1
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS
LINHA DE PESQUISA EM CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO
Iumar Junior Baldo
ACESSO À MORADIA DIGNA E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NO
RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIDADE
Santa Cruz do Sul, dezembro de 2011
2
Iumar Junior Baldo
ACESSO À MORADIA DIGNA E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NO
RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado e Doutorado, Área de
Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas,
Linha
de
Pesquisa
em
Constitucionalismo
Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul
– UNISC, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Direito.
Orientador: Dr. André Viana Custódio.
Santa Cruz do Sul, dezembro de 2011
3
Iumar Junior Baldo
ACESSO À MORADIA DIGNA E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL NO
RECONHECIMENTO DO DIREITO À CIDADE
Essa dissertação foi apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado e Doutorado, Área de
Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas,
Linha
de
Pesquisa
em
Constitucionalismo
Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul
– UNISC, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Direito.
Dr. André Viana Custódio,
Professor Orientador.
Dr. João Pedro Schmidt
Professor Participante.
Dr. Adir Ubaldo Rech
Professor Participante.
Santa Cruz do Sul, dezembro de 2011
4
Este trabalho, e o mestrado, só foram possíveis graças ao
apoio incondicional de minha família.
Por isso, Iumar João e Lourdes, esta vitória é nossa!
5
AGRADECIMENTOS
Algumas pessoas merecem
um
especial
agradecimento
pelo
apoio
incondicional na conclusão do Mestrado em Direito da Unisc.
Primeiramente um agradecimento especial a Deus, que nos momentos de
dificuldades transmitiu sua força para a superação de todos as dificuldades. Com
esta força me foi permitido vencer, e neste caminho da vitorioso conhecer e
reconhecer as pessoas importantes em minha vida.
À minha família e à Lidiane, meu amor, pela consciência da importância desta
conquista e pelo carinho, paciência, amor, confiança enquanto eu ia em busca de
aprimoramento acadêmico. Não podia deixar de lembrar da vó Lurdes e toda sua
linda e carinhosa família, que sempre procurou minimizar os efeitos de tantas
viagens, trabalho e esforço pessoal.
Ao professor Dr. André Viana Custódio, meu estimado orientador, pela
paciência, pelo exemplo, pelo carinho, pelas oportunidades e principalmente pelo
companheirismo dispensado nestes dois anos.
A todo corpo docente da UNISC, especialmente aos amigos Dr. Clóvis, Dr.
Jorge, Dr. Ricardo e para a amiga Dra. Salete. Um agradecimento especial também
a querida amiga Rosana Fabra, que sempre realizou seu trabalho com
profissionalismo e carinho por todos nós.
Aos colegas de mestrado que provaram ser possível vencer qualquer
adversidade com união e trabalho em equipe. Neste momento não é possível
demonstrar com singelos agradecimentos o quanto grande pode ser este sentimento
de amizade e companheirismo. Não poderia deixar de mencionar os colegas Almiro,
Felipe e Tássia, pelos momentos de apoio, de força, e de carinho, sempre regados a
boas gargalhadas. Tenho certeza de que o maior legado que podemos deixar é este
sentimento de amizade e solidariedade mútuo.
6
Aos amigos que, mesmo sentindo minha falta, souberam esperar e
compreenderam a minha ausência, conscientes de que a busca pelo conhecimento
não é um compromisso, mas sim uma filosofia de vida. Alguns amigos também
merecem um especial agradecimento: Prof. Nina Lee, Márcio, Robson, Vivi, Robes,
Luty, Giba, Juliano, Jefe, Gio, Dhieymy, Iuri entre tantos outros que não será
possível nominar. Sintam-se todos abraçados e comemorem comigo esta conquista!
Obrigado pelo carinho e pelo amor de todos vocês, afinal, sem isso nada teria
sido possível.
7
“Invoquei, e o espírito da sabedoria veio até mim. Eu a preferi
aos cetros e tronos e, em comparação com ela, considerei a
riqueza como um nada. Não a comparei com a pedra mais
preciosa, porque todo o ouro, ao lado dela, é como um
punhado de areia. E junto dela, a prata vale o mesmo que um
punhado de barro. Amei a sabedoria mais do que a saúde e a
beleza, e resolvi tê-la como uma luz, porque o brilho dela
nunca se apaga. Com ela me vieram todos os bens, e em suas
mãos existe riqueza incalculável. Gozei de todos esses bens,
porque é a sabedoria que os traz, mas eu ignorava que fosse
ela a mãe de todos eles. Sem malícia, aprendi a sabedoria, e
agora a distribuo sem inveja nenhuma. Não vou esconder sua
riqueza, porque ela é um tesouro inesgotável para os homens.
Aqueles que a adquirem, atraem a amizade de Deus, porque
são recomendados pelo dom da instrução dela. Deus me
conceda falar com propriedade e pensar de forma
correspondente aos dons que me foram dados, porque ele é o
guia da sabedoria e o orientador dos sábios.”
Livro da Sabedoria, Capítulo 7.
8
RESUMO
A pesquisa procurou debater o reconhecimento do direito fundamental
socioambiental à cidade e o acesso à moradia digna no Brasil. O objetivo geral foi
analisar o direito fundamental à cidade, a partir dos modelos e sistemas propostos
existentes, avaliando os aspectos de acesso à moradia digna frente aos princípios
socioambientais constitucionais. Os objetivos específicos foram avaliar os
fundamentos do reconhecimento do direito fundamental à cidade a partir de uma
perspectiva histórica; analisar os aspectos conceituais, paradigmáticos e legais do
direito à moradia digna frente à função social da propriedade e avaliar as políticas
públicas de acesso à moradia digna; e, por fim, demonstrar as concepções colhidas
acerca da função socioambiental do direito à moradia digna frente aos fundamentos
do meio ambiente e sua relação com o direito fundamental à cidade. O problema da
pesquisa era como o reconhecimento do direito fundamental socioambiental à
cidade garante o acesso à moradia digna no Brasil? O acentuado crescimento das
cidades, em especial das brasileiras, e o aumento inegável dos problemas no meio
ambiente urbano exigem soluções eficazes e desassociadas de interferências
políticas e regalias e também da lucratividade a todo custo. Talvez a expressão
“deterioração do espaço urbano” represente com propriedade a atual situação das
cidades, fundamentada na carência de moradia, meios de transporte, falta de
saneamento básico, insuficiência geral de serviços que deveriam ser proporcionados
de forma digna à população. Ainda assim, nenhum direito fundamental será eficaz
quando dissociado de ações institucionais que garantam a fusão destes direitos no
contexto das cidades. Na transformação da legislação pátria, tem se confirmado a
necessidade do atendimento das demandas elementares da cidadania avançando,
constantemente, no sentido de assegurar instrumentos eficazes para inserir, de fato
e de direito, parcela significativa da população que ainda se encontra à margem da
dignidade mínima que compete ao Estado oferecer, em especial após o
reconhecimento do direito à moradia na condição de direito humano fundamental.
Inicialmente a hipótese formulada era comprovar se é necessário o reconhecimento
deste novo direito, com vistas a garantir o acesso à moradia digna, o correto uso e
ordenação do espaço urbano, sempre pautados pela preservação ambiental para o
bem comum como forma de proporcionar uma cidade equilibrada e, principalmente,
sócio-ambientalmente justa. O método de abordagem a ser utilizado no
desenvolvimento do presente trabalho será o monográfico, que partirá do problema
proposto e da hipótese preliminar e testará a ocorrência de fenômenos abrangidos
pela hipótese, submetendo-a a crítica intersubjetiva para, ao final, verificar sua
confirmação ou refutá-la. Esta investigação buscou uma constante comparação
entre as garantias legais presentes na Constituição Federal, a realidade social
caracterizada por graves contradições e desigualdades, as políticas que são
implementadas pelo Estado, especialmente pelos municípios a quem cabe o dever
de bem organizar o espaço urbano (ou das cidades).
Palavras-Chave: direito à cidade; direitos fundamentais; moradia digna.
9
ABSTRACT
The research sought to discuss the recognition of the social and
environmental fundamental right to the city and the access to decent housing in
Brazil. The general purpose was to analyze the fundamental right to the city, from the
models and systems proposed existing, evaluating the aspects of an access to
decent housing in the face of socio-environmental constitutional principles. The
specific objectives were to evaluate the fundamentals of recognizing the fundamental
right to the city from a historical perspective; consider the conceptual, paradigmatic
and legal aspects aspects of the right to decent housing against the social function of
property and evaluate public policies for access to decent housing and; and, finally,
show the views taken on the function of socio-environmental right to decent housing
ahead of the fundamentals of the environment and its relationship with the
fundamental right to the city. The problem of the research was how does the
recognition of the fundamental right to the city social and environmental guarantee
the access to decent housing in Brazil? The dramatic growth of cities, especially in
Brazil, and the undeniable increase of problems in the urban environment require
effective solutions and disassociated from political interference and benefits and also
profitability at all costs. Perhaps the term "deterioration of urban space" represents
correctly the current situation of cities, based on the lack of housing, transportation,
lack of sanitation, general failure of services that should generally be provided in a
dignified manner to the population. Still, no fundamental right will be effective when
separated from institutional actions to ensure the fusion of these rights in the context
of cities. In the transformation of Brazilian legislation, has confirmed the necessity of
meeting the basic demands of citizenship, moving constantly to ensure effective tools
for inserting factual and legally significant portion of the population that is still on the
sidelines of minimum dignity that the State has to offer, especially after the
recognition of the right to housing provided fundamental human right. Initially the
hypothesis was to prove whether it is necessary to recognize this new right, in order
to ensure access to decent housing, the right correctly use and ordering of urban
space, always guided by environmental preservation for the common good in order to
provide a balanced city and above all, socially and environmentally just. The method
of approach to be used in the development of this work is the monograph, from of the
problem and hypothesis preliminary proposed and testing the occurrence of
phenomena covered by the hypothesis, subjecting it to the intersubjectivity in the
end, check your confirmation or refute it. This research sought a constant
comparison between the present legal guarantees in the Constitution, the social
reality characterized by serious contradictions and inequalities, policies that are
implemented by the State, especially the municipalities which will be the duty of
organizing and urban space (or cities).
Keywords: right to the city; fundamental rights; decent housing.
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2 FUNDAMENTOS DO DIREITO À CIDADE ........................................................... 14
2.1 Fundamentos do meio ambiente sob a perspectiva constitucional ..................... 21
2.2 Breve trajetória histórica do reconhecimento do direito à cidade ........................ 28
2.3 A formação histórica do desenvolvimento urbano ............................................... 38
3 A PROPRIEDADE URBANA A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO DE DIREITO
FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA ..................................................................... 51
3.1 Da função social da propriedade à Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 ............... 57
3.2 Direitos sociais e direito à moradia digna ............................................................ 67
3.3 Ações Institucionais para a garantia do direito à moradia digna ......................... 77
4 CONCEPÇÃO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO DIREITO Á CIDADE NO
ESTADO SOCIOAMBIENTAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................ 88
4.1 Direito à cidade como um direito fundamental .................................................... 88
4.2 O modelo estatal de planejamento e ordenação do espaço urbano e a função
socioambiental das cidades ...................................................................................... 97
4.3 Os desafios para a nova gestão democrática de acesso à moradia digna com
vista às cidades sustentáveis .................................................................................. 112
5 CONCLUSÃO....................................................................................................... 129
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 133
11
1. INTRODUÇÃO
A pesquisa se lança sobre a ideia de cumprimento da função socioambiental
da cidade pelo viés do direito à moradia, pautando-se no reconhecimento do direito
à cidade como direito fundamental. Esse enfrentamento requer, de uma forma
preliminar, consciência histórica acerca das determinantes que desencadearam, nas
sociedades pelo mundo, diferentes formas de encarar a formação urbana da vida em
comunidade.
Nesse sentido, o direito à cidade está situado na busca das razões que ao
longo dos anos ajudaram a formar ambientes carentes de organização e condições
mínimas de vida digna. Sob a ótica histórica, o cotidiano citadino é visto como
resultado de um processo de efetivação das prioridades de determinado espaço
num lugar no tempo. Não concorre aí, porém, a sedimentação de uma base única de
história dogmática, pela qual se funda das iniciativas institucionais e sociais de
melhoramento urbano.
Sob essa ótica, deseja desenvolver o discurso acerca da função
socioambiental da cidade e formação de subsídios teóricos ao direito à moradia,
levando em consideração os contextos nacionais de incompletude material e
desrespeito ao meio ambiente. Visa estabelecer um diálogo com as normas vigentes
e que já conduzem a uma interpretação integrada dos institutos de direito à moradia,
e contemplar a fase prática e executória das ações de promoção do direito à
moradia, em conexão direta com o direito ambiental e à cidade.
Essa necessidade surge diante dos contextos urbanos que denunciam o
déficit de efetividade do direito à moradia, e que se relaciona com outros tantos
direitos carentes de realização, como o direito à cidade e o direito ambiental. Do
ponto de vista prático, significa um vasto contingente de pessoas sem as condições
de vida digna. Do ponto de vista legal, representa a não realização das normas de
direito à cidade que, mesmo passando pelo processo de constitucionalização, não
auferiram razão fundamental ao problema. Diante disso, o reconhecimento do direito
à cidade como direito socioambiental fundamental atua enquanto fomento às
12
investidas institucionais e sociais de efetivação, e alavanca a tarefa institucional e
social de promoção desses direitos.
Diante dos vários desafios que pertencem à ideia de um direito fundamental à
cidade, com vistas à implementação das condições urbanas de vida digna, exige
uma variedade de sujeitos e atividades conjuntas. A análise da inteiração entre os
agentes sociais e o Estado faz com que se tenha uma primeira ideia do âmbito de
integração dos envolvidos, justamente porque a ação vertical leva, do ponto de vista
da atuação institucional, a posturas radicais e desvinculadas com o cotidiano da
democracia.
O compartilhamento pressupõe, além de convergência exterior de interesses,
uma integração com vistas num fim comum, como superação dos modelos
predatórios de uso do meio ambiente. Essa condição superior de prevalência de
modelos democráticos e participativos proporciona, ainda, a revitalização da
democracia para além da representatividade.
Mais do que isso, corresponde a um resgate do sujeito ainda munido de
indignação social, como resposta às tentativas de se retardar a consciência social e
o desejo de reduzir a desigualdade e as raízes da alienação. No âmbito acadêmico,
corresponde à re-fundação de um sentido compartilhado para o direito, posto dentro
dos diálogos emergentes acerca do futuro socioambiental e social dos seres
humanos no mundo.
Se não como resposta, os argumentos acerca da necessidade de reconhecer
e tratar o direito à cidade como direito fundamental revitalizam a perspectiva
dialética de pensar a sociedade e as formas jurídicas que lhe determinam e que,
reciprocamente, geram no Direito crises antológicas e variações conceituais de
grande dimensão. Assim, são esses os elementos que pautam a discussão acerca
dos efeitos jurídico-sociais da adoção do direito à cidade como um direito
socioambiental fundamental, e que justificam a discussão sobre o tema.
Diante de todos esses elementos, a pesquisa valeu-se de inspeção
bibliográfica, bem como na legislação específica, dando especial atenção à
13
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Não deixa de perceber, no
entanto, uma ordem sistêmica de percepção da temática, usando-se da
hermenêutica como subsídio ao cruzamento das referências, estabelecendo
relações entre as subtemáticas envolvidas.
O primeiro capítulo analisa, também pela perspectiva histórica, os
fundamentos que habilitam a discussão acerca do direito socioambiental à cidade,
alçando voo nas origens dos contextos urbanos de segregação social e desrespeito
com o meio ambiente. Faz constar, ainda, a forte matriz constitucional que subjaz ao
diálogo do direito à cidade.
Nesse contexto de direitos, o segundo capítulo estabelece a possibilidade
prática do exercício da vida privada, cujas condições e alcances não deixam de
considerar o prisma coletivo que uma comunidade urbana pressupõe. No contexto
brasileiro, significa uma aproximação dos institutos democráticos por meio da
inovação constitucional vivenciada desde 1988. Mais especificamente, o exercício
da democracia possibilita, pelo compartilhamento entre direitos e entre os agentes
envolvidos, uma superação do monismo representativo e a fundação de um modelo
democrático mais amplo para o país. Há aí a menção especifica da Lei n. 10.257 de
2001, que representa um avanço em relação ao direito à cidade.
Com o terceiro capítulo, posto em relação aos demais, analisa-se, sob o
enfoque constitucional, as medidas institucionais de direito à moradia, sem deixar de
considerar todo o rol de direitos que se relacionam. Assim, há referência a um
compartilhamento democrático entre as ações, com o intuito de configurar a
efetivação do direito à moradia.
Com
isso,
as indagações
e
problemáticas
acadêmicas
ensejam
o
aperfeiçoamento de um diálogo crescente, que se vê integrado pela necessidade de
oferecer elementos de compreensão para as crises institucionais e sociais, e para
fomentar o surgimento de uma ordem de exercício democrático do cidadão, mas que
não deixa de levar em consideração a função do Estado no processo de constituição
de uma sociedade livre, justa e igual.
14
2. FUNDAMENTOS DO DIREITO À CIDADE
O mundo globalizado e suas complexas formações culturais e sociais geram o
sentimento geral de que as sociedades formam, entre si e em seu interior,
aglomerações ordenadas. Essa percepção preliminar parte de um pressuposto
superficial segundo o qual a formação histórico-social da sociedade capitalista
moderna se deu de forma gradual e planejada.
O desenvolvimento das cidades que mais diretamente se assemelham às
formações urbanas contemporâneas careceu, ao longo dos tempos, de uma
projeção mais delineada devido a um avanço acentuado a partir do século XVIII e
XIX. Fernandes, ao tratar de uma nova ordem jurídico-urbanística no Brasil,
representa as inovações e características das formações urbanas como “palcos” das
atividades econômicas que, com a superação da fase industrial mais primitiva,
condensam novas estratégias e formas de uso dos recursos naturais e artificiais.
Atenta, ainda, para a parte mais perversa da urbanização que atinge a América
Latina, qual seja, a formação de exclusão social, crise habitacional, segregação
espacial, violência urbana e degradação ambiental.1
Essa estruturação rápida dos contingentes urbanos fez com que os nichos
humanos se formassem a partir de uma necessidade imediata de atenção às
demandas fabris. Com isso, não havia tempo ou interesse para que as condições
urbanas e sociais pudessem ser sedimentadas de forma a agregarem bem-estar e
qualidade de vida ao cidadão urbano, condições que, com o advento das revoluções
industriais, passaram a estar atreladas à ideia de dignidade humana.
Num sentido histórico mais aproximado, a formação embrionária dos
agrupamentos sociais, nas formas como se apresentam contemporaneamente,
marcados pela concentração no entorno dos locais que oferecem trabalho, teve uma
origem principiante nos itinerários político-econômicos da Idade Moderna, sobretudo
a partir da Primeira Revolução Industrial, no século XVIII. Essa sedimentação que
1
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 3 et. seq.
15
acabou por distanciar esse momento histórico dos predecessores e, ao mesmo
tempo, fundar estruturas políticas, econômicas, filosóficas e, sobretudo, com os
intentos revolucionários da Revolução Francesa, a orla do pensamento e atividade
jurídicos, teve como matriz política a emergência sócio-econômica da classe
burguesa.
Nesse contexto, Marshall Berman2 menciona algumas posições teóricas
acerca do prospecto moderno, partindo de análises críticas bem definidas.
Apresenta, assim, algumas considerações presentes em Max Weber, cuja visão é
bastante pontual em relação ao caráter ambivalente da modernidade. Sob essa
ótica, o evento moderno representa um sentido ambivalente ao passo que conserva,
de um lado, a fundação da autonomia filosófica e jurídica do sujeito e, por outro,
desenvolveu contextos de exploração e heteronomia desse mesmo sujeito.
Nesse contexto, o fato de as ciências modernas terem instrumentado o
aperfeiçoamento da produção fabril fez com que considerassem esse o objetivo
mais razoável para sustentar o desenvolvimento nacional e dos povos como um
todo. Essa crença fez com que igualassem a mecânica das máquinas ao
comportamento fisiológico e procedimental do ser humano.
Essa mesma ideologia ratificava, concomitantemente, a investida científica,
ainda
principiante,
e
a
exploração
em
massa
dos
recursos
naturais.
Especificamente, o povoamento desordenado das cidades, sobretudo acentuado a
partir da primeira revolução industrial, é um indicativo objetivo do crescimento
acelerado originado por todas as transformações paradigmáticas advindas da
modernidade. A consequência, mesmo para as formações urbanas hodiernas, é a
percepção de que o desenvolvimento econômico move o mundo, razão pela qual a
ordenação das ocupações e a efetivação dos registros constitucionais e de toda
forma de realização da dignidade humana ficam mitigados.
Sen, ao radicalizar o paradoxo em que as sociedades contemporâneas, de
matriz moderna, estão imersas, estabelece.
2
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.
Carlos Moisés e Ana Maria L. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 26.
16
Vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, de um tipo que teria
sido difícil de imaginar um ou dois séculos atrás. [...] Existem problemas
novos convivendo com os antigos- a persistência da pobreza e de
necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica
muito disseminadas, violação de liberdades políticas elementares e de
3
liberdades formais básicas [...].
A existência paradoxal de, por um lado, novas demandas e, de outro,
problemas recorrentes é um diagnóstico que ajuda a compreender, do ponto de vista
jurídico e sociológico, a análise que o direito fundamental à cidade poderá seguir.
Não há como pensar a transformação de contingentes urbanos desassistidos
sem propor o problema estrutural da adoção institucional e social de medidas
urgentes e efetivas, proposta esta que passa a ter uma nova perspectiva a partir do
reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental; mais do que isso,
essa formação estrutural nasce como consequência da opção político-econômica,
sobretudo, dos segmentos privados, ainda que também o Estado acabe por ratificar
essa preferência, uma vez que a intervenção nas formas como os recursos comuns
são usados de forma particular é mínimo.
Com esses elementos, a conceituação do direito fundamental à cidade dirá
respeito, então, no sentido jurídico, ao processo de positivação iniciado de uma
maneira mais específica com a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, em seus artigos 182 e 183; entretanto, diz respeito a uma menção prévia que,
mesmo com a divulgação da Lei n. 10.257 de 10 de junho de 2001, não adquiriu o
status de fundamental. Sob esta égide, formalmente, ainda não existe qualquer
vinculação entre o direito à cidade e o caráter fundamental que encerra, uma vez
que “direitos fundamentais são aqueles que, reconhecidos na Constituição ou em
tratados internacionais, atribuem a indivíduos ou grupos de indivíduos uma garantia
subjetiva e pessoal”.4
3
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 9.
4
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional
ambiental brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 96.
17
Diante disso, falar em direito fundamental à cidade significa a menção direta
das condições de vida urbana à garantia a um grupo de sujeitos, tutela segundo a
qual é possível elevar a legitimidade das demandas e reafirmar o compromisso do
Estado na erradicação da miséria e das desigualdades sociais, sobretudo aquelas
que são explicitadas nos contextos urbanos.
Adquirindo o caráter fundamental, a responsabilidade do Estado em,
conjuntamente com a sociedade, realizar o direito à cidade é permeado pela ideia de
uma transformação social, justamente porque o reconhecimento faz com que o
segundo passo seja a sua realização. Mais do que isso, a atividade de intervenção
do Estado na dinâmica de reconfiguração dos espaços urbanos levará em
consideração a defesa efetiva de um direito que se vincula diretamente à
coletividade; dessa forma, estar-se-á diante de uma mudança na forma como a
cidade é pensada atualmente, em que se deixa de lado a visão segundo a qual a
mesma não representa senão um contexto aleatório e particular. Erige-se, então, um
direito à cidade que corresponde ao compromisso constitucional de redução da
desigualdade social.
Assim, essa inclusão do direito à cidade na dinâmica dos direitos
fundamentais potencializa, por um lado, a legitimidade de se exigir iniciativas e, por
outro, faz com que se mitigue as tentativas que, com um caráter estritamente
privado, reduzem as condições de vida digna em mérito do processo de acúmulo de
capital.
Na dimensão constitucional, as normas dão conta de uma previsibilidade
mínima de atenção a essa demanda. Do ponto de vista da execução continuada e
abrangente dessas normas, mesmo diante das leis especificas que delineiam as
ocupações e os procedimentos municipais e estaduais, o reconhecimento do direito
à cidade como um direito humano fundamental é condição expressivamente
imperativa, que pressupõe uma atividade constitucional (forma) e institucional (agir
governamental) efetiva.
Além disso,
diante dessa menção
recorrente de
direitos humanos
fundamentais, tem-se que, aquém de representarem uma forma redundante, tanto
18
conceitual como usualmente, dizem respeito, como explica Leal5, à possibilidade de
conciliação entre os direitos humanos, universalmente postos, e o processo de
constitucionalização, que lhes atribui essa fundamentalidade. Significa dizer, então,
que os direitos humanos fundamentais são aqueles direitos humanos incorporados
constitucionalmente, sendo, assim, dotados de um aspecto positivo real. Sob este
aspecto, a dinâmica de inclusão do direito à cidade como direito fundamental
reconhece a forma não taxativa dos direitos fundamentais, justamente por
registrarem uma anuência aos pressupostos de humanidade, que é como podem ser
chamadas as condições integrais de vida digna. Dessa forma, o uso da expressão
“direitos humanos fundamentais” registra a possibilidade de inclusões constitucionais
de direitos notadamente ligados à condição humana. Sobre esse aspecto, essa
variante possibilita uma nova visão dos aspectos institucionais e sociais de
percepção do direito à cidade.
Segundo essa análise, direitos humanos correspondem a uma concepção
mais universalista, em que estão presentes, em todas as formações humanas,
aspectos indissociáveis da condição de humanidade que existe no sujeito, e não
nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Nesse mesmo aspecto, os
direitos fundamentais são aqueles “direitos do ser humano reconhecidos e
positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”.6
Diante disso, dizer do direito à cidade que deve ser um direito humano
fundamental significa afirmar a aproximação entre a formação histórica das
necessidades humanas e o registro efetivo na opção do Estado. A partir da
atribuição desse caráter fundamental, ratifica-se, por um lado, a não estaticidade dos
direitos humanos e, num sentido mais estrito, a ideia de que o desenvolvimento do
Estado segue a construção histórica dos povos em sociedade. Edifica-se, assim,
uma unidade entre a atividade institucional e a realidade social. É diante desse
reconhecimento que a postura política frente à vida em sociedade muda, em que
são agregados não somente aspectos operacionais ou formalmente novos, mas,
5
LEAL, Sandra. Possibilidade de refundação do sentido dos direitos humanos: a via da diferenciação
semântica. In: CARBONARI, Paulo César. KUJAWA, Henrique Aniceto. Direitos humanos desde
Passo Fundo. Passo Fundo: IFIBE, 2004, p. 113 et. seq.
6
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 33-34.
19
sobretudo, características da nova ordem de atuação do Estado frente à promoção
da qualidade de vida.
Por outro lado, fato de a atenção às demandas sociais existir como uma
conexão entre Estado e sociedade civil não extenua a tarefa do governo em
comandar a execução de leis a políticas urbanísticas que atentem para o bem estar
e qualidade de vida.
Assim, se por um lado o desenvolvimento econômico das cidades identifica
uma forma de crescimento e aperfeiçoamento dos instrumentos científicos e
tecnológicos, por outro, os contextos antitéticos de exclusão social e degradação
das condições urbanas de sobrevivência denunciam essa parcialidade das formas
oriundas da nova estrutura advinda das revoluções modernas. Ou seja, se por um
lado a nova visão de mundo trouxe avanços nas ciências, por outro não suprimiu a
existência de desigualdades e parcialidades no desenvolvimento dos povos.
Desde a emergência da concepção antropocêntrica de mundo que o
comportamento humano parte de um novo pressuposto de desenvolvimento e
estreitamento das relações interpessoais. Sob esse aspecto, a análise do atual
contexto de degradação ambiental e a perspectiva jurídica e social da formação dos
centros urbanos acabam por se interpenetrar, justamente porque parte do dano
àquela estrutura natural se deu em virtude da não atenção às condições mínimas de
vida coletiva, o que significa dizer que a desatenção quanto ao jeito de organizar a
cidade deu vazão ao surgimento de algumas formas de degradação ambiental.
Do ponto de vista jurídico, no Brasil o fomento constitucional do século XX
não deu conta de explicitar uma opção real e clara acerca da instituição do direito à
cidade como direito fundamental, adjetivo este que acaba por se tornar uma
condição de legitimidade e exigibilidade dos provimentos da própria sociedade. Não
existe, assim, um maior percentual de demandas que tenham como endosso uma
atitude institucional objetiva. Diante desse cenário, a existência e reconhecimento do
direito à cidade como direito fundamental depende, basicamente, da formação de
uma ideia que, ao não se prender à taxação conceitual dos direitos fundamentais
20
como positivos e visíveis, transcendente metodológica e praticamente os institutos
jurídico-sociais de efetivação de contextos com qualidade de vida.
Assim, se, por um lado, essa existência para além da forma positiva não a
extenua ou reduz, a percepção de que determinados contextos e condições carecem
de uma ampla integração com a contemporânea forma de globalização e
organização urbana faz com que se vá além, não somente enquanto diagnóstico
sociológico, mas, sobretudo, enquanto conteúdo da existência do direito como
reciprocidade
dialética.
Essa
sua
característica
induz,
interpretativa
e
normativamente, um enlace real entre o procedimento e atualização jurídico-social
com a demanda real de uma comunidade de pessoas.
Mais do que somente uma percepção estanque e temporal, a formação –
reconhecimento - de direito a partir de contextos e demandas sociais remonta uma
maturação histórica pela qual é possível analisar a progressão gradual dos direitos
que aos poucos vão incorporando mais intimamente as condições da dignidade
humana, sobretudo com a inclusão institucional de uma plêiade objetiva de garantias
do cidadão. Assim, a importância que esse reconhecimento contém diz respeito,
então, à exigibilidade e justificação jurídica de direitos como fontes das condições
daquela dignidade humana. Sobre esse panorama, o resgate histórico demonstra a
fecundidade do reconhecimento como ponto de partida e incita, diante da
deliberação dos povos, a fundação de novos e urgentes direitos inerentes à
condição de humanidade.
Desde essa estruturação histórica, é possível fazer figurar o direito à cidade
como direito humano fundamental, justamente por estar aí atrelado um contingente
de outros direito que, denegado essa perspectiva da integralização urbana, ficam,
consequentemente, mitigados. Mais do que somente reivindicar isoladamente a
estruturação da cidade a partir da ideia de que é uma convergência real de
interesses, tanto individuais privados como institucionais, o reconhecimento do
direito à cidade como direito humano fundamental parte de um pressuposto
integrador e universal, pelo qual se reconhece a importância de um habitat
preservado, igualitário e que promova, do ponto de vista do sujeito, o bem-estar e a
qualidade de vida. Sobre outro olhar, essa fundação de um ambiente urbano
21
preservado representa a manifestação de que a transformação social é possível e,
além disso, que se forma a partir da superação dos nichos de exclusão social.
Não obstante a isso, a existência da cidade como um meio genérico de
vivência e desenvolvimento individual e coletivo acaba por lhe atribuir uma função
socioambiental. Se a matriz positivista, oriunda do sentido epistemológico da
modernidade, excetuava-se de uma perspectiva abrangente e social, a formação
hodierna, tanto do contexto estritamente jurídico, quanto das adoções sociais de
convivência aludem à exigência de um sentido mais universal e coletivo, tanto para
as atividades individuais (dimensão do sujeito), quando para a propriedade que
ocupa um lugar no contexto urbano (objeto).
Assim,
é
diante
dessa
perspectiva
transindividual,
ou
seja,
desse
reconhecimento unívoco ao direito do sujeito, como superação do individualismo,
presente tanto no Estado como na sociedade civil, que o diálogo socioambiental é
permeado pela dinâmica da atividade real que as cidades possuem em relação ao
meio ambiente. Conceber a cidade como um lugar de efetivação de direitos e
respeito ao ecossistema gera, do ponto de vista jurídico, a percepção de que a
exigibilidade de uma conduta conforme migrou da pura normatividade positiva para a
consciência dos povos. Significa dizer que, ainda que oriunda de um contexto
positivista e segregado, a consciência social e institucional poderá ter, a partir do
reconhecimento da cidade como um lugar coletivo, a percepção de que está diante,
até mesmo, de uma maturação histórica de sua própria racionalidade interna. Sob
essa ótica, o ordenamento jurídico acumula uma interconexão entre a realidade dos
regramentos sociais e a convicção de que a preservação de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado é muito mais do que um dever jurídico, mas é,
sobretudo, condição de manutenção da vida em todas as suas dimensões.
2.1 Fundamentos de meio ambiente sob a perspectiva constitucional
Em um país em crescimento como o Brasil, um dos principais desafios é
conciliar as questões ambientais com a execução do receituário econômico
determinado pela necessidade de progresso e solução dos problemas habitacionais
22
existentes. Neste intento não se pode olvidar a preocupação com o meio ambiente,
enquanto fomentador de uma ambiente equilibrado e sadio para o exercício da
cidadania.
No entanto, percebe-se que a erradicação da pobreza e a redução das
desigualdades sociais através do direito de acesso a uma moradia digna, apesar de
amplamente abordado como projeto institucional no contexto político nacional,
parece não contemplar a questão da democracia sob o viés da participação política.
O atual modelo de cidade nada mais é do que a expressão do desequilíbrio em
consequência
do
crescimento
desordenado
dos
conglomerados
urbanos
desassistidos de qualquer infra-estrutura mínima para exercício de uma vida digna.
Vive-se um momento de relacionar o meio ambiente à dignidade do ser
humano, levando a crer que o desenvolvimento econômico pode ser sustentável,
desenvolvendo o equilíbrio ambiental e uma melhor qualidade de vida a todos,
indistintamente, vez que vida é composta por sistemas vivos que interdependem uns
dos outros para sobreviverem7, da mesma forma que o ser humano, a organização,
a tecnologia, o trabalho, a religião, a economia, entre outros sistemas sociais, se
interligam com as cidades que representam.
Na transformação da legislação pátria, tem-se confirmado a necessidade do
atendimento das demandas elementares da cidadania, avançando, constantemente,
no sentido de assegurar instrumentos eficazes para inserir de fato e de direito uma
parcela significativa da população que ainda se encontra à margem da dignidade
mínima que compete ao Estado oferecer, em especial após o reconhecimento do
direito à moradia em locais sadios e ambientalmente sustentáveis.
A própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao almejar,
em seu artigo 170, III e IV, um desenvolvimento econômico sustentável e voltado à
realização da função social da propriedade e da preservação do meio ambiente,
buscou harmonizar valores até então tidos como incompatíveis. Na verdade, o
constituinte só reconheceu algo patente nos contextos jurídicos da atualidade, que é
7
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo:
Editora Cultrix, 2006, p. 28.
23
a inter-relação dos valores. Todavia, não basta apenas a tutela formal, imperiosa a
material, pois ainda hoje se vislumbra diuturnamente a supremacia do poder
econômico sobre as demais questões axiológicas.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elevou o meio
ambiente ao status de direito fundamental, atribuindo-lhe amplo amparo, muito
embora a Lei nº 6.938, de 31 de agosto 1981, já houvesse atribuído uma proteção
expressiva quando formalizou conceitos8 com fins à implementação da Programa
Nacional de Meio Ambiente. Sobre a previsão constitucional, vislumbramos.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologiamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo para
9
as presentes e futuras gerações.
Dentro desta perspectiva, uma nova ordem ambiental implementou-se em
nosso
ordenamento
jurídico,
determinando
a
adoção
do
“meio
ambiente
ecologicamente equilibrado” como norteador das políticas públicas. Contudo,
sempre ocorreram distorções no conceito de equilíbrio ambiental. Assim,
Meio ambiente ecologicamente equilibrado não significa meio ambiente nãoalterado. O termo equilibrado incorpora a idéia de altos e baixos; a idéia dos
pratos de uma balança que busca, em seu movimento de sobe-e-desce seu
ponto de inércia; um pêndulo em movimento que oscila entre períodos
positivos e negativos em torno de um ponto médio em busca de
estabilidade.A expressão ecologicamente equilibrado incorpora a noção de
equilíbrio fluente, isto é, um equilíbrio dinâmico que se mantém graças à
contínua e permanente ruptura do equilíbrio. Na expressão ecologicamente
está implícita a lei de sobrevivência da selva. As relações infra e
interespecíficas, harmônicas e desarmônicas estão contempladas nesse
10
contexto.
8
Art. 3º- I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; [...]. (BRASIL,
Congresso Nacional, Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938compilada.htm>. Acesso em: 7 nov. 2011.
9
BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 7 nov. 2011.
10
BUTZKE, Alindo. Os fundamentos ecológicos das questões ambientais na Constituição brasileira
de 1988. Revistra Trabalho e Ambiente. Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, v. 1, n. 1,
jan-jun., 2002, p. 122 (grifos do autor).
24
Esse novo âmbito de enquadramento do meio ambiente como direito
fundamental permitiu a realização de aspirações individuais, com vistas a uma
ordem social norteada pelos valores de liberdade e solidariedade.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito
fundamental,
porque
é
uma
prerrogativa
individual
prevista
constitucionalmente, cuja realização envolve uma série de atividades
públicas e privadas; produzindo não só a sua consolidação no mundo da
vida como trazendo em decorrência disto, uma melhora das condições de
desenvolvimento das potencialidades individuais, bem como uma ordem
11
social livre.
O reconhecimento do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito humano fundamental ocorre, em nível internacional, muito antes da
Constituição de 1988. Na Conferência de Estocolmo, realizada na Suécia em 1972,
pela primeira vez se reconheceu a necessidade de organizar a relação entre ser
humano e meio ambiente. Naquele momento histórico surge a Declaração de
Estocolmo, documento que mais tarde direcionaria a criação de toda legislação
ambiental dos países signatários, com vistas à elaboração de normas jurídicas
pautadas por ideais transcritos em seus princípios.
1 – o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao
desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de
qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é
portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para
as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que
promovem, ou perpetuam o “apartheid”, a segregação racial, a
discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de
12
dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas.
No Brasil a primeira legislação que traz sinais implícitos e explícitos da
Declaração de Estocolmo foi a Lei nº 6.938, de 31 de agosto 1981. Alguns anos
depois, com a edição da Constituição de 1988, fica bastante clara a postura do
legislador que, tratando-se de meio ambiente, recepciona claramente todos os
preceitos constantes daquele encontro, reservando inclusive um capítulo do texto
constitucional para a questão ambiental.
11
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 223-224.
Disponível em: http://5cidade.files.wordpress.com/2008/03/declaracao-de-estocolmo.pdf. Acesso
em 08 de Novembro de 2011.
12
25
As Constituições originalmente tinham um objetivo básico: resguardar o
cidadão das arbitrariedades do estado, especialmente na apropriação da
propriedade privada sem prévia e justa indenização em dinheiro. 13 Uma evolução
significativa pôde ser notada, pelo menos na Constituição de nosso país, quando se
preocupou em garantir também, outros objetivos: “consagrar direitos sociais e
econômicos e apontar caminhos, metas e objetivos, a serem perseguidos pelos
Poderes Públicos no afã de transformar a sociedade”14.
Pontual e esclarecedora a lição de Canotilho.
Nesse complexo quadro de aspirações individuais e sociais, ganham relevo
categorias novas de expectativas (e a partir daí, de direitos), cujos
contornos estão em divergência com a fórmula clássica do eu-contra-oEstado, ou até da sua versão welfarista mais moderna, do nós-contra-oEstado. Seguindo tal linha de análise, a ecologização do texto constitucional
traz um certo sabor herético, deslocado das fórmulas antecedentes, ao
propor a receita solidarista - temporal e materialmente ampliada (e, por isso
mesmo, prisioneira de traços utópicos) - do nós-todos-em-favor-do-planeta.
Nessa, comparando-a com os paradigmas anteriores, nota-se que o eu
individualista é substituído pelo nós coletivista, e o típico nós welfarista (o
conjunto dos cidadãos em permanente exigência de iniciativas
compensatórias do Estado) passa a agregar, na mesma vala de obrigados,
sujeitos públicos e privados, reunidos numa clara, mas constitucionalmente
legitimada, confusão de posições jurídicas; finalmente, e em conseqüência
disso tudo, o rigoroso adversarismo, a técnica do eu/nós contra o Estado ou
contra nós mesmos, transmuda-se em solidarismo positivo, com moldura do
15
tipo em favor de alguém ou algo.
Assim, a Constituição brasileira trouxe consigo o rompimento de um
paradigma em relação ao ordenamento jurídico, superando uma matriz de ordem
exclusivamente liberal e pragmática, se firmando como defesa instituída da ordem
ambiental, atribuindo não somente efeito simbólico à ideia de função social, mas a
tornando imperativa e relacionando-a ao contexto da função socioambiental da
cidade.
Todas as Constituições liberais garantem a propriedade privada e a livre
iniciativa, porém esses valores estão moldados pela proteção ambiental.
Sendo que, a um só tempo, a Constituição construiu limitações à exploração
13
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (org) Direito constitucional
ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 58.
14
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004. p. 71.
15
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (org) Direito constitucional
ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 58.
26
e acrescentou a função social da propriedade. Agora, o direito de explorar
só é permitido respeitando os fundamentos ecológicos essenciais, incluindo16
se aí a saúde humana.
A proteção ambiental ganha meteórica importância, alçada rapidamente à
condição de direito fundamental, justamente fundamentada pela crise política que
determinou nova postura em relação à proteção ambiental. A proteção ambiental
também impele ao Estado, enquanto ente administrativo, de levar em conta o
ambiente quando da tomada de decisões em relação às políticas públicas coletivas.
Ainda, a relevância da questão ambiental atinge tal magnitude que a coletividade é
chamada à esfera decisória, na forma de participação pública, na promoção de
ações judiciais protetivas ao ambiente. Neste exercício participativo fica assentado
junto à coletividade que a questão ambiental é vital para a vida.
Leff ao abordar a crise ambiental ensina,
A problemática ambiental - a poluição e degradação do meio, a crise de
recursos naturais, energéticos e de alimentos - surgiu nas últimas décadas
do século XX como uma crise de civilização, questionando a racionalidade
econômica e tecnológica dominantes. (...) A problemática ambiental gerou
mudanças globais em sistemas socioambientais complexos que afetam as
condições de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de
internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e sociais para a
gestão democrática dos recursos naturais. 17
A constitucionalização do meio ambiente18, terminologia adotada por
Canotilho que procura demonstrar que tal fenômeno traz consigo diversos benefícios
de
todo
gênero,
concretos
e
importantes
para
uma
(re)organização
do
relacionamento do ser humano com a natureza, garante a primazia das normas
como valor essencial dentro do sistema legal. A elevação do ambiente como norma
constitucional fundamental garante a durabilidade pela posição constitucional que se
encontra. Diante desse processo, o tema jurídico de discussão toma importância
capital, deixando de ser norma infraconstitucional, o que faz com que ocorra uma
mudança de paradigma exegético no trato da questão jurídica da tutela ambiental.
16
MODENA, Cesar Augusto. A constitucionalização de Gaia. In: PEREIRA, Agostinho Eli Koppe;
CALGARO, Cleide. (Org.). O direito ambiental e o biodireito: da modernidade à pós-modernidade.
Caxias do Sul: Educs, 2008, p. 105.
17
LEFF, Henrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela; revisão técnica
Paulo Freira Vieira. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 59.
18
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens. (org) Direito constitucional
ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 69.
27
Esse processo de constitucionalização do meio ambiente, a partir de 1988,
impõe a todos um dever geral, um protocolo comum de obrigações (primárias e
secundárias) a serem seguidas, no sentido da proteção ao meio ambiente. Parece
que a teoria sistêmica cientificamente prova que é encontrada na natureza e, em
geral, passa também a compor o direito ambiental na medida em que este
contamina e perpassa todos os demais ramos do direito, pois assume a cada dia
mais relevância e importância social. Assim, pela magnanimidade assumida pelo
ambiente enquanto direito à vida, nasce um princípio que dá ao Estado uma
ferramenta jurídica preventiva para evitar o dano ambiental, ferramenta essa, no
fundo, ética. 19
A consciência tardia acerca do problema ambiental fez com que se
retardassem discussões de ordem epistemológica nos ambientes jurídicos, a fim de
desenvolver um novo estilo de desenvolvimento, baseado na obrigação com trato
ambiental seja do ponto de vista técnico-científico, ou do ponto de vista jurídico e
social.
A implementação de uma estratégia ambiental de desenvolvimento implica
na necessidade de transformar e enriquecer uma série de conceitos teóricos
provenientes de diferentes campos científicos, assim como de produzir os
conceitos práticos interdisciplinares e indicadores processuais, importantes
para luzir, normatizar e avaliar um processo de planejamento e gestão
20
ambiental.
Sob esse contexto, o meio ambiente foi umas das condições do bem-estar
mitigada em detrimento do desenvolvimento econômico. Todavia, não obstante às
formas diretamente destinadas à transformação da matéria-prima natural, a cidade
passou a representar um fomento no movimento de agressão sistemática ao direito
de um meio ambiente limpo e ecologicamente equilibrado. Nesse sentido, muito
antes de se afirmar constitucionalmente o direito a esse ambiente equilibrado, já era
possível determinar que a conservação dos recursos naturais era condição sine qua
19
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. Ana Cristina Nasser. 2.ed Petrópolis:
Vozes, 2010.
20
LEFF, Henrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela; revisão técnica
Paulo Freira Vieira. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 90.
28
non da dignidade, que não se realiza se os direitos humanos são dissipados pela
divisibilidade.
Assim, a percepção de que a manutenção de um sistema protetivo, de caráter
preventivo e punitivo, para o meio ambiente gerou a sedimentação de uma
consciência formal de que preservar os recursos naturais é necessário. Em relação
à formação e melhoria das condições urbanas de vivência, começaram ser
pensadas estratégias para a realização de ocupações conforme as leis ambientais,
mas muito pouco se conseguiu fazer em relação àquelas áreas ocupadas
irregularmente e que, não dispondo de sistemas mínimos de tratamento de água e
esgoto, coleta de lixo, etc., permaneceram como centros contínuos de poluição e
degradação natural, gerando, radicalmente, um atentado direito contra o sujeito
humano e, doutra banda, contra a natureza. Nesse sentido,
[...] questão ambiental [...] denota aqui o fenômeno associado aos
desequilíbrios sistêmicos ocasionais pela persistência de padrões
reducionistas de regulação da dimensão econômico-política da vida social e
pela natureza exponencial das curvas globais de crescimento demográfico.
Esses desequilíbrios respondem pelo agravamento tendencial do volume de
impactos destrutivos gerados pela ação antrópica sobre o funcionamentos
dos sistemas ecossociais, numa escala mais e mais planetarizada e capaz,
dessa forma, de comprometer as próprias precondições de sobrevivência da
21
espécie .
Sob esse prisma, o modelo de desenvolvimento econômico adotado faz com
que, por um lado, a degradação dos recursos naturais seja o meio pelo qual a
economia se desenvolve, não obstante à existência dos paradigmas da
sustentabilidade. Por outro lado, a mesma ideia que subjaz à liquidação dos
recursos hídricos, florestais, minerais, etc., impede que sejam atendidas aquelas
condições da sociabilidade plena, como uma espécie de conservação da
desigualdade social.
21
VIEIRA, Paulo Freire. Meio Ambiente, desenvolvimento e planejamento. In: VIOLA, Eduardo J.;
LEIS, Héctor R.; SCHERER-WARREN, Ilse; GUIVANT, Julia Silvia; VIEIRA, Paulo Freire; KRISCHKE,
Paulo José. Meio Ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as Ciências Sociais. 3. Ed.
São Paulo: Cortez, 2001, p. 50.
29
2.2 Breve trajetória histórica do reconhecimento do direito à cidade
A história de reconhecimento e realização de direitos é, como análise espaçotemporal, um indicativo de que o movimento de efetivação das condições de
dignidade é gradual, oriundo, muitas vezes, da demanda social e política de
determinada comunidade. Essa maturação dialética dos institutos jurídicos de
garantias e direitos, ou seja, o caminho histórico de aperfeiçoamento, é a
determinante a partir da qual se pode analisar os direitos fundamentais com a
perspectiva
histórica,
em
que
se
fazem
presente
elementos
culturais,
socioeconômicos, jurídicos e, sobretudo, socioambientais.
Num sentido mais específico, a dinâmica que desenvolve direitos relativos à
integralidade e interdependência de direitos entre si registra uma estreita ligação
com a realidade social e as demandas oriundas da não realização de infra-estrutura,
segurança, saneamento básico, condições estas indissociáveis à dignidade.
Habermas, ao considerar acerca sobre a dinâmica histórica dos povos, depõe.
[...] a práxis social estende-se pelas dimensões do tempo histórico e do
espaço social, mediatizando a natureza subjetiva dos indivíduos
cooperantes com a natureza exterior objetivada pelas intervenções do
corpo, no horizonte de uma circundante natureza em si que, em termos
22
cósmicos, engloba também a história da espécie.
Essa extensão real que liga a práxis social ao tempo histórico (indivíduo e
sociedade) torna o reconhecimento do direito à cidade como direito fundamental um
registro objetivo da coerência entre a vivência cotidiana dos centros urbanos e a sua
ligação com os dispositivos jurídicos, cuja função é, justamente, a fundação da
possibilidade da vida social.
Nesse sentido, ao passo que o desenvolvimento das medidas normativas de
proteção e garantia de direitos se realizam gradualmente, também o direito à cidade
pode ser vislumbrado a partir de marcos históricos que endossam essa tentativa de
reconhecimento desses direitos no rol dos direitos fundamentais, sobretudo porque,
a partir disso, a exigibilidade e legitimação se acentuam.
22
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luis Sérgio Repa e Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 474, grifos do autor.
30
Porém, sob esse mesmo arcabouço histórico, as investidas públicas e
privadas tiveram, ao longo dos tempos, os mais diferentes fomentos para a
consolidação de centros urbanos demográfica e estruturalmente mal definidos.
Sobre esse aspecto, a relação existente entre sustentabilidade e previsão estrutural
dos centros urbanos sempre careceu de uma intenção mais acentuada e de
medidas mais efetivas, tanto enquanto ideologia institucional como sentimento
social.
A análise presente em Barral é, do ponto de vista do direito à cidade, a
fundação de uma análise cuja matriz é a justificação teórica para a relação existente
entre
desenvolvimento
e
sistema
jurídico.
Quando
posto
na
seara
do
reconhecimento do direito à cidade como direito humano fundamental, o status de
desenvolvimento passa a pressupor, como condição de existência, uma ligação
direta entre a legitimidade do discurso econômico e a tarefa do Estado em executar
planejamento e efetivação. Nesse sentido, essas duas grandes estruturas, quando
destoadas do caráter urgente de previsão e adimplementos de medidas radicais,
acabam por se tornar empecilhos à realização de direitos, sobretudo daqueles que
demandam determinada atividade institucional.23
Ao longo das modificações estruturais nos mais diferentes contingentes
humanos, desde a formação primitiva até a sedimentação de formas jurídicas mais
densas, a cidade representou um centro de convergência estratégico e necessário,
razão pela qual é credora de atenção no âmbito político.
Ao redor do mundo, no sentido como constitucionalmente se reconhece os
direitos enquanto fundamentais, o direito à cidade esteve posto de forma indireta,
sem uma menção explícita que o incorporasse de forma definitiva no rol daqueles
direitos que podem, o mais imediatamente possível, serem exigidos do Estado.
Nesse sentido, um marco global da fundação de direitos individuais e sociais pôde
ser percebido, cujas implicações chegam até hoje como pressupostos dos
23
BARRAL, Welber. Desenvolvimento e sistema jurídico: a busca de um modelo teórico. In: BARRAL,
Welber. PIMENTEL, Luiz Otávio. (org.) Teoria jurídica e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2006, p. 14 et. seq.
31
ordenamentos jurídicos mundiais, na Declaração Universal dos Direitos Humanos do
segundo pós-guerra, que, em sentido estrito, levará a cabo, num sentido mais
abrangente, as estruturas jurídicas basilares a partir das quais é possível referir a
tarefa do Estado no que diz respeito à execução de medidas que, por um lado,
mitiguem a atividade discricionária das instituições públicas e, por outro, realizem as
condições da vida individual e social, não como referências excludentes ou
paradoxais, mas complementares, à medida que a qualidade de vida de uma
sociedade pressupõe a determinação individual de suas condições.24
Assim, estabelece o artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948.
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à
segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
25
outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
Esse rol de direitos anunciados pela declaração existe em dependência do
direito à cidade, enquanto lugar onde a segurança, a habitação, o trabalho, são
possíveis. Esse marco regulatório genérico, enquanto vinculação às formas
constitucionais contemporâneas, representa o início indireto de formação e
reconhecimento do direito à cidade propriamente dito. Mais do que isso, não limita a
existência de direitos para além daqueles constitucionalmente instituídos, justamente
por entender vigentes estruturas históricas de cunho político e social capazes de
modificarem o cotidiano da sociedade e, com isso, alterar as formas de atenção às
condições de vida e dignidade.
Oriunda das tensões políticas e sociais da primeira metade do século XX,
sobretudo a partir dos movimentos nacionais e internacionais de redemocratização
dos Estados no segundo pós-guerra, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
24
STEIMETZ, Wilson. A vinculação de particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros
editores, 2004, p. 67.
25
ONU, Assembléia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos, em
10
de
dezembro
de
19484.
Disponível
em:
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em 12 mar. 2011.
32
19462627, retomando em muitos aspectos as disposições da Constituição dos
Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 19342829, reinseria um rol de direitos e
garantias individuais e sociais pelas quais entendia ser possível a existência de
contextos humanos aptos a representarem uma ordem jurídica e democrática que
fizesse pudesse contrapor qualquer tentativa totalitária de impedir a democracia e a
liberdade dos povos. Entretanto, ambas as constituições (1934, 1946) não
mencionavam diretamente os direitos da sociedade em relação à manutenção de
planos reais de planejamento urbano e cuidado com o meio ambiente, quanto mais
reconhecer expressamente a fundamentalidade do direito à cidade.30
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967 31,
cuja forma de aferimento de direitos e garantias sociais e políticas não diferia
significativamente das predecessoras, manteve um rol de garantias individuais e
genéricas, mas cuja preocupação não se voltava à preservação ambiental ou a
criação de normas especificas de urbanidade. Diante das necessidades sociais, a
26
A Constituição do Império, de 1824, que, sobretudo, traçava elementos organizacionais de matéria
interna, e a primeira Constituição da República, de 1891, não faziam alusões diretas a elementos que
se relacionem imediatamente com a configuração de direitos ao indivíduo ou à sociedade. Mesmo
que mencionando de forma breve uma “Declaração de Direitos”, muito superficialmente a Carta de
1891 dialogava com espécies jurídicas mais delineadas.
27
BRASIL, Congresso Nacional. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, em 18 de
setembro
de
1946.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 02 mar.
2011.
28
BRASIL, Congresso Nacional. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, em 16 de
julho
de
1934.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em 02 mar.
2011.
29
Três anos depois, em 1937, foi regulamentado o primeiro diploma legal brasileiro que aludia a
forma de loteamentos. O Decreto n.° 3.079/38, no entanto, não tinha como escopo fundamental a
preservação dos ambientes urbanos e a conservação natural das cidades, mas, sobretudo, inserido
na tradição civilista do próprio Código Civil da época, apenas regulamentar algumas situações
desiguais quanto ao exercício de direitos reais, por algum motivo sujeitos à dúvida (VERÍSSIMO,
Antônio A. Parcelamento informal do solo na cidade do Rio de Janeiro: raízes legais da informalidade.
In: COUTINHO, Ricardo. BONIZZATO, Luigi. (coord.) Direito da cidade: novas concepções sobre as
relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 153).
30
Não obstante o reconhecimento do caráter fundamental do direito à cidade na DUDH/1948, em
1966 também o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais atentou para a
importância que as condições de habitação, saneamento, equilíbrio ecossistêmico representam para
a consolidação de nações democráticas ao redor do mundo. Já em seu preâmbulo, a carta atenta
para a necessidade de a dignidade humana ser determinada com as condições individuais e sociais
de
bem
estar
e
qualidade
de
vida.
(Disponível
em:
<http://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20os%20Direitos%20Econ%
C3%B3micos,%20Sociais%20e%20Culturais.pdf>.Acesso em 14 mar. 2011.
31
BRASIL, Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, em 24
de
janeiro
de
1967.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Acesso em 02 mar.
2011.
33
carta de 1967 dispunha, em grande parte, de elementos de organização do Estado e
competências. Entretanto, mais tarde, uma Emenda Constitucional atentava para a
formação de Regiões Metropolitanas, cujo escopo era, ao desenvolver e estreitar os
laços econômico-sociais, prover necessidades que era comuns entre determinados
povos. Ainda que com o escopo precípuo de facilitar a dinâmica da economia local,
esse registro atentou, então, para a nova realidade da urbanização32. Ou seja,
[...] deve-se perceber que o surgimento do sistema legal que deu origem às
Regiões Metropolitanas no Brasil, veio abortar uma série de iniciativas
administrativas que começavam a germinar nas principais metrópoles
brasileiras. Estas iniciativas expressavam tentativas de responder às
questões emergentes do processo de urbanização a partir de suas
peculiaridades regionais e de suas especificidades organizacionais e
administrativas. Representavam experiências de gestão adaptadas aos
recortes territoriais sobre os quais visavam intervir, tendo por referência
organizacional a dinâmica político – institucional de suas respectivas áreas
33
de atuação.
Essa primeira menção constitucional percebeu, então, que a realidade
brasileira dos centros urbanos fora drasticamente modificada ao longo das últimas
décadas, originando um sistema de demandas sociais, coletivas e individuais, que
exigem do Estado uma resposta gestacional e administrativa ampla e urgente,
justamente por se apresentarem algumas situações de extremo esquecimento da
ideia de condições de vida digna. Além disso, o contexto de urbanidade é uma
constatação genérica, cujos regionalismos sociais e políticos não excetuam um
comportamento universal de atenção à formação de desenvolvimento das cidades.
Ou seja, as características de planejamento e ordenação dos centros urbanos são
gerais, e demandam uma previsão especifica de desenvolvimento integral e amplo
das medidas de sociabilidade nas cidades e de cuidado com o meio ambiente.
32
Diante da formação de favelas nos contextos urbanos nacionais, algumas capitais brasileiras,
mesmo antes da própria Constituição Federal de 1988, regulamentaram atividades pelas quais se
pudessem implementar algumas condições elementares de vivências nas favelas. Assim, algumas
dessas cidades, diante da demanda social, tiveram na rodem municipal políticas que atentaram para
essa nova realidade dos centros urbanos. Belo Horizonte chegou até mesmo a provar uma lei em
1983- a Pró-Favela- que partia do pressuposto de que qualquer ambiente de vivência social deve
manter uma estrutura mínima de sociabilidade, ideologia que, mais tarde, retornaria tanto na
Constituição quanto na Lei n°. 10.257/2001 (FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística
no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos
brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 46 et. seq.).
33
GUIMARÃES, Nathália Arruda. Regiões metropolitanas: aspectos jurídicos. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, n. 273, 6 abr. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5050>. Acesso
em: 1 mar. 2011.
34
Já a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 previu nos
artigos 18234 e 183, em que trata da Política Urbana, que o desenvolvimento urbano
se pauta pela conservação de ambientes que sirvam ao bem estar da população e
que tornem possível a execução das funções sociais da cidade, condições sem as
quais o habitat citadino perde a sua característica de agrupamento ordenado.
Okada35, ao analisar a perspectiva do Direito Ambiental em relação aos
contextos urbanos, chega a afirmar que, nas constituições que precederam a
Constituição Federal de 1988, não houve qualquer manifestação quanto à
preocupação por ambientes ecologicamente equilibrados. Nesse itinerário, a
constitucionalização daquele direito se deu por influência da Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, momento em que foram
criadas novas formas de se pensar o tema a partir da realidade mundial dos povos.
Já do ponto de vista das atribuições municipais, estabelece o mencionado
artigo 182 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem- estar de seus habitantes.§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara
Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o
instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.§
2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor.§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com
prévia e justa indenização em dinheiro.§ 4º - É facultado ao Poder Público
municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir,
nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificação
compulsórios;II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
progressivo no tempo;III - desapropriação com pagamento mediante títulos
da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
34
BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em
5
de
outubro
de
1988.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 10 de maio de
2011.
35
OKADA, Denise Setsuko. A constitucionalização da matéria ambiental - o Direito às cidades
sustentáveis em jogo. In: COUTINHO, Ricardo. ROCCO, Rogério. O direito ambiental das cidades.
2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 66.
35
Ainda sobre a Política Urbana, o artigo 183 do mesmo diploma refere.
Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio,
desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.§ 1º - O
título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.§ 2º - Esse direito
não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.§ 3º - Os
36
imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Essa função social, referida mais especificamente no artigo 182, que difere da
concepção mais específica de função socioambiental, que se verá mais adiante, diz
respeito à coerência entre os planos adotados pela administração pública e o seu
Plano Diretor, elaborado pelas Câmaras Municipais, justamente por serem
pressupostas como o órgão mais conhecedor da realidade regional específica.
Já pela menção dos parágrafos 2°, 3° e 4° do artigo 182, bem como a
expressão geral do artigo 183, se pressupõe que compõe o rol do direito à cidade
um contingente de medidas singulares que passam a condicionar a amplitude desse
direito à formação de propriedade que se inserem na dinâmica urbana. Nesse
sentido, a previsibilidade registrada constitucionalmente aufere à administração
pública o direito de zelar pela organização e edificação de propriedades particulares
que não se destoem da dinâmica coletiva e, sobretudo, das disposições
institucionais acerca da forma de inserção naquela dinâmica.
Fernandes, ao analisar esse marco constitucional, depõe.
Nesse contexto, uma grande novidade foi a aprovação da Constituição
Federal de 1988 e, com ela, uma grande conquista da sociedade brasileira
foi a inserção, pela primeira vez na história constitucional brasileira, de um
capítulo sobre política urbana. Dois pequenos artigos que revolucionaram a
ordem jurídica brasileira ao reconhecer que o Brasil já se encontra
plenamente urbanizado, e que as formas de organização socioeconômica e
36
BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em
5
de
outubro
de
1988.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 10 de maio de
2011.
36
político-territorial do país eram de outra ordem que não aquelas
37
reconhecidas pelo Código Civil de 1916.
O fato de as constituições anteriores não referirem diretamente a necessidade
de uma política urbana específica em, além disso, o Código Civil de 1916,
totalmente filiado a uma tradição civilista, não mencionar elementos de ordem
principiológica ou coletiva, fez com que a Constituição Federal de 1988 fosse o
marco histórico mais protuberante na tradição do Direito à Cidade, abrindo a
possibilidade de, mais tarde, ser criada uma lei regulamentadora mais específica.
Assim, esse marco constitucional apenas ofereceu as bases genéricas pelas
quais se pudesse delimitar as condições particulares do procedimento a ser adotado
pelo Estado e pela atividade privada. Sob essa ótica, a aprovação da Lei n. 10.257,
de 10 de julho de 2001, que visa regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal brasileira de 1988. Durante 11 anos o projeto foi apreciado pelo Congresso
Nacional, sendo aprovado com o escopo de, num sentido mais técnico e
organizacional,
[...] tratar o meio ambiente artificial não só em decorrência do que
estabelece constitucionalmente o art. 225, na medida em que a
individualização dos aspectos do meio ambiente tem puramente função
didática, mas também em decorrência do que delimitam os arts. 182 e 183
da CF, visando estabelecer aos operadores do direito facilidade maior no
manejo da matéria, inclusive com os instrumentos jurídicos trazidos
38
fundamentalmente pelo direito ambiental constitucional brasileiro.
Mesmo com essa finalidade disciplinadora de uma previsão constitucional,
Foram precisos mais de dez anos de discussões, emendas e substitutivos
de toda ordem para que o projeto de lei N° 5.788 originalmente proposto em
1990 pelo Senador Pompeu de Souza que por sua vez era, pelo menos em
parte, uma nova encarnação de diversos outros anteprojetos e projetos de
leis discutidos ao longo de décadas, sendo que o projeto de lei N° 775/83 de
autoria do Poder Executivo merece menção especial fosse finalmente
aprovado, e o texto final da lei revela todas as dificuldades do tenso
processo de negociação e barganha que se deu entre diversos interesses
37
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 7.
38
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio
ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 36-7.
37
existentes acerca da questão do controle jurídico do desenvolvimento
39
urbano.
Também chamado de Lei do meio ambiente artificial40, o Estatuto da Cidade,
Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001, demonstra uma conciliação entre dois
dispositivos constitucionais básicos, cuja conexão é evidente; ou seja, a formação de
cidades planejadas (direito à cidade) com o devido cuidado com o meio ambiente.
Nesse sentido, direito à cidade e o direito a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, como dispõe o artigo 225 da Constituição de 1988, são estruturas
basilares e interdependentes na composição de um habitat artificial e natural que
preservem as condições de bem-estar e qualidade de vida. Assim como na
Constituição, a lei regulamentadora volta a estabelecer, já no seu artigo 1°,
parágrafo único, a ideia de ordem pública e interesse social. Explicita o referido
artigo.
Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.Parágrafo único.
Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece
normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar
41
dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Entretanto, além da estruturação infraconstitucional do Estatuto da Cidade,
Saule Junior elenca algumas outras formações institucionais e sociais que,
fundamentalmente, ajudam a compor o rol jurídico de firmação do direito à cidade
como forma de implantação da própria possibilidade urbana. Depõe, mencionando,
inclusive, aquele reconhecimento constitucional e infraconstitucional.
No campo institucional, este movimento pela reforma urbana teve como
conquista o capitulo da política urbana na Constituição brasileira e da lei
nacional Estatuto da Cidade, e a criação do Ministério das Cidades. O Fórum
39
FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do
direito urbanístico no Brasil. Revista Urbana. v. 7. n. 30. p.43-59. Disponível em:
<http://www2.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S079805232002000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 07 mar. 2011.
40
Mister mencionar que a Lei n.° 6.938/1981, que estatuiu a Política Nacional do Meio ambiente,
visava atividades, públicas e privadas, no sentido de manter um contexto de preservação natural dos
ambientes. Não fazia, assim, uma menção à conciliação entre a preservação da natureza e dos
ambientes artificiais, ou políticas de ordenação urbana em atenção à preservação ambiental.
41
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 10 de maio de 2011.
38
Nacional de Reforma Urbana também é protagonista, com outros atores
sociais, da primeira Conferência Nacional das Cidades, realizada em 2003,
com o objetivo de estabelecer as diretrizes e metas das políticas nacionais de
desenvolvimento urbano, habitação, saneamento ambiental e transporte e
mobilidade urbana e da implementação do Conselho Nacional das Cidades
(abril de 2004) composto por diversos segmentos do Poder Público e da
42
Sociedade Civil.
Com a análise dessa formação jurídica e social é possível perceber que um
histórico mais específico em relação do direito à cidade no Brasil é bastante recente.
Porém, a formação dos contingentes urbanos brasileiros contém décadas de gradual
aperfeiçoamento populacional dos centros urbanos, cujas ocupações e formas de
acesso se diferem drasticamente daquelas projeções jurídicas recentes.
Nesse sentido, ainda que vigentes alguns mecanismos para, de um lado
orientar as novas ordens populacionais e civis e, de outro reordenar ou reformular
aquelas ocupações já estruturadas, a formação rápida das cidades, sobretudo a
partir dos fomentos à indústria e demais formas de crescimento econômico,
desencadeou migrações que, num sentido bem pontual, originaram contextos de
aglomeração desordenada, lugares sem infra-estrutura, saneamento básico e
segurança. Assim, essa estrutura urbana que se apresenta como um desafio
institucional e social é resultado de escolhas sócio-econômicas delineadas ao longo
dos tempos.
2.3 A formação histórica do desenvolvimento urbano
Habitualmente, cidade é considerada um meio de vida coletiva, também é
verdade que as condições avistadas contemporaneamente são o resultado de um
processo iniciado a partir das transformações industriais do século XVIII e XIX.
Entretanto, qualquer menção a essa origem temporal não é capaz de identificar as
cidades primitivas (sem qualquer mudança estrutural significativa na ordem natural)
àquelas formas urbanas sedimentadas na atualidade mundial, senão pela comunhão
de esforços entre os indivíduos, ainda que com objetivos distintos.
42
SAULE JUNIOR, Nelson. O Direito à cidade como paradigma da governança urbana
democrática.
Disponível
em:<
http://www.institutoapoiar.org.br/imagens/bibliotecas/O_Direito_a_Cidade_como_paradigma_da_gove
rnanca_urbana_democratica.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2011.
39
A existência das cidades primitivas está, grosso modo, vinculada à
historiografia, enquanto ciência genuinamente metodológica cujo objeto é as
formações humanas no passado. Nesse sentido, os resgates arqueológicos
demonstram que a ideia de cidade presente tanto no período pré-histórico como
pouco tempo depois da descoberta da escrita eram de cunho referencial, como que
um gene pouco comparável com a atual forma que as cidades representam.43
Entretanto, civilizações como a mesopotâmica (6.000 a.C) e egípcia antiga
(5.500 a.C) conservavam traços mais identificáveis com a dinâmica social da
contemporaneidade. Cada qual com o seu regime particular de economia e política
sustentam uma relação interna e externa com vistas à conservação de sua
hegemonia econômica e governamental. Os agrupamentos humanos, mesmo
seguindo uma lógica diferente de organização e costume, originavam contextos de
inteiração entre os membros da comunidade, já havendo previsão para ordenação
daqueles agrupamentos. Operavam aí um distanciamento daquela forma mais
primitiva de civilização na qual os grupos pouco modificavam os ambientes
naturais.44
Inicialmente nômades, os povos mesopotâmicos, diante da descoberta da
agricultura, passaram a residir mais tempo em determinado local, fazendo com que
a constituição de suas famílias gerasse, então, a formação de pequenos grupos.
Sob esta ótica, o regime econômico começou a influir na forma nômade fazendo
com que se percebesse, entre os anos de 4.000 a.C e 1.600 aC, uma migração para
um regime seminômade ou até mesmo sedentário.45
Essa perspectiva sedentária é que começa a moldar os aglomerados
humanos, registrando desde pequenos vilarejos até cidades de um porte
43
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, Lei do meio
ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 17 et.seq.
44
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio
ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 15 et. seq.
45
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio
ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 36-7.
40
significativo.46 Assim como as revoluções econômico-industriais na modernidade,
sobretudo as revoluções industriais de 1750 e 1850, o aperfeiçoamento da
agricultura e das relações de consumo e mercantis demonstraram uma necessidade
de domesticação e exploração humanas, cujo escopo era manter a hegemonia
político-econômica das cidades. Em grau menor, as cidades antigas já continham
algumas características das ordens urbanas atuais.
Os sumérios já sabiam controlar as águas dos rios Tigre e Eufrates, visando
o abastecimento de suas cidades, bem como já adotavam o costume de
erguer grandes muralhas de barro para proteger o núcleo urbano de
invasores. Além disso, as cidades sumérias já conheciam núcleos de
pobreza, sendo certo que a pressão econômica que ocorria [...] gerou
grande descontentamento [...].
A partir dessa análise, é possível referir duas estruturas basilares presentes
nas formações urbanas: a ordem econômica e a ordem política. Em diferentes
momentos da história, quando estão presentes as condições de vida coletiva, há a
necessidade de se consolidar uma estrutura econômica forte, assim como a adoção
de um modelo político capaz de manter a integridade política interna e externa da
cidade, ou seja, tanto em relação aos comandos nacionais quanto às demais nações
que se projetavam no mundo.
Na história das cidades gregas, a pujança dos impérios ateniense e espartano
está intimamente ligada à ordem político-econômica.47 No mesmo sentido, Roma, foi
devedora de um histórico de conquistas e de privilégios até mesmo geográficos.
Esse passado de conquistas e derrotas foi, não somente para o Império Romano,
por um lado, a condição de uma hegemonia dentro de um período de tempo. Por
outro lado, o fato de as nações não conservarem entre si a ideia de uma comunhão
espaço-temporal de poder e autonomia econômica fez com que aquela existência
hegemônica estivesse condiciona à possibilidade particular de manter seu poderio
de guerra. Assim, até o surgimento dos Estados Nacionais, no final do século XVIII,
início do século XIX, e da afirmação história do reconhecimento da independência
nacional, não havia uma continuidade garantida pela qual determinada nação podia,
46
LEFEBVRE, Henri. Direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p.
67.
47
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do
pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 32.
41
de forma concreta, se projetar no mundo e garantir formas definitivas de vivência
interna e exterior.
Entretanto, o elemento diferenciador do Império Romano48é a imposição
além-fronteira do seu Direito. Conservando um aspecto altamente autoritário, a ideia
de um regramento possível e seguro foi tão marcante que, de forma incisiva,
influenciou inúmeras formações jurídicas dos mais diferentes povos.
Assim, este caráter estritamente histórico das cidades deixa transparecer que
os contextos humanos e naturais vão delimitando a própria história, demonstrando
que, desde a origem mais remota, o desenvolvimento das cidades está relacionado
à economia e à política. De um lado, as formas de se estruturar os subsídios
materiais que mantêm a hegemonia da cidade; num segundo sentido, os intentos
ideológicos que representam a postura dessa cidade – ou mesmo nação - em
relação aos seus sujeitos e em relação ao mundo.
Nesse sentido, ainda que já a história dos povos primitivos nos chega como
diagnósticos da investida humana em busca de poder e riquezas, a matriz mais
íntima
da
organização
do
desenvolvimento
das
cidades
mundiais
da
contemporaneidade está enraizada num passado não tão remoto. A modernidade,
cuja polissemia conceitual se origina justamente na vastidão semântica que
representou, é o marco histórico-filosófico que se projetou mais incisivamente nas
sociedades mundiais e ofereceu, principalmente, as bases ideológicas da ordem
política e econômica da atualidade.
Num sentido estritamente jurídico, com a modernidade a proteção individual e
da hegemonia das nações foi sedimentada. Além disso, a liberdade políticoeconômica passou a representar uma adoção mais universalizada, uma vez que
passaram a repercutir, sobretudo com o advento do século XXI e da globalização,
em todo o globo. A despersonalização da natureza, de seu caráter sagrado e mítico,
fez com que também as ciências naturais investissem de formas mais agressiva em
relação à natureza, fornecendo à economia os meios para a exploração natural e,
48
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2001, lei do meio
ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 17.
42
com as revoluções industriais inglesas do século XVIII e XIX e as demandas fabris
por mão-de-obra, também a exploração humana, mediante a submissão a
ambientes insalubres e perigosos, além dos irrisórios salários. Esse cunho positivista
de matriz burguesa insurgido por sobre as ciências, sobretudo com o ideal de
fracionamento e segregação- inclusive o direito- fez com que parecesse menos
perversa a ideia de que o desenvolvimento das nações autorizava a denegação
gradual de direito a alguns sujeitos na esteira do crescimento populacional e
econômico das cidades.
Mais do que isso, o histórico da formação das cidades modernas no Brasil no
século XIX conta com a migração camponesa para os centros urbanos. Como palco
da atividade industrial, as indústrias foram sendo cercadas de pequenos
agrupamentos, sem as mínimas condições de saneamento básico, segurança, etc.
Não contendo qualquer plano de mapeamento e divisão ordenada de ambientes, as
cidades viram surgir cortiços, casebres, uma população crescente, demandas por
condições mínimas de sobrevivência, sem previsão de políticas capazes se sanarem
qualquer dessas condições.
Nesse sentido, reserva-se aos séculos das revoluções industriais inglesas
(séculos XVIII e XIX) o momento histórico que, de uma maneira mais consistente,
contribuiu para o crescimento rápido e sem ordenação prévia das cidades, em que
não estavam presentes condições estruturais, pavimentação de ruas, saneamento
básico, segurança. Desde a invenção da máquina a vapor, por volta de 1705, tendo
sido aperfeiçoada ao longo dos anos, e a qualificação potencial das fábricas
transformadoras de matéria-prima, uma reunião de pessoas passou a configurar a
estrutura das regiões produtivas, alastrando-se ao ponto extremo de se coincidir a
consistência urbana ao caos urbano, como dimensão-fim de um processo, antes
lento, de rotativização de objeto e sujeito.
Ou seja, não só o objeto se torna visado e volátil, mas o próprio sujeito,
enquanto parte integrante e integrada do processo de caotização da vida citadina,
que, além disso, passa a ser valorado a partir de sua qualificação profissional ou
43
hábil, sem qualquer menção à dignidade enquanto humanidade.49 Lafargue, diante
do contexto opressor, não deixa de considerar que “Os proletários meteram na
cabeça infligir aos capitalistas dez horas de forja e de refinaria; eis o grande erro, a
causa dos antagonismos sociais e das guerras civis”50, deixando, dessa forma,
explicito o caráter de dependência psicológica e material dos trabalhadores em
relação às fábricas.
Nessa seara, a sedimentação de uma sociedade socioambientalmente
despreparada, não só do ponto de vista das condições estruturais, mas também da
cultura e da educação, contém determinantes que não podem ser resumidas
unicamente a um problema político-organizacional. A exclusão social e o desatenção
às necessidades mais elementares da sociedade possuem razões muito mais
amplas do que puramente uma negligência nas formas de administrar a política
pública de saneamento, a habitação popular, os planos gestores, desafetação das
áreas verdes.
Porém, também a escolha das diretrizes governamentais, desde sua gênese,
compreende o problema das cidades tendo em vista uma ideologia subjacente,
intimamente relacionada com a posição político-econômica. O fato de se privilegiar a
organização de determinadas estruturas sociais em detrimentos de outras denuncia
uma polarização interna da governabilidade, em que a eleição das matrizes de
destinação de políticas públicas é selecionada de acordo com o resultado imediato,
ou seja, do retorno objetivo dos investimentos. Assim,
Apesar de a cidade nascer da própria necessidade de convivência e do
desejo do homem em construir um local ideal para viver, a elite dominante
sempre estabeleceu informalmente a ocupação e a organização do seu
espaço, excluindo e relegando aos demais a segundo plano e para fora dos
51
“muros” da cidade.
Nesse sentido, a estruturação dos sujeitos nas cidades pode ser
compreendida a partir da intenção e poder que se origina a partir dos interesses
49
LÉVINAS, Emmanuel. Ensaios sobre a alteridade. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 263 et. seq.
LAFARGUE,
Paul.
O
Direito
à
preguiça.
Disponível
em:
<http://www.culturabrasil.pro.br/direitoapreguica.htm>. Acesso em 10 de maio de 2011.
51
RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos urbano: Um fato cuja solução também passa
pelo direito como instrumento de construção de um projeto de cidade sustentável. Caxias do Sul:
Ediucs, 2007, p. 131.
50
44
privados, que passam a ser mentores do processo de distribuição populacional dos
terrenos urbanos, tendo sempre em vista a condição econômica como critério de
inclusão ou exclusão dos sistemas satisfatórios de habitação digna. Sobre esse
aspecto, não obstante a previsão constitucional e a formal afirmação do caráter
coletivo e integrador da cidade, o uso de práticas individuais e visão segundo a qual
não existe uma ligação subjetiva entre os membros de uma sociedade fez com que
a cidade se tornasse instrumento para a produção de riquezas e ascensão parcial de
determinadas camadas.
Fernandes fala em “legalismo liberal”, que mesmo alçando raízes na visão
burguesa clássica, é revitalizada na concepção atual de desenvolvimento,
mencionado uma corrente jurídico-filosófica segundo a qual é possível, mesmo sem
extravasar os limítrofes legais, interferir na dinâmica de formação de espaços de
especulação imobiliária, justamente por encarar essa projeção urbanística a partir da
redução prático-conceitual dos ambientes urbanos em objeto de barganha ou
meramente como “mercadoria”.52Assim, ainda que os contextos difiram no tempo e
no espaço, a ideia de que os ambientes se prestam à execução dos interesses
particulares foi sendo incorporado na sociedade, gerando uma redução do conceito
de cidade.
Nesse sentido, se os novos projetos urbanos começaram a seguir uma pauta
mais regulamentada e cuja previsão organizacional se acentuou, certamente essa
atitude representa a formação de um novo nicho mercadológico, cuja rentabilidade
reside, justamente, no afastamento daqueles ambientes descaracterizados do ideal
urbano. Essa promoção, porém, de ambientes ordenados e ecologicamente
equilibrados é, então, uma resposta à demanda elitista por ambientes fora do
universo caótico e empobrecido que caracteriza a maioria dos centros urbanos
brasileiros.
52
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 8.
45
Entretanto, essa migração no foco da investida imobiliária é possível, como
faz parecer Fernandes, a partir da inatividade do Estado em relação àquela sua
função intervencionista. Assim,
[...] se devido ao civilismo liberal o crescimento urbano rápido se deu em
grande medida em condições de laissez faire, naquelas cidades brasileiras
e latino-americanas onde houve alguma intervenção estatal significativa por
meio de planos, zoneamentos e leis urbanísticas, criou-se uma tradiçãoainda incipiente- de planejamento tecnocrático, geralmente baseado em
regras urbanísticas elitistas que desconsideram as realidades
socioeconômicas de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades, e cuja
aplicação não pode ser verificada dada à falta de capacitação dos órgãos
53
públicos, sobretudo no nível local.
Sob esta ótica, até mesmo a atividade do Estado, como forma primitiva de
intervenção, age a partir de uma lógica pré-determinada e que acaba majorando as
dificuldades de acesso à habitação, por exemplo, de forma equitativa. Ou seja, a
forma com que o planejamento atinge àquela população que vive sob a forma
miserável, ou seja, atinge 8,5 % da população brasileira, não se torna um meio de
possibilitar o acesso à moradia digna.54
Com isso, a ideia de que é vigente a superação da tradição civilista e liberal,
cuja liberdade está intimamente atrelada a não atividade do Estado e o dispêndio
individual de provimento das condições de dignidade, se torna perceptivelmente
falaciosa. A existência, nesse sentido, de uma previsão constitucional e de uma
regulamentação específica é, diante da manutenção dos cenários de desordem e
empobrecimento social, mitigada justamente por contingentes de realidade, que
torna a crise da previsão constitucional mais evidente.
Assim, se, por um lado, como faz parecer Lira 55, a inclusão de um capítulo
específico sobre Política Urbana, juntamente com o posterior Estatuto da Cidade
(Lei n.° 10.257 de 10 de julho de 2001) representam a existência institucional de
53
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 9.
54
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE. Estatísticas Sociais. Disponível
em:< http://www.ibge.gov.br/home/download/estatistica.shtm>. Acesso em 23 ago. 2011.
55
LIRA, Ricardo Pereira. Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária. In:
COUTINHO, Ricardo. BONIZZATO, Luigi. (Coord.) Direito da cidade: novas concepções sobre as
relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 6.
46
previsão e execução de normas e medidas governamentais é, quando existe, formas
limitadas e geograficamente pré-definidas, não levando em consideração as
especificidades locais e socioeconômicas da população. Nesse sentido, a atividade
institucional não se liberta das ideologias que subjazem aos investimentos presentes
na sociedade civil que acaba, muitas vezes, suplantando uma tarefa originariamente
pública.56
Nesse contexto, ratificando aquela menção sobre a mercantilização dos
espaços urbanos, também Carlos depõe.
[...] a produção do espaço urbano se realiza sob a égide da propriedade
privada do solo urbano; onde o espaço fragmentado é vendido em pedaços
tornando-se intercambiável a partir de operações que se realizam através
57
do mercado; tendencialmente produzido enquanto mercadoria [...].
Dessa forma, se a intenção dos constituintes era, pela Constituição,
implementar um subsídio normativo à cidadania, então os índices de desigualdade
social e o não atendimento das condições daquela dignidade denunciam a não
efetivação da vontade do legislador, edificando um empecilho à formação prática e
realização de direitos.
Assim sendo, esse caminho encontrado de se optar, mesmo legalmente, por
instrumentos alternativos que passam a refletir o problema urbano a partir de novas
diretrizes estruturais combate, sobretudo, uma sistemática e universal tendência
exclusivista, que deixa de considerar a perspectiva integradora do direito à moradia
e os elementos de ordem coletiva que caracterizam o direito à cidade.58
Por outro lado, desenvolve-se um fomento objetivo de normativização do
acesso à moradia, com vistas à reestruturação dos centros urbanos a partir de
realocamentos, planejamentos urbanos estratégicos, loteamentos infraestruturados,
56
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 9.
57
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo:
Contexto, 2004, p. 91.
58
WERNECK, Augusto. Função Social da cidade. Plano Diretor e favelas. A regulação setorial nas
comunidades populares e a gestão democrática das cidades. In: Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, 2004, p. 126.
47
tendo sempre em vista que se trata de um problema muito mais amplo em que os
institutos jurídicos se insurgem como integrantes de uma política mais universal.
De maneira sintética, duas são as formas pelas quais se deverá entender o
processo de exclusão, enquanto margem do processo de desenvolvimento,
segregação social.
59
e
De um lado, a cultura individualista do sujeito contemporâneo,
que toma para si a responsabilidade de viabilizar um habitat digno por conta própria;
do ponto de vista da previsão do Estado, um ambiente não representa a previsão
constitucional e que atenta, diretamente, contra as condições de um meio ambiente
equilibrado.60 De outra banda, também a inefetividade do Estado em atender às
demandas
sociais,
previstas
enquanto
direitos
socioambientais
a
própria
Constituição Federal, faz com que se consolide uma desestrutura habitacional,
perceptível na crescente formatação das favelas.61
Assim, diante desse panorama, em que se apresentam elementos históricos
das mais variadas formas, a matriz institucional e civil que permeia as tentativas de
reestruturação dos ambientes urbanos parece estar transpassada por uma ideologia
que, muito mais do que estar representada pelo elitismo, perfilha raízes numa
tradição que, desde a formação capitalista de ideologia neoliberal, forma a
mentalidade social a partir de uma dinâmica que, com o escopo de desenvolvimento
econômico, mitiga a possibilidade desse desenvolvimento existir também num
sentido político social.
Diante disso, as tentativas de pensar o desenvolvimento urbano como um
todo percebem a necessidade de resolver o problema do Direito Urbanístico
mediante a responsabilização do Estado na tarefa de, já pela previsão
constitucional, executar medidas de efetivação de um meio ambiente (natural e
artificial) com condições de bem-estar e qualidade de vida.
59
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 9.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 18.
60
LOUREIRO, Carlos Frederico. O movimento ambientalista e o pensamento crítico: uma
abordagem política. Rio de Janeiro: Quartet, 2006, p. 86.
61
GUATTARI, Félix. A três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. 11.ed. São Paulo: Papirus,
1990, p. 50.
48
[...] a carta de identidade do Direito Urbanístico brasileiro está estruturado
pelos seus princípios, compreendidos na dimensão da sociedade brasileira
[...] Trata-se de um campo do conhecimento com natureza essencialmente
interdisciplinar [...]. A tutela do Direito Urbanístico, a exemplo das condições
de seu tempo, deve considerar conflitos multifacetados, coletivos, plurais,
imprevisíveis e mutáveis, realizando os processos de prevenção e
equacionamento de conflitos compatíveis com as demandas da sociedade
62
contemporânea.
Com a vinculação do Direito Urbanístico, formado, sobretudo, na sociedade
contemporânea, aos demais ramos jurídicos e sociais, passa a representar um
conjunto de normas e princípios pelos quais o problema urbano e ambiental é
discutido e, aos poucos, incluído na pauta de atividades do Estado. Com isso, passa
a interferir em toda a dinâmica jurídica quando dialoga a respeito dos ordenamentos
urbanos e dos problemas ambientais, tornando esse diálogo uma representação da
iminência do discurso socioambiental; estão aí pressupostas inúmeras relações que
a atenção ao direito à cidade refere, sendo, além dessa determinante, a localização
das variadas características da sociedade contemporânea.
Nesse sentido,
O Direito Urbanístico é o conjunto de normas destinadas a dispor sobre a
ordenação da Cidade, sobre a ocupação do espaço urbano de maneira
justa e regular, procurando as condições melhores de edificação, habitação,
trabalho, circulação e lazer. Tem por objeto organizar os espaços
habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na
63
comunidade.
Além disso, ainda que existentes previsões segundo as quais pode ser
pensado um processo organizado e formal de acesso à moradia e à terra, os
principais desafios da sociedade e da administração pública é a realidade atual que
caracteriza os centros urbanos no Brasil, como que um diagnóstico das escolhas
que historicamente formam sendo edificadas sob a égide do pensamento liberal
capitalista. Assim,
62
CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. o Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico brasileiro: as
possibilidades e obstáculos na tutela do direito à cidade. In: COUTINHO, Ricardo; BONIZZATO, Luigi.
(orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 54.
63
LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In:
COUTINHO, Ricardo; BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as
relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 4.
49
Uma característica estrutural do crescimento urbano no Brasil é que, ao
longo das décadas de crescimento da cidades, a maioria da população
somente tem tido acesso à terra urbana e à moradia por meio de processos
informais, sendo que a taxa de crescimento da informalidade urbana tende
a ser muito superior à taxa de crescimento da pobreza [...] metade da
população das grandes cidades vive informalmente em favelas, loteamentos
64
irregulares e clandestinos e outras formas de ocupações precária.
Entretanto, muito mais do que um diagnóstico que serve de base à ideia de
transformação desses agrupamentos irregulares e sem condições de viabilizar uma
vida social digna, esse cenário real se apresenta como uma denúncia real àquelas
investidas da dinâmica capitalista, explicitando a insuficiência de um modelo que,
como base, sustenta a desigualdade social e a impossibilidade de a liberdade atuar
com determinações práticas. Nesse sentido, toda a construção histórica que, pelo
discurso da liberdade do sujeito e pela postulação de um contexto social livre e
independente em relação ao Estado, despendeu esforços num itinerário estritamente
econômico que, sobretudo, já pressuponha a desigualdade e exploração como
condições de desenvolvimento; resultou, assim, na manutenção de uma dinâmica
excludente e que passa muito longe de qualquer ideologia libertadora.
Sob esse signo, a existência da política urbana como rol constitucional faz,
como uma contramão teórica no movimento capitalista, com que se firme um
precedente positivo pelo qual se possa maturar uma nova forma e conteúdo para a
cidade. Entretanto, essa menção representa, assim, uma leitura dos cenários
urbanos e a identificação de contextos que fogem à dinâmica da cidadania,
enquanto condições de bem-estar e dignidade, escopo precípuo da Constituição
Federal de 1988. Nesse sentido, a própria existência do Estado brasileiro como
filiado dos institutos democráticos exige uma postura real diante da pobreza visível
nos centros urbanos do país que possui 8,5% de sua população vivendo em
condições de miserabilidade.65 Por outro lado, o direito fundamental à cidade
transcende ao reconhecimento constitucional, justamente por dizer respeito às
condições inerentes à condição humana.
64
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 4-5.
65
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE. Estatísticas Sociais. Disponível
em:< http://www.ibge.gov.br/home/download/estatistica.shtm>. Acesso em 23 ago. 2011.
50
Dessa forma, até mesmo a democracia, e com ela a superação dessas
descontinuidades históricas, depende dessa efetivação do direito à cidade como
direito fundamental que, ao mesmo tempo, registra a necessidade de transformação
desse processo histórico de exploração.
51
3. A PROPRIEDADE URBANA A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO DE DIREITO
FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA
É inegável a condição umbilical estabelecida entre o direito ambiental, o
direito à cidade e o direito à moradia. Cada um em sua estrutura e abrangência
conceitual específica finaliza um complexo eixo de organização da sociedade e
efetivação de direitos. Cada qual representa a integração como condição de
efetividade, enquanto universalidade, particularidade e determinante singular.
O direito à moradia, constitucional e genericamente estabelecido no artigo 6°
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, concerne à matéria de
ordem objetiva, real, a partir do qual se pode mensurar a efetividade de um
contingente de outros direitos. Sobre este aspecto, o direito à moradia é visto como
condição.
Essa inserção no rol de direitos que se relacionam gera, do ponto de vista
prático, uma somatória de direitos que aguardam implementação, pelo menos em
relação à tarefa do Estado. A partir desse ponto de vista, a integração desses
direitos se apresenta em seu aspecto negativo: todos, conjuntamente, carecem de
realização. Mais do que isso, a impressão que se forma é a de que a tarefa jurídica
restou cumprida com o simples registro desses direitos em documentos, encerrandose, assim, a função jurídica em relação ao direito ambiental, ao direito à cidade e à
moradia. Caberá, assim, ao poder executivo pensar formas de implementação.
Entretanto, com a crise do Estado-Nação, da legitimidade do poder e dos
resquícios de Estado providência, gera-se a impressão de que a efetivação desses
direitos está para além da função do Estado, não importando aí o caráter social que
o Estado Democrático de Direito brasileiro incorporou a partir de sua Constituição.66
Diante disso, a percepção de que as leis especificamente criadas em relação
ao direito à moradia servem como pontes entre a Constituição da República
66
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 30 et. seq.
52
Federativa do Brasil de 1988 e os Planos Diretores não pode deixar de considerar o
conteúdo ideológico e as cargas de interesses provinciais no “uso” da cidade,
vigentes nos municípios brasileiros, mas que servem como manifestação local de
uma ordem que perpassa todo o mundo.
Atuam nos municípios, então, o interesse privado em dimensões o mais
visíveis possíveis, porque é na cidade, no contexto das moradias subumanas e da
miséria, que se decidem os lugares destinados a moradia dos ricos, da instalação de
determinadas fábricas, da edificação de prédios destinados, desde o projeto, a
atender as necessidades de alguns. Com isso, criam-se os lugares destinados aos
ricos (onde os programas de moradia popular não entram), aos pobres e alguns
espaços mínimos de uso comum, que servem como o limbo urbano, em que os ricos
não ficam, mas apenas passam.
Entretanto, essa atividade constante e que perfaz a característica da cidade
brasileira não se origina somente a partir da ação privada, com vistas à livre
iniciativa e ao direito praticamente irrestrito à propriedade, mas contém elementos de
ordem pública, gerenciadas ou não pela administração municipal. Assim, se é então
verdade que existem alguns privados que decidem a estrutura da cidade, é também
verdade que o poder público sabe a ratifica tamanha postura.67
Diante desse cenário, a menção à função social da propriedade não pode ser
discorrida senão intimamente relacionada às previsões da Lei n. 10.257 de 10 de
julho de 2001. Muito mais do que uma regulamentação de matéria constitucional, o
Estatuto da Cidade condensa uma ordem totalmente estranha ao uso pragmático
que se faz da cidade, ou seja,
A lei é uma conquista social cujo desenrolar se estendeu durante décadas.
Sua história é, portanto, exemplo de como setores de diversos extratos
sociais [...] podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia e alcançála, mesmo num contexto adverso. Ela trata de reunir, por meio de um
enfoque holístico, em um mesmo texto, diversos aspectos relativos a um
governo democrático da cidade, à justiça urbana e ao equilíbrio ambiental.
67
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2006, p. 24 et. seq.
53
Ela traz à tona a questão urbana e insere a na agenda política nacional de
68
num país, até pouco tempo, marcado pela cultura rural.
A perspectiva holística a que refere a autora explicita, novamente, o caráter
relacional do direito à moradia no âmago dos direitos à cidade e ambiental, mais
especificamente. A lei se encontra, então, em plena sintonia com o conteúdo
constitucional do direito à cidade na perspectiva do direito à moradia, ainda que
destoada da condição realística desses direitos envolvidos.
Entretanto,
a
combinação
entre
as
formas
jurídicas
relacionadas
(Constituição, Estatuto da Cidade, entre outras) e já existentes não podem ser
consideradas as únicas estruturas capazes de adimplir com a materialidade que
suas normas referenciam. Sob este ponto de vista, a existência no plano prático de
direitos sociais, como de fato é o direito à moradia, leva em consideração outra
espécime de relação: aquela existente entre as divisões das funções do poder.
Mais intrinsecamente, da comunhão entre o direito constitucional com o direito
administrativo depende a fase executória das políticas de direito à moradia,
sobretudo porque a própria Lei n. 10.257 de 10 de Julho 2001 atua sobre a
perspectiva da atividade do poder público municipal. Essa ideia registra, então, o
âmbito das ações institucionais que tendem a realizar o direito à moradia a partir de
atividades compartidas, nucleando regional e setorialmente a administração pública
com vistas ao Estatuto da Cidade a aos Planos Diretores, que executam no plano
municipal das prerrogativas das ações institucionais.
Esse núcleo compartido mantém, assim, a perspectiva de emancipação
social, ou o aspecto democrático de implementação do direito à cidade. Mais do que
isso, importa a superação da ideia do cidadão como objeto, e das políticas de direito
à moradia como assistencialismo e clientelismo.
No Brasil, a formação do assistencialismo está ligado ao perfilhamento da
matriz neoliberal de economia capitalista, e remonta a tentativa nacional de
68
MARICATO, Erminia. O Estatuto da cidade periférica. In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH,
Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Aliança das cidades, 2010, p. 5.
54
incorporar esse modelo à ordem econômica-política vigente. A crise do modelo
capitalista no final da década de 20 motivou uma “reação burguesa”, incorporada
nas formas de pensar o trabalho e a atuação do Estado. Com isso, as medidas de
ordem econômica fizeram surgir inúmeras contradições sociais, que foram
evidenciadas mais tarde (décadas de 80 e 90), com a explicitação sensorial da
desigualdade. Diante disso, coube ao Estado, como forma de compensação à ordem
excludente, desenvolver ações de assistência aos excluídos, mas sem qualquer
intenção de promover a inclusão social. Por um lado, contentava os capitalistas
emergentes pela redução da sensação de incômodo social e, por outro, oferecia à
população trabalhadora uma condição mínima, ligada ao amortecimento crítico e
não ao princípio de dignidade do trabalho.69
Com efeito, a postura assistencialista do Estado gerou, como uma
repercussão de ordem política, o desenvolvimento de um agir sem um fim
transformador, mas cujo ritmo tinha por ordem a manutenção de um mínimo social
que evitasse a revolta e mantivesse as condições de exploração do trabalho. 70
Cominada com a recepção social dessa prática, a determinante clientelista propagou
essa prática para o campo da política representativa, gerando, com a ascensão da
mulher e do jovem, novos contingentes de pessoas dispostas a uma troca de
interesses.71 No âmbito do direito à cidade, isso pode ser entendido em relação às
práticas de concessão de alvará de habitação, omissão nas ocupações irregulares e,
até mesmo, em subsídios financeiros para a construção civil em desacordo com os
planos diretores.
Entretanto,
Revela-se, assim, imprescindível conceber o Estado Democrático de Direito
proclamado pelo texto constitucional brasileiro [...] como a maior evidência
de que se impõe a abolição fática da separação entre Sociedade e Estado,
resultando daí, a exigência de que o Estado assuma a responsabilidade de
69
PORTO, Maria Célia Silva. Estado assistencialista e questão social no Brasil pós-constituinte.
Disponível
em:<
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppII/pagina_PGPP/Trabalhos2/Maria_C%C3%A9lia_d_Silva_P
orto.pdf> Acesso em 5 nov. 2011.
70
LENARDÃO, Elsio. Gênese do clientelismo na organização política brasileira. Disponível em:<
http://www.pucsp.br/neils/downloads/v11_12_elsio.pdf> Acesso em: 5 nov. 2011.
71
NUNES, Edson. A gramática política no Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. 3.ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 24 et. seq.
55
transformar a ordem econômico social, no sentido de viabilizar a efetivação
material da ideia de democracia real, baseada no pressuposto da igualdade
72
concreta e existencial.
Essa imersão do Estado em um conteúdo democrático e social acaba por
reestruturar muito mais do que a cisão entre Estado e Sociedade, mas reconhece
naquele um executor mais diretamente disposto no processo de efetivação do direito
à moradia. Entretanto, Vieira, ao contrabalançar essa ideia de um Estado militante e
racional, não deixa de observar a existência de intervenções internas e
internacionais de matriz econômica neoliberal, capazes de reduzirem o papel do
Estado. Ao desenvolver o conceito de “província global”, tem em vista a mera função
reprodutiva do Estado, em que não faz senão ratificar os institutos econômicos de
um modelo que, contrário àquela perspectiva unificadora, acabam por majorar o
binômio político-social em relação à sociedade.73
É imerso nesse panorama que se soma, ainda, a possibilidade de uma gestão
democrática do direito à moradia. Facilitada pela ideia de uma implementação
compartida e emancipatória e, noutro sentido, dificultada pela redução da função
institucional, essa gestão explicita, do ponto de vista prático, a dialética integradora
entre poder institucionalizado e indivíduo, ou seja, entre Estado e cidadão. Abre,
além disso, vazão ao processo de redução da condição de objeto que o indivíduo
assume em relação à forma de produção de riquezas.
Porém,
Revela-se [uma] matriz de equilíbrio entre os meios adequados de políticas
de crescimento econômico e social e diretrizes iusambientais para a
conservação do ambiente, com o objetivo de desenvolvimento integrado,
coerente e sustentável. Deste princípio, numa perspectiva holística, são
constituídos critérios de decisão que não podem ser de ordem
exclusivamente econômica, bem como não podem ser de ordem
exclusivamente ambientalista, apostando pela integração das diversas
políticas públicas com o objetivo de uma justa composição dos vários
interesses
envolvidos
na
questão
ambiental
(exigência
74
socioambientalista).
72
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 194-195.
73
VIEIRA, Litz. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 109.
74
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados, 2007, p. 110.
56
O que se apresenta, então, frente à dinâmica de realização do direito à
moradia é uma situação paradoxal. De um lado a necessidade de suas prerrogativas
serem administradas e executadas basicamente pelo poder público; por outro, a
percepção de que essa atuação é reduzida cotidianamente pelos atores da
economia privada, originando, assim, duas grandes estruturas novamente
antagônicas: a vasta legislação e a insuficiência material do direito à moradia.
Mesmo diante disso,
Todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao
princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhes um dever de
respeito e proteção que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado
de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à
dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de
todos os indivíduos) contra as agressões oriundas de terceiros, seja qual for
75
a procedência.
Essa vinculação do direito à moradia à dignidade da pessoa humana remonta,
paralelamente, um rol de condições que o tornam efetivo, tendo em vista a
interdependência e a relação de amplitude que dignidade pressupõe. O dever de
proteger é, no contexto do direito à moradia, a formação de estruturas de ação
(ações institucionais) a partir das quais o princípio da dignidade da pessoa humana
seja representado no plano do direito a um habitat ecológico e artificial que atenda à
ideia de vida digna.
Sob esse aspecto, nas ações institucionais de direito à moradia, o que não
pode ser esquecido é a materialidade que as previsões legais querem corresponder.
É, além disso, a ideia de que a inefetividade desse direito não significa tão somente
uma afronta ao Estado Democrático de Direito e à Constituição, enquanto entidades
abstratas, mas, sobretudo, às pessoas que, em sua realidade cotidiana,
representam o conteúdo originário de qualquer atividade normativa.
75
BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da fundamentalidade
do Direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Tese (doutorado). Universidade
Federal
de
Santa
Catarina:
2006.
Disponível
em:
http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/33948-44718-1-PB.pdf. p. 111.
57
Não se pode, além disso, pressupor a suficiência dos modelos institucionais
verticalmente pensados, sobretudo por conta de o conteúdo democrático
corresponder ao compartilhamento das diretrizes de ação no âmbito do direito à
cidade e à moradia. Há, dessa forma, uma superação da ideia segundo a qual a
representatividade política encerra a condição de cidadania do indivíduo e o refunda
enquanto objeto; tem-se, contrariamente, a sua imersão direta no contexto das
ações institucionais, desde a maturação preliminar (cogitação do problema) até as
fases executórias.
Ao passo que refunda a ideia de superação do exclusivismo da
representatividade, a função institucional (dos Municípios, sobretudo) não é
suprimida ou relegada, mas dispõe-se enquanto executora das diretrizes de direito à
moradia. Sobre esse aspecto, a investida compartilhada não corresponde a uma
mitigação do papel do Estado, mas uma integração com os sujeitos concernidos. O
que há, então, é a revitalização democrática pela inserção direta nos processos que
visam efetivar o direito à moradia e que serve, via de regra, como condição de todo
o processo democrático.
3.1 Da Função Social da propriedade à Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001
A necessidade de problemas coletivos exigirem soluções coletivas, demonstra
um indicativo não só para a noção de direito à cidade que é, sobretudo, um exemplo
dessa pluralidade jurídica e social, mas a menção a um fundamento mais universal
que o cuidado à cidade quer parecer. Sob essa ótica, a formação da natureza
humana, ou seja, da cultura e os ambientes artificiais, não existem somente em
relação aos seus indivíduos mais imediatos, mas, sobretudo, referem a um
contingente coletivo. 76
Sob esse aspecto, a Lei do Meio Ambiente Artificial, o Estatuto da Cidade,
realizou em termos práticos a existência do valor social que subjaz à observância da
76
GUSMÃO, Daniela Ribeiro de. Análise crítica da cobrança de preço público pela instalação de
redes de infraestrutura. Uso do espaço aéreo, do solo e do subsolo dos municípios. In. COUTINHO,
Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações
jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 266.
58
função social da propriedade. Diante disso, torna-se evidente a manifestação da
função social da propriedade no Estatuto da Cidade, que possibilita que a cidade se
filie àquelas disposições constitucionais, sobretudo as presentes no artigo 182,
caput, e parágrafo 2°.
De forma pontual, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
inseriu no contexto jurídico de forma direta a existência e importância da função
social da propriedade; por seu turno, a chegada da Lei n. 10.257, de 2001, ratificou
os termos constitucionais e a direcionou na perspectiva da política urbana, em que
se insere o problema ambiental e, de forma mais específica, o direito à cidade. Sob
esse olhar, o Estatuto da Cidade representa a manifestação jurídica que aproxima a
generalidade do valor social (presente na Constituição) às determinantes da
ordenação e das políticas urbanas (presente na Lei n. 10.257/2011), desdobradas
desde o Plano Diretor até a conduta do sujeito que vive em sociedade.
Assim, o fato de a representação dos ambientes urbanos dizer respeito muito
mais do que a vontade e a projeção individual, mas, sobretudo, existirem em relação
à sociedade, faz com que se desenhe uma forma transcendental de função, cujo
estribo é a ideia socioambiental. Num sentido estritamente segregado, a função que
uma propriedade e, de forma geral, toda uma cidade desempenha mantém
referência às formas de o indivíduo se relacionar e produzir riquezas. Sob esse
paradigma uníssono de função da propriedade, foram erigidos comportamentos e
condutas que, jurídica e socialmente, representaram uma filiação à matriz positivista
que, pelo civilismo e legalismo, fundou uma espécie de individualismo jurídico. No
Direito, representou a firmação de negócios e relações jurídicas totalmente alheias à
sociabilidade e à ideia de que a sociedade é possível a partir de uma inteiração
coletiva; na comunidade de relações, representou a formação de amálgamas
sociais, cuja inteiração não deu conta de realizar a sociabilidade.
No entanto, o aperfeiçoamento tecnológico-científico dos recursos de
produção e consumo de bens refinou as formas de se montar a consciência e o
imaginário dos povos, tornando essa dinâmica também uma questão mental.
Lefebvre,
ao
analisar
o
contexto
das
investidas
ideológicas
que,
pelo
desenvolvimento da ciência e da tecnologia, aperfeiçoaram os recursos urbanos de
59
projeção e realização de infra-estrutura, ainda que parcial e economicamente
segregado, também menciona um caráter mental que a dinâmica social, mergulhada
em ideologia, pode representar; é possível, assim, referir a existência de uma
consciência disseminada de que a atual forma de desenvolver a cidade e a liberdade
dos indivíduos é suficiente e, sob esta ótica, tal representação não faz parte senão
da estrutura mental dos indivíduos 77
Diante disso, o próprio Código Civil brasileiro de 1916 consagrava os direitos
sobre a propriedade segundo um ponto de vista ortodoxo, baseando a validade do
negócio jurídico a partir da comprovação da propriedade e a vontade das partes,
basicamente. Não se fazia referência a um sentido transindividual ou coletivo da
propriedade privada, finalizando a ideia de que deveria atender aos fins particulares
do proprietário. Assim, o revogado artigo 589 do Código Civil de 1916 elencava,
como regra, a perda da propriedade por motivos individuais, dependentes da
conduta do proprietário da coisa, ou seja, “I - pela alienação; II - pela renúncia; III pelo abandono; IV - pelo perecimento do imóvel”.78
O artigo 590 do diploma civil de 1916 fazia menção às causas de perda da
propriedade por necessidade ou utilidade pública, ou mesmo “restrições ao direito de
construir, mediante regulamentos administrativos”.
79
Também se perde a propriedade imóvel mediante desapropriação por
necessidade ou utilidade pública. § 1º Consideram-se casos de
necessidade pública: I - a defesa do território nacional; II - a segurança
pública; III - os socorros públicos, nos casos de calamidade; IV - a
salubridade pública. § 2º - Consideram-se casos de utilidade pública: I - a
fundação de povoações e de estabelecimentos de assistência, educação ou
instrução pública; II - a abertura, alargamento ou prolongamento de ruas,
praças, canais, estradas de ferro e, em geral, de quaisquer vias públicas;
III - a construção de obras, ou estabelecimentos destinados ao bem geral de
uma localidade, sua decoração e higiene; IV - a exploração de minas
Entretanto, as razões que tornavam possível a desapropriação de imóveis
privados e a limitação do uso da propriedade eram pontuais, específicos em virtude
77
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p. 47 et.
seq.
78
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 3.071, em 1° de janeiro de 1916. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071.htm>. Acesso em: 14 de maio de 2011.
79
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos
e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 87.
60
da formação das condições de conservação de uma cidade organizada, mas cujo
fim era a valorização do espaço urbano, ainda sem qualquer ideia principiológica ou
função social. Sob essa perspectiva, não havia a conciliação entre a necessidade de
ordem interna da cidade com direitos coletivos, o que reduzia as previsões do
Código Civil de 1916 a um plasticismo, ou seja, uma previsão positivista que não a
relacionava à ideia de coletividade.
No âmbito constitucional, a Constituição Imperial de 1824 e a Constituição
Federal dos Estados Unidos do Brasil de 1891 não se distanciavam da ideia de que
a propriedade privada mantinha um aspecto absoluto. A primeira, que se moldava
segundo a tradição ocidental europeia, não fazia qualquer menção à uma forma
coletiva dos bens privados. Contrariamente, o inciso XXII do artigo 179 da
Constituição Política do Império do Brazil de 1824 estabelecia, “ É garantido o Direito
de Propriedade em toda a sua plenitude”.80
Por seu turno, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de
1891 ratificava os termos constitucionais de 1824, afirmando, em seu artigo 72,
parágrafo 17, que “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude
[...]”.81
Leal, ao considerar sobre a Constituição Imperial e a primeira Constituição da
República, menciona o fato de “a Constituição Imperial e mesmo a primeira Carta
Republicana não previam restrições ao direito de propriedade, exatamente porque
reconheciam e garantiam a propriedade em toda a sua plenitude” 82. Diante disso,
tanto do ponto de vista dos princípios do direito coletivo quanto da forma positiva da
função social, as primeiras Constituições eram omissas, ignorando qualquer menção
à dimensão social que a propriedade representa.
80
BRASIL, Constituição Política do Império do Brazil, em 25 de março de 1824. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em 15 de maio
de 2011.
81
BRASIL, Congresso Constituinte. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em
24
de
fevereiro
de
1891.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em 15 de maio
de 2011.
82
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos
e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 86.
61
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 previa, em seu
artigo 157, a defesa da justiça social, em capítulo dedicado à ordem econômica e
social, remontando, nesse aspecto, a ideia presente na Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil de 1934 e, da mesma forma, na Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil de 1946.
O direito brasileiro só irá se voltar para a temática social em geral após a
ampla mobilização social da década de 1920 e a denominada Revolução de
30. A Constituição de 1934 introduz a primeira declaração de direitos sociais
do nosso constitucionalismo e diversos novos diplomas legais [...] até a
Constituição de 1988, assim, uma longa trajetória define a tutela da função
83
social da propriedade nos direitos constitucional, administrativo [...].
Nesse itinerário, antes da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, o artigo 147 da Carta de 1946 já mencionava o bem estar social,
vislumbrando, ainda na forma inicial, um sentido transindividual para a propriedade.
Assim, no texto constitucional, estava expresso que “O uso da propriedade será
condicionado ao bem estar social”84. A Carta Constitucional de 1967, não obstante,
no inciso terceiro do artigo 157 previa o atendimento da “função social da
propriedade”, devendo, então, a posse e uso da propriedade observarem um sentido
transindividual e que percebesse o caráter social que a propriedade referia.
Estando o referido artigo inserido nas disposições de ordem econômica,
colocava-se, assim, na dimensão econômica a tarefa de promover a justiça social; o
atendimento da função social, não obstante, também seguia a ideia de uma
vinculação exterior à forma com que assumiu na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Porém, antes do sentido adquirido pela Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, a função social da propriedade reapareceu na Emenda
Constitucional n. 01, de 17 de outubro de 1969, que reescreveu a Constituição de
83
WERNECK, Augusto. Função Social da cidade, Plano Diretor e Favelas: a regulamentação setorial
nas comunidades populares e a gestão democrática das cidades. In: COUTINHO, Ronaldo;
BONIZZATO, Luigi. (orgs). Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no
espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 125.
84
BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, em
18
de
setembro
de
1946.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 15 de maio
de 2011.
62
1967, finalizando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1969 85. O
artigo 160 desse diploma manteve a “função social da propriedade”, sob a ótica da
justiça social e do desenvolvimento nacional. Subscreveu a ideia de que o
desenvolvimento econômico do país dependia do uso ativo da propriedade,
condição à manutenção de um sistema de crescimento da produção e consumo
nacionais, ideal este já representado na Constituição Federativa do Brasil de 1967.
Essa referência ao uso ativo da propriedade não tinha por objetivo a
manutenção da ordem social da cidade sob o aspecto do bem comum, mas tão
somente referia a instrumentalidade que o uso da propriedade representava para a
projeção econômica do país. Não estava incluída nos desígnios do Estado a reforma
do pensamento político empreendido desde a democratização trazida pela
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Contrariamente,
os ideais explicitados com a Emenda à Constituição de 1969 dizia respeito ao
domínio político e organizacional do Brasil, e, sob este aspecto, distanciavam-se do
comprometimento constitucional desenvolvido até então.
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
um novo pensamento democrático permeou as instituições jurídicas e sociais. Em
relação à função social da propriedade no direito à cidade, teve-se, ainda que
genericamente, um primeiro marco.
A Constituição de 1988 é o marco da transição democrática e da
institucionalização dos direitos e garantias fundamentais. O texto marca a
ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o
consenso democrático ‘pós-ditadura’[...] Delineia ainda as molduras
jurídicas de um Estado Democrático de Direito e estabelece políticas
86
públicas na esfera social [...]”.
O ideal de uma propriedade privada ilimitada, vislumbrada a partir do
interesse subjetivo e unilateral começa, com toda a estrutura social da Constituição,
a ser reinventada. Se desde a ideia romana de propriedade o seu sentido estava
85
BRASIL, Ministério da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica. Emenda Constitucional
n. 01/Constituição da República Federativa do Brasil, em 17 de outubro de 1969. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso
em 15 de maio de 2011.
86
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição brasileira
de 1988. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Vol. 1, n. 2. 2004, p. 89.
63
cunhado da legitimidade ortodoxa do indivíduo em relação à coisa87, o movimento de
redemocratização do Brasil a que se chegou com a Constituição de 1988 tentou,
pela participação popular, estender à visão sobre a propriedade um sentido coletivo.
Em relação às demais previsões constitucionais (1924 a 1969), em 1988 a
função social da propriedade não se restringiu a uma determinante de ordem
meramente econômica, mas passou a figurar como um elemento dos direitos
humanos fundamentais. O consagrado rol do artigo 5° dispõe em seu inciso XXIII,
depois de o caput ratificar o direito à propriedade, que “a propriedade atenderá a sua
função social”.88 Diante dessa nova ordem constitucional, tanto a propriedade rural
quanto a propriedade urbana estão condicionadas à previsão contida em âmbito
constitucional, que vai além da menção genérica de atendimento daquela função.
Assim, a diferenciação entre o atendimento da função social da propriedade
urbana e rural é estabelecido pelos artigos 182 e 186, respectivamente. O primeiro
diploma- artigo 182- está inserido na dinâmica da política urbana, tornando o
atendimento da função social analisável a partir das características do Plano Diretor.
Assim, “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. 89
Com isso, a prática determinada pelo Plano Diretor é que concretiza a menção
constitucional da função social da propriedade urbana, tornando-a uma variante em
relação aos diferentes contextos urbanos existentes no Brasil.
Por seu turno, o artigo 186 da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 condiciona o atendimento da função social da propriedade rural à
87
LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos
e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 40.
88
BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 maio de
2011.
89
BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 maio de
2011.
64
observância, dentre outros “[...] II - utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente”90.
Com essa expressa referência à sociedade, à dimensão coletiva da
propriedade, a Constituição vigente atualiza o status democrático a partir da
superação formal- positiva, constituída- do caráter absoluto que a propriedade
manteve ao longo das diferentes formações constitucionais do Brasil. Mesmo com a
previsão formal estatuída desde a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
1934, a elevação a um caráter fundamental e principiológico só foi alcançado em
1988, com a Constituição Cidadã.
Diante desse novo cenário constitucional que se apresenta, a perspectiva
inaugurada passa a indiretamente vincular o uso da cidade aos princípios
constitucionais. Entretanto, em relação ao direito à cidade (política urbana como um
todo), é a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que representa um marco na
historia do direito à cidade brasileiro. Não somente em relação à função social e
socioambiental, a regulamentação trazida pelo Estatuto da Cidade possibilita a
formação de diretrizes objetivas, reais, a partir das quais se poderá prever as
ordenações futuras e reordenar aquelas cujos processos de formação ocorreram de
forma aleatória.
Em relação à comunhão entre o direito à cidade e o direito ao meio ambiente,
na perspectiva na Lei n. 10.257/2011, Fiorillo depõe.
[A Lei n. 10.257/2011 é] instrumento que passa a disciplinar, mais que o uso
puro e simples da propriedade urbana [mas também] as principais diretrizes
do meio ambiente artificial, fundando no equilíbrio ambiental (art. 1.°,
parágrafo único) e em face do tratamento jurídico descrito nos arts. 182 e
183 da CF. O objetivo do legislador foi o de tratar o meio ambiente artificial
não só em decorrência do que estabelece constitucionalmente o art. 225, na
medida em que a individualização dos aspectos do ambiente tem
puramente função didática, mas também em decorrência do que delimitam
91
os arts. 182 e 183 da CF.
90
BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 maio de
2011.
91
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257/2011, Lei do
meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 35-36.
65
Com isso, é possível vislumbrar o caráter interdisciplinar remontado na Lei n.
10.257/2001, sobretudo a partir da relação efetiva que se estabelece entre o direito à
cidade e o direito ambiental. Sobre esta ótica, ganha sentido o caráter puramente
didático descrito por Fiorillo, à medida que a cidade, enquanto meio ambiente
artificial, está inserida no meio ambiente como um todo, incidindo, além disso, de
forma substancial na dinâmica do direito ambiental.
Essa filiação da Lei n. 10.257/2011 à ordem constitucional é claramente
evidenciada em seus artigos 1°, caput e parágrafo único e 39, que estabelecem.
Art. 1°- Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183
da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.Parágrafo único.
Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece
normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bemestar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. [...] Art. 39- A
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto
à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades
92
econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.
Nas palavras de Fiorillo, no Estatuto da Cidade a “função social da cidade,
obviamente vinculada à defesa dos direitos fundamentais de índole difusa, se revela
como enraizamento ambiental”93. Assim, não obstante a previsão constitucional, a
Lei n. 10.257/2001 segue o itinerário de ratificação da parceria entre o direito à
cidade e o direito ambiental, permeando, assim, a legislação regulamentadora com
os princípios da ordem constitucional, denotando, dessa forma, um marco na história
do direito à cidade e ambiental.
Nessa senda, a formação de uma consciência jurídica acerca do caráter
coletivo que o direito à cidade e ao meio ambiente encerram fez com que a
jurisprudência
e
a
legislação
passassem
a
incorporar
essa
ideia
de
transindividualidade presente naqueles direitos.
92
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm.> Acesso em 14 jun. 2011, grifo
nosso.
93
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade Comentado: Lei 10.257/2011, Lei do
meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 124.
66
Com a aprovação da Lei n. 10.406 em 10 de janeiro de 2002 – Código Civilvárias determinantes constitucionais começaram a estar representadas na previsão
dos atos e negócios jurídicos da vida civil, em que o caráter absoluto da vontade e
da propriedade deram lugar a um novo processo interpretativo. Ratificou-se, assim,
a perspectiva social que os negócios jurídicos precisariam representar. Princípios
como o da boa-fé objetiva e da vontade limitada reescreveram a ideia presente na
função social da propriedade, dando um novo sentido para a formação dos negócios
jurídicos e para a interpretação judiciária.
Nessa mesma dinâmica, Ayala, quando analisa a conduta jurisprudencial
diante do direito ambiental, percebe que também “o STF propôs contornos
importantes para a caracterização do significado da função social da propriedade
definido na Constituição, quase sempre relacionando aos ecossistemas também
protegidos diretamente pela Lei Maior”94. Assim, a menção constitucional da função
social da propriedade contém impulsos internos pelos quais a observância segue
defendida tanto pela atuação executiva - Planos Gestores e Diretores - quanto pelo
judiciário, que não se afasta do dinamismo da coletividade presente na Constituição.
Direito de construir. Limitação administrativa. I – O direito de edificar é
relativo, dado que condicionado à função social da propriedade: CF, art. 5º,
XXII e XXIII. Inocorrência de direito adquirido: no caso, quando foi requerido
o alvará de construção, já existia a lei que impedia o tipo de imóvel no local.
95
II – Inocorrência de ofensa aos § 1º e § 2º do art. 182, CF.
Nessa mesma senda, a súmula n. 66896 do Supremo Tribunal Federal ratifica
o caráter excepcional que possui a função social da propriedade. Diante das cotas
progressivas do Imposto Predial e Territorial Urbano, situação em que a Corte
94
AYALA, Patryck de Araújo. O novo paradigma constitucional e a jurisprudência ambiental do Brasil.
In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs). Direito Constitucional
Ambiental brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 382.
95
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 178.836, julgado em 8 de junho de
1999,
relator
Min.
Carlos
Velloso.
Disponível
em:<
http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201729>. Acesso em 15 de maio de
2011.
96
“É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da EC 29/2000, alíquotas
progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da
propriedade urbana.” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 668, em 24 de setembro de
2003.
Disponível
em:<
http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stf/stf_0668.htm>. Acesso em
15 de maio de 2011.
67
declara a inconstitucionalidade dessa progressão antes da Emenda Constitucional
29/200097, essa cobrança progressiva somente não contraria a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 nos casos em que assegurar a função social
da propriedade.
Assim, com a previsão constitucional de 1988, e mais em específico a partir
da Lei n. 10.257 de 10 de Julho de 2001, sedimenta-se a ideia de que a propriedade
não assume tão somente uma condição utilitária e instrumental, mas tem em vista a
realização de fins ambientais e sociais, como condição da realização do Estado
Democrático de Direito, o que acaba por ratificar a perspectiva de direito
fundamental que contém. Tem-se em vista, assim, a existência correlacionada da
propriedade no contexto urbano e rural. No que diz respeito às funções sociais da
propriedade urbana, se constitui a partir da superação do unilateralismo jurídico e da
ideia a partir da qual a cidade se restringe à ambientação do desenvolvimento
individual.
Diante desse projeto, a Lei do meio ambiente artificial representou um marco
tanto na história da regulamentação constitucional quanto no tratamento do tema
direito à cidade no cenário jurídico e político, conferindo-lhe, doutrinariamente, um
aspecto fundamental; nesse cenário, corresponde à menção direta do conteúdo
social e da dinamicidade da comunidade urbana, importando, então, nas condições
a partir das quais é possível pensar na efetivação do direito à moradia enquanto
direito social.
3.2 Direitos Sociais e o direito à moradia digna
O contexto semântico e histórico dos direitos sociais não pressupõe, mantida
a ideia de progresso horizontal na efetivação de direitos, que a sua implementação
obedeça, primeiramente, a realização absoluta dos direitos de liberdade e igualdade.
Isso se dá, justamente, por conta do conteúdo integrador e complementar que o rol
97
BRASIL, Congresso Nacional. Emenda Constitucional n. 29, em 13 de setembro de 2000.
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm>. Acesso
em 15 de maio de 2011.
68
de direitos atribuídos ao cidadão registra. Significa dizer que não há a ideia de
espera do conteúdo particular dos direitos de primeira dimensão, mas sim a marca
conjunta de direitos existindo.
Essa interpenetração conjunta dos sentidos possibilita, do ponto de vista da
formação de um esquema concreto de efetivação de direitos, a existência correlata
dos direitos abstratamente postos em relação ao agir individual e às determinantes
(condições) de uma existência real do sujeito, sobretudo situado nas cidades. Num
mesmo tempo e espaço, o sujeito é livre e existente, credor das condições
elementares de vida digna, formadas de maneira integrada e emancipadora.
A utilização da expressão “social” encontra justificativa [...] na circunstância
de que os direitos da segunda geração podem ser considerados uma
densificação do princípio da justiça social, alem de correspondências à
98
reivindicações das classes menos favorecidas.
Essa segunda perspectiva (a existência material das condições de vida)
registra a aparição prática do sentido evocado desde a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 até as normas mais específicas, quando a sociedade
passa a pautar as diretrizes do Estado Democrático de Direito, não deixando de lhe
averbar um conteúdo social. Esse conteúdo social, posto como normas, figura como
pressuposto-norte de toda a ordem constitucional, relacionando um contingente de
estruturas que, implementadas, subsidiariam a vida cotidiana do cidadão no mundo.
Sobre esse aspecto, os direitos sociais são condições de existência prática das
garantias constitucionais.
O rol do artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
por sua vez, elenca uma série de direitos ligados, então, diretamente ao exercício
diário da cidadania. Gorczevski, ao retomar o conceito de cidadania, não deixa de
perceber o sentido vigente antes do processo jurídico e social de internacionalização
dos direitos humanos. A partir da superação da redução da cidadania à
manifestação de um Estado particular, a dignidade ínsita ao ser humano passa a
exigir uma conduta universal frente aos direitos humanos, sobretudo com a
98
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2004, p. 56.
69
formação da globalização. Com isso, a cidadania passa a referir uma estrutura
imanente à condição humana, a partir da qual os movimentos constitucionais pelo
mundo - pós segunda guerra mundial- passa a reconhecer.99
Desde a sua formação constituinte até a recente inclusão do direito à
alimentação - Emenda Constitucional n. 64, de 4 de fevereiro de 2010 -, os Direitos
Sociais representam as garantias materiais, substanciais, enquanto continuidade
objetiva e concomitante dos direitos de liberdade e igualdade.
Sob essa ótica, os direitos sociais se manifestam como a determinação da
liberdade e igualdade, e a fundam a partir de elementos materiais, existentes na
sociedade. Dessa forma, a educação, a alimentação, o trabalho, a moradia formam
as condições a partir das quais é possível visualizar a existência concreta das
garantias do cidadão, que se ligam diretamente aos conceitos políticos de igualdade
e liberdade. Com isso, é possível dizer que não existe uma ordem cronológica para
a realização de direitos, mas a sua existência se forma como um todo jurídico,
continuamente.
Os direitos sociais não representam, assim, somente a manifestação que
complementa os direitos de liberdade e igualdade, mas, sobretudo, dizem respeito à
concretude que eles reivindicam. A ideia de direitos sociais está radicada na
determinação que a igualdade faz para ser percebida, para se fazer mostrar na
sociedade. As condições de trabalho, moradia, saúde, são determinantes do
processo de verificação, da parte observável do direito à igualdade. Com isso, a
comprovação material da existência dessas determinantes é que ratifica, do ponto
de vista prático, a coerência do Estado previsto com o Estado vivido na sociedade.
Diante da comparação entre os direitos e suas condições é que é possível
estabelecer um parâmetro para mensurar a eficácia real dos direitos fundamentais,
sobretudo aqueles que pertencem diretamente à ideia de sociedade.
99
GORCZEVSKI, Clóvis. Direitos Humanos e Cidadania. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge
Renato dos (orgs.) Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do
Sul: Edunisc, 2004. p. 1095.
70
O direito a um meio ambiente equilibrado como expressão do direito
fundamental à vida (art. 5°), objetiva assim garantir o princípio da dignidade
humana (art. 1°, III e caput do art. 170), fundamento este para o Estado
Democrático de Direito. [...] Vê-se, pois, que o direito à vida, como matriz de
todos os demais direitos fundamentais do homem, é que há de orientar as
formas de atuação de proteção ambiental. Portanto, não bastassem as
referências expressas constantes no texto constitucional, a proteção
ambiental sempre estará margeando todos os fundamentos constitucionais
relacionados especificamente à preservação da célula HOMEN e suas
100
futuras gerações.
Não obstante o problema do direito à moradia ser de caráter específico, não
está afastado da questão ambiental. Desde a nova ordem constitucional de 1988
que a proteção ambiental se liga diretamente à eficácia e ao exercício dos direitos,
sobretudo os direitos sociais, justamente por representarem uma demanda que
exige uma ação prática. Assim, a ordem urbana, ao se deparar com o problema da
moradia digna, enfrenta diretamente uma matéria de ordem ambiental.
Justamente porque não é possível partir de uma cidade ideal, organizada de
forma prévia, que as políticas de moradia e meio ambiente precisam coexistir com o
cotidiano da sociedade. A reestruturação dos ambientes artificiais, ao ser condição
para que se estabeleça moradia digna- muito mais do que casa- faz com que esteja
em jogo também o cuidado com o meio ambiente. Além disso, a resolução do
problema da moradia não passa somente por questões de ordem espacial e
ambiental. Esse planejamento, como parte integrante de um leque de medidas para
o direito à cidade, onde está alojado o direito à moradia, parte da dimensão legal,
juridicamente instituída desses contextos, o que acaba por dificultar o alcance
desses investimentos.
A lei dispõe sobre o que pode ser feito e sobre como deve ser feito. Como
muitos não detêm a propriedade formal do terreno, essa legislação não tem
qualquer aplicabilidade para eles, o que faz com que, justamente ao
contrário do que pretendia o legislador, essas pessoas tenham total arbítrio
para construir suas casas. [...] O ponto chave [...] é verificar se o direito é
101
um meio capaz de efetivar esse modelo de cidade.
100
OKADA, Denise Setsuko. A Constitucionalização da matéria ambiental: o direito às cidades
sustentáveis em jogo. In: COUTINHO, Ronaldo. ROCCO, Rogério. O direito ambiental das
cidades. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 67.
101
OLIVEIRA, Daniel Almeida. O direito da cidade no direito e nas questões sociais: limites,
possibilidades e paradigmas. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. (orgs) Direito da cidade:
novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, p. 80-81.
71
Ao remontar o problema da previsibilidade jurídica e da aplicabilidade,
localiza-se no direito à cidade uma das determinantes mais expressivas da
incoerência entre o sentido normativo e seu alcance. Não obstante figurar como
direito constitucional social, a grau de efetividade do direito à moradia digna deixa
transparecer, então, não somente uma lacuna de natureza teórica, enquanto
realização das metas do Estado Democrático de Direito. Mais do que isso, finaliza a
aparição de um simbolismo do texto constitucional, cuja eficácia é mitigada pela não
concretização.
Esse distanciamento da concretização dos direitos sociais em relação à
Constituição não atua, por outro lado, somente como sonegação prática da
dignidade humana, mas a reduz enquanto conteúdo axiológico, que lhe subjaz
enquanto fundamento, justificação filosófica para a manutenção de um corpo de
direitos que se relacionam às condições de vida digna.
Além disso,
Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como uma
unidade e como um sistema que privilegia valores sociais, pode-se afirmar
que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor
essencial que lhe doa unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade
humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição
102
particular.
Sob esta ótica, a existência do direito à moradia enquanto direito social, com
previsão expressa na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao
passar pelo tema do direito à cidade e do direito ambiental, finaliza uma conexão
direta entre esse contexto particular de direitos, estabelecendo, assim, uma
interdependência imediata. Por outro lado, apresenta-se a ideia de uma atuação do
Estado, por intermédio do Direito, no processo de modificação do status do direito à
moradia.
102
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a constituição brasileira
de 1988. Revista do instituto de hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica
Jurídica, 2004, p. 91.
72
Bolzan de Morais, ao mencionar a transformação política do Estado de Direito
em Estado Democrático de Direito, não deixa de perceber as características
elementares que passam a determinar aquele último. Estão, assim, imersos nessa
nova ordem política, frente aos desafios da sociedade moderna, “a regulamentação
da sociedade pelo Direito, democracia e concretização dos direitos fundamentais.” 103
Em relação ao direito à moradia, ambas as três estruturas aí estão
representadas, enquanto demandas imediatas e carentes de efetivação prática. No
que se refere às políticas previstas para funcionarem como fomentos à qualificação
da moradia digna, e que dizem respeito, então, àquele caráter de regulamentação
da sociedade pelo Estado, o que se percebe é que a estrutura digna de habitação
passa por outras medidas de infraestrutura básica, como água, luz, saneamento,
transporte.
Com restritas possibilidades de atendimento governamental às suas
demandas urbanas e habitacionais, a população de baixa renda,
marginalizada e periférica, descobre e cria estratégias para sua inserção no
tecido urbano. Tais estratégias vão desde as pressões para a extensão dos
serviços públicos de água, energia elétrica e transporte coletivo até na ajuda
mútua na construção das moradias que, além do abrigo físico, significa o
104
domicílio urbano, condição mínima de cidadania.
Com a inoperância da concretização das previsões normativas em relação ao
direito à moradia, a reivindicação e a atuação autogestionária fazem parte da
realidade urbana de provimento desse direito fundamental. De um lado, vai sendo
constituído núcleos mínimos de infraestrutura e habitação, dada a urgência que o
provimento dessas condições requer; por outro lado, acabam sendo criadas zonas
não monitoradas e, até mesmo, ilegais, que irão representar um desafio à realização
do direito à cidade.
No que diz respeito ao conteúdo democrático que, ao compor o Estado,
condiciona-o uma gerência democrática dos direitos, aquela participação dos
103
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A crise e a recuperação da legitimação
da jurisdição constitucional. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos (orgs). Direitos
Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. p. 1056.
104
KALIL, Rosa Maria Locatelli. Direitos humanos e moradia em Passo Fundo: uma experiência
autogestionária. In: CARBONARI, Paulo César. KUJAWA, Henrique Aniceto. Direitos humanos
desde Passo Fundo. Passo Fundo: CDHPF, 2004, p. 69.
73
cidadãos no exercício de efetivação do direito à habitação digna acaba por
representar uma possibilidade compartilhada de provimento do direito à moradia.
Sob essa ótica, a democracia não diz respeito somente à formação dos núcleos de
gerenciamento e atuação do Estado, mas à possibilidade de uma vivência
democrática cotidiana, compartilhada.
Dessa forma, “é importante assinalar que a regulamentação da sociedade
pelo Direito e a democracia são os dois elementos que garantem a fecundidade do
terreno para o desenvolvimento dos direitos fundamentais.”105 Diante desse
elementos, que ao transcenderem à ótica do direito à moradia são princípios que
representam toda a ordem de direitos fundamentais, a efetivação do direito à
moradia depende de uma integração entre o direito ambiental (sentido mais
universal), direito à cidade (sentido mais particular) e, então, o direito à moradia, ou
seu sentido mais imediato ou específico.
Diante dessa problemática, Saule Junior106, ao dispor sobre os sistemas de
monitoramento do direito humano à moradia digna, menciona espécies de
componentes que qualificam a moradia enquanto ambiente digno. Esse rol de
componentes é oriundo do Comentário Geral n. 4 do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e utilizado pelo Observatório
Habitacional do Município de São Paulo.
Dessa
forma,
independentemente
das
formações
regionais
e
da
especificidade de cada centro urbano, os componentes que direcionam a
perspectiva do direito à habitação à forma prevista constitucionalmente são mantidos
de forma universal, justamente pelo caráter impositivo que a dignidade estabelece
em relação aos seres humanos. Grosso modo, a realização efetiva dos direitos
105
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A crise e a recuperação da legitimação
da jurisdição constitucional. In: LEAL, R.G.; REIS, J. R. (orgs) Direitos Sociais e Políticas Públicas:
desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. p. 1056.
106
SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada.
In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e
internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219.
74
subjetivos é expressa, quando característica da dignidade, juntamente com a
“demonstração de seu fundamento objetivo.”107
Nesse elenco de condições que devem caracterizar a moradia para que
possa ser qualificada como digna, tem-se a “(a) Segurança jurídica da posse [...] (b)
disponibilidade dos serviços, materiais, benefícios e infra-estrutura [...] (c) gastos
suportáveis [...] (d) habitabilidade [...] (e) acessibilidade [...] (f) Localização [...] (g)
adequação cultural [...]”.108
Cada uma das considerações estabelece uma condição do adjetivo digno ao
direito à moradia. Pelas inúmeras formas jurídicas, o direito à moradia pode ser
exercido nos limites da lei. Ainda que não seja por meio de uma titularidade puradono legal-, existem outros meios legais e dignos de habitação, tais como aluguel e
comodato. Registrando a interdependência do direito à moradia em relação aos
demais direitos, o segundo elemento menciona as condições complementares à
habitação, finalizando um ambiente digno, tais como transporte, saneamento básico
e segurança.
De forma a manter o equilíbrio social e econômico, a suportabilidade dos
gastos leva em consideração as condições financeiras do cidadão em relação ao
suprimento das demais necessidades. Nessa mesma perspectiva, as políticas de
habitação, ao formularem as determinantes de implementação da moradia,
consideram essa relação de sustentabilidade do habitat doméstico, tendo em vista
os destinatários e a condição econômica existente, da mesma forma com que levam
em consideração a habitabilidade, acessibilidade e localização, nos casos de
financiamento de imóveis, por exemplo.
No entanto, o último elemento analisado diz respeito ao conteúdo cultural que
esse processo refere- ou pode referir. Ou seja.
107
BARZOTTO, Luiz Fernando. Os Direitos humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica
à ética. In: SARLET, Ingo. (org.) Jurisdição e direitos fundamentais. v. I, t. 1. Porto Alegre: Livraria
do advogado, 2005, p. 269.
108
SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada.
In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e
internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219.
75
A expressão da identidade e da diversidade cultural da moradia deve ser
apropriadamente assegurada na maneira como são construídas as
moradias, nos materiais de construção usados e nas políticas em que se
apoiam. As atividades vinculadas ao desenvolvimento ou modernização na
esfera da moradia devem assegurar que suas dimensões culturais não
sejam sacrificadas e que se assegurem os serviços tecnológicos modernos,
109
entre outros.
Esse último componente insere no contexto do direito à moradia um elemento
diferenciador, que acaba por superar, assim, o caráter meramente material da
habitação. Não mais está resumida, então, à materialidade, enquanto forma
imediatamente observável, mas estende essa análise aos componentes subjetivos
que, grosso modo, acabam por familiarizar a habitação.
Entretanto, da mesma forma como é inovador, acaba por evidenciar a
fragilidade do sistema de efetivação do direito em questão. Mais do que somente
esse elemento cultural, todas as determinantes que qualificam como digna a
habitação e o seu contexto físico e subjetivo carecem de efetivação prática.
Nessa senda, o desenvolvimento urbano, mesmo em certa medida atrelado à
Lei n. 10.257/2001 e às determinações do Plano Diretor, acaba por desconsiderar,
tanto na atuação pública quanto privada, as dimensões axiológicas e teleológicas da
propriedade urbana. Ou seja, a necessidade de robustecer a economia urbana faz
com que sejam feitas concessões no processo de dignificação da moradia,
reduzindo, assim, o valor intrínseco à dignidade e a finalidade de um ambiente
doméstico conforme. De forma mais emblemática, essa mitigação do direito à
moradia acaba por representar, paralelamente, uma redução das condições
ambientais e de uma cidade digna, considerando-se um nível mais abrangente.
Tem-se, assim, uma formação sistemática de supressão do direito à moradia, do
direito à cidade e, por fim, do direito ambiental como um todo.
El desarollo urbano entendido así como un proceso de transformación de lo
que denominamos recursos urbanos originarios y secundarios, encuentra
ciertos límites históricos (de pérdida de calidad de tales recursos)
resultantes de su inserción en el despliegue de la crisis del modo productivo
109
SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada.
In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betania (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e
internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219.
76
dominante. [...] algunos conceptos contemporaneos como los de crisis de
las condiciones de producción por una parte y de desarollo sustentable por
otra, expresan aproximaciones para una posible caracterización
110
problemática y critica do desarollo urbano.
A ideia de desenvolvimento urbano (sobretudo desenvolvimento sustentável)
ainda que originalmente atrelado à provisão do direito à cidade como um todo, em
que se apresenta o problema do direito à cidade e ambiental, acaba por ser
estruturado fora da ideia de um desenvolvimento plural, caso em que se analisa
muito mais do que a evolução quantitativa dos índices econômicos.
O modo produtivo e suas crises acaba por influenciar, assim, diretamente na
formação do direito à moradia no contexto urbano, atuando, assim, como elemento
problemático em relação à efetividade dos direitos sociais como um todo. Diante
disso, a expressão coletiva e real que os direitos sociais, contexto este em que se
situa o direito à moradia, deixa de estar pautada por escolhas concretas de
realização comum de direitos. Mesmo a natureza jurídica das previsões da Lei n.
10.257/2011, que não se afasta da ideia de “direito material constitucional coletivo, e
no plano dos subsistemas jurídicos que se harmonizam com os comandos
constitucionais,
de
direitos
concretamente reduzida.
materiais
e
metaindividuais”,
acaba
por
ser
111
Nesse contexto, ainda que o cidadão não esteja reduzido a uma postura
passiva e meramente assistencial, o conjunto de tarefas acerca de direitos sociais
compete, diretamente, às diretrizes a serem traçadas institucionalmente, como
formas de implementação das condições de direitos. Entretanto,
[...] o fato de existirem várias obrigações e fatores relevantes envolvidos na
satisfação dos direitos sociais não impede sua implementação [...]. As
características dos direitos fundamentais sociais requerem a aplicação de
princípios, tais como os da subsidiariedade e solidariedade, que não são
levado em conta pela maioria dos teóricos dos direitos e nem por filósofos
112
políticos que defendem teorias standard dos direitos.
110
FERNÁNDEZ, Roberto. La ciudad verde: teoría de la gestión ambiental urbana. Buenos Aires:
Espacio, 2000, p. 304.
111
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei 10.257/2011, lei do meio
ambiente artificial. 3. Ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2008, p. 137.
112
ARANGO, Rodolfo. Direitos fundamentais sociais, justiça constitucional e democracia. In: MELLO,
Cláudio Ari (org.).Os desafios dos direitos sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 92.
77
A partir desse contexto objetivo em que se encontra a realização do direito à
moradia, e tendo em vista estar situado no rol de direitos fundamentais sociais, o
que existe é um estreitamento entre a provisão desses direitos e a atividade do
Estado em sua direção. Mais do que somente uma condição de monitoramento e
gestão externas, a realização concreta dos direitos sociais passa diretamente, ainda
que não exclusivamente, pela ação do Estado, como, até mesmo, significação da
ideia de direitos fundamentais.113
A partir desse cenário, é possível analisar essa atividade do Estado em
relação à realização dos direitos sociais, e de forma mais específica, do direito à
moradia. Desde a previsão constitucional até a formação de legislações específicas,
o direito à habitação digna passa por uma análise conjunta em relação aos demais
direitos que se integram, como o direito à cidade e o direito ambiental. Assim, com a
existência de um conteúdo normativo mínimo, atrelado à ideia de políticas públicas
direcionadas à habitação, é possível perceber a ligação imediata que se estabelece
entre o direito à moradia e a sua interferência na ideia de tornar fundamental o
direito à cidade.
3.3 Ações institucionais para a garantia do direito à moradia digna
O artigo 2° da Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece as
diretrizes para os sistemas urbanos de saneamento básico, contém em seus incisos
um rol de provisões que poderiam ser considerados com princípios de todo o direito
à cidade. Preleciona o referido artigo acerca dos princípios fundamentais dos
serviços públicos de saneamento básico.
I - universalização do acesso; II - integralidade, compreendida como o
conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos
serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na
conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e
resultados [...] VI - articulação com as políticas de desenvolvimento urbano
e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de
proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse
social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o
113
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. 6.ed. Madrid: Tecnos, 1995.
78
saneamento básico seja fator determinante; VII - eficiência e
sustentabilidade econômica; VIII - utilização de tecnologias apropriadas,
considerando a capacidade de pagamento dos usuários e a adoção de
soluções graduais e progressivas; IX - transparência das ações, baseada
em sistemas de informações e processos decisórios institucionalizados; X controle social; XI - segurança, qualidade e regularidade; XII - integração
das infra-estruturas e serviços com a gestão eficiente dos recursos
114
hídricos.
Muito mais do que funcionarem como normas esparsas, representam
verdadeiros princípios do direito à cidade como um todo, não deixando de pautar as
ações institucionais que representam no campo prático a existência real do direito à
moradia.
Do ponto de vista legal, as previsões constitucionais e a regulamentação que
daí decorre são os passos imediatos na formação de uma ação institucional eficaz,
capaz de representar no contexto jurídico a defesa do direito à moradia. Por outro
lado, as ações práticas - políticas públicas- caracterizam a realidade objetiva da
existência desse direito na sociedade.
Desde as políticas mais diretamente relacionadas ao direito à moradia
(financiamentos habitacionais, por exemplo) até as atividades que, a partir de seu
conteúdo semântico, se ligam ao direito à moradia, o provimento das condições
básicas de habitação passa pela postura ativa do Estado frente à hegemonia do
capital privado e as tentativas de reduzir o espaço urbano ao terreno dos
empreendimentos unilaterais.
Essa atividade institucional mais intensa, mitigada pela crescente diminuição
da força militante do Estado, acaba por representar, assim, uma falência de sua
condição de provedor do direito à cidade, não no sentido de artífice único, mas de
executor mais diretamente ligado à ordem constitucional.
Santos, ao analisar a condição do Estado frente à redução gradual de sua
condição ativa, pelo menos do que se refere às ações sociais, atenta para alguns
114
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>. Acesso em 5 jul 2011.
79
fatores que caracterizam a sociedade mundial, e que repercutem no comportamento
institucional.
[...] a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a
cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único na história,
representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando
esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa.
115
Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro.
Assim, demonstrando essa situação fática determinada letargia institucional,
ao analisar o contexto de surgimento do Estado de Direito, perseguidor dessa
condição ativa de adimplemento das menções constitucionais, Tramontin não deixa
de mencionar o processo histórico de redução do papel ativo do Estado frente aos
direitos fundamentais, desenvolvimento esse que afeta diretamente o não
reconhecimento do problema habitacional como formador de diretrizes para atuação
do Estado.
Observa, além disso, que,
[...] no plano formal, a partir da Constituição de 1934 até a Constituição de
1988, inclusive, o Estado brasileiro passou a ter características de Estado
social, nos moldes implementados em vários países do Ocidente,
destacando-se os países europeus. No entanto, entre as previsões
116
constitucionais e a realidade concreta existe uma grande diferença.
Esse paradoxo existente entre a previsão formal e os aspectos concretos da
ordem constitucional representa, além disso, uma incoerência que também se faz
representar na forma com que o Estado age em relação ao direito à moradia. Ainda
que existente, as ações institucionais de direito à moradia, ora atuam fora dos
parâmetros reais da população carente (financiamentos para quem já tem
capacidade econômica estável), ora como mero assistencialismo, deixando de levar
em consideração a condição de sujeito do cidadão.
De fato, o contexto nacional e mundial explicita uma característica de
exclusão social e desestrutura das formas organizacionais das cidades quase que
115
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2006, p. 24.
116
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 31.
80
irreversível (favelismo e degradação ambiental), mas não exime o Estado de pensar
a efetivação das políticas habitacionais e ambientais já mencionadas na
regulamentação da Política Urbana, além das políticas suscitadas por meio de
demandas sociais mais imediatas. A existência de um corpo de leis que disciplinam
e legitimam determinados entes públicos com competência para efetivar as
previsões legais não é suficiente para que se chegue a uma vida digna, nisso
compreendido o real direito à moradia e habitat limpo e preservado. Mais do que
como resultado, a legislação geral e específica atua como ponto de partida do fazerser da Administração Pública, com vistas à implementação do direito à moradia.
Ainda que se desenvolva uma cultura individualista de não preservação e de
ocupação ilegal dos terrenos urbanos, cabe ao Estado uma responsabilidade direta
na formação de ambientes (re)organizados e com condições básicas de exercício da
cidadania. Não se trata somente de uma responsabilização atomizada, que identifica
nos indivíduos isolados os únicos agentes no processo de reabilitação habitacional e
ambiental. Sobretudo, é inerente ao estágio democrático e social do Estado a
responsabilidade com os institutos jurídicos e políticos, de efetivação de uma
sociedade equilibrada, tanto do ponto de vista do acesso à moradia quanto do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse contexto, a condição para um desenvolvimento urbano equitativo e
justo deverá passar, sobretudo, pela transformação estrutural da política
governamental, fazendo com que as demandas sociais surtam como diretrizes para
se pensar o crescimento socioeconômico e a efetivação do estado democrático
constitucional. Assim, o conceito que mais se põe à melhora de condições da vida
urbana é o de efetivação, no sentido de tornar as previsões legais garantias que
realizem o direito à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
São necessárias políticas públicas que vislumbrem um cenário de
sustentabilidade das cidades capaz de atender aos direitos básicos de toda
população, mas que tenham em mente a real situação do direito à moradia no Brasil.
A política urbana terá de possuir um potencial não apenas para garantir o acesso a
direitos sociais básicos e universais, mas também para melhorar as condições
equitativas de acesso a todos os direitos inerentes ao contexto das cidades.
81
A partir disso, a crise de percepção demanda uma mudança de postura na
gestão das cidades, mudança esta que se concretizará com a efetiva participação
social consciente nesta interligação mútua existente entre o ser humano, o Estado –
na condição de gestor de políticas públicas - e , é claro, o meio ambiente enquanto
princípio norteador de condutas e políticas de gestão compartilhada e democrática
do espaço urbano.
Mais do que somente uma aparição isolada, esse compartilhamento, que não
retira do Estado a função de executor das ações institucionais de direitos
fundamentais, situa a implementação do direito à moradia no rol das atividades do
desenvolvimento emancipatório como um todo, superando a ideia dicotômica entre
Estado e cidadão.
Sob esse contexto, a exigência da efetivação do direito à cidade, no que
tange às ações institucionais de direito à moradia, tende a se ligar diretamente a
duas estruturas-núcleo, quais sejam, a condição econômica dos visados e a
emancipação social, através das quais é possível sedimentar uma teoria jurídica que
justifique a atividade do Estado Democrático de Direito.
Originalmente intermediado nessa ideia, o projeto do governo Federal, Minha
Casa, Minha Vida visa ampliar o direito à moradia a partir de diretrizes situadas no
plano municipal. Filia-se, dessa forma, às disposições da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, da Lei n. 10.257/2001 e, especificamente, à Lei n.
11.977, de 7 de julho de 2009, alterada pela Lei n. 12.424, de 16 de junho de 2011,
que disciplina o Programa Minha Casa, Minha Vida, com vistas à atuação municipal
a partir da formação do Plano Diretor.
Em sentido geral, o Programa Minha Casa, Minha Vida está voltado à
formação de programas na esteira do direito à moradia, conciliado, diretamente, ao
direito à cidade e ambiental. Tem como escopo, assim, “[...] criar mecanismos de
incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação
82
de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com
renda mensal de até R$ 4.650,00 [...].”117
Sobre esta ótica, resulta da constatação de que “entre os desafios encarados
pelo governo está o de trabalhar para reverter uma característica marcante de suas
cidades e comum em outras tantas cidades do mundo: a segregação
socioespacial.”118
Inserido nessa perspectiva do direito à cidade, de que faz parte o direito à
moradia, enquanto condição, o Programa Minha Casa, Minha Vida previu, pela Lei n.
11.977 de 07 de julho de 2009, subdivisões de projetos a partir de características
específicas, levando em consideração o fator econômico, social, espacial, mas,
especificamente, políticas habitacionais para o meio urbano e rural. Dessa
subdivisão do Programa, nasceram o Programa Nacional de Habitação Urbana e o
Programa Nacional de Habitação Rural, previstos, respectivamente, nos incisos I e II
do artigo 1° da Lei n. 11.977 de julho de 2009.
Em cada um dos programas, a participação municipal é sempre essencial à
realização das ações do Programa, vez que,
[...] a instituição do Programa Minha Casa Minha Vida (Lei n.° 11.977/09) e
o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que contam com
recursos para obras de infraestrutura social e urbana, passam a exigir dos
municípios a aplicação das estratégias de ordenamento territorial definidas
nos Planos Diretores. Aqueles que elaboram Planos, reservando áreas para
habitação de interesse social e regularização fundiária, definindo diretrizes
para a infraestrutura- em especial redes viárias de transporte público e
saneamento ambiental- e criam instâncias de gestão democrática estão em
melhores condições de executar esses programas, combater o déficit
119
habitacional e implementar suas políticas setoriais.
Essa gestão compartida entre os entes do Poder Executivo atenda para o
caráter dinâmico previsto desde a Constituição para o processo de implementação
117
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/civil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm>. Acesso em: 12 jul 2011.
118
ALMEIDA, Márcio Fortes de; COBBETT, Billy. Apresentação. In: CARVALHO, Celso Santos;
ROSSBACH, Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Aliança das cidades, 2010, p.
3.
119
ALMEIDA, Márcio Fortes de. Apresentação. In: ROLNIK, Raquel (org.). Como produzir moradia
bem localizada com os recursos do Programa Minha Casa Minha Vida: implementando os
instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília: Ministério das Cidades, 2010. p. 8.
83
do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito à cidade e do
direito à moradia. Mais do que isso, remonta as determinações da Organização das
Nações Unidas no que tange aos princípios que regem a identificação de um habitat
como possível de atender às exigências de uma moradia digna.
Tanto é que, em imediata relação com o Comentário Geral n. 04, do Comitê
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, a primeira
determinante traçada pelo Ministério das Cidades, a Cartilha do Programa Minha
Casa Minha Vida não deixa de levar em consideração características a partir das
quais é possível definir a dignidade de uma habitação. 120 Entretanto, reconhece-se
que,
Esse modelo de planejamento tem implicações na forma e no
funcionamento de nossas cidades: concentração de empregos em poucas
áreas; distantes do local de moradia; excessiva necessidade de
deslocamento e ocupação de áreas de proteção ambiental por falta de
121
alternativas; entre outras.
A preocupação central na execução dessas determinantes é a conciliação
entre as previsões legais e a ordem que forma os Planos Diretores municipais.
Sendo uma das principais ações do Estado em relação ao Direito à moradia, não diz
respeito somente à atividade da União, mas tem a sua realização a partir da
comunhão com os demais entes, sobretudo a administração municipal.
Isso se deve, sobretudo, pelo fato de a implementação do Programa Minha
Casa Minha Vida pressupor uma contrapartida dos municípios, tanto em relação às
necessidades imediatas (terreno e escrituração) quanto àquelas que integram o
direito à moradia, como é o caso do transporte coletivo acessível e de qualidade.
Esse compartilhamento requer, então, a atividade multilateral dos sujeitos
envolvidos, mesmo os não diretamente ligados ao poder público.
120
SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada.
In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito urbanístico: estudos brasileiros e
internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 218-219.
121
ROLNIK, Raquel (org.). Como produzir moradia bem localizada com os recursos do
Programa Minha Casa Minha Vida: implementando os instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília:
Ministério das Cidades, 2010. p. 10.
84
Sobre esta ótica, sobretudo a partir da participação municipal, o que surgem
são empecilhos objetivos que denegam o sentido originário do Programa,
explicitando, novamente, as limitações à formação de moradias.
Além disso, muitas das moradias construídas para atender ao Programa
representam um exemplo do não seguimento da ideia de suportabilidade dos gastos,
que levam em consideração não somente o montante do financiamento habitacional,
mas os demais gastos com manutenção da família e, mais do que isso, com os
gastos futuros no cotidiano da nova moradia.
Além disso, o aumento na margem de valores até os quais o financiamento
atua denuncia, mais uma vez, a impossibilidade dessas medidas atingirem quem
realmente sofre com problemas de moradia, visto a impossibilidade de um
financiamento na ordem de cento e trinta mil reais recair sobre cidadãos com renda
de um salário mínimo. Com isso, reforça-se a ideia de que, quanto maior o poder
aquisitivo, mas digna é a moradia, ratificando, erroneamente, a proporcionalidade
entre poder econômico e dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, Arantes e Fix, ao abordarem o Programa Minha Casa Minha
Vida a partir de uma perspectiva crítica, não deixam de registrar que, tendo em vista
a ideia reforma urbana e função social,
Na ânsia de poder viabilizar o maior número de empreendimentos, o poder
local ficará refém de uma forma predatória e fragmentada de expansão da
cidade. O ‘nó da terra’ permanecerá intocado e seu acesso se dará pela
compra de terrenos por valores de mercado (ou ainda acima destes). O
modelo de provisão mercantil e desregulada da moradia irá sempre procurar
a maximização dos ganhos por meio de operações especulativas. Não há
nada no pacote, por exemplo, algo que estimule a ocupação de imóveis
construídos vagos (que totalizam 6 milhões de unidades, ou 83% do déficit),
colaborando assim para o cumprimento da função social da propriedade. A
existência desse imenso estoque de edificações vazias é mais um peso
para toda a sociedade, pois são em sua maioria unidades habitacionais
providas de infraestrutura urbana completa, muitas delas inadimplentes em
relação a impostos. Não há dúvida de que o pacote irá estimular o
crescimento do preço da terra, favorecendo ainda mais a especulação
imobiliária articulada à segregação espacial e à captura privada de
investimentos públicos. Assim, a política habitacional de interesse social se
85
tornará cada vez mais inviável, a menos que o governo siga dirigindo
122
subsídios aos proprietários de terra.
O que ocorre é, ao reverso da ideia contida na própria Lei n. 11.977/2009,
com nova redação dada pela Lei n. 12.424/2011, a formação de privilégios
institucionais que, do ponto de vista prático, ratificam a ideia de incorporação no
Estado da lógica excludente do modelo econômico. Sobre esse aspecto, o Programa
acaba por não atender a quem realmente não tem moradia, como seguem
asseverando Arantes e Fix.
A história do subsídio habitacional no Brasil é conhecida pela constante
captura da subvenção pelas classes médias e agentes privados, ao invés
de atender, na escala necessária, os trabalhadores que mais precisam.
Embora essa tendência deva novamente prevalecer, há que se considerar o
interesse político e eleitoral do governo em atingir a base da pirâmide. De
um lado, o governo quer que o subsídio favoreça o deslocamento do
mercado imobiliário para faixas de baixa renda, onde obtém maiores
dividendos políticos, enquanto o mercado quer aproveitar o pacote para
subsidiar a produção para classe média e média-baixa, onde obtém maiores
ganhos econômicos. Em ambos os casos, o mercado depende do governo
para expandir a oferta e não do sistema privado de crédito, como nos
países centrais. Ou seja, é um mercado que não é plenamente capitalista e
acaba alimentado pelos fundos públicos. De outro lado, o governo depende
do mercado para implementar uma política social, pois o sucateamento dos
órgãos públicos, das secretarias de habitação e das Cohabs, além de
questões ideológicas, impedem uma ação dirigida predominantemente pelo
Estado. O perfil de atendimento previsto pelo pacote revela, porém, o
enorme poder do setor imobiliário em dirigir os recursos para a faixa
que mais lhe interessa. O déficit habitacional urbano de famílias entre três
e 10 salários mínimos corresponde a apenas 15,2% do total, mas receberá
60% das unidades e 53% do subsídio público. Essa faixa poderá ser
atendida em 70% do seu déficit, satisfazendo o mercado imobiliário, que a
considera mais lucrativa. Enquanto isso, 82,5% do déficit habitacional
urbano concentra-se abaixo dos três salários mínimos, mas receberá
apenas 35% das unidades do pacote, o que corresponde a 8% do total do
123
déficit para esta faixa.
Não obstante os problemas de ordem privada, a realização do Programa nos
municípios, ao passo que tem por ente executor também as prefeituras municipais,
vê-se diante de desvios e inexecuções dessas instituições de direito público. Como
acontece em outros projetos do Governo Federal, sendo a administração local a
responsável pela escolha e definição dos locais e dos beneficiários, é possível o uso
122
ARANTES, Pedro
habitação. Disponível
nosso.
123
ARANTES, Pedro
habitação. Disponível
nosso.
Fiori; FIX, Mariana. Como o governo Lula pretende resolver o problema de
em:< http://www.psolsp.org.br/capital/?p=423> Acesso em: 2 ago. 2011. Grifo
Fiori; FIX, Mariana. Como o governo Lula pretende resolver o problema de
em:< http://www.psolsp.org.br/capital/?p=423> Acesso em: 2 ago. 2011. Grifo
86
de interesses e retribuições partidárias ou pessoais nesse processo de
particularização das previsões do Programa.
Do ponto de vista prático, quando as determinantes do programa não são
mitigadas pela existência dos interesses privados, é o comportamento da
administração pública que acaba por reduzir a efetividade daquela ideia contida na
própria Lei n. 11.977 de julho de 2009, tanto a partir de corrupção administrativa
quanto da morosidade na execução do Programa.
A partir dessa panorâmica de limites à execução de uma das ações
institucionais mais diretamente relacionadas com o direito à moradia, é possível
compreender, no contexto do direito à cidade, a carência da atividade do Estado e a
crise anunciada na ideia de Estado-Nação. Do ponto de vista unicamente
institucional, que depende da conscientização interna da função constitucional do
Estado Democrático de Direito, os resultados no tocante ao direito à moradia são
tardios e limitados.
O pensamento de reconstrução do direito à moradia, inserido no problema
urbano e ambiental, ao mencionar a gestão democrática e a participação
emancipatória da sociedade abre o horizonte das possibilidades de constituição de
uma melhoria nas condições de vida do cidadão, o que acaba sendo, grosso modo,
o desejo presente em todas as tentativas já feitas a esse respeito. Sobre esse
aspecto, o Programa Minha Casa Minha Vida não pode ser considerado ruim ou
inapropriado, mas limitado e deficiente, justamente porque o problema habitacional
vem somado ao direito à alimentação, à educação, ao trabalho. E, diante disso,
financiar pressupõe, ainda, determinado poder aquisitivo além, mesmo baixo.
Sob esta ótica, mesmo com a implementação das diretrizes da Lei n.
11.977/2009, com nova redação dada pela Lei n. 12.424/2011, que possibilita
financiamentos, benefícios e demais formas de se adquirir propriedade (como é o
caso da inclusão de um artigo 1240A ao Código Civil- usucapião familiar) o problema
do acesso à moradia de qualidade persiste, porque mesmo a previsão legal
desconsidera a margem estruturada abaixo dessas condições da lei. É sobre esse
87
aspecto que se evidencia o caráter estrutural e complexo da efetivação equitativa do
direito à moradia.
Em extrapolando os limites normativos, a realização do direito à moradia
parece alçar raízes para além do modelo institucional desenvolvido pelo Estado.
Significa dizer, então, que, em relação às diretrizes especificamente voltadas ao
problema habitacional, e que pressupõe um vasto contexto de direitos presentes, a
solução parece estar radicada na possibilidade de conciliação entre os institutos
jurídicos e administrativos e a sociedade.
Além disso, não obstante as deficiências práticas de efetivação do direito à
moradia, as prerrogativas até então ligadas a esse processo não podem qualificá-lo
como
uma
gerência
democrática,
justamente
por
conta
da
ideia
de
compartilhamento que essa gerência integrada pressupõe. Assim, emancipação
social e gestão democrática das cidades são condições de implementação, do ponto
de vista político, do Estado Democrático de Direito. Em sua dimensão prática, diz
respeito à condição de sujeito dos agentes sociais.
88
4. CONCEPÇÃO JURÍDICO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À CIDADE NO
ESTADO SOCIOAMBIENTAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.1 Direito à cidade como um direito fundamental
A existência do direito à cidade como direito humano fundamental muito bem
representa uma aliança real entre os níveis de fundamentação, concretização e
conteúdo dos direitos humanos como representações da dignidade, enquanto
processo de reconhecimento das condições de habitação, saúde, saneamento,
como determinantes objetivas da interdependência e amplitude dos direitos
humanos. Mais do que isso, representa a ratificação da cidadania, que diz respeito,
assim, a um vasto sistema de condições de direito e sociabilidade.
Não obstante a isso, a ideia de que direitos humanos fundamentais evocam
transcende a uma classificação estanque e emergencial, mas diz respeito a um todo
complexo e interdependente, no qual a sonegação de determinadas condições de
cidadania, que é a própria dignidade existindo, reduz de plano toda a seara
constitucionalista, denunciado a insuficiência de se pensar a justiça social, síntese
do fundamento da dignidade e da cidadania, por meio de uma menção taxativa de
leis e costumes.
Nesse sentido, o reconhecimento do direito à cidade como um direito humano
fundamental representa justamente essa materialização que a dignidade necessita
para ser objetiva, muito além da mimética rigorosa e formal dos institutos jurídicos.
Sob essa ótica, começa a estar representada a dialética entre o fundamento, a
realização e os valores que firmam os direitos humanos fundamentais em geral e
fazem do direito à cidade uma determinação histórica que surge como a exposição
de uma racionalidade estabelecida no tempo e no espaço.
Não significa, porém, que o traço fundamental da dignidade seja, nesse
sentido, uma exterioridade histórica, volátil e atualizável. O que se atualiza de
acordo com o tempo e o espaço são as determinações objetivas, a realização
material da dignidade da pessoa humana. Em si, a dignidade é uma invariável
justaposta à Humanidade, justamente por representar uma universalidade sem
89
conteúdo, o qual é dado mediante a menção a valores e estruturas da sociedade,
mediante a formação de direitos que, representando essa dignidade, são
fundamentais à existência histórica e temporal do ser humano.
Todavia, não obstante à existência de uma consciência que ratifica a
necessidade de se pensarem mecanismos de transição do problema ambientalhabitacional para a seara da efetividade,
[...] na maioria das vezes, não há um projeto de cidade contemplado no
Plano Diretor Urbano e perseguido por todo o ordenamento jurídico local. O
projeto existente, além de ignorar a realidade, desrespeita normas
hermenêuticas de construção de um ordenamento jurídico eficaz. É apenas
fiel às normas da cidade clássica, aos interesses das elites dominantes e à
124
prática de exclusão social.
Assim sendo, a previsibilidade positiva do sistema jurídico como um todo e as
ideologias que subjazem à estrutura positiva dos direitos humanos fundamentais não
são suficientes para qualificar a qualidade de vida, na forma da proteção e
prevenção das agressões aos recursos naturais e à organização do contexto
habitacional urbano. Destarte, muito mais do que mencionar a existências de
fórmulas objetivas da dignidade e dos direitos humanos como resposta à atividade
do Estado e dos regimes de exceção, a atuação do Poder Público e da sociedade
deve levar em consideração que reconhecer e realizar o direito à cidade é uma
maneira direta de se atuar no terreno dos direitos humanos fundamentais.125
É diante do cenário geral de supressão dos direitos fundamentais que,
especificamente, a precarização histórica do direito à cidade, desde a matriz
industrial até a formação das novas tecnologias que, alheias ao movimento de
efetivação dos direitos, acabam por potencializar as formas de segregação social, foi
determinante para o surgimento de classes absurdamente distintas presentes no
mesmo cenário urbano.
124
RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos urbano: Um fato cuja solução também passa
pelo direito como instrumento de construção de um projeto de cidade sustentável. Caxias do Sul:
Ediucs, 2007, p. 215.
125
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
90
Assim, diante do reconhecimento da imperatividade da dignidade humana
frente à constelação de direitos, a conciliação entre um desenvolvimento sustentável
que possibilite um crescimento econômico-social condizente às formas de proteção
e preservação ambiental, juntamente com o aperfeiçoamento dos mecanismos de
controle e distribuição das ocupações urbanas, é condição sem a qual a dignidade
humana permanecerá enquanto universalidade pura, imanência sem conteúdo.
Do ponto de vista filosófico, o fundamento do direito à cidade está
compreendido na existência de valores que vão além dos interesses imediatos e
particulares, de modo a não se prenderem à forma estática das leis e costumes; no
que se refere à realização, o direito à cidade não é senão a aparição histórica de
determinantes da dignidade que, aliadas à temporalidade e o contexto, estabelecem
a união da universalidade com a existência particular; além disso, a axiologia vai
representar a síntese entre a universalidade e a realização, enquanto conteúdo da
dignidade humana.
Assim, o reconhecimento do direito à cidade acaba por sedimentar-se, por um
lado, a ideia de uma aliança objetivo entre categorias da própria realidade humana,
como é o caso do fundamento, da realização e dos valores. Doutra banda,
representará uma mudança estrutural objetiva na forma como que a dignidade é
exercida, que é a cidadania.
Dessa atuação sistêmica, porque diz respeito à atenção a um conjunto de
direitos que acabam por formar o contexto urbano, depende a realização da
dignidade da pessoa humana e representa, então, num sentido mais delimitado,
uma atividade em relação ao sistema ambiental e habitacional. Num sentido mais
amplo, refere, até mesmo, o esquema democrático do Estado de Direito, enquanto
representação de uma forma igualitária de se pensar as instituições e a sociedade.
Rawls, quando pontua a formação de um ambiente comum de cidadania e
democracia, depõe.
Ao dizer que um povo tem um governo democrático constitucional
razoavelmente justo (embora não necessariamente justo por completo)
91
quero dizer que o governo está eficazmente sob seu controle político e
eleitoral, que responde pelos seus interesses fundamentais e que os
126
protege como especificado em uma constituição escrita ou não-escrita.
Essa menção à filosofia política de Rawls127 serve como pano de fundo para a
ideia que une a democracia à existência real de uma constituição, sobretudo a partir
dos eventos constitucionais (neoconstitucionais) do segundo pós-guerra, conforme
refere Carbonell.128
Sob essa perspectiva, a integração do direito à cidade como direito
fundamental poderia pressupor uma inclusão na Constituição nacional. Mais do que
somente uma incorporação constitucional, trata-se de uma filiação a todo o
arcabouço do Estado de Direito, significando, assim, que “los poderes públicos son
conferidos por la ley y ejercitados em las formas y com los procedimientos
legalmente estabelecidos.”.129
Já sob essa perspectiva, a inclusão do direito à cidade como direito
fundamental, cuja abrangência conceitual vai além da particularidade jurídica do
texto constitucional, representaria uma extensão real do Estado de Direito como
reflexo objetivo no cotidiano social, justamente para superar aquela versão civilista
dos regramentos sociais. Dessa forma, cabe ao Estado, a partir de sua tarefa
institucional, uma responsabilidade direta na formação de ambientes organizados e
com condições básicas de exercício da cidadania.
Dessa forma, a teórica superação daquela tradição civilista e positivista,
sobretudo realizada sob a égide do Estado de Direito e nova formação constitucional
do segundo pós-guerra, pressupôs também outra forma de superação, desta vez
pontuada a partir da menção a novas formas de garantir e efetivar direitos, muito
126
RAWLS, John. O Direito dos povos. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
p. 31.
127
Esse contato com a formulação democrática de Rawls, ainda que aparente um distanciamento
objetivo das estruturas de democracia que formam a experiência de países latino-americanos, como
o Brasil, serve como ponto de partida referencial para o pensamento da política representativa de
nosso regime democrático.
128
CARBONELL, Miguel. Nuevos tiempos para el constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel.
(Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 9.
129
FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del estado de derecho. In: CARBONELL, Miguel. (Editor).
Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13, grifo do autor.
92
além de uma restrição às normas positivamente firmadas. Assim, o que ocorre é
também uma reformulação da filosofia da legitimidade, classicamente (positivismo)
atrelada à existência de leis.
Entretanto, se por um lado a existência de direitos humanos fundamentais vai
além das previsões legais, por outro o seu reconhecimento constitucional firma as
bases da possibilidade de o direito à cidade ser encarado como matéria urgente e
sem a qual não é possível falar em interdependência e coexistência de direitos
fundamentais. Nesse mesmo rol, por exemplo, a inclusão recente do direito à
alimentação como direito humano fundamental (Emenda Constitucional n. 64, de 4
de fevereiro de 2010130) representou o reconhecimento de um direito inalienável e
inerente à constituição material da dignidade. Sob essa mesma prerrogativa, a
justificação do direito à cidade teria, com a sua inclusão no rol dos direitos
fundamentais, uma relação direita entre a opção democrática e jurídica da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a demandas oriundas dos
contextos sociais.
Assim, como depõe Sanchis, se o Estado constitucional é reconhecido como
“a melhor a mais justa forma de organização política”131, então essa existência real,
ainda que formadas as bases organizacionais e um rol não taxativo de direitos
fundamentais, dirá respeito a uma dialética da reciprocidade, cuja comunicação põe
em contato as determinações da sociedade civil e a tarefa institucional,
originariamente demarcada nessa mesma Constituição.
Nesse sentido quando a regulamentação dos artigos 182 e 183 da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, feita pela Lei n. 10.257, de
10 de julho de 2011, especificou diretrizes segundo as quais as ordenações
irregulares pudessem ser repensadas e, doutra banda, as novas formações
tivessem a possibilidade de serem ordenadas conforme planos diretores eficazes,
obteve-se um primeiro marco sócio-jurídico de justificação do direito à cidade como
130
BRASIL, Congresso Nacional. Emenda Constitucional n. 64, em 4 de fevereiro de 2010.
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm>. Acesso
em 09 mar. 2011.
131
SANCHIS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderacion judicial. In: CARBONELL, Miguel.
(Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 123 et. seq., tradução livre.
93
um direito fundamental. Nesse mesmo sentido, a demarcação da responsabilidade
municipal pela produção de uma gestão local que vislumbrasse o direito à cidade a
partir das determinantes da sociabilidade e de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado (plano gestor eficaz) deu vistas à implementação ordenada da
possibilidade do bem-estar e da qualidade de vida.
Entretanto, a forma com que o parcelamento e loteamento dos terrenos
urbanos é feita pela administração pública municipal deixa de lado a concepção de
que, desde a previsão constitucional, o direito à cidade deve ser encarada como
uma determinante dos direitos de igualdade e liberdade. Pela forma com que é feito,
essa divisão material em lotes, sobretudo nas áreas economicamente mais rentáveis
(rentabilidade privada), essa segregação não passa de um meio público e gratuito
de incentivo à atividade privada, objeto de especulações imobiliárias que extenuam
o sentido social e funcional que as cidades possuem. Ou seja, a conduta
institucional abre as portas para a dinâmica capitalista que tornou a especulação
imobiliária um novo nicho de acumulação e lucro.
Sob essa nova dinâmica, não é possível referir a eficácia real dos institutos
jurídicos em relação ao direito à cidade, cuja margem interpretativa restou
prolongada ao ponto de abarcar formas de atenção aos centros urbanos totalmente
dissociados da postura democrática e social que, desde a Constituição, o Estado
brasileiro assumiu. Isso representou a menção teórica do direito constitucional como
um todo e, entretanto, a adoção de uma postura civilista que se pensava ter sido
superada.132
Diante disso, o reconhecimento do direito à cidade não refere senão a
superação radical e prática dessa argumentação pragmática e cujos interesses não
operam qualquer filiação real (objetiva) aos institutos constitucionais. Nesse sentido,
é totalmente plástica a existência de princípios e normas que cogitam a
implementação de um direito à cidade pautado na sociabilidade e na justiça social.
Nessa seara, não existe senão uma conservação histórica da ideia neoliberal de
132
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 12 et. seq.
94
propriedade, sem qualquer menção aos princípios coletivos que precisam reger a
dinâmica social. Entretanto, para Fernandes,
É fundamental que nessa equação entre escala, padrões e direito haja
também uma reflexão crítica sobre os tipos de direitos a serem
reconhecidos. Problemas coletivos requerem soluções coletivas, sejam
elas soluções urbanísticas ou jurídicas. Não há como enfrentar a escala do
problema de titulação no Brasil com o tratamento individualizado que tem
133
sido dado a ele.
Nesse contexto, a matriz positivista que permeou a ideologia civilista e as
formas de se tratar a propriedade não poderá compor mais o mote teórico que
embasa a necessidade de se pensar o direito à cidade como um direito humano
fundamental, de cuja existência depende um novo fomento à atividade institucional e
social.
Grimm, quando analisa os empecilhos de ordem estrutural e institucional, que
já na formação dos direitos sociais europeus denegavam o caráter prático desses
direitos, localiza uma forma escusada de mitigar a efetividade jurídica e social de
direitos, ou seja, a existência de um poder social atuante e forte, mesmo diante da
liberdade do poder estatal.134 No Brasil, a formação de muralhas privadas em torno
da possibilidade de um ambiente social coletivo e com condições universais de
comunhão de direitos e garantias fez com que aquela efetividade dos direitos sociais
(daqueles que já fazem parte do rol constitucional) fosse suplantada pela
possibilidade individual de inserção na dinâmica capitalista da produção e consumo.
O poder privado tomou para si a tarefa de, mediante uma alta contrapartida dos
sujeitos, implementar algumas condições pela quais as atividades de lucro não
parecessem tão perversas; a partir dessa lógica é que a forma de loteamentos e
venda de terrenos urbanos, cuja existência, ao contrário do que se podia prever a
partir das menções constitucionais, acaba por reduzir a possibilidade de qualquer
forma de justiça social ser realizada por meio da efetivação do direito à cidade.
133
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 17, grifo nosso.
134
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey,
2006, p. 249 et. seq.
95
Entretanto, em relação àquela delegação ao indivíduo, o provimento das
condições de existência do próprio direito à cidade não trata somente de uma
responsabilização atomizada, que identifica nos indivíduos isolados os únicos
agentes no processo de reabilitação habitacional e ambiental. Sobretudo, é inerente
ao estágio democrático e social do Estado a responsabilidade com os institutos
jurídicos e políticos de efetivação de uma sociedade equilibrada, tanto do ponto de
vista do acesso à moradia quanto do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse sentido, ainda que não se reserve como o único responsável pelo
desenvolvimento na sociedade, o sujeito, ao se tornar coletivo tem, diante do Estado
Democrático de Direito, poder deliberativo, sobretudo para reivindicar as condições
de, por exemplo, uma cidade ecologicamente equilibrada. Não basta, assim,
somente uma justificação político-filosófica, mas é necessário o sentimento social de
que determinada norma ou comportamento institucional realmente corresponde a
uma formação na sociedade. Para Habermas,
Mesmo com toda a autoridade que as ciências possam reclamar para si nas
sociedades modernas, as normas jurídicas já não ganham legitimidade pelo
fato de os seus significados serem especificados, os seus conceitos
explicados, a sua consistência provada e os seus motivos de pensamento
uniformizados. Podemos concluir que no processo de validade póstradicional do direito, em princípio, as normas perderam no direito positivo o
processo de validade habitual. As diferentes proposições jurídicas têm, por
isso mesmo, que ser fundamentadas como parte integrante de uma ordem
135
jurídica tornada, em resumo, compreensível a partir de princípios .
A partir desse contexto, o reconhecimento do direito à cidade como direito
humano fundamental não designa apenas um alargamento formal de inclusão
quantitativa de um novo rol de direitos sociais. Quer dizer, sobretudo, um salto
qualitativo na dinâmica da exigibilidade de direitos e, por uma questão de coerência,
em uma nova formação que tem em vista princípios que são inerentes aos direitos
notadamente fundamentais, ou seja, de cuja existência real está condicionada a um
meio mais amplo de existência, em que coexiste a interdependência e a
indivisibilidade de direitos humanos fundamentais. Trata-se, assim, de um processo
que faz uma leitura social, mas que, por outro lado, não age unilateralmente sobre a
sociedade.
135
HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral. Instituto Piaget: Lisboa, 1986, p. 28-29.
96
Sob essa ótica, reconhecidos os direitos fundamentais sociais de habitação,
trabalho, lazer, e está pressupondo a existência de um ambiente capaz de atender
essas condições da cidadania. Por outro lado, não é possível operar a integralidade
de direitos entre aqueles elencados e o direito à cidade, uma vez que este último
não é tão somente a somatória dos direitos fundamentais já reconhecidos, mas uma
união dialética que, depois de ser adotada, tem sentido a partir de uma
operacionalização universal da tarefa institucional e social.
Assim sendo, a existência de um direito fundamental à cidade alude um
contingente de direitos que, espacialmente coabitam os centros urbanos, e cuja
execução depende de medidas mais amplas, com vistas não somente à realização
deste ou daquele direito, mas que relacione as múltiplias formas de direitos
existentes com o reconhecimento do caráter fundamental que a atenção à cidade
requer.
Dessa forma, essa ideia de que as condições da sociabilidade e, entre elas, o
provimento de uma cidade ecologicamente preservada e equilibrada, com vistas à
formação de um país que represente, de fato, um desenvolvimento sustentável e
aplicável, são determinantes que, no tocante à vida particular e individual, devem ser
oriundas do exclusivo trabalho do individuo, são ideologias advindas, como se viu
anteriormente, da vontade de domesticação capitalista, de uma especifica visão
liberal. Nesse mesmo sentido, é possível reforçar a ideia de que a cidade, como
formação segregada e privada ou como totalidade, representa um meio artificial de
produção da cultura humana, mas que conserva necessariamente uma função
socioambiental específica, de cuja existência depende a qualidade de vida e a
preservação de todo o planeta.
4.2 O modelo estatal de planejamento e ordenação do espaço urbano e a
função socioambiental das cidades
Pelas transformações estruturais e diante das opções implementadas no meio
urbano, foi sendo sedimentada uma filiação às instituições civilistas de cunho
97
positivista. Tal formação faz, de um lado, que a ordem desenvolvimentista interna
não se distancie da dinâmica capitalista de uso dos recursos urbanos como pontos
de partida para a produção de riquezas; por outro lado, decorre uma supressão da
ideia sustentável e, mais em específico, da função socioambiental que é inerente à
formação da consciência e da rotina daquela sustentabilidade.
Assim, diante da manutenção do esquema utilitário de exploração da mão-deobra e dos recursos naturais, assentar o direito à cidade sob a égide de uma função
transindividual se torna uma tarefa cada vez mais difícil. Os paradigmas arraigados
às instituições a ao imaginário psicossocial dos sujeitos sedimenta uma antiga
versão teleológica para a cidade, ou seja, mantém a sua tarefa de lugar- arena- do
desenvolvimento individual.
Entretanto, a cidade tem, indubitavelmente, uma tarefa para além de si, ou, o
que é o mesmo, uma função mais ampla do que a simples manutenção do
movimento
de
produção
e
consumo.
Desempenha,
assim,
uma
função
socioambiental, vez que não se pode pensar o direito à cidade sem uma menção
expressa ao direito ambiental.
Preliminarmente, essa relação entre o direito à cidade e o direito ambiental se
estriba na impossibilidade de, ausentes os meios seguros e preservados da
dinâmica urbana, se ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Num outro
sentido, a formação do desequilíbrio ecossistêmico de seu por conta das investidas
econômicas que, ao tentarem firmar a cidade como um novo e poderoso meio
produtivo, implantaram formas alheias à preservação e proteção do meio ambiente.
Entretanto, os diálogos acerca de uma aproximação entre a defesa ambiental e as
medidas econômicas resultam na produção de pouco conteúdo comum à formação
de um desenvolvimento econômico relevante e que preserve o meio ambiente.
[...] o pior é que essas duas dinâmicas também não resultam em efetiva
integração entre políticas ambientais e políticas econômicas. Uma
integração que só pode ocorrer pela incorporação das restrições e
oportunidades econômicas nas políticas ambientais e das restrições e
136
oportunidades ambientais nas políticas econômicas.
136
VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. 2.ed.
Campinas: Editora Autores Associados, 2003, p. 168.
98
Também nesse contexto, o desenvolvimento sustentável passa a representar
a conciliação que é possível estabelecer entre desenvolvimento e preservação do
meio ambiente, ao passo que muitas das condições de vida estão atreladas à
manutenção de um habitat preservado, tanto no que se refere à vida dos sujeitos
quanto ao desenvolvimento humano de toda uma nação.
Algumas capacidades, todavia, são essenciais para o desenvolvimento
humano, tais como uma vida longa e saudável, ter conhecimento e ter
acesso a recursos necessários para viver uma vida decente. No entanto, ao
lado dessas capacidades chamadas essenciais, as pessoas também
valorizam a atividade política, social, econômica e cultural, o sentido de
137
comunidade [...].
Assim, a manutenção da qualidade de vida que tem por instrumento a
preservação do meio ambiente diz respeito não somente a uma opção particular
delimitada, mas tem como horizonte a mudança estrutural na forma de vida, a partir
do
reconhecimento
da
sustentabilidade
como
forma
de
continuidade
do
desenvolvimento.
Vigente essa estrutura aparentemente sem possibilidade de síntese, a função
socioambiental é justamente a superação de um diálogo unilateral e particular, cuja
estrutura esteja radicada no interesse exclusivista e utilitário. Sob esta ótica,
considerar, como acontece, a preservação dos recursos naturais com único desejo
de reservar uma suposta matéria-prima futura não condiz com a real intenção de se
formar a qualidade de vida e bem-estar.
Essa função socioambiental está ligada à inteiração do direito à cidade numa
dinâmica mais ampla, cujo escopo é, sobretudo, a manutenção no tempo de
condições à execução de um vasto leque de direitos. Veiga, novamente na tentativa
de resguardar a possibilidade de intercomunicação entre as políticas econômicas e
as ambientais, tendo em vista, justamente, a implementação daquela função
socioambiental, depõe.
137
SILVA, Silvana dos Santos. A arbitragem como instrumento de desenvolvimento. In: BARRAL,
Welber. PIMENTEL, Luiz Octávio. (orgs.) Teoria jurídica e desenvolvimento. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2006, p. 200.
99
É curioso o contraste que domina a cena internacional sobre os rumos de
ação que poderiam tornar mais sustentável o processo de desenvolvimento.
Há amplo consenso sobre a indispensável necessidade de incorporar tanto
as restrições e oportunidades econômicas nas políticas ambientais [como
138
vice e versa].
Genericamente, o diálogo acerca das funções que a cidade exerce como
lugar comum não pode ser estabelecido sem mencionar essas duas grandes
estruturas cujo cunho político é evidente: a economia e o ambiente. Entretanto, sob
o ponto de vista específico da inserção da cidade na dinâmica ambiental, toda a
movimentação constitucional converge no sentido da aproximação teórica dos
diálogos juntamente com a mudança na praxe dos regramentos e das atividades da
sociedade civil e do Estado.
Assim, a função socioambiental registra um prisma fundamental a partir do
qual a condição de desestrutura social é contida axiológica e efetivamente. Estando
os institutos normativos de direito à cidade imersos nessa ideia, a Constituição, a Lei
n. 10.257/2001 e os Planos Diretores atuam como determinantes empíricas da
vigência dessa função socioambiental no âmbito das comunidades urbanas.
Sob a ótica da dinâmica preestabelecida desde a Constituição Federal
brasileira de 1988 (art.s 182, 183) até a regulamentação da Lei n.° 10.257/2001, a
atividade privada em relação aos recursos naturais e a estrutura espacial das
cidades jamais pareceu estar diante de um verdadeiro empecilho à consecução de
um desenvolvimento econômico forte, demonstrando, no sentido prático, sua
condição
alheia
à
função
socioambiental.
Entretanto,
como
referido,
o
reconhecimento e observação da função socioambiental da cidade, ao servir como
pano de fundo teórico, pode ser percebido a partir de dois prismas fundamentais, já
brevemente considerados: o fim utilitário (reserva de matéria prima e mão-de-obra) e
a preocupação com a perpetuação racional e segura da espécie humana.
Necessariamente, a execução das diretrizes que se filiam à segunda razão é
que fundam o real sentido da função socioambiental. Ou seja, o fim em si mesmo
138
VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. 2.ed.
Campinas: Editora Autores Associados, 2003, p. 183.
100
que a formação natural do mundo contém registra a possibilidade de conciliação
entre a existência da racionalidade e consciência no mundo e dos recursos naturais
que subsidiam aquela existência.
Diante
disso,
a
problemática
ambiental,
como
firmação
teórica
da
necessidade de preservação ambiental com qualidade de vida e bem-estar, que
serve como base da ideia de um direito fundamental à cidade, tem como objeto real
a pressuposição racional que ultrapassa o escopo meramente prático ou utilitário,
cuja matriz é a firmação de uma reserva natural de exploração. Tal empreendimento
é ratificado pela formação constitucional vigente que, mesmo teoricamente, afirma
princípios e diretrizes incompatíveis com o ideal presente naquela primeira razão da
preservação.
Diante dessa caracterização do paradoxo da função socioambiental, vale a
análise realizada por Luís Roberto Barroso139 em relação à formação histórica e
estrutural da relação dos entes públicos e privados com a lei instituída. Em relação à
observação da função socioambiental e das demais diretrizes legais no que diz
respeito ao direito à cidade e ambiental, a existência de regulamentação legal já não
é mais suficiente para agregar efetividade àquelas disposições, gerando, como
descreveu Barroso140, uma nova fase institucional em relação ao Direito que está aí.
Não é a lei, portanto, uma determinante eficaz à consideração de normas a serem
seguidas.
Dessa forma, a função socioambiental, princípio inerente tanto ao direito
ambiental quanto ao direito à cidade, é descaracterizado em meio à conduta privada
e pública, cujas escolhas de sentido político e econômico fazem com que seja
gradualmente mitigado, quando não totalmente prescindido. Sob uma ótica mais
genérica, as posturas políticas e econômicas, basicamente de ordem privada, mas
ratificadas pela intervenção simbólica do Estado, atacam diretamente normas de
139
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva,
2004, p. 303 et. seq.
140
“A própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade. Fala-se em
desconstitucionalização, desregulamentação. No direito privado, o código civil perde a sua
centralidade, superado pelos múltiplos microssistemas [...] as formas abstratas da lei e a discrição
judicial já não trazem todas as respostas.” BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da
Constituição. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 306.
101
direito constitucional, com uma explicitada descaracterização dos institutos
democráticos e das garantias de igualdade e liberdade.
Com esse cenário, providenciais são as observações de Grimm:
Constituições podem bloquear a política. [...] Contudo, esse bloqueio não
tem seu fim em si mesmo. As constituições devem bloquear aquela política
que considera uma comunidade ilegítima ou prejudicial em virtude de suas
experiências históricas e suas noções de valor reinante. Em contrapartida,
elas devem favorecer aquela política, desejada conforme o objetivo e o
141
método, por meio de diretrizes materiais e estruturas organizacionais.
Se a análise de Grimm se volta à perspectiva do direito germânico, o cenário
nacional registra materialmente uma espécie de inversão daquele bloqueio
mencionado. A desatenção à função socioambiental e dos princípios constitucionais
opera um empecilho político-econômico à Constituição, gerando, assim, um
retalhamento prático na ordem das previsões do Estado.
Dessa forma, a formação, por exemplo, de planos gestores que prescindem
do conteúdo axiológico e fundamental e resistem suas estruturas apenas sob uma
visão operacional e econômica, condição para a manutenção do poder político, faz
com que se opere um bloqueio à consecução, de um lado, da função socioambiental
real e, doutra forma, um empecilho à própria ordem constitucional. Ainda mais que,
[...] o Município, sendo integrante do Estado brasileiro, atrelado está aos
princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal [...]. Sendo
assim suas ações devem ser norteadas [e] ter por objetivos, dentro de sua
esfera de competências, a busca da construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, e a promoção do bem a todos os seus munícipes, além de
ter de possuir uma ação necessariamente conectada com os Direitos e
142
Garantias Fundamentais [...].
Diante disso, o exercício público nas esferas do poder é uma pressuposição
latente. O Estado, em sua indivisibilidade de poder, tem como tarefa exercitar a
governabilidade a partir da Constituição vigente, adequando sua prestação às
141
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey,
2006, p. 125-126.
142
RODRIGUES, Hugo Thamir. O município (ente federado) e sua função social. In: LEAL, Rogério
Gesta; REIS, Jorge Renato dos (orgs).
Direitos sociais e políticas públicas: desafios
contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 1027-1026.
102
circunstâncias sociais, aos objetivos nacionais e planetários, sob a égide dos
conceitos políticos de liberdade e igualdade. Entretanto, a atenção, por exemplo, à
função socioambiental das cidades, seja na profusão dos regramentos municipais,
seja nas demais ordens infraconstitucionais, leva em consideração um imaginário
coletivo de condições àquela atenção socioambiental.
Sob essa visão, que aos poucos vai se tornando irreversível, a pergunta pelo
direito à cidade e ao meio ambiente é secundária, sobretudo a partir da menção da
função socioambiental; a primeira grande motivação dos loteamentos, dos
mapeamentos de áreas seguras é a atenção aos interesses da economia local,
como determinantes para a manutenção de um status político específico.
Pela análise dessa formação ideológica, é perceptível a localização, na
contramão da função socioambiental, a vigência de uma espessa estrutura
impeditiva da formação real de uma cidade ambientalmente preservada, segura, que
garanta, de um lado, o bem-estar e a qualidade de vida e que, num segundo sentido,
desenvolva essa perspectiva com vistas a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Sobre essa menção da ideologia que subjaz à observação da função
socioambiental e todo o direito à cidade, Lefebvre depõe, não deixando de
mencionar uma metodologia própria para o discurso do direito à cidade.
É indispensável a crítica radical tanto das filosofias da cidade quanto do
urbanismo ideológico, e isso tanto no plano teórico quanto no plano
prático. Essa crítica pode ser tomada por uma operação de salubridade
pública. Entretanto, não pode ser realizada sem grandes pesquisas, sem
143
análises rigorosas, sem um estudo paciente dos textos e pretextos.
O que Lefebvre discute é a possibilidade de a estrutura ideológica que
fornece as bases mentais para a conduta pública ser posta em crise, mediante uma
análise mais aprofundada, com a superação do paradoxo objetivo entre a forma dos
institutos constitucionais e a sua existência material.
Nesse sentido, o artigo 170 da vigente Constituição da República Federativa
do Brasil é bastante claro.
143
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Frias. São Paulo: Centauro, 2001, p. 49,
grifo nosso.
103
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania
nacional;II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre
concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente,
inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII
- redução das desigualdades regionais e sociais;VIII - busca do pleno
emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração
no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de
qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de
144
órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
A possibilidade da propriedade privada e dos bens citadinos como um todo
estão em dependência de atenderem suas funções sociais e socioambientais. Sobre
esse pressuposto, o inciso VI, com redação dada pela Emenda Constitucional
42/2003, prevê uma atenção especial à problemática ambiental, registrando uma
coerência específica em relação ao artigo 225145 da mesma Constituição, que
estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as
presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse
direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos
ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e
ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio
genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da
Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente
protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de
lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos
que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de
obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de
técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a
qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental
em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a
preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na
forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
144
BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 14 de maio de
2011.
145
BRASIL, Assembleia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de
outubro
de
1988.
Disponível
em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 14 de maio de
2011.
104
provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. §
2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio
ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão
público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades
consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente
da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica
brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a
Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma
da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.§ 5º - São
indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações
discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização
definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
O artigo defere ao Poder Público e à coletividade como um todo a tarefa de
preservar e proteger a integridade dos contextos ambientais naturais, que existem
em sintonia com as formações urbanas e os meios de vivências mais artificiais. Essa
incumbência conjunta, sob a égide do princípio da função socioambiental da cidade,
registra justamente uma titularidade transinstitucional, cujo interesse se baseia,
então, na ideia de que a segurança ambiental das cidades é uma determinante geral
dos povos, o que acaba por extenuar a ideia de que o interesse privado (ou mesmo
o interesse institucional) possa se pautar unicamente pela ideologia de mercado.
Tamanha titularidade ratifica o perfilhamento universal do problema socioambiental
e, nesse sentido, a função socioambiental é uma determinante de toda uma
maturação sócio-jurídica do problema ambiental e citadino como um todo; cumula
para si, então, dois direitos emergenciais e correlatos, como o são o direito
à cidade e o direito ambiental.
Assim, diante da ideia de que a propriedade privada não pode mais ser vista,
sobretudo a partir do ideal que subjaz no Direito desde a Constituição Federal de
1988, como algo isolado e fora do mundo, depõe Grau:
[...] a admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade
tem como conseqüência básica fazer com que a propriedade seja
efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente
(aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo
de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras
palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao
exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por
meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer
tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente,
a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao
proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que
105
a sua propriedade concretamente se adeqúe à preservação do meio
146
ambiente.
A atenção dada pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal à ideia de
que o exercício da função socioambiental não é tão somente uma limitação ao uso e
gozo do bem se insere na dinâmica do sedimento histórico do direito à propriedade,
sobretudo acentuada nos últimos séculos. Ou seja, depois de um longo período de
aferimento de garantias e proteções à propriedade privada e, sobretudo diante dos
contextos contemporâneos, é necessária a formulação de pensamentos que lhe
transcendam o sentido, justamente porque a vida coletiva (na cidade) só é possível
pelo uso racional do bem particular.
Entretanto, o uso indiscriminado e totalitário da propriedade continua sendo
uma determinante do processo de degradação ambiental e de má formação da
ordem urbana. Apenas de estar constitucionalmente referida e, constantemente,
sendo firmada como condição da preservação da cidade e do meio ambiente, a
função socioambiental não está totalmente inserida na dinâmica do pensamento
jurídico nacional. A forte manutenção da tradição civilista ainda faz com que o Direito
lance olhar mais atentos às determinações do Código Civil do que propriamente
para as normas de direito constitucional.
Nas palavras de Vigliar,
[...] o problema reside na aparente vinculação que inconscientemente se faz
quando da consideração da expressão direito, como algo que pertence ao
plano individual. Essa visão em particular deve ser suplantada, diante da
expressiva evolução que a sociedade vem experimentando e da aparição e
das novas relações que escapam aos modelos tradicionais e que também
necessitam de tutela jurídica (a transmigração do individual para o
147
coletivo).
Assim, diante dessa vigência arraigada tanto na condição individual do
cidadão quanto na ideia que antecede a atividade do Estado, a menção à função
socioambiental se forma como uma redução da capacidade particular de existir
146
GRAU, Eros Grau. Princípios fundamentais de direito Ambiental. Revista de Direito Ambiental,
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, n. 02., 1997, p. 35, grifo nosso.
147
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.
59, grifo nosso.
106
enquanto propriedade, o que acaba por assentar aquela preocupação de Eros Grau
em relação ao por que da função existir. Num sentido mais radical, a iminência da
redução dos direitos sobre a propriedade privada acaba se tornando mais temível do
que os efeitos da degradação ambiental e da denegação do direito à cidade. Essa
percepção acaba, então, por denunciar que a superação da matriz civilista foi parcial
ou ilusória, e que a parte acaba sendo tomada como anterior à determinação da
totalidade; em termos específicos, que o direito ao meio ambiente e à cidade é
relegado a uma condição secundária em função do “impenetrável” direito à
propriedade.148
Em relação a essa versão civilista que permeia todo o ordenamento jurídico e
cujos efeitos incidem diretamente na dinâmica urbana, dificultando especificamente
a atenção à função socioambiental, Fernandes é bastante claro.
É dessa tensão entre civilismo e urbanismo tecnocrático que se alimentam a
informalidade urbana e a exclusão socioespacial- e é nesse contexto que o
direito tem sido um dos principais fatores que produzem a ilegalidade
urbana. Longe de ser inofensiva, a omissão estatal e/ou a ação estatal
tecnocrática têm servido para determinar o padrão excludente da
149
urbanização no Brasil [...].
Diante disso, a atividade institucional e social acaba por ratificar a
estratificação e injustiça social, perpetuando a ideia de que é no plano particular que
o direito à cidade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é firmado.
Contrária a isso, a função socioambiental da cidade se insere na dinâmica da
cidade como um direito coletivo. Como determinante jurídica, localiza de um lado a
incompletude
148
das
tentativas
políticas
e
sociais
de
implementação
dessa
Lênio Streck, ao considerar sobre a vigência atual de uma interpretação e atividade radicada em
antigos preceitos, depõe. “Há um certo fascínio pelo Direito infraconstitucional, a ponto de se ‘adaptar’
a Constituição às leis ordinárias...Enfim, Continuamos a olhar o novo com os olhos do velho [...]” Essa
existência que depõe contra a formação de uma aliança entre os contextos sociais e a evolução do
próprio Direito faz com que a dimensão prática das reformas e princípios jurídicos seja mitigada em
detrimento de um assento pontual às instituições positivas, sem a possibilidade de a função
socioambiental, por exemplo, que compreende uma superação do civilismo, possa ser realizada.
(STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 17).
149
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio.
ALFONSIN, Betânia. (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006. p. 9.
107
mentalidade.150Trata-se, assim, de uma investida jurídica frente ao uso da cidade
como meio irrestrito do pensamento individualista e, sobretudo, economicamente
instruído.
Segundo depõe Osório, toda a reestruturação nacional e internacional do
direito à cidade, desde a VI Conferência Brasileira de Direitos Humanos, em 2001,
até a Carta Mundial do Direito à Cidade151152, teve como escopo sedimentar uma
versão mais jurídica para a problemática do direito à cidade. Em relação à função
socioambiental, tem em vista um “meio ambiente sadio, ao desfrute e preservação
dos recursos naturais”, sob a égide do avanço dos índices no “fluxo migratório
campo-cidade”.153
Nesse sentido, ao ser firmado como direito público, o direito à cidade tem na
função socioambiental uma determinante objetiva desse caráter. Ou seja, o objeto a
que se propõe a função socioambiental é justamente a conservação dos meios
coletivos de vivência urbana, sobretudo sob a perspectiva das condições naturais e
seus recursos. Dessa forma, a ideia socioambiental demanda, por um lado, a
conduta consciente da coletividade e do Estado em relação às determinações do
direito ambiental e do direito à cidade. Significa que a perspectiva estrutural da
função socioambiental tem um caráter descritivo, que se relaciona àquele modus
operandi esperado de uma coletividade racional; por outro lado, e diante da
150
OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES,
Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 193 et. seq.
151
Disponível em: http://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.pdf.
Acesso em 21 mar. 2011.
152
O Direito à cidade sustentável é definido pela Carta Mundial do Direito à Cidade como o usufruto
equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um
direito que confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o
objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à cidade é
interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos
integralmente e inclui direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui
também o direito à liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética,
racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e
cultural. A partir da expressão constitucional acima referida é que se perfaz a concepção jurídicoconstitucional do direito à cidade. Este direito à cidade decorre da dignidade humana, contempla os
desafios apontados na Agenda Habitat e na Agenda 21, é informado por princípios próprios e
constitui-se
em
um
direito
fundamental.
Disponível
em:
http://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.pdf. Acesso em 21 março
de 2011.
153
OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES,
Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 193-195.
108
observação desse caractere anterior, a função socioambiental se torna imperativa
frente às tentativas de registrar o direito à cidade e o direito ambiental como ideias
fundamentais. Ou, e que é o mesmo, a verdadeira filiação ao direito à cidade a ao
direito ambiental como um todo requer a ratificação prática da função
socioambiental.
O mais importante desses princípios é certamente o da função
socioambiental da propriedade e da cidade, que, por usa vez, é uma
expressão do princípio de que o urbanismo é um função pública no sentido
mais amplo, isto é, a ordem urbanística não é determinada tão-somente
pela ordem dos direitos individuais, não sendo reduzível tão-somente à
154
ordem dos interesses estatais.
Essa menção à função essencialmente pública que o direito à cidade
compreende registra novamente o âmbito em que tanto esse direito quanto o direito
ambiental devem ser situados. O caráter público dá à cidade e ao meio ambiente
uma posição diferençada em relação ao Estado democrático e às investidas
aleatórias da sociedade civil. Já pela suas menções constitucionais a relevância
sócio-jurídica de ambos os direitos está sedimentada. No entanto, a perspectiva do
público dá ao Estado, enquanto sujeito principal das atividades políticas em relação
a esses contingentes, a titularidade para atuar na regulamentação das formas
objetivas de se fazer observar a função socioambiental; entretanto, esse
protagonismo institucional tem como tarefa mais difícil a implementação de suas
políticas no multifacetado terreno da sociedade civil, onde a matriz civilista e as
filiações à dinâmica econômica estão sedimentadas.
Entretanto, como segue referindo Fernandes,
Estudar o Direito Urbanístico do Brasil no século XXI implica várias ordens
de articulações básicas. A primeira é o esforço sistemático de interpretação
das leis urbanísticas à luz dos princípios próprios do Direito
Urbanístico. A segunda é caminhar para além dessa dimensão interna do
Direito no sentido da construção de uma hermenêutica para a interpretação
dos princípios legais a partir da consideração da análise critica dos
155
processos de produção de leis.
154
OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: FERNANDES,
Edésio. ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 11.
155
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio.
ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006, p. 13, grifo nosso.
109
A referência a esses dois pontos estruturantes - interpretação à luz dos
princípios e crítica do processo legislativo - diz respeito a uma formação mais
integral ou universal de inserção do direito à cidade na dinâmica dos direitos
fundamentais. Esse à luz de torna a função socioambiental, princípio magno e
específico do Direito Urbanístico, uma pedra de toque imprescindível à análise das
ocorrências particulares relativas ao direito à cidade e ao direito ambiental, bem
como, num sentido mais crítico-reflexivo, para a formação de toda a preservação e
cuidado da cidade e meio ambiente.
Se por um lado a função socioambiental será atendida, estritamente, no
pensamento e execução dos Planos Gestores, também a origem legislativa das
normas de direitos não poderá ser pensada alheia àquela função. Essas duas
perspectivas
formam,
assim,
um
caminho
que,
constitucional
e
infraconstitucionalmente, é possível permear o ordenamento jurídico com as razões
do contingente social.
Porém, muito mais do que somente uma tarefa que, na dinâmica da divisão
das funções do poder, é pensada pelo Estado, a firmação teórica e prática da função
socioambiental é um exercício da sociedade, justamente como determinante do
ativismo e da democracia. A instituição e exigência no cumprimento de
determinantes sociais e ambientais devem, sob pena de se tornar uma imposição,
ser reconhecida pela sociedade vigente.
Mais do que somente uma menção vaga à necessidade de superação do
caráter privado e individual que a cidade contém,
O que se propõe na nova ordem jurídico-urbanística no Brasil é que o direito
à propriedade não tenha um conteúdo prévio, não tenha nem mesmo uma
listagem de critérios a serem obedecidos para se poder dizer que a
propriedade cumpre ou não sua função socioambiental [...] é o processo
político de elaboração das leis urbanísticas que vai determinar o conteúdo
156
desse direito.
156
FERNANDES, Edésio. Nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio.
ALFONSIN, Betânia (orgs). Direito Urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006, p. 14.
110
De acordo com essa perspectiva, as inúmeras formações privadas que
tornam urbano determinado território não possuem, de imediato, uma caracterização
segundo a qual é possível, sem a análise concreta e a inspeção aos direitos que se
lhe relacionam, dizer que a função socioambiental está posta. Diante disso, o direito
à cidade passa a determinar, mediante a formulação urbanística específica, as
vicissitudes reais que permeiam regionalmente as características da cidade, de
acordo com os interesses coletivos e institucionais desse centro urbano.
Sob esse ponto de vista, o direito individual que a propriedade e a cidade
como um todo parece representar passa a ser figurado mediante a menção aos
pressupostos públicos, originando, dessa forma, uma filiação mais direta à previsão
constitucional. Essa migração para o direito público representa, então, não somente
a formação originária das cidades como meios coletivos, mas a incorporação
daquela pressuposição na atividade diária do Estado, enquanto executor.
Nesse diálogo, Patrícia Lemos refere o aparente embate entre o direito à
propriedade privada e o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, sob a égide da função socioambiental. Estabelece.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado direito
fundamental de terceira geração, mas nem por isso fica abaixo do direito de
propriedade, que é de primeira geração [assim] ‘se a vida é um direito
fundamental de todos, e se o meio ambiente ecologicamente equilibrado é
essencial à sadia qualidade de vida, conclui-se que a sua preservação e
defesa é são imprescindíveis para assegurar a saúde, o bem-estar do
157
homem e as condições de seu desenvolvimento [...].
Entretanto, a discussão acerca das dimensões de direitos não representa,
conceitual ou materialmente, uma limitação ao cumprimento deste ou daquele
direito. Contrariamente, a formação de um complexo de normas e atitudes
institucionais e sociais depende do atendimento conjunto às demandas de trabalho,
habitação, lazer e, sobretudo a partir do reconhecimento do direito à cidade, e da
função socioambiental que desempenha.
157
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio
ambiente. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 171-172.
111
O jogo metodológico acerca das gerações, ou dimensões de direitos, não é o
bastante efetivo ao ponto de gerar hierarquia material quanto ao processo de
efetivação das garantias individuais e sociais. Serve, do ponto de vista da teoria
jurídica, como uma determinante formal do processo epistemológico e, diante disso,
é incapaz de reordenar a ideologia institucional- formal- quando à escolha das
medidas a serem atendidas, justamente por conta de a função socioambiental estar
intimamente ligada a cada estágio jurídico dos direitos.
No que se refere à inserção da função socioambiental da cidade nas
discussões jurídicas, Leal Dias depõe.
[...] o Princípio da Função Social ambiental da cidade é resultado da
competência constitucional da União para instituir diretrizes gerais para o
desenvolvimento urbano, sendo que essa política é executada pelos
Municípios nos termos das diretrizes traçadas em Lei, hoje positivadas no
Estatuto da Cidade, tal política de desenvolvimento urbano possui um viés
nitidamente ambiental, pois deve garantir o bem-estar habitantes das
cidades o que está em plena consonância com o direito fundamental das
presentes e futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
destarte, podemos afirmar que o Estatuto da Cidade está nos limites
daquela perspectiva teórica acima enunciada de princípios e regras,
figurando como a regra que irá operar a concreção do princípio da função
social ambiental da cidade que na relação com o princípio da função social
ambiental da propriedade irá assumir uma proeminência hierárquica, uma
vez que a propriedade urbana tem os seus contornos traçados nos planos
diretores que por sua posição normativa irá extrair o seus fundamentos de
validade na diretriz geral do desenvolvimento urbano (Estatuto da
158
Cidade).
Sob esta ótica, essa “proeminência hierárquica” não estabelece, como
poderia parecer, um tipificação preordenada que relativiza ou mesmo secundaria
direitos não diretamente ligados ao direito à cidade e ao planejamento estratégicodeterminações do plano gestor, por exemplo. Diz respeito, assim, à formação de um
conteúdo universal e latente à atividade privada e institucional no que diz respeito à
vida urbana, mesmo nos objetivos para além da propriedade urbana. Diante disso, a
atuação das instituições da sociedade civil e do Estado parte de um pressuposto
socioambiental de observância ao seu conteúdo imperativo, e que forma a ideia de
que qualquer formação pública ou privada deverá atender a essa determinação
principiológica e subjacente.
158
DIAS, Maurício Leal. A função social ambiental da cidade como princípio constitucional. Jus
Navigandi,
Teresina,
ano
10,
n.
565,
23
jan.
2005.
Disponível
em:
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/6210>. Acesso em: 2 maio 2011, grifo do autor.
112
Nesse sentido, desde a menção constitucional de 1988 acerca dos direitos e
garantias individuais e coletivas, até a firmação da Lei n. 10.257/2001 - Estatuto da
Cidade - representou a tentativa provisional de ratificar a necessidade de
reestruturação dos ordenamentos urbanos a partir da ideia de conservação
ambiental. Indiretamente, esse escopo contém a menção a um vasto grupo de
direitos que se relacionam com o direito à cidade em sentido restrito, indicando que
o desenvolvimento urbano parte da integração entre as formas de vida individual e
coletiva da cidade.
Enquanto fundamentais, os direitos contêm uma legitimidade constitucional
posta, oriunda da integralização normativa da dignidade humana e, com isso,
carecem jurídica e socialmente de reconhecimento material e realização. Em face
disso, o desafio e a própria atividade da e na cidade dependem da ratificação
daquele reconhecimento, gerando, assim, um dos desafios mais iminentes no
mundo jurídico e social, qual seja, a conciliação entre o desenvolvimento urbano
(também o desenvolvimento nacional como um todo), com a preservação do meio
ambiente e a qualidade de vida.
4.3 Os desafios para a nova gestão democrática de acesso à moradia digna
com vista às cidades sustentáveis
A partir desse aparente embate entre Estado e sociedade, teoricamente
superado pela filosofia política e o direito constitucional, nasce a ideia de que, no
contexto teórico e prático do direito à moradia, a radical superação dessa dicotomia
é a condição de efetividade. Do ponto de vista filosófico, trata-se de uma
reinterpretação da dialética do Estado formulada por Hegel, justamente pela
pressuposição de uma suprassunção (superação dupla) em que a sociedade civil
integra o Estado.159
159
Wolkmer leva em consideração, na análise do coletivismo, a ideia de que o Estado hegeliano
prevalece em relação à sociedade civil e ao indivíduo. Entendendo-o como “razão absoluta”, percebe
uma conexão entre a entidade suprema e a universalização do sentido particular e singular, o que
113
Entretanto, no Estado Democrático de Direito, de caráter social, essa
conciliação diz respeito à afinidade entre previsão constitucional, que além de
garantias aos cidadãos dispõe sobre a organização do Estado, e condições de
dignidade e sociabilidade permeada pela ideia de gestão democrática. Essas três
estruturas, Estado, sociedade e democracia finalizam, então, um ideal intrínseco à
realização compartilhada do direito à moradia.
Se esta tarefa deve ser, fundamentalmente, do Estado [efetivação da
igualdade material], eis que ele é detentor do mandato popular originário
para tanto e, sob a perspectiva do contratualismo rosseuaniano, só existe
em razão daquelas demandas, portanto, permanentemente vinculados a
elas, cumpre perquirir sobre como poderíamos esboçar uma alternativa
jurídico-política para efetivamente cobrar e viabilizar o cumprimento destas
160
obrigações do Estado.
Essa filiação teórica do Estado às disposições constitucionais, enquanto
detentor do “mandato popular”, resultaria, na prática, na formação de um complexo
emaranhando de ações conjuntas. Esse compartilhamento, já do ponto de vista
interno (ações institucionais entre si) daria conta de projetar a efetivação de direitos
sob a perspectiva integradora, e, sobre essa ótica, a partir de algo estruturalmente
bem definido. Demandaria, entretanto, como condição da ação, que esse
compartilhamento figurasse enquanto prioridade no ato de governar, desde o qual
seria possível integrar a comunidade.
Porém, no que concerne à crise do Estado-Nação, da ideia de autonomia que
se vincula com as demais formações institucionais e não nacionais, e que
internamente representa a incompletude na efetivação dos direitos fundamentais, a
manifestação mais usual e problemática é a incompletude do discurso acerca da
realização dos direitos, redutora cotidiana da possibilidade de atendimento das
funções básicas de direito à moradia.
acaba por tornar o Estado um centro. Sobre esta perspectiva, não haveria espaço para um
compartilhamento direito entre sociedade e Estado, e sim, grosso modo, uma superação daquela
neste. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000.
160
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 88.
114
A população tem a maior parte de suas expectativas frustradas pela
inoperância dos órgãos públicos, que não conseguem realizar suas funções
e pelo agravamento das condições econômicas, criando juntos um clima de
161
insegurança que impede a antevisão de um futuro promissor.
Nesse sentido, também as medidas institucionais de provimento do direito à
moradia tem o seu contexto prático permeado por esta crise global na dinâmica dos
Estados. Sobretudo por ser um país com desenvolvimento emergente, o Brasil,
como condição de estar inserido na dinâmica mundial de crescimento, adota
medidas que lhe aproximam da perspectiva de enfraquecimento de sua forma ativa
e, consequentemente, sua inoperância no que tange ao provimento das condições
de vida dos cidadãos, identificando um paradoxo estrutural na sociedade mundial.
O século XX estabeleceu o regime democrático e participativo como o
modelo preeminente de organização política. Os conceitos de direitos
humanos e liberdade política hoje são parte retórica prevalecente [...]
entretanto, vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e
opressão extraordinárias. Existem problemas antigos convivendo com os
novos- a persistência da pobreza e necessidades essenciais não satisfeitas,
fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas [e] muitas dessas
privações podem ser encontradas, sob uma ou outra forma, tanto em países
162
ricos como em países pobres.
Notadamente, essa realidade que, do ponto de vista da estruturação do
Estado e da sociedade, denuncia um erro procedimental na forma de governar
coloca o Estado no centro da discussão acerca do ativismo institucional e das
escolhas internas para a superação desse modelo de exclusão. Diante desse
cenário, o que existe é a presença mitigada do Estado no contexto econômico e, do
ponto de vista mais extremado, a ratificação institucional da dinâmica econômica.
Diante disso, a premissa de que o mundo é um todo globalizado começa a ser
desestruturada, sobretudo diante das chamadas reais de desigualdade e miséria
generalizada. Nesse sentido,
A globalização é um facto demasiadamente aceite e enraizado para ser
reversível em termos do seu impacto unificador ou integrador. As
tendências globais recentes estabelecem o domínio inquestionável dos
mercados e de sua integração. Segundo Jeffrey Sachs, ‘o capitalismo
abrange actualmente cerca de noventa por cento da população mundial,
161
162
AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 11.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9.
115
uma vez que quase todas as regiões do mundo se encontram agora
interligados através do comércio livre, de unidades monetárias
cambialmente convertíveis, de fluxos de investimento estrangeiro e da
consagração política da propriedade privada como motor do crescimento
163
econômico.
Sobre esse contexto, a ideia mais iminente é a de um Estado passivo, inativo
quanto à realização dos direitos de seus cidadãos. Santos, entretanto, ao versar
sobre a crise de atitude do Estado frente à dinâmica global da economia, não deixa
de denunciar uma nova forma de interação e conduta institucional, que, aquém de
ser deficiente, está amparada na ideologia que há muito permeia dos contextos
jurídicos e políticos do país. Sob este aspecto, não há uma falta de atitude do
Estado frente ao mundo de economia globalizada, mas uma postura institucional que
a ratifica.
A desordem automática dos mercados financeiros é a metáfora de uma
forma de regulação social que não precisa da ideia de emancipação social
para se sustentar e legitimar. Mas, paradoxalmente, é dentro desse vazio de
regulação e de emancipação que estão surgindo em todo o mundo
iniciativas, movimentos, organizações que lutam simultaneamente contra as
formas de regulação que não regulam e contra as formas de emancipação
164
que não emancipam.
Essa nova ordem do agir do Estado tende, então, a “atender aos reclamos da
finança e de outros grandes interesses internacionais, em detrimento do cuidado das
populações cujas vidas se tornam mais difíceis.”165
Assim, o Estado não é uma vítima frente à globalização dos mercados.
Contrariamente, como na acepção de Milton Santos, o Estado está imerso nessa
globalização excludente e parcial das formas econômicas e políticas, ratificando
cotidianamente seus institutos. Em relação ao Estado-Nação, a não existência de
limites reais na atuação dos países faz com que se projetem no mundo como
potências econômicas ou nações em desenvolvimento emergente, tantas vezes em
detrimento dos contextos nacionais de carência na efetivação de direitos.
163
FALK, Richard. Globalização predatória: uma crítica. Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto
Piaget, 1999, p. 237.
164
SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. 3.ed. Rio de Janeiro: 2005, p. 17.
165
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2006, p. 19.
116
Já nesse primeiro panorama, é difícil conciliar as estruturas necessárias à
efetivação de direitos como o direito à moradia, justamente porque a determinante
institucional-pública resta reduzida, a sociedade mantém-se no descrédito político e,
além disso, assimila a ideia de uma realização unicamente privada dos direitos e,
por fim, os institutos democráticos estarem reduzidos à representatividade. 166
Mesmo internamente, quando existente, medidas direcionadas ao direito à
moradia, como é o Programa Minha Casa Minha Vida, a influência externa e
mercadológica afeta diretamente o processo de inclusão social por meio da
formação de habitações e habitat digno. Sobre este aspecto, a exigência parece se
elevar a um nível mais universal, de reestruturação das formas de mensuração e
limites ao mercado. Além disso, não existe previsão de incentivos tributários para o
programa, como acontece, por exemplo, em relação às microempresas e empresas
de pequeno porte, justamente por conta de sua capacidade financeira. O que ocorre
no programa são financiamentos subsidiados, com uma contrapartida institucional,
mas sem atenção especial à formação de entidades familiares jovens ou outra
formação específica.167 Sobre esse aspecto, pelo Programa o direito à moradia se
dá tão somente pela concessão de subsídios, não exigindo, assim, uma forma de
participação mais ativa do sujeito na realização do direito.
Nesse cenário, sobretudo a partir da vinculação política que contém uma
Constituição Grimm apresenta essa vinculação pelo viés do conteúdo dirigente
presente na Constituição, e a sua representatividade no âmbito do Estado de Direito.
No Brasil, a Constituição da República Federativa de 1988 contém um contexto
altamente vinculado com as políticas institucionais de organização e provimentos
dos direitos fundamentais. Diante disso,
Constituições podem bloquear a política. Isto está fora de dúvidas. Elas até
mesmo falhariam em seu objetivo, caso não o fizessem. E, para os direitos
fundamentais, isso é evidente. Após sofridas experiências com poder
ilimitado, eles foram encarregados de impedir que a política prescrevesse
166
SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone
democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da
democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 48s.
167
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 37.
117
aos indivíduos sua crença ou sua opinião, tomasse seus bens, proibisse os
168
deslocamentos ou impingisse uma determinada profissão.
A política, enquanto adoção estratégica e meio de governar, sofre no Brasil,
constitucionalmente, as limitações inerentes a um Estado Democrático de Direito.
Dessa forma, está vinculada em sua dinâmica às prescrições de ordem superior e
que condensam, de um lado, a realidade histórica do país e, de outro, formam os
objetivos de desenvolvimento e redução das desigualdades- artigo 3° da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Do ponto de vista da
representatividade, não há incoerências entre o poder político legitimo e a ordem
constitucional, porque ambas se situam sobre a ideia do poder do povo, e toda
vinculação emana da efetivação dessa vontade.
É justamente essa perspectiva democrática que habilita a sociedade, como
detentora do poder, a exigir, senão a atuação direta nas políticas de
desenvolvimento do Estado, a participação em seu desenvolvimento. Grosso modo,
a ideia de gestão democrática significa, então, essa possibilidade de inserção na
dinâmica das ações institucionais, uma vez que a verticalidade nas políticas públicas
afasta a ideia de democracia e emancipação. Enquanto direito social, o direito à
moradia está inserido na perspectiva das políticas públicas, que não são senão
registros práticos das exigências da sociedade.
Não obstante, o âmbito do direito ambiental, do direito à cidade e moradia
contém, em grande medida, possibilidades práticas de inserção da sociedade nas
dinâmicas de conservação ambiental, organização urbana e habitação de qualidade.
No que se refere à temática da sustentabilidade urbana,
[...] é entendida como a capacidade de o poder público e o sistema de
gestão e representação política criarem mecanismos de participação nos
processos decisórios relativos à transformação e manutenção da cidade e
169
para a solução de conflitos entre grupos sociais.
168
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey,
2006. p. 125.
169
DOURADO, Sheilla Borges. Unidades de conservação no meio urbano. In: BRAVO, Alvaro
Sánchez (Editor). Ciudades, medioambiente e sostenibilidad. Sevilla: Arcibel, 2007, p. 140.
118
Não significa, assim, que a sustentabilidade esteja reduzida às condições
ambientais de desenvolvimento econômico e social. Além disso, pressupõe uma
gestão democrática e o uso do trabalho como meio digno de produção também de
riquezas comuns. Dessa forma, o que está em jogo são todas as determinantes do
desenvolvimento, tanto em relação à matéria-prima natural quanto ao trabalho
humano.
Na efetivação do direito à moradia está presente, assim, ao invés de políticas
verticais, uma rede de conexão direta entre sociedade e Estado, superando no plano
prático o histórico binômio público/privado. Sobre este aspecto, devem corresponder
a mudanças estruturais, e jamais partirem da ideia de que o cidadão é um objeto em
seu processo de implementação. Esse é o contexto, por exemplo, das audiências
públicas, como voz participativa e democrática nos processos que demandam do
Estado uma política específica, que poderá conter esse compartilhamento entre
grupos sociais e Estados.
O objetivo principal da audiência pública é dar voz aos grupos sociais que
estão sofrendo obstáculos ou ameaças ou sejam vítimas de violação dos
DHESC [Direitos humanos econômicos, sociais e culturais]. Na audiência
pública são colhidos depoimento de vítimas, representantes dos grupos
sociais e organizações de apoio, de entidades com reconhecimento técnico
e profissional da área temática, de profissionais e acadêmicos. São
convidados para participar da audiência pública as autoridades competentes
do governo local e do Parlamento local, estadual e nacional, o Ministério
170
Público, Defensoria pública [...].
É a partir desses instrumentos que se pode conciliar os reais objetivos do
Estado às demandas sociais, com vistas à gestão democrática. Essa estruturação
tripartite (Estado, sociedade e gestão democrática) parece condensar os elementos
indispensáveis à consecução de direitos, sobretudo aqueles voltados às condições
de exercício da cidadania. Nesse sentido, é que passa a fazer sentido o discurso
acerca da superação do modelo unilateral de provimento do direito à cidade.
Essas liberdades reais e democráticas traduzem-se como direitos
considerados necessários para a emancipação dos economicamente fracos,
dos que dependem apenas dos rendimentos de seu trabalho, que muitas
170
SAULE JUNIOR, Nelson. Instrumentos de monitoramento do direito humano à moradia adequada.
In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e
internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 235-236.
119
vezes são insuficientes para lhes propiciar as condições básicas de uma
171
vida digna.
Corrêa acaba por situar, novamente, a ideia, então presente no contexto
social brasileiro, de que o provimento do direito à cidade é uma função
exclusivamente privada; porém, se já o problema da constituição de renda é
suficiente para explicitar a contradição dessa premissa neoliberal, arraigada no
modelo econômico vigente, a instituição de um Estado Democrático de Direito, de
conteúdo social, ratifica essa incongruência no plano político. Além disso, a própria
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é clara ao estabelecer, em
alguns de seus dispositivos, o dever do Estado em relação aos direitos sociais,
sobretudo.
A essa premissa se soma a ideia de uma gestão que, com base na ideia
política do Estado Democrático de Direito e da Constituição, eleve as políticas de
direito à moradia ao nível da emancipação do indivíduo e da sociedade, como
condição da representação prática da carta de direitos presentes no Constituição de
1988 e, do ponto de vista da mudança social, a transformação na qualidade de vida
das pessoas.
É, então, diante dessa dinâmica de promoção dos direitos que o discurso
acerca do aparente prevalência do Estado sobre a sociedade perde sentido. Da
mesma forma, a cisão prática entre essas duas estruturas não faz senão mitigar a
força normativa daquele e a dinamicidade e liberdade da sociedade, extenuando a
possibilidade de um desenvolvimento compartido.
[...] o poder não é somente fenômeno político em sentido estrito, cuja
manifestação se dá nas relações intra-estatais e entre Estados e
particulares. O poder é fenômeno social em sentido amplo, porque se
manifesta nas múltiplas relações sociais, sejam elas verticais, sejam
172
horizontais.
171
CORRÊA, Darcísio. Estado, cidadania e espaço público: as contradições da trajetória humana.
Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 432.
172
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:
Malheiros Editores, 2004. p. 89.
120
Essa descentralização do poder descrita por Steinmetz corresponde, de um
lado, à ideia de uma desvinculação institucional do poder (o Estado como poder que
prevalecia), tornando o mesmo radicado na multiplicidade do “fenômeno social”; por
outro lado, parece dizer respeito ao processo de compartilhamento entre os atores
sociais.
Entretanto, já pela análise de Santos173, essa rarefação do poder,
descentralizado e espalhado mais amplamente, pode ser entendida como um
câmbio entre o poder antes centralizado no Estado e, agora, centralizado no modelo
econômico capitalista e suas formas. Nesse sentido, haveria um duplo processo de
vinculação dos particulares à dinâmica dos direitos fundamentais. Primeiro porque o
Estado deixa o campo do ativismo governamental, e segundo, diretamente como na
ideia de Santos, ocorre uma ratificação institucional desse intercâmbio- o Estado
passa a atuar (não atuar) a partir dessa dinâmica.
A verdade é que vivemos sob o impulso das idéias do neoliberalismo, cuja
característica principal é ser anti-social. A recepção desse modelo no plano
fático representou o fim do Estado Social, conquista importante do período
pós-guerra, significando o fim do estágio providencial que estabelecia uma
política protetiva dos indivíduos excluídos do mercado de trabalho, numa
174
demonstração de solidariedade nacional.
Em relação ao direito à moradia, essa vinculação dos particulares
corresponde à parcela individual de cada um no provimento de seu habitat (trabalho
individual) e, num sentido mais abrangente, da prestação da iniciativa privada na
formação do ambiente urbano. Sobretudo por conta da ideia de compartilhamento,
as diretrizes de realização do direito à moradia devem ser vistas, então, como
intercruzamento de perspectivas e ações, ainda que o Estado, como executor
precípuo, tem responsabilidade direta, ainda mais porque o contexto habitacional e
urbano brasileiro exige, como condição de melhoria e desenvolvimento, uma
atividade abrangente, o que acaba por tornar a ação institucional a principal forma
dessa transformação.
173
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2006. p. 19.
174
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal. Curitiba: Juruá,
2002, p. 37.
121
Internamente, a atividade do Estado contém, como instrumento de controle e
racionalidade, a burocracia como forma de impedir, no seio da formação das ações
institucionais, usos distintos e privilegiados de localização, premeditação e execução
das políticas públicas de direito à moradia- das políticas públicas em geral e de toda
administração.
No que diz respeito aos instrumentos da sociedade no controle das ações
institucionais, além da Ação Popular e Ação Civil Pública, a experiência de uma
democracia participativa faz com que se ative as formas de questionamentos da
ideologia que subjaz às vontades dos Estados.
[...] é possível mostrar que, apesar das muitas diferenças entre os vários
processos políticos analisados, há algo que os une, um traço comum que
remete à teoria contra-hegemônica da democracia [a representatividade é a
teoria hegemônica da democracia na análise de Boaventura de Sousa
Santos]: os atores que implantaram as experiências de democracia
participativa colocam em questão uma identidade que lhes fora atribuída
externamente por um Estado colonial ou por um Estado autoritário e
discriminador. Reivindicar direitos de moradia [...], direito a bens públicos
distribuídos localmente [...] direitos de participação e reivindicação do
reconhecimento da diferença [...] implica questionar uma gramática social e
175
estatal de exclusão e propor, como alternativa, uma outra mais inclusiva.
A participação no processo de inclusão social, em que está presente uma
gama de direitos correlatos, diz respeito, então, a uma reordenação na forma em
que são pensadas e executadas as ações institucionais de direito à moradia, com
atuante participação da comunidade, sobretudo local. Grosso modo, isso significa a
superação dos limites legais e práticos que, a partir da atuação do Estado, da
sociedade e de um envolvimento de seus agentes, conclua um núcleo estrutural não
somente de reordenação da cidade e do sistema habitacional vigente, mas que
suscite a discussão acerca da redução da influência mercadológica na vida das
pessoas, sobretudo como condição de emancipação e gestão democrática dos
recursos.
[...] o que entendemos por modelo de desenvolvimento é o conjunto de
percepções e práticas que permeiam o processo de crescimento econômico
175
SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone
democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da
democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 57.
122
e mudança social, responsável pela atribuição de funções ao Estado e aos
agentes econômicos nacionais, e guiado por determinados padrões de
comportamento em relação ao contexto internacional. Ao mesmo tempo,
esse processo encontrará ferramentas necessárias a sua evolução
mediante o apoio popular, alcançado graças a sua capacidade normativa,
176
efetiva ou ideológica de persuasão.
É diante desse cenário político, jurídico e social, com vistas à transformação
das formas atuais de se adimplir as condições de moradia digna, que é possível
associar a ideia de ambientes domésticos ao conceito mais amplo de função
socioambiental das cidades. A interdependência entre o direito ambiental, direito à
cidade e à moradia ratifica, assim, a ideia de que a conciliação entre essas
estruturas pode ser representada na existência prática da função socioambiental da
cidade.
O respeito a essa determinante, e a percepção sensorial da transformação
nas comunidades, identifica, pois, a possibilidade de uma cidade que preserva o
meio ambiente e, sem prejuízo à qualidade de vida dos cidadãos, explicita a
dimensão material da Lei n. 10.257/2001 e da própria Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Diante disso, é possível retomar as premissas que se colocam, mesmo
paradoxalmente, em direção à efetivação do direito à moradia. Do ponto de vista
positivo, a premissa de maior sentido é a existência de um catálogo constitucional de
direitos, e, especificamente, que, ao compor o rol de direitos sociais, a moradia é um
direito fundamental carente de efetivação. A sua negação mais simples reduz o seu
sentido prático ao apresentar a desestrutura das cidades, manifestando a abstração
daquele conteúdo normativo. Nesse contexto, apresenta-se a antítese prática da
afirmação universal de direitos, como contraponto.
Por seu turno, qualquer conclusão com vistas à efetivação do direito à
moradia deve ter como pontos de partida a) a atuação do Estado, b) a interferência
privada e c) a gestão democrática e participativa. É de notar que, empiricamente,
176
GARRETÓN, Manuel Antonio et. al. América Latina no século XXI. Trad. Ximena Simpson. Rio
de Janeiro: FGV, 2007, p. 17.
123
existem limitações e ambivalência no conteúdo desses pontos de partida, postos
como intermédio no discurso acerca dos direitos sociais.
A atuação do Estado tem como base a tarefa constitucional de providência.
Ou seja, ela parte do rol de direitos constituídos em favor do indivíduo, mas que não
lhe são diretamente contra. Quando se fala, então, de ações institucionais de direito
à moradia, aí se situa a premissa originária, pressuposto e condição do movimento
de efetivação. Nesse contexto, as ações têm em mente uma visão especifica de
dada realidade, e a elas se destinam a suprir-lhes as necessidades.
Do ponto de vista da atividade (interferência) privada, para além da ideia de
eficácia horizontal, que remonta termos específicos dos direitos fundamentais em
relação aos particulares177, a conduta mais incisiva, que afeta diretamente as ações
institucionais de direito à moradia, diz respeito à redução econômica das políticas do
Estado, justamente por conta da inserção das mesmas no universo do lucro e da
especulação, sobretudo imobiliária (direito à moradia). No contexto dessa negação
imediata da atuação do Estado, estão dispostos os interesses de ordem privada,
cuja representação de uma ordem urbana se resume à propriedade de uso que ela
finaliza.
Nesse imaginário, que depõe diretamente contra o conteúdo constitucional
das funções da cidade e do direito equitativo à moradia, de um lado há uma atuação
praticamente irrestrita e, de outro, a recepção no Estado desse modelo de estruturar
e pensar as diretrizes institucionais. Mais diretamente, essa denegação vai de
encontro à própria ideia de humanidade e dos elementos que esse conceito
pressupõe.
[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e
distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como lhe venham a garantir as condições existenciais mínimas
para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
177
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:
Malheiros Editores, 2004. p. 220 et seq.
124
ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
178
comunhão com os demais seres humanos.
Pela gestão democrática e a participação popular, há uma retomada da ideia
de coletividade e emancipação do cidadão, enquanto negação de terceira ordem à
ideia de a) mitigação da postura do Estado e b) uso unilateral da cidade. Diante
dessa nova perspectiva, o agir institucional é transpassado pela ideia de superação
da representatividade como forma absoluta e única de democracia.179 Sob essa
nova ótica, há a pressuposição de uma robustez na atuação do Estado (sobretudo
no que se refere aos limites da propriedade e uso da cidade) e, por seu turno, uma
instigação popular nos processos participativos, a partir dos quais se possa pensar o
direito à moradia.
Nesse contexto, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a
legislação específica servem como núcleos normativos que ratificam essa
necessidade de transformação moral (o agir do Estado e da sociedade). Sobre essa
perspectiva, a ratificação formal, cuja ausência impossibilita a atuação da
Administração Pública (legalidade), existe objetivamente, não somente como pano
de fundo axiológico, mas como normatividade eficaz. Não se pode dizer, então, que
existam empecilhos legais ao agir institucional e social, porque, contrariamente, o
que existem são estruturas ratificadoras e mandamentais dessa ação.
Panoramicamente, a resolução dos problemas imediatamente postos no
contexto do direito à moradia (nos direitos sociais como um todo) contém
determinantes empiricamente explícitas. Ou seja, a análise dá conta de localizar
óbices e instrumentos de efetividade; a reflexividade crítica, de apontar mais
diretamente as razões elementares da inoperância. Por seu turno, o horizonte
normativo e democrático orienta para a superação dos modelos vigentes, justamente
porque, mesmo as normas constitucionais (o conteúdo normativo, portanto) apontam
para a participação e emancipação da sociedade.
178
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 63, grifo nosso.
179
SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone
democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da
democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 57.
125
[...] a efetivação das possibilidades da nova ordem jurídico-urbanísitca,
condição para a promoção de reforma urbana no Brasil e na América latina,
depende de diversos fatores, mas sobretudo da renovação da mobilização
social e política em torno da questão urbana. Nesse processo, é crucial a
disseminação de informações sobre as novas leis; incentivo à pesquisa e a
análise interdisciplinar, na qual a dimensão jurídica seja incorporada;
avaliação sistemática de políticas e projetos baseados nas novas leis;
discussão acadêmica acerca dos conteúdos curriculares; conscientização
dos ‘operadores do direito’ como juízes, defensores públicos, promotores e
juristas em geral; treinamento e capacitação de profissionais que lidam com
as questões urbanas; e apoio a órgãos governamentais e não180
governamentais.
Entretanto, a carência de efetivação do direito à moradia torna esse processo
(análise) mais agudo, justamente por demonstrar que os empecilhos, basicamente a
atuação econômica nos moldes do paradigma atual, possuem uma força arraigada
forte, de atuação e vigência constante, inconciliável com as perspectivas reformistas
ou transformadoras. Tamanho poder é perceptível justamente a partir do contexto de
exclusão social, que no direito à moradia é representado pela formação de
habitações desconectadas das condições mínimas de vida digna.
Mesmo assim,
A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do
capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance
mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e
nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes
sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a
emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente,
complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando
práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas,
181
formas de pensamento e vôos da imaginação.
Com isso, a premissa segundo a qual uma das condições de um efetivo
direito à moradia passa pela participação e gestão democrática, que, ao emancipar o
sujeito, vincula-o ao organismo social (emancipação social) sofre uma limitação em
seu conteúdo prático, justamente por conta da incorporação do sentimento plástico
acerca da democracia e das decisões no âmbito da sociedade. Não é, então, uma
condicionante de ordem estritamente jurídica, razão pela qual a implementação do
180
FERNADES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio;
ALFONSIN, Betânia. (orgs.) Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006, p. 21.
181
IANNI, Octávio. A era do globalismo. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 11.
126
direito à moradia extrapola os limites normativos e juridicamente estritos para se
lançar num contexto político-social.
O que ocorre é a interpenetração sistemática entre os pressupostos jurídicos
e políticos, como condição de um direito à moradia eficaz e democrático. Nessa
ótica, mesmo o modelo estatal, juridicamente constituído, não é capaz, por si só, de
oferecer uma resposta satisfatória em relação à má formação dos contextos
urbanos, vez que se trata de um problema de ordem política e social, maturada pela
elevação conceitual e prática do crescimento econômico como matriz suficiente,
quando é, na verdade, uma de suas determinantes.
Entretanto, a indagação nevrálgica diz respeito não a aspectos unicamente
abstratos, mas a condições de vivência no contexto das cidades.
[...] o que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse
planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do
considerável crescimento demográfico. Em função do contínuo
desenvolvimento do trabalho maquínico redobrado pela revolução da
informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada
vez maior do tempo de atividade humana potencial [produtividade maior,
empregabilidade menor]. Mas com que finalidade? A do desemprego, da
marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da
neurose, ou da cultura, da criação, da pesquisa, da re-invenção do meio
182
ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade?
Estruturalmente, a realização do direito à cidade depende da inversão das
iniciativas e das escolhas institucionais e sociais. Trata-se, grosso modo, da
identificação
do
crescimento
econômico
como
demonstrativo
paralelo
ao
desenvolvimento da cultura, da educação, da maturidade política e da emancipação
social. O reconhecimento do direito à cidade, do direito à moradia e, de forma mais
abrangente, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado depende da
superação, no Estado e na sociedade, da ideia de uma mensurabilidade monetária
do desenvolvimento individual e nacional.183
182
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2001, p. 9.
HABERMAS, Jürgen. Modernidad: um proyecto incompleto. In: CASULLO, Nicolás. El debate
modernidad/posmodernidad. Madrid: El cielo por asalto, 1990, p. 134.
183
127
Pode-se confrontar, assim, as estruturas que vigem na sociedade e no Estado
com as necessidades e possibilidades racionalmente dispostas no âmbito do direito
à moradia. Sobretudo diante das emergências que cercam o direito à moradia, o
plano estrutural serve como pedra de toque à realização desse direito, mas cuja
implementação requer, desde já, a ratificação prática tanto da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, enquanto sistematização entre norma e
poder (Direito e Política) quanto em relação à Lei n. 10.457 de 2001.
[...] devemos afirmar enfaticamente, não podemos esquecer que nenhum
progresso, até a erradicação da pobreza e da fome, a melhoria da saúde e
a proteção ambiental, será sustentável se a maioria dos recursos e serviços
184
dos ecossistemas seguirem degradando-se.
Como pano de fundo, o Princípio da Cooperação serve como conteúdo
axiológico da ideia de compartilhamento, justamente por pressupor, diante da
relação entre sociedade e Estado, a responsabilidade e a comunhão de deveres
entre os mesmos, sobretudo por conta da necessidade de medidas conjuntas de
formação e conservação do direito à moradia e do direito à cidade.185
Genericamente, no contexto das cidades, sob o olhar aproximado dos
municípios, há o fortalecimento da perspectiva integradora, justamente por conta da
visibilidade real dos institutos de direito à moradia e direito à cidade. É nas cidades
que o cidadão participa ativamente e, como manutenção de um sistema de
equilíbrio, atua em relação à municipalidade a ao seu direito à moradia.
Ocorre o reconhecimento dos ambientes urbanos como centros comuns,
como contextos, desde a origem, de atividades coletivas e partilhadas. Sobre esse
aspecto, também a formação e organização desses ambientes contém a
característica elementar da democracia, que é a inserção nas ações que visam o
bem coletivo.
184
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados, 2007, p. 131.
185
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados, 2007, p. 109.
128
Trata-se,
essa
formação
compartilhada
com
vistas
aos
objetivos
constitucionais do artigo 3°, de um processo complexo e integrado, como é, via de
regra, toda a ideia de transformação de uma realidade, cujos limites práticos não
servem apenas como óbices prescindíveis, mas como pressupostos solidificados e
que integram a discussão acerca da realização do direito à moradia. Ou seja, não se
tratam de estruturas suprimíveis, mas de núcleos de enfrentamento.
129
5. CONCLUSÃO
A atuação democrática e participativa do sujeito e a unificação, também
democrática, da função do Estado finalizam, no âmbito do direito à cidade como
direito socioambiental fundamental, duas estruturas-núcleo da realização de direitos.
Afetam não somente o direito à cidade, mas todo o vasto rol de garantias a ele
atrelado.
Os desafios de ordem jurídica se localizam no intermédio da atuação do
Estado e fundam um problema que repercute na ordem social como um todo. O
Estado Democrático de Direito, com o instrumento constitucional e as diretrizes
sociais, tem diante de si um duplo processo de superação, e que se resume como
condição da realização do direito à moradia e correlatos.
Do ponto de vista estrutural, a pesquisa possibilitou uma abordagem dos
elementos justificantes do reconhecimento do direito à cidade como direito
socioambiental fundamental, sobretudo com a imersão na intenção constitucional de
elencar diretrizes para a atuação jurídica e da sociedade. Sob um prisma sistêmico,
o enfrentamento do problema urbano- moradia e meio ambiente- condensa um
desafio de ordem complexa, porque pressupõe não somente o encorajamento
subjetivo (indivíduo e o Estado), mas a gestão dos recursos e dos meios para
possibilitar a realização de direitos.
Dessa forma, os fundamentos do direito à cidade levam em consideração um
contexto prático de segregação social, desigualdade e afetação do meio ambiente.
Servem como justificativas negativas da necessidade de repensar não somente o
âmbito jurídico, mas as formas como a sociedade como um todo encara a cidade e
suas funções. Destarte, o sentido de complexidade é afunilado pelo resgate histórico
das razões que justificam o atual cenário citadino, não deixando de considerar o rol
de prioridades de ordem econômica que mapeou a vivência do homem em
determinado tempo e espaço. Nesse aspecto, sujeito e Estado recepcionam, no
domínio econômico-político, uma estrutura de manutenção das origens e
determinantes da desigualdade, cujo aspecto mais nevrálgico gira em torno da
exclusão social, função pragmática da cidade e desrespeito com o meio ambiente.
130
Pelo viés do direito à moradia, ocorre a fundamentação de ordem integrada
dos direitos que compõe as condições de vida digna no meio urbano, e que prorroga
o problema da não realização de direitos para âmbitos como o saneamento básico, a
saúde, e ramos afins. A partir desse prisma, a justificação passa a estar amarrada à
ideia de interdependência de direitos e de metidas executivas. Assim, surge a
questão acerca da gestão democrática das formas de implementação do direito à
moradia, em que há um compartilhamento desses meios entre a comunidade urbana
e o Estado.
Dessa forma, a identificação da necessidade de revitalizar as formas de ação
do sujeito e do Estado parte de duas pressuposições simples, mas de ampla
aparição sensorial: o desinteresse social pelas práticas políticas e a resignação
institucional frente ao modelo econômico capitalista de inflexão neoliberal. Mesmo
possuindo autonomia temática, essa discussão serviu ao trabalho como pano de
fundo reflexivo e, mais diretamente, corroborou à assertiva acerca das condições de
realização do direito à moradia e afins. Ou seja, o ativismo social é uma condição
para a transformação do status quo de exclusão social.
É possível perceber, no entanto, os empecilhos de ordem prática que
impedem a realização objetiva de todas as intenções, jurídicas, políticas e sociais.
Do ponto de vista epistemológico, a estruturação do tema é capaz de aproximar
todos os elementos subjetivos e objetivos, no intuito de pensar a solução como uma
conclusão que satisfaça às interrogações acadêmicas. Na seara da gestão das
formas e execução dos meios, o principal encalce diz respeito à necessidade de
satisfazer, no indivíduo e no Estado, as exigências do modelo de desenvolvimento
capitalista de que somos signatários e que impede a perspectiva prática de um
direito à moradia efetiva.
Sobre esse aspecto, a exigência prática é um resultado da formação
legislativa ao longo do tempo e do aperfeiçoamento doutrinário, que tornou a
discussão acerca do direito ambiental e à moradia um diálogo emergente e
131
permanente no contexto jurídico-acadêmico.186 Essa eminência corresponde, então,
a formação de um nicho de subsídio à tarefa prática que o Direito pressupõe, ainda
que não seja capaz, sem a gestão e participação democrática, de resolver o clássico
problema da efetividade. Estão aí presentes, além disso, contributos de ordem
política e econômica de poder considerável.
Além disso, a formação mental do sujeito individual e do Estado já incorporou
uma dinâmica exterior de perseguição de interesses aparentemente particulares,
mas que servem à consecução de desejos de outra ordem. Para o direito à moradia
que, ainda que conserve a perspectiva individual, está situado no contexto do direito
à cidade, ou seja, num ambiente de ordem coletiva, essa rarefação da consciência
de pertencimento gera um descrédito quanto às formas de desenvolver e efetivar
direitos por meio do compartilhamento. Sobre esse aspecto, o indivíduo se vê fora
da dinâmica democrática de participação, e acaba por reduzir a democracia à
representatividade.
Entretanto, se a representação política é a forma adequada de organizar o
poder em função do seu titular, o povo, isso não significa a única razão do exercício
democrático e político. Nesse ponto, a inserção do sujeito nos movimentos de
gestão e execução de políticas públicas evidencia a capacidade de mobilização e
manejo da democracia, sem alterar a substância incorporada pelo Estado
Democrático de Direito. No que tange às políticas públicas ou ações institucionais de
direito à moradia, registra-se um parcial avanço em relação à tarefa do Estado frente
aos direitos fundamentais.
Noutro sentido, o agir do Estado ainda representa uma postura bastante
tênue em relação aos problemas de ordem estrutural que contornam os ambientes
urbanos. Cominado com a inércia reflexiva e a indisposição social, essas ações
institucionais ainda correspondem a atitudes verticais, que, às vezes, se
assemelham aos institutos do assistencialismo. Com isso, o fortalecimento da gestão
democrática requer que, do Estado, surja um primeiro impulso, mas cujo
186
VIANA, André Custódio; BALDO, Iumar Junior. Desenvolvimento urbano: um discurso sobre a
organização socioambiental e habitacional sob a panorâmica da igualdade e da justiça em John
Rawls. In: VIANA, André Custódio; BALDO, Iumar Junior (org.). Meio ambiente, constituição e
políticas públicas. Curitiba: Multidéia, 2011.
132
desenvolvimento esteja relacionado com a possibilidade de compartilhamento dos
meios e dos resultados. Em relação ao direito à moradia, isso vai significar a
qualificação dos recursos urbanos de vida digna e, indiretamente, o desenvolvimento
socioambiental da cidade.
Não há como se pensar a transformação de contingentes urbanos,
desassistidos historicamente, sem propor o problema estrutural da adoção
institucional e social de medidas urgentes e efetivas, proposta esta que passa a ter
uma nova perspectiva a partir do reconhecimento do direito à cidade como direito
fundamental.
Dizer que o direito à cidade deve ser um direito humano fundamental significa
afirmar a aproximação entre a formação histórica das necessidades humanas e o
registro efetivo da opção do estado.
Ao adquirir o caráter de fundamental, a responsabilidade do Estado em,
conjuntamente com a sociedade, realizar o direito à cidade é permeado pela idéia de
uma transformação social, justamente porque o reconhecimento faz com que o
segundo passo seja a sua realização.
Atribuindo-lhe esse caráter fundamental estaremos ratificando a não
estaticidade dos direitos humanos e ainda, por outro lado, a idéia de que o
desenvolvimento do Estado segue a construção histórica dos povos em sociedade;
com a intenção de construir uma unidade entre atividade institucional e a realidade
social.
Apesar do direito a cidade transcender ao reconhecimento constitucional,
justamente por dizer respeito às condições inerentes a própria condição humana que
precisamos ultrapassar os “diagnósticos” que servem sim, de base para a idéia de
transformação desses agrupamentos irregulares, mas sua concretização depende
do Estado, sociedade e gestão democrática.
133
REFERÊNCIAS
AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005.
ALMEIDA, Márcio Fortes de; COBBETT, Billy. Apresentação. In: CARVALHO, Celso
Santos; ROSSBACH, Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo:
Aliança das cidades, 2010.
ALMEIDA, Márcio Fortes de. Apresentação. In: ROLNIK, Raquel (org.). Como
produzir moradia bem localizada com os recursos do Programa Minha Casa
Minha Vida: implementando os instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília:
Ministério das Cidades, 2010.
ALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São
Paulo: Perspectiva, 2003.
ARANGO, Rodolfo. Direitos fundamentais sociais, justiça constitucional e
democracia. In: MELLO, Cláudio Ari (org.).Os desafios dos direitos sociais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
ARANTES, Pedro Fiori; FIX, Mariana. Como o governo Lula pretende resolver o
problema de habitação. Disponível em:< http://www.psolsp.org.br/capital/?p=423>
Acesso em: 2 ago. 2011.
BARRAL, Welber. Desenvolvimento e sistema jurídico: a busca de um modelo
teórico. In: BARRAL, Welber. PIMENTEL, Luiz Otávio. (org.) Teoria jurídica e
desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. São
Paulo: Saraiva, 2004.
BARZOTTO, Luiz Fernando. Os Direitos humanos como direitos subjetivos: da
dogmática jurídica à ética. In: SARLET, Ingo. (org.) Jurisdição e direitos
fundamentais. v. I, t. 1. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2005.
BELLO FILHO, Ney de Barros. Pressupostos sociológicos e dogmáticos da
fundamentalidade do Direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
Tese (doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina: 2006. Disponível em:
http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/33948-44718-1-PB.pdf.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. Trad. Carlos Moisés e Ana Maria L. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986.
BRASIL, Congresso Nacional. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
1946, em 18 de setembro de 1946. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>.
Acesso em 02 mar. 2011.
134
BRASIL, Congresso Nacional. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
1934, em 16 de julho de 1934. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>.
Acesso em 02 mar. 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de
1967, em 24 de janeiro de 1967. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>.
Acesso em 02 mar. 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Disponível
em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>.
Acesso em 5 jul 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível
em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm.> Acesso em
14 jun. 2011, grifo nosso.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 178.836, julgado
em 8 de junho de 1999, relator Min. Carlos Velloso. Disponível em:<
http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201729>. Acesso em 15
de maio de 2011.
BRASIL, Ministério da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica. Emenda
Constitucional n. 01/Constituição da República Federativa do Brasil, em 17 de
outubro de 1969. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc0169.htm>. Acesso em 15 de maio de 2011.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 668, em 24 de setembro de 2003.
Disponível em:<
http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stf/stf_0668.ht
m>. Acesso em 15 de maio de 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Emenda Constitucional n. 29, em 13 de setembro
de 2000. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm>. Acesso
em 15 de maio de 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 11.977, de 7 de julho de 2009. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/civil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm>. Acesso em:
12 jul 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Emenda Constitucional n. 64, em 4 de fevereiro de
2010. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm>. Acesso
em 09 mar. 2011.
135
BRASIL, Assembléia Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso
em 10 de maio de 2011.
BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 3.071, em 1° de janeiro de 1916. Disponível
em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L3071.htm>. Acesso em: 14 de maio de
2011.
BRASIL, Constituição Política do Império do Brazil, em 25 de março de 1824.
Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>.
Acesso em 15 de maio de 2011.
BRASIL, Congresso Constituinte. Constituição da República dos Estados Unidos
do Brasil, em 24 de fevereiro de 1891. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>.
Acesso em 15 de maio de 2011.
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE. Estatísticas Sociais.
Disponível em:< http://www.ibge.gov.br/home/download/estatistica.shtm>. Acesso
em 23 ago. 2011.
BUTZKE, Alindo. Os fundamentos ecológicos das questões ambientais na
Constituição brasileira de 1988. Revistra Trabalho e Ambiente. Universidade de
Caxias do Sul. Caxias do Sul, v. 1, n. 1, jan-jun., 2002
CANOTILHO, José Joaquim Gomes Canotilho; LEITE, José Rubens Morato Leite
(Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 2. Ed. Rev. São Paulo: Saraiva,
2008.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Editora Cultrix, 2006.
CARBONELL, Miguel. (Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade.
São Paulo: Contexto, 2004.
CARTA MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE: Disponível em :
http://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.pdf.
Acesso em 21 mar. 2011.
CORRÊA, Darcísio. Estado, cidadania e espaço público: as contradições da
trajetória humana. Ijuí: Editora Unijuí, 2010.
COUTINHO, Ricardo. BONIZZATO, Luigi. (coord.) Direito da cidade: novas
concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007.
136
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
DIAS, Maurício Leal. A função social ambiental da cidade como princípio
constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 565, 23 jan. 2005. Disponível
em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6210>. Acesso em: 2 maio 2011.
DOURADO, Sheilla Borges. Unidades de conservação no meio urbano. In: BRAVO,
Alvaro Sánchez (Editor). Ciudades, medioambiente e sostenibilidad. Sevilla:
Arcibel, 2007.
FALK, Richard. Globalização predatória: uma crítica. Trad. Rogério Alves. Lisboa:
Instituto Piaget, 1999.
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs.). Direito urbanístico: estudos
brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre
a trajetória do direito urbanístico no Brasil. Revista Urbana. v. 7. n. 30. p.43-59.
Disponível em: <http://www2.scielo.org.ve/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S079805232002000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 07 mar. 2011.
FERNÁNDEZ, Roberto. La ciudad verde: teoría de la gestión ambiental urbana.
Buenos Aires: Espacio, 2000.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: lei
10.257/2001, lei do meio ambiente artificial. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito
a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
GARRETÓN, Manuel Antonio et. al. América Latina no século XXI. Trad. Ximena
Simpson. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
GORCZEVSKI, Clóvis. Direitos Humanos e Cidadania. In: LEAL, Rogério Gesta;
REIS, Jorge Renato dos. (Orgs.) Direitos Sociais e políticas públicas: desafios
contemporâneos. Edunisc: Santa Cruz do Sul, 2004.
GRAU, Eros Grau. Princípios fundamentais de direito Ambiental. Revista de Direito
Ambiental, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, n. 02., 1997..
GRIMM, Dieter. Constituição e política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 15. ed. Tradução de Sueli Rolnik. Campinas:
Papirus, 2004.
GUIMARÃES, Nathália Arruda. Regiões metropolitanas: aspectos jurídicos. Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, n. 273, 6 abr. 2004. Disponível em:
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/5050>. Acesso em: 1 mar. 2011.
137
HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral. Instituto Piaget: Lisboa, 1986.
_____, Jürgen. Modernidad: um proyecto incompleto. In: CASULLO, Nicolás. El
debate modernidad/posmodernidad. Madrid: El cielo por asalto, 1990.
_____, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luis Sérgio Repa e
Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
IANNI, Octávio. A era do globalismo. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.
KALIL, Rosa Maria Locatelli. Direitos humanos e moradia em Passo Fundo: uma
experiência autogestionária. In: CARBONARI, Paulo César. KUJAWA, Henrique
Aniceto. Direitos humanos desde Passo Fundo: homenagem aos 20 anos da
Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo. Passo Fundo: CDHPF, 2004.
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006.
_____. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
_____. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos
e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998.
LEAL, Sandra. Possibilidade de refundação do sentido dos direitos humanos: a via
da diferenciação semântica. In: CARBONARI, Paulo César. KUJAWA, Henrique
Aniceto. Direitos humanos desde Passo Fundo: homenagem aos 20 anos da
Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo. Passo Fundo: IFIBE, 2004.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Trad. Rubens Frias. São Paulo: Centauro,
2001.
LEFF, Henrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela;
revisão técnica Paulo Freira Vieira. 4. Ed. São Paulo: Cortez, 2006.
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção
ao meio ambiente. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
LENARDÃO, Elsio. Gênese do clientelismo na organização política brasileira.
Disponível em:< http://www.pucsp.br/neils/downloads/v11_12_elsio.pdf> Acesso em:
5 nov. 2011.
LÉVINAS, Emmanuel. Ensaios sobre a alteridade. 4. Ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
LOUREIRO, Carlos Frederico. O movimento ambientalista e o pensamento
crítico: uma abordagem política. Rio de Janeiro: Quartet, 2006.
138
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. Ana Cristina Nasser.
2.ed Petrópolis: Vozes, 2010.
MARICATO, Erminia. O Estatuto da cidade periférica. In: CARVALHO, Celso Santos;
ROSSBACH, Anaclaudia. Estatuto da cidade comentado. São Paulo: Aliança das
cidades, 2010.
MODENA, Cesar Augusto. A constitucionalização de Gaia. In: PEREIRA, Agostinho
Eli Koppe; CALGARO, Cleide. (Org.). O direito ambiental e o biodireito: da
modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul: Educs, 2008.
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: Proibição do Retrocesso. Porto
Alegre. Livraria do Advogado, 2007.
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; AGRA, Walber de Moura. A crise e a recuperação da
legitimação da jurisdição constitucional. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge
Renato dos (orgs). Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios
contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.
NUNES, Edson. A gramática política no Brasil: clientelismo e insulamento
burocrático. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
ONU, Assembléia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 10 de dezembro de 19484. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em
12 mar. 2011.
OSÓRIO, Letícia Marques (Org.) Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas
Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2002.
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. 6.ed. Madrid:
Tecnos, 1995.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a
constituição brasileira de 1988. Revista do instituto de hermenêutica jurídica.
Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004.
PORTO, Maria Célia Silva. Estado assistencialista e questão social no Brasil
pós-constituinte. Disponível em:<
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppII/pagina_PGPP/Trabalhos2/Maria_C%C3
%A9lia_d_Silva_Porto.pdf> Acesso em 5 nov. 2011.
PROUDHON, P.-J. O que é a propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Piseta e Lenita Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
139
RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos urbano: Um fato cuja solução
também passa pelo direito como instrumento de construção de um projeto de cidade
sustentável. Caxias do Sul: Ediucs, 2007.
RODRIGUES, Hugo Thamir. O município (ente federado) e sua função social. In:
LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos (orgs). Direitos sociais e políticas
públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.
ROLNIK, Raquel (org.). Como produzir moradia bem localizada com os recursos
do Programa Minha Casa Minha Vida: implementando os instrumentos do Estatuto
da Cidade. Brasília: Ministério das Cidades, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da
democracia participativa. 3.ed. Rio de Janeiro: 2005.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
_____. A eficácia dos direitos fundamentais. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2003.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004.
SAULE JUNIOR, Nelson. Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades
sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999.
_____, Nelson. O Direito à cidade como paradigma da governança urbana
democrática. Disponível em:<
http://www.institutoapoiar.org.br/imagens/bibliotecas/O_Direito_a_Cidade_como_par
adigma_da_governanca_urbana_democratica.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2011.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SILVA, Silvana dos Santos. A arbitragem como instrumento de desenvolvimento. In:
BARRAL, Welber. PIMENTEL, Luiz Octávio. (orgs.) Teoria jurídica e
desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São
Paulo: Malheiros Editores, 2004.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica
do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
TRAMONTIN, Odair. Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal.
Curitiba: Juruá, 2002.
140
VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se
calcula. 2.ed. Campinas: Editora Autores Associados, 2002.
VIANA, André Custódio. BALDO, Iumar Junior. O ser humano e o Estado: uma
síntese socioambiental na panorâmica das políticas públicas do desenvolvimento
citadino sustentável. In: BRAVO, Álvaro Sanchez Bravo. GORCZEVSKI, Clóvis
(org.). Medio ambiente, energía y cambio climático. Sevilha (ES): Arcibel Editores,
2011.
VIANA, André Custódio. BALDO, Iumar Junior. Desenvolvimento urbano: um
discurso sobre a organização socioambiental e habitacional sob a panorâmica da
igualdade e da justiça em John Rawls. In: VIANA, André Custódio. BALDO, Iumar
Junior. (orgs.) Meio ambiente, constituição e políticas públicas. Santa Cruz do
Sul: Multideia, 2011.
VIEIRA, Litz. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 109.
VIEIRA, Paulo Freire. Meio Ambiente, desenvolvimento e planejamento. In:
VIOLA, Eduardo J.; LEIS, Héctor R.; SCHERER-WARREN, Ilse; GUIVANT, Julia
Silvia; VIEIRA, Paulo Freire; KRISCHKE, Paulo José. Meio Ambiente,
desenvolvimento e cidadania: desafios para as Ciências Sociais. 3. Ed. São Paulo:
Cortez, 2001.
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3.ed. São Paulo:
Atlas, 2001..
WERNECK, Augusto. Função Social da cidade. Plano Diretor e favelas. A regulação
setorial nas comunidades populares e a gestão democrática das cidades. In:
Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: IHJ, 2004
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000.
Download

Trabalho completo