ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO PRODUTIVO E DA CULTURA:
OS INTELECTUAIS ORGÂNICOS E SUAS FUNÇÕES
Ricardo Ramos Shiota1
INTRODUÇÃO.
Gramsci2 pode ser lido como um filósofo da práxis ou, quem sabe, um intelectual
orgânico do movimento operário comunista italiano dos decênios iniciais do século XX.
Teve ele um importante papel pela sua práxis ou atividade política-revolucionária como
também pela sua contribuição ao marxismo, o qual estava sendo aviltado daquilo que os
fundadores – Marx e Engels – criaram em razão de incursões positivistas, mecanicistas
e economicistas de interpretação, marcantes na II Internacional Comunista. Os
intelectuais, categoria histórica que Gramsci propõe-se a pensar, não são compreendidos
de modo estanque aos conceitos, às teorias e às formas de apreensão do real que ele
herdou, principalmente, da tradição inaugurada por Marx.
A questão dos intelectuais está estritamente elaborada por meio das concepções gerais
de Gramsci e não enquanto aspecto isolado de sua obra. Assim, conforme Beired
(1998), se etimologicamente a palavra intelectual advém do termo intelligentsia3, criado
na Rússia czarista do século XIX, tendo sido traduzida para o termo intelectual na
França após o caso Dreyfus, no qual o capitão Affaire Dreyfus foi condenado sem
provas por espionagem em favor da Alemanha, tendo havido um manifesto em seu
favor, pelo qual houve a consagração da palavra, em ambos os casos denotando
posições políticas, Gramsci reelabora essa categoria histórica à luz de sua obra. Se os
1
Discente do curso de Mestrado em Ciências Sociais no Programa de Pós-graduação da Faculdade de
Filosofia e Ciências – Universidade Estadual Paulista – Campus de Marília – [email protected]
2
Nascido em 1891 no sul da Itália (Sardenha), Gramsci obteve uma bolsa de estudos na Universidade de Turim em
1911, ingressou no Partido Socialista Italiano em 1913 onde começou a escrever para jornais socialistas. Em 1919
participou da fundação de um seminário socialista em Turim, o L’ordine Nuovo, cujo objetivo era o de ser porta voz
do movimento dos conselhos de fábrica a fim de traduzir as lições da Revolução Russa ao contexto italiano. No ano
de 1921 ele fez parte do núcleo fundador do Partido Comunista Italiano, tendo sido eleito para o Parlamento em 1924.
No contexto da ascensão do Regime de Benito Mussoline, Gramsci foi preso em novembro de 1926 e condenado a 20
anos de prisão. Encarcerado se empenhou em dar continuidade ao seus escritos por meio de cartas e cadernos escritos
na prisão que foram juntados em livros. Gramsci passou vários anos com a saúde debilitada e acabou sendo solto do
cárcere antes de falecer em 1937 quando a revolução comunista havia sido reprimida e fracassada na Itália
(SASSOON, 1988, p. 165-167).
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“ Intelligentsia definia um novo grupo social surgido na Rússia no século XIX, isto é, uma camada de indivíduos
cultos e preocupados com assuntos públicos que, constituída inicialmente por nobres, passou a ter percepção de si
mesma como um grupo social particular” (BEIRED, 1998, p. 123).
intelectuais, comumente, são tratados pelas suas capacidades cognitivas, sua
sensibilidade em relação a valores gerais e seus procedimentos de trabalho, por aquilo
que lhes seria intrínseco, Gramsci os analisa no âmbito de uma totalidade e à luz de uma
hegemonia (capacidade de direção do processo produtivo e simbólico) estabelecida, isto
é, a categoria histórica dos intelectuais seria um concreto pensado, síntese multifatorial
que não é vista pelas suas especificidades, mas pelas relações entre singularidade,
particularidade e universalidade.
OBJETIVOS
Os intelectuais pouco escrevem sobre aquilo que fazem: refletem menos acerca de seus
papéis e o que os diferencia em relação às demais ocupações e profissões do que sobre
os mais variados temas que se propõem a pensar. Pensá-los não significa,
necessariamente, tratar de especialistas das ciências humanas, de filósofos e
historiadores da filosofia, em suma, de homens que se ocupam com atividades do
intelecto, da cultura, das letras, ou da bildung, como bem mostra Gramsci. Neste artigo
é elucidada a categoria dos intelectuais orgânicos no pensamento do filósofo da práxis
italiano por meio de uma breve referência metodológica ao seu pensamento.
METODOLOGIA.
O Materialismo histórico e dialético apreende o real e entende o conhecimento como
práxis, isso o diferencia em relação às demais tradições intelectuais. Conforme
Fernandes (1971), antes de ser teórico o conhecimento é atividade prática, meio para se
atingir fins, cuja verdade deve ser medida e comprovada pela ação, uma vez que ao ser
submetido à prova o conhecimento pode produzir transformações gerais. A dialética
desenvolvida por Marx credita a possibilidade de um conhecimento sintético e capaz de
reproduzir o real no pensamento como meio de transformá-lo pela práxis histórica. Ela
reconhece um tipo de lógica trifásica no movimento interno de contradições da
sociedade, mais precisamente no desenvolvimento das contradições engendradas pelo
capitalismo.
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Marx diferenciou sua visão de mundo das ideologias4, apontando o vigor científico pelo
qual suas teorias foram elaboradas, de certo modo, apostando na sua própria “ciência”.
Conforme Germer (2000), essa teria como pressuposto fundamental a tese de que há
uma relação causal entre as atividades práticas dos seres sociais – estabelecidas por
meio de relações necessárias com a natureza e os seus semelhantes – e sua atividade
simbólica ou mental que, pelo menos contribui para a reprodução do mundo material em
que os indivíduos agem e sem o qual não se reproduziria a vida em sociedade. Ademais,
tomaria o conhecimento não como finalidade encerrada em si mesma, premissa advinda
da divisão do trabalho, porém, enquanto meio de transformação social em favor do
gênero humano e da supressão das classes sociais.
Conforme Debrun (2001), Gramsci teria assimilado a idéia de uma não correspondência
biunívoca entre o desenvolvimento de forças produtivas e determinadas ordens sociais,
concepção advinda no Lórdine Nuevo, isto é, segundo a qual forças produtivas
equiparáveis poderiam se adequar e se desenvolver em ordens sociais diversas. Isso
implicaria não uma diferença de natureza, mas de patamar entre as variações possíveis
de uma mesma sociedade industrial, isso posto a diversidade abarcada por ela de
regimes políticos em seu tempo (nazismo, fascismo, capitalismo de estado, socialismo,
imperialismo, etc.) e demais estruturas coexistentes. As forças produtivas seriam
incapazes de engendrar a ordem social em seu conjunto e, para isso, o intérprete elege
três fatores: [1] a relação causal implicaria uma precedência desta em relação às
relações de produção e as superestruturas; [2] não haveria um rigoroso determinismo
interno nas forças produtivas capaz de lhe determinar um autodesenvolvimento
evolutivo e linear; [3] o desenvolvimento das forças produtivas não exige
necessariamente determinada relação de produção para seu desenvolvimento. Para
Debrun (2001), Gramsci não concebe as forças produtivas como causa, ponto de partida
ou base da sociedade, não obstante não desconsiderava que o desenvolvimento histórico
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A concepção de ideologia esboçada por Marx e Engels na Ideologia Alemã possui fundamentalmente cinco
significados:[1] Consciência prática do real: é a consciência orientada para a prática que emana da práxis social; [2]
Falsa consciência: ao insurgir-se contra o idealismo alemão e o naturalismo feuerbachiano, Marx demonstra que não
são as idéias que governam o real, de modo que elas se auto determinassem, mas a atividade produtiva dos seres
sociais; [3] Representação sem historicidade: sob o invólucro da conservação de interesses materiais, certas
representações estariam desligadas dos fatos e dos desenvolvimentos práticos que lhes serviriam de base; [4]
Universalização de interesses de classe: as representações que a classe dominante faz de si exprimem interesses de
determinadas relações e atividades de produção, das relações políticas e sociais sob determinado modo de produção
da qual ela se beneficia; [5] Idéias dominantes: é a expressão das relações materiais dominantes, denota a luta de
interesses econômicos, políticos e sociais, a luta política-econômica e social é seu foco esclarecedor.
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das forças produtivas suscitasse problemas que motivariam a redefinição das relações
sociais de produção e das superestruturas.
Debrun (2001) afirma que Gramsci em seu historicismo radical, capaz de prescindir de
uma explicação de uma natureza humana permanente reconheceria as regularidades
histórico-sociais não a partir de uma formulação ingênua de leis funcionais e imutáveis,
mas por meio da elaboração de leis caudatárias ao consenso em torno de determinado
universo de valores. Logo, não haveria leis independentes do consenso dos indivíduos,
apesar de estes serem potencialmente imprevisíveis, uma vez que “existe uma escolha
livre que ocorre segundo certas linhas diretoras idênticas para a grande massa dos
indivíduos ou vontades singulares, na medida em que estas se tornaram homogêneas em
um determinado clima ético-político”. (CDH p. 317 apud DEBRUN, 2001, p.135). Isto
é, existe uma vontade e uma subjetividade coletiva ou orgânica que transforma o curso
das coisas, podendo ser ela a matéria prima da política convertida em “ação projetada”,
conforme Bosi (1975).
Ao se interessar pela conexão de sentido entre determinados contextos ou situações e as
respostas dos indivíduos, reconhecendo uma reação semelhante ou homogênea entre os
seres sociais, Gramsci reconheceria a importância do sentido existente em cada bloco
histórico. Conforme este intérprete (2001), os valores – expressão imediata da filosofia
– estruturariam e unificariam uma determinada época, não podendo ser deduzidos de
uma natureza humana ou de uma determinação das forças produtivas. Os valores
manteriam a coesão de um bloco histórico, inspirariam orientações gerais, regras e
condutas a respeito da definição da propriedade privada das forças produtivas (meios de
produção) e das relações sociais de produção (formas de apropriação). “Constituem a
armadura da superestrutura objetiva, e, no seu rastro, é toda superestrutura “objetiva e
subjetiva” que depende da filosofia” (DEBRUN, p. 2001, p. 135).
O bloco histórico enquanto totalidade social pode ser compreendido, analiticamente, a
partir de três instâncias relativamente independentes: [1] forças produtivas; [2] relações
sociais de produção; [3] superestruturas. Elas se motivariam de maneira recíproca e se
unificariam pela filosofia de uma época, cuja representação elementar são os valores e
as ideologias de um determinado tempo e espaço. Enquanto as forças produtivas seriam
a primeira a ter palavra numa assembléia onde os demais também teriam voz ativa,
sendo ela de natureza “natural/tecnológica” – seria incapaz de, por si mesma, engendrar
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a sociedade e despertaria a consciência prática dos indivíduos por meio de um
conhecimento imediato do mundo, o concreto sensorial. Elas seriam a forma de
determinado bloco histórico. As relações de produção seriam concebíveis como que
abrangidas pelas superestruturas ou a um meio passo delas, sendo ambas o conteúdo de
determinado bloco histórico. Este teria por epicentro a filosofia: desenvolvê-la a
posteriori, uma vez que seria formulada e firmada por meio de antagonismos e
compromissos. Em meio à pluralidade de concepções se sobressairia àquela capaz de
desenvolver, segundo Debrun (2001), todas as potencialidades de uma época, incluindose potencialidades produtivas. Assim, Gramsci minimizou o papel da força, do
economicismo e dos interesses imediatos na transformação da sociedade.
Conforme a indicação de Gruppi (1978, p.18-30) reportada a Sereni, Marx teria
utilizado a expressão forma social em 1845 na Ideologia Alemã, tendo a substituído
pelo conceito de formação econômico-social em 1859 no famoso Prefácio a
Contribuição à Crítica da Economia Política, pois, ao invés de designar uma realidade
estática, o autor, coerente ao seu método dialético, buscava exprimir com o termo o
processo de desenvolvimento de determinada estrutura (as forças produtivas e as
relações sociais de produção) e das superestruturas a ela correspondentes. Cada
formação econômico-social teria suas leis históricas engendradas pelo modo de
produção dominante, embora a estrutura econômica fosse um elemento objetivo, ela não
apreenderia por si mesma as múltiplas determinações e momentos dessa totalidade. Por
assim se constituir, pode-se deduzir, consoante a indicação deste autor, o conceito de
bloco histórico como um refinamento do conceito de formação econômico-social no
sentido de balizar as múltiplas determinações que compõem a concreticidade histórica e
a particularidade que a subjaz sem perder o instrumental adquirido pela filosofia da
práxis. Assim, bloco histórico seria a relação dialética entre o momento subjetivo
(simbólico) e o momento objetivo (material).
RESULTADOS.
Conforme foi possível observar pelas indicações de Debrun (2001), Gramsci em seu
conceito de bloco histórico balizou as diversas determinações capazes de assegurar o
primado de uma classe social sobre outra, demonstrando, sobretudo, que o elemento
econômico depende de uma dominação política conquistadora do consenso dos sujeitos
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a ele submetidos e que a infra-estrutura não é capaz por si própria de explicar e
compreender o bloco histórico, havendo outras determinações também. Enquanto
figuração de uma totalidade constituída de diversos momentos e contradições capazes
de apreender a particularidade histórica de determinada sociedade [seu concreto real
transformado em concreto pensado], ao contrário do economicismo, o conceito de bloco
histórico permitiu Gramsci fazer a conversão entre momentos distintos da sociedade –
do econômico ao político, do político ao cultural, etc – na compreensão do domínio de
uma classe sobre outra na condução do processo histórico.
È verossímil que este conceito retomado de Marx seja a indicação metodológica da
forma pela qual uma classe obtém a hegemonia ou a direção do processo social, de
modo que a apreensão dessa categoria de hegemonia tenha ocorrido em razão dos
caminhos interpretativos previstos por aquele conceito. Gramsci embora tenha
concentrado suas energias no caso específico italiano, suas contribuições vão além
precisamente pelo modo enriquecedor que ele apreendeu e aplicou a filosofia da práxis.
A hegemonia de uma classe sobre outra, igualmente, se manifesta pelo poder de uma
classe social ou grupo dirigir a vida econômica e simbólica dos indivíduos, mantendo-os
disciplinados à conservação do status quo, das instituições por meio da força e da
inculcação e manutenção de valores incapazes de levar a um questionamento ou
transgressão da ordem social vigente, valores que se tornam controles individuais. A
hegemonia exercida pela burguesia se utiliza do hiato existente entre as massas e seus
intelectuais, daí ser a reforma moral e intelectual crítica uma necessidade na construção
da hegemonia das massas subalternas.
Para Gramsci (1995), todos os indivíduos possuem a capacidade cognitiva do filósofo,
ainda que uma filosofia espontânea e não realizada senão no próprio uso da linguagem,
da práxis cotidiana e da ideologia, o que conduz o autor a discernir senso comum de
bom senso. Ainda que em gérmen, a capacidade filosófica estaria inscrita em um
sistema de crenças, modos de pensar, agir e opinar no mundo. Mas, o pensamento se
manifestaria de maneiras distintas seja enquanto elaboração mística e adoção passiva de
uma visão de mundo, ou enquanto elaboração racional crítica e consciente do real, da
práxis social. A partir disso, percebe-se que Gramsci toma categorias históricas – sendo
elas a filosofia, o bom senso, a religião e o senso comum – como momentos de um
mesmo processo ou totalidade da vida social: o da objetivação e subjetivação das
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superestruturas. Essas categorias históricas teriam em comum, num plano elementar, o
fato de fornecerem diretrizes, normas de ação coletiva, como se representassem
fragmentos de uma concepção de mundo na conduta dos agentes. Gramsci (1995)
confere bastante atenção à distância ou proximidade existente entre intelectuais e massa
nas sociedades analisadas de seu tempo, valorizando a coesão orgânica entre uns e
outros, para além de um funcionalismo organicista.
Segundo Gramsci (1995), toda concepção de mundo se valeria de uma conduta
correspondente aos seus interesses, ainda que houvesse uma contradição entre o agir e o
pensar nela presentes. Assim, enquanto “ideologia” uma visão de mundo é também
política na sua articulação prática, e isso leva o autor à premissa de que filosofia e
política estariam presentes no nível mais elementar da história humana, sendo
constitutivas ao gênero. Daí que ele confere o estatuto de filosofia da práxis ao
materialismo histórico dialético, como uma weltanschauung que independeria de
quaisquer filosofia, pois teria a sua própria filosofia inscrita na transformação da
história, na unidade entre teoria e prática, na catarse da revolução proletária.
A filosofia da práxis seria, simultaneamente, uma elaboração crítica do real e uma
transformação consciente dos indivíduos, a partir das implicações dos pressupostos e
das premissas da filosofia dialética histórica materialista. Ela almeja transmutar a
maneira de sentir dos indivíduos a partir da ação prática e teórica/simbólica desses
mesmos indivíduos sociais sobre o real, compreendido não em si mesmo, mas na
historicidade de sua relação com os indivíduos. A filosofia da práxis deve conquistar as
massas proletárias, a grande maioria da população privada da vida, uma vez que “tudo é
político, inclusive a filosofia ou as filosofias, e a única filosofia é a história em ato, ou
seja, a própria vida” (GRAMSCI, 1995, p.44).
Pelo exposto até agora, pode-se perceber que Gramsci criou determinados conceitos em
consonância com a epistemologia e o método da filosofia da práxis, de modo que um
conceito relaciona-se sinfonicamente com o outro, porém o autor sempre levou em
consideração a particularidade histórica dos contextos analisados. Ele interpretou
analiticamente a filosofia da práxis nas suas implicações teóricas e metodológicas para a
construção de um saber que lhe valeria para aplicações ulteriores, para uma práxis
revolucioária. O autor italiano inicia suas análises pelo modo como as coisas eram ou se
apresentavam em seu tempo, apreendendo suas contradições e conexões internas a fim
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de encontrar mediações capazes de possibilitar a sua superação, pois antes de postular a
necessidade de hegemonia do proletariado, ele teve que compreender como se dera a
hegemonia burguesa. Gramsci não apenas deu um novo alento para as idéias de Marx e
do marxismo, como também inovou a teoria, demonstrando que ela era, na verdade,
uma visão de mundo, portanto, uma filosofia.
Segundo Bosi (1975), Gramsci pensa os intelectuais a partir do fucionamento da cultura
numa sociedade em que convivem as grandes classes sociais (burguesia, proletariado),
grupos de status e hierarquias profissionais e não por aquilo que haveria de intrínseco à
atividade intelectual propriamente dita. Gramsci partiu daquilo que existia de fato para
pensar e prôpor a forma como deveria ser para beneficiar a luta do partido
revolucionário e do movimento social dos quais ele fazia parte. Assim procedendo,
Gramsci desnudou os laços e as conexões estabelecidas entre os intelectuais entendidos
enquanto categoria histórica – uma vez que todos os indivíduos seriam intelectuais –
com o seu tempo e determinada hegemonia social. Gramsci, coforme Bosi (1975),
apontou que, na sociedade burguesa, os intelectuais se manteriam presos nas suas
especialidades, compondo grupos de status e profissionais diferenciados em diversos
estratos. Cada qual grupo fechado em seus jargões, discursos e hábitos cristalizados se
protegeriam das tensões sociais a partir de uma “falsa totalidade” criada, porém,
cumprindo uma determinada função no processo produtivo e organizativo da sociedade,
consoante a hegemonia estabelecida.
Desse modo, a leitura dos intelectuais por Gramsci (2004) ocorre em função da
hegemonia estabelecida na sociedade por uma determinada classe social, o que
generaliza bastante o significado do conceito, deixando de referi-lo apenas aos literatos
e aos cultivadores das ciências “humanas”, pois o intelectual seria desde o técnico
especialista dirigente ao mais abstrato filósofo sistematizador do consenso social,
passando por clérigos e administradores. Porém, ele os classifica em dois grandes tipos,
à luz da hegemonia consolidada, sendo um tipo os orgânicos e o outro tipo os
tradicionais.
Por intelectuais orgânicos, Gramsci (2004) aponta que é mais nítido neles o fato de a
necessidade, e a justificativa de suas existências e de suas funções estarem nas
demandas da produção social e nas necessidades políticas do grupo dirigente. Cada
nova atividade prática, nesse sentido, criaria novos dirigentes e especialistas ou novos
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intelectuais. Os intelectuais orgânicos se incuberiam de dar homogeneidade e
consciência da própria função aos grupos dominantes econômica e politicamente,
seriam possuidores de uma capacidade técnica e dirigente, especialistas de uma
atividade criada pela e para a classe dominante. Gramsci (2004) distingue as
superestruturas da sociedade civil (privadas) daquelas relacionadas ao Estado (públicas)
e aponta a função dos intelectuais: um “exercício das funções subalternas da hegemonia
social” (p.21).
CONCLUSÕES
Embora a pretensão deste trabalho encontre-se na elucidação da categoria histórica dos
intelectuais no pensamento de Gramsci, para compreendê-los fez-se mister uma
referência mais geral à sua obra, uma vez que os intelectuais não são pensados
estanques aos conceitos, às teorias e às formas de apreensão do real que Gramsci
herdou, principalmente, da tradição inaugurada por Marx. Desse modo, esse trabalho
buscou uma tentativa de obter uma visão mais geral de interpretar sua obra, uma visão
panorâmica atenta aos conceitos e aos pressupostos fundamentais do autor, os quais
foram possíveis de serem encontrados por meio de uma pequena referência
metodológica, bem como pelo auxílio de intérpretes.
Na medida do possível se tentou levar em consideração o fato de que uma obra é sempre
um trabalho de toda uma vida, o que pressupõe um amadurecimento dos autores com
relação às suas tomadas de posição e aos seus próprios escritos. No caso de Gramsci,
sua luta em favor da classe operária e, conseqüentemente, de toda massa subalterna
acabou por lhe custar suas próprias condições salubres de vida, todavia, corroborando
suas posições teóricas e a unidade de seus pensamentos e suas ações.
Gramsci (2004) estava preocupado mesmo era com o novo tipo de intelectual
representante da filosofia da práxis, de uma nova sociedade e de um novo homem, em
um período histórico futuro de média e longa duração. Quais eram os quadros humanos
que deveriam compor o partido revolucionário? Sim, seria a massa proletária, porém
suas necessidades e sua falta de consciência histórica própria deveria ser suprida por um
processo pedagógico, no qual os educandos também educariam o educador num
processo de auto-gestão produtiva e cultural. Gramsci buscou desenvolver uma
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pedagogia que servisse aos seus interesses, investigou a escola italiana de seu tempo,
revelando seu cárater classista e reprodutor das desigualdades sociais, propondo a
escola única. O objetivo desta seria justamente mostrar à massa subalterna a maneira
pela qual ela se tornou herdeira da filosofia clássica alemã por meio de uma
compreensão histórica que lhes serve de mediação (meio-finalidade) para atingir a
unidade entre teoria e prática, a superação da divisão do trabalho e da propriedade
privada.
O movimento operário representante, primeiro, das massas subalternas e, segundo, das
classes sociais em geral deveria criar seus próprios intelectuais para a proposição de
uma nova hegemonia social. Isso se daria por meio de uma diferenciação, autonomia ou
auto-gestão em relação à produção social dominante ou à reprodução material, daí o
valor atribuído pelo autor aos conselhos de fábrica (“embrião de uma nova ordem
social”), bem como, isso se daria no âmbito da cultura pelo cultivo e desenvolvimento
da filosofia da práxis, pela crítica às produções culturais antagônicas ao proletariado e
pelo desenvolvimento de uma sociabilidade fundada em valores emancipatórios, cujo
escopo de tudo seria a realização da filosofia da práxis: a constituição de uma nova
hegemonia.
Cabe-nos, enfim, transpormos os desafios teóricos lançados por Gramsci e pela filosofia
da práxis aos temas de estudo abarcados pela especificidade histórica brasileira atual
sem perder as mediações que eles estabelecem em termos de particularidade e
universalidade com o bloco histórico de hegemonia do ocidente a fim de suplantarmos o
mesmo.
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