, em seus sentidos mais obscuros. Nos anos seguintes, após o domínio desta literatura, ensinava‐se os meninos gregos a cantar esses poemas e a tocar lira, cujo som servia de acompanhamento ao canto. Ao ensinar a tocar a lira, não se esperava obter apenas o domínio ou habilidade técnica do aprendiz. Esperava‐se que o jovem, ao dedilhar uma lira, improvisasse um acompanhamento harmonioso a cada trecho do poema. Desse modo, exigia‐se do aluno uma profunda compreensão e interpretação do poema, bem como a habilidade de criação na realização do acompanhamento musical. Na verdade, é de duvidar que a educação, como processo de desenvolvimento de poder criador – poder de expressão, de iniciativa e de apreciação – tenha, em tempo algum, atingido resultados mais fecundos. É nesse sentido que os gregos tanto esperavam e tanto realizaram por meio da educação musical. (MONROE, 1972, p. 46). Conforme Boyer (1996, p. 49), o pitagórico Arquitas considerava que a música tinha fundamental importância na educação das crianças e teria sido atribuído a ele a sua indicação nos quatro ramos no quadrivium matemático: “aritmética (ou números em repouso), geometria (ou grandezas em repouso), música (ou números em movimento) e X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier astronomia (ou grandezas em movimento).” Juntos com o trivium (gramática, retórica e dialética), esses temas formaram, posteriormente, na Idade Média, as Sete Artes Liberais que vieram a ser consideradas como uma espécie de bagagem cultural necessária de uma pessoa educada. Para Monroe (1972, p. 112), o que se tinha na Idade Média, no que diz respeito a conhecimento, era apenas um esboço de todo o saber desenvolvido nos poucos séculos anteriores. A maioria das obras originais já havia se perdido e o conhecimento se pautava no saber dos antigos e em resumos organizados por homens mais instruídos, geralmente do quinto século. Para designar o conjunto destes saberes é que surgiu a expressão as Sete Artes Liberais. Apesar de Platão já ter ressaltado as diferenças entre as matérias do trivium e do quadrivium, foi na Idade Média que essa divisão em sete se consolidou, possivelmente pelas tendências religiosas e simbólicas da época. Dificilmente se avalia a extensão e o valor do saber na Idade Média sem examinar o conteúdo destas artes liberais. A geometria, por exemplo, incluía os rudimentos de geografia, a astronomia incluía a física, a gramática incluía a literatura, a retórica incluía a história. (MONROE, 1972, p. 113). Segundo Berlinghoff (2010), na Europa medieval, surgiram as “escolas catedrais” que se destinavam à preparação dos futuros religiosos, cujo ensino se concentrava na antiga tradição do trivium e do quadrivium. Souza (2012) comenta que a música no quadrivium, ocupava lugar de destaque ao lado da matemática. Segundo essa autora, “a matemática continua ocupando lugar importante no currículo, desde o primeiro ano do Ensino Fundamental até o último do Ensino Médio, porém a música como disciplina é praticamente inexistente nos currículos atuais”. No Brasil, a Lei nº 11.769, de agosto de 2008, torna a música uma disciplina obrigatória nos currículos escolares de nível fundamental e médio e têm acontecido dificuldades para a sua implementação. Considerações Finais Para que ocorram ligações, na escola contemporânea, entre o estudo da música e da matemática, é importante o conhecimento dos momentos históricos em que estavam X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.13
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Aspectos Históricos e Filosóficos das Relações entre Matemática e Música Enilso Jablonski ‐ Tânia Baier interligadas. No presente artigo mostrou‐se que, da época da escola pitagórica até a Idade Média, não há uma divisão entre ciência e arte, as quais foram criadas na medida em que foram necessárias para superar os anseios e necessidades do ser humano diante da complexidade da natureza. Particularmente o experimento de Pitágoras revela as relações entre música e matemática, podendo ser realizado na escola. Atividades pedagógicas que enfoquem o experimento do monocórdio, acompanhadas de reflexões sobre as relações entre música e matemática, podem contribuir para a aprendizagem da arte e da matemática de modo que o estudante estabeleça conexões entre elas e seu cotidiano, conforme orientam os Parâmetros Curriculares Nacionais. Referências ABDOUNUR, Oscar João. Matemática e música: o pensamento analógico na construção de significados. 3. ed. São Paulo: Escrituras, 2003. 333 p. BERLINGHOFF, William P.; GOUVÊA, Fernando Q. A matemática através dos tempos.2. ed. São Paulo: Blücher, 2010. 257 p. BOYER, Carl B. História da matemática. 2. ed. São Paulo: Blücher, 1996. 496 p. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: matemática. 3. ed. Brasília, 2001. 142 p. v. 3 ______, Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília, 1997. 130 p. v.6 BRONOWSKI, Jacob. A escalada do homem. São Paulo: Martins e Fontes, 1992. 448 p. DOCZI, György. O poder dos limites: harmonia e proporções na natureza, arte e arquitetura. São Paulo: Mercuryo, 1990. 149 p. GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 2001. 759 p. HEISENBERG, Werner. Física e filosofia. 3. ed. Brasília: EDUNB, 1995. 158 p. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.14
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