OS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO BRASILEIRO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES EM TORNO
DE SEU CONTEÚDO ECONÔMICO
Anelise Coelho Nunes∗
No regime político democrático, os direitos fundamentais, em
conjunto com a juridicidade e a constitucionalidade, consistem nos três pilares
em que se assenta o princípio do Estado de Direito1, amplamente
consagrados ao longo de todo texto da Constituição Federal de 1988,
principalmente nos fundamentos do Estado Democrático de Direito, da
cidadania e da dignidade da pessoa humana (norma do artigo 1º, incisos II e
III).
Os direitos fundamentais, mais especificamente os classificados
como sociais, necessitam de instrumentalização para sua efetivação, uma vez
que promovem a realização de valores sociais através dos componentes da
estrutura do Estado Democrático de Direito, ao que Giancarlo Sorrentino2
denomina de “Estado de serviço”.
Nesse sentido, a realização de serviços públicos acaba por
caracterizar prestações inerentes à garantia dos direitos fundamentais.
∗
Doutoranda em Direito pela PUCRS. Mestre, Especialista e Graduada em Direito pela PUCRS.
Pesquisadora e bolsista da CAPES. Professora universitária e advogada. Coordenadora do PPGD da
UNIFIN – Faculdade São Francisco de Assis em Porto Alegre/RS.
_________________________________________________________________________________
1
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 359 e
seguintes.
2
SORRENTINO, Giancarlo. Diritti e participazione nell’amministrazione di risultato, p. 38.
Assim, interessante a lição de Umberto Allegretti3 ao relacionar
deveres
do
Estado,
serviços
públicos
e
direitos
fundamentais
dos
administrados: “Dever do Estado é o serviço dos direitos e, portanto, dos
direitos dos cidadãos derivam as tarefas do Estado e a missão da
Administração.”
Portanto, independentemente do modo de realização ou da
classificação do serviço público, indubitável é seu caráter prestacional aos
administrados, enquanto titulares4 dos respectivos direitos fundamentais que a
Administração Pública deve assegurar.
Acerca do caráter prestacional dos direitos fundamentais sociais,
o magistério de Ingo Wolfgang Sarlet5 adverte que existe um “problema
específico”, visto que “é precisamente em função do objeto precípuo destes
direitos e da forma mediante a qual costumam ser positivados (normalmente
como normas definidoras de fins e tarefas do Estado ou imposições
legiferantes de maior ou menor concretude) que se travam as mais acirradas
controvérsias envolvendo o problema de sua aplicabilidade, eficácia e
efetividade”, e, também, trazem eminentes reflexões à tona, como ao que se
refere à “reserva do possível”, à “proibição de retrocesso” e ao “mínimo
existencial”6.
3
ALLEGRETTI, Umberto. Amministrazione pubblica e costituzione, p. 12. Tradução livre.
Vide NUNES, Anelise Coelho. A titularidade dos direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988. Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2007.
5
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional, p. 280.
6
SARLET, Ingo W.; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e
direito à saúde: algumas aproximações, pp. 11-53, em SARLET, Ingo W.; TIMM, Luciano Benetti
(orgs. e co-autores) Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível” . Vide também
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso, pp. 91-120.
4
Nascidos em resposta às desigualdades sociais e econômicas de
uma sociedade de matriz liberal, os direitos sociais constituíram-se como
núcleo normativo do Estado Democrático de Direito, segundo Vicente de
Paula Barreto.7
Na busca pela igualdade política e melhores condições de vida, a
luta, sobretudo, da população trabalhadora consistiu no ponto culminante para
o surgimento dos direitos sociais, ao que, posteriormente, trouxe a
necessidade da assunção, pelo Estado, de várias atividades e encargos que
até então não eram funções estatais.
Assim, o Estado passou a prestar vários serviços como saúde,
educação e assistência social, intervindo, assim, na regulação dos mercados
e na garantia dos direitos sociais”8.
Influenciados pela igreja e pelos movimentos operários do século
XIX, tornou-se necessária a inclusão de direitos sociais sob a órbita dos
direitos fundamentais, como forma de prestação estatal aos indivíduos,
baseados na igualdade material9.
Nesse sentido, como afirma Mariana Figueiredo:10
“Os direitos sociais, destarte, passaram a ser
responsáveis pela estipulação de prestações a serem
7
BARRETO. Vicente de Paula. Direitos Fundamentais Sociais: Estudo de direito constitucional
comparado e internacional, p.110.
8
Idem.
9
NUNES, Anelise Coelho. A titularidade dos direitos fundamentais na Constituição de 1988, p.32. A
igualdade material deverá ser entendida como a busca pela igualdade no sentido de “tratar os iguais
como iguais e os desiguais como desiguais”, na clássica lição de Ruy Barbosa.
10
FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito fundamental à saúde, p.24.
fornecidas
pelos
Poderes
Públicos,
em
favor
dos
indivíduos, passando a ser compreendidos como “direitos
de crédito”, exatamente nesse sentido de outorga de
direitos a determinadas prestações”.
Foram consagrados primeiramente na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, integrando vários ordenamentos jurídicos, como a
Constituição de Weimar, porém, segundo Vicente de Paulo Barreto, “apenas
alguns Estados protegeram e deram o devido valor fundamental a estes
direitos”11.
Os direitos sociais não tiveram a intenção de substituir os direitos
individuais, mas sim, de “corrigir o paradigma privado”, aparecendo como
posições subjetivas, individuais ou coletivas, caracterizando-se como direitos
de grupos, de desigualdade e de relações de um determinado grupo12 .
Da mesma forma, o magistério de Alexandre de Moraes13:
“Direitos sociais são direitos fundamentais do
homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades
positivas, de observância obrigatória em um Estado Social
de Direito14, tendo por finalidade a melhoria de condições
de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da
igualdade social, e são consagrados como fundamentos
11
BARRETO. Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais p.111.
FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito fundamental à saúde, p.28.
13
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p.195.
14
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p.4,
12
dos Estado democrático, pelo art. 1°, IV, da Constituição
Federal”.
Partindo-se para uma conceituação dos direitos fundamentais
sociais, José Afonso da Silva15 determina que
“os direitos sociais, como dimensão dos
direitos fundamentais do homem, são prestações positivas
proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,
enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam
melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que
tendem a realizar a igualização de situações sociais
desiguais. São portanto, direitos que se ligam ao direito de
igualdade”.
No constitucionalismo pátrio, os direitos sociais estiveram
presentes
na
Constituição
de
1946,
assumindo,
entretanto,
melhor
configuração na de 1988, já que reconstituída a democracia, baseados no
princípio da dignidade humana, ora fundamento do Estado Democrático de
Direito e dos direitos fundamentais, buscando a igualdade material.
Portanto, na caracterização dos direitos fundamentais sociais,
pode-se afirmar que assumem função prestacional do Estado, em que o
15
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p.286.
particular pretende a satisfação destes direitos, através do ente público ou
privado.
Ademais, os direitos sociais atuam como limitadores do poder do
Estado, quando outorga um direito ao seu titular (indivíduo) contra qualquer
ato violatório praticado por aquele ou terceiro16.
Da mesma forma, segundo Sarlet17, os direitos sociais como
prestações do Estado não estão somente ligados a sua dimensão positiva,
como prestação, podendo ser de status negativo (defensivos).
Então, os direitos fundamentais sociais devem ser considerados,
antes de tudo, direitos à prestação, uma vez que determinam para o sujeito
passivo, (o destinatário dos direitos fundamentais – o Estado), o dever
positivo de dar ou fazer algo em proveito do sujeito ativo (titular do direito
fundamental) em uma relação jurídica de direitos fundamentais; e, em
segundo lugar, como direitos contra o poder público, uma vez que é este, por
seus órgãos e agentes, quem está na posição de obrigado à atuação positiva
normativamente imposta. Em conseqüência, os direitos sociais são situados
em oposição aos direitos liberais, em sua maioria classificados como direitos
de abstenção, porquanto correlativos de deveres negativos, ou de não
interferência em âmbitos existenciais constitucionalmente protegidos, tais
como a vida e a liberdade.
Em vista disso, os direitos fundamentais sociais visam à proteção
e ao equilíbrio das relações sociais e privadas.
16
FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito fundamental à saúde, p.40.
SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações, p.15
17
Além disso, há que se referir acerca de dois aspectos. O primeiro,
em relação ao fato de que, como direitos fundamentais, indúbita a questão em
torno da plena e total eficácia dos direitos sociais, já que considerados como
“necessidades” iguais a todos, demonstrando-se assim, seu caráter de
universalidade18. O segundo aspecto reside no fato de que os direitos sociais
são considerados cláusulas pétreas, na medida em que, diante da norma do
Art. 60 § 4°, inciso IV da Constituição Federal de 1988, deve-se fazer uma
interpretação sistemática, pois, ali, deverá abarcar todos os direitos
fundamentais, ainda que constantes em artigos dispersos do capítulo
próprio19.
Os direitos sociais, nesta condição, são caracterizadores do limite
de reforma da constituição, aplicando-se, assim, sua proteção em amplo e
total sentido de direito fundamental20.
Todavia,
como
direitos
de
segunda
dimensão,
conforme
esclarece Bonavides21, os direitos sociais tiveram eficácia duvidosa, na
medida em que exigiram prestações do Estado, sendo então reduzidos a
normas programáticas22.
18
CANOTILHO, J J. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 369/379.
SARLET. Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais como cláusulas pétreas. Revista da
Ajuris n° 89, p.101/121.
20
SARLET. Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais como cláusulas pétreas. Revista da
Ajuris n° 89, p.121.
21
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p.564,565.
22
MORAES, Alexandre. Direito constitucional, p.14,
19
Neste sentido,
Canotilho23 informa a problemática quanto ao
conteúdo desses direitos:
“Uma das maiores dificuldades surgidas na
determinação dos elementos constitutivos dos direitos
fundamentais é esta: os direitos sociais só existem quando
as leis e políticas sociais os garantirem. Por outras
palavras: é o legislador ordinário que cria e determina o
conteúdo da um direito social”.
A partir disso, discute-se se os direitos sociais são realmente
direitos
fundamentais
de
caráter
auto-aplicável
ou
apenas
direitos
dependentes de programas de ação estatal que visam à realização de futura e
gradual prestação.
Assim, Canotilho24 afirma que
“A
fundamentais
função
anda
de
prestação
associada
a
dos
três
direitos
núcleos
problemáticos dos direitos sociais, econômicos e culturais:
(1) ao problema dos direitos sociais originários, ou seja, se
os particulares podem derivar directamente das normas
constitucionais pretensões prestacionais; (2) ao problema
23
24
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p.450.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p.384.
dos direitos sociais derivados que se reconduz ao direito
de exigir uma actuação legislativa concretizadora das
“normas constitucionais sociais” e no direito de exigir e
obter a participação igual nas prestações criadas pelo
legislador; (3) ao problema de saber se as normas
consagradoras de direitos fundamentais sociais têm uma
dimensão objetiva juridicamente vinculativa dos poderes
públicos no sentido de obrigarem estes a políticas sociais
activas conduncentes à criação de instituições, serviços e
fornecimento de prestações”.
Sob este ponto de vista, os direitos sociais dependem da
prestação do Estado e de seus recursos financeiros, o que traz implicâncias
diretas à eficácia e efetividade desses direitos.
Tal motivação ensejou a criação e o desenvolvimento da teoria
da reserva do possível, segundo Sarlet25.
Os direitos sociais em sua dimensão de prestação estatais
possuem custos, enquanto que na sua dimensão de defesa, como direitos
subjetivos, são considerados destituídos de necessidade econômica26.
Porém, não é de se negar que todos os direitos fundamentais
sociais possuem um custo, mesmo aqueles considerados com neutralidade
25
SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações, p.27 e 28.
26
Idem.
financeira (direitos de defesa), pois são condicionados ao pagamento de
tributos27.
O grande problema da efetividade dos direitos sociais está em
seu objeto, ou seja, se o responsável por cumprir a obrigação possui
condições financeiras de arcar com seus custos. Mas é de se frisar neste
ponto que a reserva do possível não se limita à precariedade dos recursos
financeiros28.
Porém, dependendo de sua condição prestacional ou de defesa,
os direitos sociais poderão obter eficácia maior ou menor, também de acordo
com a função que exercem como defesa ou prestação29.
Os direitos de defesa possuem eficácia plena e imediata,
inclusive os individuais, porquanto direitos fundamentais. Por outro lado, já
entendeu o Supremo Tribunal Federal de que os direitos de defesa são
dependentes de concretização legislativa antes de demonstrar sua carga de
eficácia30.
Os direitos a prestações são realizações de igualdade e
distribuição de recursos sociais existentes, dependendo sua concretização do
modo como o texto constitucional os concebe, conforme o magistério de
Caliendo31.
Estes direitos possuem característica econômica superior
aos de defesa, relacionando-se a recursos escassos e limitados, tornando-se
27
Ibidem.
Ibidem.
29
CALIENDO. Paulo. Direito Tributário e análise econômica do direito. p.168 e ss.
30
Idem.
31
Ibidem.
28
necessária a decisão de escolher quais serão de maior valor e quais serão
sacrificados, a fim de obter-se a satisfação máxima dos direitos fundamentais
sociais prestacionais32.
Por tais entendimentos, a teoria da reserva do possível
acabou por tornar-se o limitador de concretização e eficácia plena dos direitos
prestacionais33 .
Surgida em meados dos anos 70, na Alemanha, a reserva do
possível culminou na real eficácia dos direitos sociais, estando localizada no
campo da discricionariedade do orçamento público34.
Estas noções nasceram a partir de uma concepção numerus
clausus em um caso jurídico, em que seu demandante postulava o acesso ao
ensino superior, do que resultou entendido que a prestação deveria seguir o
que foi exigido da sociedade, via tributação, no limites da obrigação prestada
dentro do razoável35.
Deste modo, sustentou-se que a prestação ao indivíduo deveria
estar dentro dos limites da disposição do Estado a alguém que realmente
fosse necessitado de tal prestação em um dado momento36.
Seguindo a lição de Sarlet37, pode-se esclarecer que a reserva do
possível apresenta uma
32
Ibidem.
Ibidem.
34
SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações, pp.29 e 30.
35
Idem.
36
Ibidem.
37
Ibidem.
33
“dimensão tríplice, que abrange: a) a efetiva
disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos
direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos
recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão
com a distribuição de receitas e competências tributárias,
orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras,
e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente
no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema
constitucional federativo; c) já na perspectiva(também) do
eventual titular de um direitos de prestações sociais, a
reserva
do
possível
envolve
o
problema
da
proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à
sua
exigibilidade
e,
nesta
quadra,
também
sua
razoabilidade”.
Há que se frisar que a reserva do possível é limitadora e restritiva
dos direitos fundamentais, atuando como forma de garantia destes, desde que
observada a proporcionalidade e o mínimo existencial para com todos os
outros direitos fundamentais38. A proporcionalidade aplicada à reserva do
possível incidirá como proibição do excesso e insuficiência no controle dos
atos da administração pública39.
38
39
Idem.
Idem.
Dessa forma, a conscientização do Poder Judiciário no sentido de
não somente existir o zelo pelos direitos fundamentais, mas também, máxima
cautela e responsabilidade na concessão da tutela são as advertências de
Sarlet40.
Ainda, é necessário encarar a reserva do possível com certo
resguardo, ao passo que está sendo utilizada como meio de fundamentar o
impedimento da intervenção judicial e desculpa para a omissão do ente
público em efetivar os direitos de cunho social prestacional41.
Assim, afirma Sarlet42
“... a maximização da eficácia efetividade de
todos os direitos fundamentais, na sua dupla dimensão
defensiva e prestacional, depende em parte significativa (e
a realidade brasileira bem o demonstra!) da otimização do
direito fundamental a uma boa (e portanto sempre proba e
moralmente vinculada) administração”.
Verifica-se, portanto, que os direitos sociais a prestações não
podem ser limitados ao mínimo existencial, não podendo a reserva do
possível prevalecer, ao passo que deverá haver a primazia da vida e da
dignidade humana, com a devida alocação de recursos financeiros para tal,
40
Ibidem.
Ibidem.
42
Ibidem.
41
não estando assim, a reserva do possível apresentada como argumento da
afastabilidade da responsabilização do Estado43.
Com as devidas considerações, há de se verificar que ao Estado
couberam as responsabilidades de solucionar todos os interesses da
sociedade, fazendo-o ser responsável por arcar com todas as atividades e
responsabilidades para tal, com o fim de a tudo e a todos prover44.
Analisa-se então, a reserva do possível sob sua ótica financeira e
orçamentária, diante da inexistência de verbas destinadas ou recursos para a
devida prestação social45.
Conforme ensina José Reinaldo Lima Lopes46
“Além da impossibilidade jurídica de se
criarem ou alocarem recursos contra as regras do
orçamento,
há
uma
impossibilidade
que
se
pode
compreender. Trata-se da impossibilidade econômica. A
impossibilidade econômica diz respeito à escassez e a
escassez sempre quer dizer desigualdade. Bens escassos
são bens que não podem ser usufruídos por todos.
Requer-se, pois, que sejam distribuídos segundo regras e
regras pressupõem o direito igual ao bem e, ao mesmo
tempo, a impossibilidade de uso igual e simultâneo. Há
43
SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações, p. 37.
44
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível, p.178.
45
Idem, p. 179.
46
Ibidem, pp.180 e181.
impossibilidade
econômica
quando,
a
despeito
de
existirem condições de outra ordem para a criação do
bem, por motivos variados a provisão do bem não se pode
fazer sem o sacrifício de outros bens”.
Sendo assim, necessário será o critério de urgência para que
alguém desfrute de determinada prestação. Alguns não serão excluídos, mas
temporariamente despidos desta possibilidade.
A reserva do possível com caráter econômico relaciona-se, mas
não deve ser confundida, com a impossibilidade técnica e a escassez, porém,
fazem parte da impossibilidade econômica, na medida em que resultará em
escolhas de prioridades para qual área serão destinados os recursos.
Assim, a impossibilidade econômica importa na eleição e
definição de prioridades, resultante de políticas públicas, ressaltando-se que,
mesmo que os direitos sociais concebam direitos fundamentais, e, sendo
assim considerados, não poderão ser excluídos de apreciação do judiciário,
em caso de violação.
Em vista disso, a reserva do possível caracteriza-se como a
culminância da justificativa da restrição aos direitos sociais fundamentais,
tendo como elemento limitador a disponibilidade financeira do Estado.
Segundo Caliendo47 existem duas teorias quanto à restrição
dos direitos fundamentais, sendo estas chamadas teoria externa e teoria
interna,
47
salientando-se
que
estas
restrições
somente
CALIENDO. Paulo. Direito Tributário e análise econômica do direito, p.173.
serão
assim
consideradas por meios de norma constitucional ou autorização da
Constituição Federal.
Para a teoria interna não há restrição dos direitos, mas sim,
delimitação conceitual, ou seja, a conduta não está protegida pela norma de
direito fundamental, devendo ocorrer averiguação entre o conteúdo aparente
e o verdadeiro48. Nesta teoria, a restrição está ligada às características
normativas como princípios ou regras, concebendo os direitos fundamentais
como regras e posições insuscetíveis a restrições. Porém, esta teoria recebe
várias críticas, principalmente no que tange à não existência de colisão de
direitos fundamentais e a ponderação como meio de solucionar o conflito.
Já a teoria externa é defendida como forma de adequação
dos direitos individuais e a liberdade com os direitos de outros indivíduos,
conjuntamente com o controle das ingerências do poder público na esfera
individual49. Existirá a ponderação no conflito, não em abstrato, mas sim, em
concreto, sendo a restrição de natureza normativa de princípios, e que,
quando um direito prima-facie for afastado, tornar-se-á um não-direito
definitivo50.
No que se refere à estrutura, a teoria interna prevê os
direitos fundamentais como normas definitivas e fechadas, enquanto que,
para a teoria externa, são modelos de princípios com ponderação51.
48
Idem, p.174.
CALIENDO. Paulo. Direito Tributário e análise econômica do direito, p. 175.
50
Idem.
51
Ibidem, p.176.
49
Quanto à liberdade, a teoria interna verifica que decorre do
sistema constitucional, sendo definitiva. Contudo, para a teoria externa a
liberdade é dado individual, o que poderá ter confronto na vida social,
caracterizada como autonomia52.
Já no que diz respeito ao Poder
Judiciário e a
concretização dos direitos fundamentais sociais, a teoria interna determina
que aquele deve se limitar ao máximo, ou seja, minimalista. Todavia, a teoria
externa pressupõe que o ente deverá ser ativo ou maximalista na
concretização53.
Observa-se, conforme o magistério de Paulo Caliendo54,
que a teoria externa é a mais adequada para verificar a concretização dos
direitos fundamentais sociais, com a máxima intervenção judicial necessária.
Porém, alguns esclarecimentos sobre as teorias de
eficácias dos direitos fundamentais sociais importam, tais como: teoria da
eficácia zero, teoria da eficácia mínima, teoria da eficácia máxima e teoria da
eficácia máxima possível.
Para os adeptos a teoria da eficácia zero, não existirá
concretização dos direitos fundamentais sociais por meio judicial, porquanto
carecem de estrutura normativa dos direitos subjetivos, porquanto não
existente imperativo jurídico que obrigue o Estado a cumpri-lo, pois não cabe
ao judiciário fazer a escolha dos melhores meios de alcançar os fins
determinados,
52
Ibidem.
Ibidem..
54
Ibidem, p.177.
53
autorizando-o
somente
no
que
diz
respeito
a
inconstitucionalidade; também não pode exercer escolha de valores e,
ademais, sua atuação poderia violar a autorização orçamentária55.
Ainda nesta teoria, verifica-se que o argumento se perfaz
no sentido de que os atos administrativos não sofrem apreciação judicial.
Assim, o Judiciário fica restrito à separação dos poderes56.
Para
a
Teoria
da
eficácia
mínima,
as
normas
constitucionais são de eficácia plena, porquanto são aquelas de aplicação
imediata independente de outras, eficácia contida, enquanto existente
margem do legislador para estabelecimento de sentido, e, eficácia limitada,
sendo aquelas que o legislador apenas traçou linhas gerais de competência,
atribuição e poderes para que posterior seja a ação do legislador
infraconstitucional. A intervenção estatal se restringe ao mínimo existencial,
uma vez que somente os necessitados de prestações são protegidos, estando
os demais, direcionados aos meios privados, o que não alcança a totalidade
do direito social fundamental57.
Quanto à teoria da eficácia máxima, a atuação do poder
judiciário ocorre em seu grau máximo, desde que respeitada a limitação da
reserva do possível, fazendo com que a concretização das normas
constitucionais e programáticas seja eficaz plenamente58.
55
Ibidem, pp.180 -181.
Ibidem, p.182.
57
Ibidem.p.184.
58
Ibidem, p. 187.
56
A atuação do juiz não consiste em restrição aos direitos
fundamentais sociais. A previsão orçamentária cabe a administrador, não ao
judiciário, não podendo a segurança jurídica prevalecer sobre a dignidade
humana ou a vida59.
Assim, ensina Caliendo60
[nem todos que defendem a máxima eficácia
dos direitos fundamentais entendem do mesmo modo a
sua aplicação. Para alguns a idéia de máxima eficácia
significa sem limites ou sem qualquer outra consideração.
Para outros significa que o Judiciário pode, sob certos
limites, agir para proteger efetivamente os direitos
fundamentais sociais.]
E, finalmente, a teoria da eficácia máxima possível
determina que a proteção dos direitos fundamentais sociais deve ser realizada
entre a reserva do possível e a complexidade. Há que se reconhecer a
proibição de insuficiência do fornecimento e a preservação do mínimo
existencial necessários à dignidade humana61.
Não se limita a atuação do Poder Judiciário com garantia
ao mínimo existencial, mas se exige da Administração Pública que explicite as
razões da impossibilidade, devendo o administrador buscar a máxima eficácia
59
Ibidem, p..190.
Ibidem, p..192.
61
Ibidem, p. 193.
60
possível, com os limites da reserva do possível, proporcionalidade e
complexidade62.
Por tudo isso, entende-se que a reserva do possível está
atrelada à concretização dos direitos fundamentais sociais, porquanto é
justificativa para limitar financeiramente o Estado. Todavia, há que se pensar
na fundamentalidade destes direitos e não apenas considerá-los como
normas carecedoras de implemento.
Diante da dificuldade de efetivação dos direitos sociais,
porquanto dependentes de recursos financeiros do Estado, condicionados
pela reserva do possível, necessária foi a fixação da jusfundamentalidade dos
direitos sociais, criando-se assim, o direito ao mínimo existencial63, que para
Sarlet64, é chamado de “direito-garantia ao mínimo existencial”, o qual nasceu
com a doutrina alemã, como garantia digna à existência humana.
Reconhecido com status de direito pelo Tribunal Constitucional Federal
alemão, fundamenta-se na dignidade da pessoa humana65.
Segundo a lição de Sarlet66
“de qualquer modo, tem-se como certo que a
garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do
que a garantia de mera sobrevivência física, situando-se,
62
Ibidem, p.194.
LEAL,, Ana Luiza Domingues de Souza. O direito fundamental ao mínimo existencial como conceito
normativamente dependente, p.16.
64
SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações,p.18
65
Idem, p.19.
66
Ibidem, p.21.
63
portento, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se,
nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não
corresponde às exigências da dignidade humana, a vida
humana não pode ser reduzida à mera existência”.
Há que se esclarecer que o mínimo existencial não deverá ser
confundido com o mínimo vital ou de sobrevivência, pois não são condições
físicas de sobrevivência, mas de uma vida com qualidade67.
Este direito-garantia possui dupla dimensão, ou seja, negativa e
prestacional, porquanto o Estado está obrigado a proteger a dignidade
humana através de prestações estatais, buscando a vida com dignidade68.
Deste modo, o mínimo existencial independe de previsão
constitucional, visto que decorre da dignidade humana e da proteção à vida, o
que o inclui diretamente nos direitos sociais - devendo ser analisado o mínimo
existencial em cada caso particular, com a intenção de se criar um roteiro ao
intérprete69.
Conceituando o mínimo existencial, Sarlet70 escreve
“Compreendido como todo o conjunto de
prestações materiais indispensáveis para assegurar a
cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma
67
Idem, p. 22.
LEAL, Ana Luiza Domingues de Souza. O direito fundamental ao mínimo existencial como conceito
normativamente dependente, p.18.
69
SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas
aproximações, 24,25.
70
Idem, p.25.
68
saudável, constituindo o núcleo essencial dos direitos
sociais”.
No direito comparado, a Constituição do Canadá fez referência
ao mínimo existencial de forma indireta, a do Japão vincula à cultura e a
saúde, na da Alemanha foi instituído como “mínimo existencial ao impostos71.
Porém, em nossa Constituição Federal de 1988, nada foi
proclamado expressamente quanto ao mínimo existencial, senão o que se
depreende dos objetivos fundamentais do Estado quanto à erradicação da
pobreza e das desigualdades sociais.
Diante destas considerações, pode-se afirmar que o mínimo
existencial encontra também guarida na temática dos direitos fundamentais
sociais.
Quanto ao fundamento do mínimo existencial, eis a importante
lição de Ricardo Lobo Torres72 :
A proteção ao mínimo existencial, sendo préconstitucional, está ancorada na ética e se fundamenta na
liberdade, ou melhor, nas condições iniciais para o
exercício da liberdade, na idéia de felicidade, nos direitos
humanos e nos princípios da igualdade e da dignidade
humana. Não é totalmente infensa à idéia de justiça e ao
71
72
TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial, p.8.
Idem, p.13.
princípio da capacidade contributiva, Mas se extrema dos
direitos econômicos e sociais.
Quanto à extensão, afirma-se que o direito ao mínimo existencial
pode alcançar qualquer direito, se considerado essencial, existencial e de
inalienabilidade, podendo ser utilizado em vários ramos do direito73.
Diante da importância do direito ao mínimo existencial, criou-se, à
luz dos direitos fundamentais, a “teoria do mínimo existencial”, a qual conta
com diversas características e seus respectivos desdobramentos, tais como,
normativa, interpretativa, dogmática e vinculada à moral.
Normativa no sentido de preocupar-se com a eficácia e validade
do mínimo existencial, já que consiste em uma teoria jurídica normativa;
interpretativa porque projeta conseqüências aos direitos fundamentais;
dogmática, uma vez que o que lhe interessa é a concretização dos direitos
fundamentais. E, por fim, vinculada à moral, eis que os direitos fundamentais
estão intimamente ligados aos princípios morais, no sentido de ser o mínimo
existencial o caminho para a legitimação daqueles 74.
Assim, observa-se que o mínimo existencial inclui-se no cerne
dos direitos fundamentais sociais como meio de proteção de constrições por
parte do Estado e de terceiros, carecendo de prestações positivas e garantido
pela eficiente atividade judicial.
73
74
Ibidem, p.13.
Ibidem, p.26-27.
Em vista disso, o mínimo existencial não poderá ser reduzido a
mero valor ou princípio jurídico, mas sim, deverá ser entendido como regra e
conteúdo essencial dos direitos fundamentais, como limitador da atuação do
Estado, sendo assegurado pela tributação, como forma democrática de
financiamento dos custos do Estado.
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