OS DESAFIOS DA VIOLA: O PROCESSO CIVILIZADOR PAULISTA SEGUNDO A
MÚSICA CAIPIRA
Jean Carlo Faustino
UFSCar
[email protected]
Resumo: Este artigo apresenta uma análise das modas de viola de “Tião Carreiro e
Pardinho” com objetivo semelhante a que Norbert Elias realizou do manual de boas maneiras
de Erasmo, no conhecido “Processo Civilizador”, visando compreender as propostas
civilizatórias em direção ao autocontrole e à maneira cortês de proceder em sociedade.
A análise das modas de viola em questão tem início a partir do trabalho de Maria Sylvia de
Carvalho Franco, cuja pesquisa esteve voltada para a cultura e o modo de vida tradicional do
caipira do estado de São Paulo.
Palavras-chave: música, caipira, viola.
Abstract: This article presents the analysis of "modas de viola de Tião Carreiro e Pardinho"
with similar objective as Norbert Elias with good manners of Erasmo book´s, in his wellknown "The Civilization Process", which aims to understand civilization proposals towards
self-discipline and polite behaviour in society.
This analysis began with the Maria Sylvia de Carvalho Franco works, who research was
dedicated to the caipiras' culture and traditional life in the state of São Paulo.
Keywords: music, caipira, country.
Introdução
Este texto apresenta os resultados de uma análise preliminar das modas de viola da dupla
“Tião Carreiro e Pardinho”, com o objetivo de compreender as propostas civilizatórias que
elas trazem em suas letras.
Por “propostas civilizatórias” entende-se aqui o movimento que foi o tema do trabalho de
Norbert Elias na sua obra “O Processo Civilizador” (ELIAS, 1994), onde o autor se ocupou
com a análise do processo social em direção ao monopólio da violência por parte do Estado e
sua conseqüente eliminação (ou condenação) da sociedade civil onde, então, se desenvolveu o
que, hoje, chamamos por “hábitos civilizados” ou modo cortês.
Esta análise foi realizada a partir das modas de viola da dupla “Tião Carreiro e Pardinho”, uma
das mais expressivas do universo da música caipira de meados do século XX – época em que
se deu o chamado êxodo rural brasileiro e que corresponde, portanto, ao momento em que o
caipira deixa o meio (rural) que era definidor da sua cultura e se vê diante da cidade que
representa o avanço do processo de desenvolvimento do capitalismo.
Trata-se, portanto, de um momento privilegiado para análise de um choque de culturas em que
o caipira se vê obrigado a revisar seu conjunto de valores para adaptá-los às novas condições
de vida.
O universo de pesquisa, obviamente é extenso, e vem sendo tratado no contexto do curso de
doutorado em sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Portanto, o que
será aqui apresentado é apenas uma parte que diz respeito às músicas que têm em comum o
tema do desafio. Aspecto que, segundo o trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco
“Homens livres numa sociedade escravocrata”, era o elemento chave para a organização do
trabalho no mundo caipira:
“(...) Em primeiro lugar, a técnica de incentivo ao trabalho e de controle da
produtividade não traduz a vigência de normas que orientem as relações entre as
pessoas no sentido de sua integração. (...) Muito pelo contrário, essa técnica é o
desafio e está fortemente carregada de tensão.” (FRANCO, 1969, p. 36)
Mas, segundo a autora, o desafio não está restrito somente ao mundo do trabalho. Ele também
se faz presente como elemento lúdico nos ambientes de lazer e espaços de sociabilidade do
mundo caipira (FRANCO, 1969, p.40-42). Inclusive, naquele modo de cooperação e lazer que
parece tão caro, até mesmo idílico, no notório “Parceiros do Rio Bonito” (CANDIDO, 1977,
p. 68).
Como se sabe, o trabalho em questão de Maria Sylvia de Carvalho Franco está centrado na
afirmativa de que a violência tem uma presença estrutural na sociedade composta pelo
universo caipira do mundo rural paulista – ao menos, na região que ela estudou.
A seguir pretendo, então, analisar as modas de viola do meu recorte de pesquisa que tratam
especificamente do tema do desafio para ver de que maneira esta violência foi trabalhada nas
letras destas músicas.
Para a presente análise, utilizei-me dos quatro discos dedicados exclusivamente às modas de
viola da dupla “Tião Carreiro e Pardinho”:
- Modas de Viola Classe A de 1974;
- Modas de Viola Classe A - volume 2, de 1975;
- Modas de Viola Classe A - volume 3, de 1981;
- Modas de Viola Classe A - volume 4, de 1984.
A tradição do desafio
“Última Viagem”, composição de Carreirinho e Fernandes, foi gravada no disco “Modas de
viola classe A – volume 2” de 1975 e também no volume 3 dessa série “Modas de viola –
Classe A”, de 1981.
A letra desta música narra um encontro que o narrador tem com um antigo violeiro que lhe
conta um episódio de sua vida, no qual seu parceiro de viola foi assassinado – fato que o levou
a abonar a carreira de violeiro.
Pela letra da canção, sabemos que o fato ocorreu dez anos atrás, quando a dupla de violeiros,
conhecida pela sua experiência e sucesso nas músicas de desafio, foi convidada para uma festa
onde deveria enfrentar outra dupla.
A dupla vence o desafio, mas as pessoas que estavam na festa sentem-se despeitadas com a
derrota da dupla de violeiros da região que, até então, era renomada nas músicas de desafio.
Então, “o povo” que se constituía como público da festa finge que estava se divertindo
enquanto servem café envenenado à dupla de violeiros visitantes.
Dez anos após este fato, no tempo presente da narrativa, o violeiro que sobreviveu a tentativa
de assassinato - por não ter o hábito de tomar café - narra este triste e violento episódio
enquanto que sua viola, tal qual o vestido do poema de Carlos Drummond de Andrade,
permanece pendurada na parede (ANDRADE, 2003).
Assim, a narrativa da canção parece ecoar o cenário de violência presente no universo caipira
(no de lazer, inclusive) que Maria Sylvia de Carvalho Franco enfatizou em seu trabalho:
“Compreende-se que os ambientes de lazer sejam propícios para reacender antigas
disputas ou deflagrar antagonismos, quando se descobre o vivo espírito de provocação
que está na base dos divertimentos. O desafio faz sua reaparição em cena, agora como
forma básica e contínua: o espicaçamento zombador diretamente leva ao revide do
sujeito atingido, cuja afirmação se faz já a sério e com animosidade.” (FRANCO,
1969, p. 40-41)
Porém, de todas as modas de viola da dupla “Tião Carreiro e Pardinho” que falam em desafio
esta é a única que a violência se faz presente desta maneira presente e vencedora. Além disso,
o fato da narrativa referir-se a um acontecimento ocorrido no passado (na época do “velho
Epitáfio”, “o rei dos cantador”) parece sugerir que se trata de uma época passada e já
superada da civilização caipira. É o que pode, inclusive, ser constatado na próxima canção que
narra um acontecimento análogo ao da primeira música aqui tratada: uma dupla que é
convidada para uma festa onde outra dupla de renome os enfrentará num duelo musical.
Esta segunda música, intitulada “Consagração”, é de composição de Carreirinho e foi gravada
pela dupla “Tião Carreiro e Pardinho” no disco “Modas de viola Classe A – volume 2” de
1975.
A exemplo da música anterior, nesta, uma dupla de violeiros recebe um convite para cantar em
desafio com outra renomada dupla campeã neste estilo musical. A dupla que eles iriam
enfrentar tinha uma autoconfiança muito alta, baseada não somente no seu renome de vitórias
passadas como também no reconhecimento do público que a esperava ver vencedora. Assim,
os violeiros convidados são desafiados a tocar o primeiro verso por um dos violeiros da dupla
oponente cuja indumentária (com chicote e revolver na cintura) refletia seu estilo agressivo de
cantar em alta voz.
O violeiro, narrador da história, diz então que procurou reservadamente o dono da festa e,
pedindo licença, antecipa-lhe o “bombardeio de versos” com o qual irá derrubar a dupla rival
devido à falta de modos civilizados.
Assim, a autoconfiança da dupla rival baseada numa voz forte e numa postura agressiva não é
suficiente para os versos elaborados da dupla do narrador que supera em muito os versos de
má qualidade daquela dupla que, aliás, acaba reconhecendo a superioridade dos violeiros
visitantes retirando-se antes mesmo que estes terminassem os últimos versos.
Trata-se, como já foi mencionado, de uma narrativa que remete ao mesmo universo da música
anterior: uma festa, própria do universo caipira onde as duplas se enfrentam em desafio
segundo a tradição folclórica em questão. Porém, diferentemente da música anterior, não há
nenhum final trágico com supremacia da violência. Pelo contrário, tudo transcorre de maneira
“civilizada” segundo a perspectiva do desenvolvimento do autocontrole presente no trabalho
de Norbert Elias (ELIAS, 1994).
Neste sentido, há, porém, alguns aspectos “incivilizados” na narrativa da canção que são,
inclusive, alvo de crítica do narrador-personagem: são aquelas atitudes relacionadas à postura
agressiva dos violeiros que recebem os violeiros convidados para o desafio. E é justamente
este comportamento agressivo – contrário, portanto, ao gesto polido do violeiro-narrador que
pede licença/autorização ao dono da festa antes de realizar o ataque direto e fatal a dupla
desafiante – que é o foco central da crítica presente na música quando o narrador critica a
“falta de instrução” do oponente.
Curioso também é notar a presença do chicote e do resolver na cintura (o “trinta de lado”) do
violeiro de estilo agressivo e rude. A vitória, portanto, do violeiro “civilizado” que mesmo
sem ter uma educação formal sabe se comportar de modo cortês representa simbolicamente a
vitória da proposta civilizatória sobre a “barbárie”, ou seja, sobre o uso da violência que
caracteriza o momento anterior da ascensão do processo civilizador segundo o conjunto de
narrativas formado pelas modas de viola aqui em questão.
Assim, esta última música - em contraposição à primeira - parece apontar um caminho, isto é,
uma proposta civilizatória que configura certa unidade estética nas demais modas de viola da
dupla “Tião Carreiro e Pardinho” que se ocupam com a narrativa de desafios como tratarei a
seguir.
O desafio na viola
Além das duas músicas tratadas até agora, que se ocupam com a narrativa de duelos entre
violeiros, há também outras três modas de viola da dupla “Tião Carreiro e Pardinho” que
também fazem referência ao estilo desafio entre violeiros. São elas: “Clarineta”, composição
de Zé Carreiro e Carreirinho presente no disco “Modas de Viola Classe A – volume 2” de
1975; “Gato de três cores”, composição de Carreirinho presente no disco “Modas de Viola
Classe A” de 1974; e “Derrota”, composição de Décio dos Santos presente no disco “Modas
de Viola Classe A – volume 2” de 1975.
“Gato de três cores” é uma música cuja letra contém uma narrativa semelhante às canções
anteriormente tratadas: um violeiro recebe um convite para comparecer com seu parceiro a
uma festa onde os aguardam uma renomada dupla para um tradicional duelo musical.
O violeiro-narrador e seu parceiro se apresentam com desenvoltura derrotando, com seus
versos, a outra dupla que o público esperava que fosse campeã. E a exemplo da última canção
aqui tratada (Consagração) não há, na narrativa desta moda de viola, nenhuma referência à
violência.
Já a segunda música, “Derrota”, retoma o mesmo estilo narrativo de um violeiro que é
convidado para enfrentar outras duplas nas festas. Com a diferença, porém, que em vez de
narrar mais um episódio, a letra da música destaca o renome que o violeiro-narrador já obteve
a partir dos constantes sucessos neste tipo de desafio. Por essa razão os outros campeões da
redondeza já temem enfrentá-lo, pois sabem que “perto da estrela d'álva, outra estrela não
clareia”.
A terceira e última canção, “Clarineta”, retoma a mesma tradição dos duelos musicais em
festas reduzindo, porém, a ênfase na narrativa dos fatos para destacar aquele aspecto que
considera fundamental para o sucesso nos desafios: uma viola bem feita e afinada, e um
grande repertório de músicas. À exemplo das outras duas músicas, esta também não traz
nenhuma referência a qualquer gesto de violência nesse ambiente das festas onde acontecem
os desafios.
Mas, no universo das modas de viola da dupla “Tião Carreiro e Pardinho”, as narrativas dos
desafios não estão restritas à participação de grandes violeiros em festas. Como se verá a
seguir, os desafios fazem-se presentes em outros contextos também.
O desafio nos bares
Depois das festas onde se apresentam violeiros, o ambiente mais comum para o desafio, nas
modas de viola da dupla em questão é o bar-restaurante. Entretanto, neste novo ambiente, o
desafio não é realizado por violeiros de maneira cantada, mas, sim, através do debate de idéias
entre indivíduos representantes de diferentes estratos sociais. Trata-se, portanto, da
transposição da cultura do desafio para novos agentes e para este novo ambiente de
sociabilidade tipicamente democrático no que se refere ao diálogo: os bares.
São três as músicas que se ocupam com a narrativa destes desafios nos bares: “Rei do gado”,
composição de Teddy Vieira; “Terra roxa”, composição também de Teddy Vieira; e “Exemplo
de humildade”, composição de Dino Franco e do próprio Tião Carreiro. As três músicas fazem
parte do disco “Modas de Viola Classe A – volume 3” de 1981, embora tenham sido gravadas
anteriormente pela dupla.
“Rei do Gado” tem uma narrativa que se passa num bar de Ribeirão Preto onde, em meio a
uma celebração da alta classe, adentra um peão “coberto com o pó da viagem”. Um dos
representantes do grupo dos ricos sugere ao proprietário do bar que coloque aquele peão pra
fora já que estava presente o “rei do café” – um rico proprietário que tem “milhões de pés de
café”.
Mas, o peão, em vez de se retirar resolve enfrentar o desafio parecendo, assim, retomar a
tradição musical do folclore e responde, “com um modo bem cortês” que aquela riqueza não
lhe assusta porque para “cada pé deste café eu amarro um boi da minha invernada, e pra
encerrar o assunto eu garanto que ainda me sobra uma boiada”.
Curioso aqui notar que a inserção que o peão faz no desafio é feita de modo civilizado dentro
da perspectiva de Norbert Elias, ou seja, “com um modo bem cortês” contra-argumentando,
em seguida, sobre o mesmo fundamento que havia sido colocada como justificativa para lhe
excluir daquele ambiente: a riqueza.
Assim, se a riqueza é a condição sine qua non para ele ter acesso ao ambiente onde os ricos
festejam, é justamente isto o que ele usa para ter acesso ao diálogo em pé de igualdade. E
após vencer o desafio, paga a pinga com uma nota alta “dizendo ao garçom pra guardar o
trocado” e deixa o local sugerindo agora que ele é que não era mais digno da companhia
daqueles que estavam no bar.
Trata-se, portanto, de uma narrativa simples e direta que retoma a tradição do estilo desafio
num ambiente que não deixa de ser o de festa – visto que os presentes festejavam. Porém, num
contexto, obviamente, diferente daquele do meio rural. Curioso também notar que é o caipira
(e não os ricos) quem dá mostra de como ser “civilizado”.
A segunda canção, “Exemplo de Humildade”, tem uma narrativa que segue o mesmo estilo da
música anteriormente tratada: se passa num bar, onde adentra um peão com roupas gastas
pelas duras condições de quem viaja a pé pelas estradas cobertas de pó. Desta vez, porém,
quem se indigna com sua presença são os proprietários do lugar que o recebem com uma
atitude de desprezo: desconfiando possivelmente que o peão não tinha dinheiro para pagar o
refresco que pediu, o copeiro pede que ele pague antecipadamente enquanto que o patrão
completa dizendo que ele se aborrece com freguês “pés de chinelo” mostrando um parabelo
(possivelmente um revolver) enquanto fala.
Diz o narrador que o personagem maltrapilho sente a ofensa, mas não reclama preferindo
atender às exigências do copeiro de pagar primeiro para depois receber a bebida. Depois de
beber a batida de limão, ele então explica o motivo da sua vestimenta suja e maltrapilha: há
trinta e dois dias de viagem que ele caminha a pé em direção ao santuário de Aparecida do
Norte, para onde segue para pagar uma promessa que havia feito à santa quando sua mãe
estava à beira da morte.
Tendo recebido o milagre da cura da mãe, agora ele segue a pé, pois, segundo seus
argumentos: “se eu estou sujo e rasgado é de tanto caminhar, pois eu preciso pagar alguém
que me ajudou”.
Depois de ter explicado as razões nobres (o gesto de gratidão por algo recebido) de suas
precárias condições físicas, o protagonista arremata o “desafio” no qual havia se metido de
maneira inusitada argumentando, a exemplo do protagonista da canção anterior, que ele é um
homem rico e que o dono do bar e seu empregado erraram ao julgar-lhe pelas aparências
acrescentando que eles deveriam ter mais educação com seus fregueses.
Esta música, claro, tem forte apelo à tradição cristã – seja pela questão da humildade, da
gratidão ou da crítica ao julgamento pelas aparências. Contudo, além da questão religiosa, ela
é também uma crítica à barbárie que na música é simbolizada pelo parabelo (revolver) que o
dono do restaurante apresenta como que para dar autoridade, através da coerção física, ao seu
argumento de que aquele não era lugar para um tipo maltrapilho.
E a resposta à barbárie não é unicamente a riqueza – elemento presente também na canção
anterior. Aqui, ela é utilizada como elemento que desmonta o preconceito do dono e copeiro
do bar-restaurante ao mesmo tempo em que, por essa razão, dá uma maior autoridade à
resposta. E a exemplo da música anterior, no final, o peão deixa o bar sugerindo, também, que
ele é que não era digno da presença daqueles que o ofenderam.
Outra correspondência com a música anterior é que o argumento do protagonista é também
apresentado de modo cortês: respondendo a ofensa com o esclarecimento da situação ao
mesmo tempo em que critica à falta de polidez dos funcionários: “os senhores desta casa não
souberam me atender, quando deveriam ter um pouco mais de educação”.
Em suma: trata-se claramente de mais uma moda de viola que ao mesmo tempo em que
mantém a tradição do desafio musical, coloca-se a serviço do processo civilizador – não
somente do caipira, aliás, que mais uma vez é o agente civilizador.
A terceira e última música deste grupo, “Terra Roxa”, tem uma narrativa que segue o mesmo
modelo das anteriores: se passa num bar, onde há uma pessoa com roupas simples e sujas,
própria de quem enfrenta o pó da estrada, e que justamente por isso será menosprezada. Isto,
então, o conduz para um duelo no qual seus argumentos irão mudar a situação inicial.
Desta vez, porém, a narrativa da música tem início com um senhor rico que entra rapidamente
em um restaurante para trocar uma nota de mil cruzeiros – a mesma nota, diga-se de
passagem, com a qual o protagonista da música “Rei do Gado” havia pago sua pinga dizendo
ao garçom para ficar com o troco. O dono do restaurante, a quem o senhor rico inicialmente
procura, diz que não tem trocado sugerindo-lhe, então, que procure junto aos fregueses –
afirmando que “aí tem freguês importante”.
O senhor rico, chamado de “grã-fino” na letra da música, passa de mesa em mesa com exceção
de uma delas onde havia um negro “num traje esquisito, num tipo de andante”. O dono do
bar-restaurante lhe diz, entretanto, que justamente aquela é a pessoa que teria condições para
trocar seu dinheiro. Mas, o rico não acredita argumentando que pelas condições da roupa e
pelo jeito de muito acanhado ele aposta que aquele negro não é ninguém na vida.
“Nisso, o preto que ouviu a conversa chamou o moço por modo educado”, retirou um pacote
de dinheiro que tinha na bolsa e foi jogando sobre a mesa pedindo-lhe desculpas por não ter
trocado subentendo-se, assim, que todas as notas eram de alto valor. O rico, então, parece se
esquecer do seu objetivo imediato (o de trocar o dinheiro) e questiona qual é a fonte do
empreendimento onde se pode ganhar tanto dinheiro assim.
O negro lhe responde que esta riqueza vem dos duzentos e oitenta mil pés de café que ele
plantou com as próprias mãos nas terras que comprou no estado do Paraná. O grã-fino então se
desculpa dizendo que também gostaria de “arriscar a sorte” neste negócio, ao que o negro lhe
responde ironicamente que para obter esta riqueza ele precisará ser bom no uso da enxada.
Assim, o principal tema deste desafio volta-se para a sutil crítica que este selfmademan caipira
faz ao rico enquanto representante da tradição cultural herdada, segundo Sérgio Buarque de
Holanda, desde o início da dita colonização portuguesa: o menosprezo pelo trabalho braçal
aliado ao desejo de uma vida de ócio (HOLANDA, 1963, p. 12-13).
Trata-se, portanto, do uso de um novo processo civilizador (o do selfmandeman da cultura
norte americana, em voga no pós-guerra) para criticar o processo civilizatório anterior (se é
que o podemos chamá-lo assim) herdado pela colonização portuguesa do Brasil. E isto tudo,
convém destacar, sem nenhuma referência à violência, mas, pelo contrário, segundo maneiras
civilizadas conforme se pode constatar na citação anteriormente da letra da música quando o
negro chamou o rico por modo educado.
Mas, o bar não foi o único espaço para onde a cultura do desafio foi transposta. A próxima
canção se ocupa com outro espaço que historicamente foi marcado pela violência: a disputa
por terras.
O desafio pela terra
“O Mineiro e o Italiano”, composição de Teddy Vieira e de Nelson Gomes, faz parte do disco
“Modas de Viola Classe A – volume 3” de 1981. Antes, porém, ela havia sido gravada, pela
dupla, em discos de 1964 (Linha de Frente), 1967 (Os Grandes Sucessos de Tião Carreiro e
Pardinho), 1970 (Show de Tião Carreiro e Pardinho) e 1978 (Terra Roxa).
A letra narra a história de um mineiro e um italiano que disputavam, na justiça, uma mesma
terra onde o mineiro tinha sua casa. Para o mineiro e para sua família, a demanda judiciária é
uma questão de sobrevivência. Já, para o italiano, trata-se apenas de uma questão pessoal de
expulsar o mineiro da terra que considera sua.
O mineiro procura seu advogado pedindo, ingenuamente, que este coloque às claras a situação
para o juiz: que a posse da terra para ele é uma questão de sobrevivência e dignidade perante
sua família, enquanto que para o italiano, rico e dono de muitas outras terras, é apenas um
capricho pessoal. Pede também para o advogado dizer ao juiz que se este lhe ajudar a ganhar a
demanda, lhe dará uma leitoa de presente.
Diante da proposta ingênua do mineiro, de dar uma leitoa de presente ao juiz, o advogado lhe
responde que “o senhor não sabe o que está falando” porque o juiz é um “caboclo sério”,
severo e incorruptível. Portanto, diz ainda o advogado, que se o mineiro enviar a leitoa para o
juiz este dará a vitória para o italiano.
Contrariando as expectativas, no dia do julgamento, o juiz dá a vitória para o mineiro. O
advogado fica pasmo e se recusa a acreditar que o juiz foi capaz de se vender. O mineiro,
então, esclarece que ele, de fato, mandou a leitoa para o juiz: “só não mandei no meu nome,
mandei no nome do italiano”.
Esta curiosa narrativa, de tons dramáticos e final hilário, retrata o processo civilizador no qual
a luta violenta de terras é transferida para os meios racionais e burocráticos dos tribunais que,
por sua vez, representam a presença do Estado e, conseqüentemente, o monopólio do uso da
violência conforme definição de Weber a que Norbert Elias recorre no seu trabalho (ELIAS,
1994, p.17).
Porém, mais do que isso, a narrativa retrata também os limites e dificuldades da efetividade
deste sistema moderno e racional de justiça, visto que a narrativa da música passa a impressão
de que é o lado rico que sairá vencedor deixando o mineiro (que, além de pobre, não iniciado
nas maneiras racionais que caracterizam a modernidade) sem saída para sustento próprio e da
família.
Seu final hilário, contudo, é uma espécie de elogio à capacidade inventiva do caipira para
burlar os limites das novas regulamentações que, não raro, reproduzem as desigualdades
sociais já estabelecidas. Em suma, trata-se de uma canção que apresenta, por um lado, o
conhecido “jeitinho brasileiro” para burlar a burocracia e, por outro, um choque de culturas e a
inadequação ou unilateralidade do processo civilizatório em questão.
Considerações finais
Como se pôde constatar pela presente análise, as modas de viola em questão - que se ocupam
com o tema do desafio - tratam a violência sempre como algo superado (ou a ser superado) por
algo que, por sugestão do trabalho de Norbert Elias, podemos compreender como sendo um
processo civilizador do caipira paulista.
Processo este que parece ter ocorrido em paralelo com o movimento de migração do caipira
para a área urbana, no que se conveniou chamar de êxodo rural brasileiro e que atingiu seu
ápice na década de setenta (1970). Não se pode a partir desta análise traçar o desenvolvimento
ou a efetividade deste processo. O que se pode, no entanto, é constatar que esta proposta
civilizadora esteve bastante presente naquelas músicas que correspondem ao objeto da minha
pesquisa de doutorado: as modas de viola de “Tião Carreiro e Pardinho”, que são uma das
mais famosas duplas deste gênero musical.
Esta perspectiva de análise foi, inclusive, a que inicialmente deu origem ao trabalho hoje
conhecido como “Parceiros do Rio Bonito” (CANDIDO, 1977, p.9). Neste trabalho, o que se
pretendia, originalmente, era compreender as transformações sociais do mundo caipira a partir
da análise das músicas – mais especificamente do estilo conhecido como cururu que, a
propósito, é uma forma de desafio (ANDRADE, 1989, 168-169) enquanto que a moda de
viola, aqui tratada, apenas relata estes desafios. No entanto, por alguma razão, Antonio
Candido não seguiu esta perspectiva de análise.
Curiosamente, alguns anos depois do trabalho de Antonio Candido, a autora de “Homens
Livres na Ordem Escravocrata” afirmava que o desafio estava ligado, em sua essência, à
promoção da violência no meio rural caipira (FRANCO, 1969, p. 42). É preciso, porém, fazer
ressalvas quanto a isto – ao menos no aspecto da cultura. Até mesmo porque, segundo Marcel
Mauss, os esquimós da Groelândia também possuíam a prática do desafio musical (MAUSS,
1991, p. 415-416) enquanto que a violência não estava presente de maneira estrutural como
acontece no caso do caipira de São Paulo. Portanto, parece ser questionável este vínculo –
entre violência e desafio musical - que se pode depreender da leitura da obra de Maria Sylvia
de Carvalho Franco.
Além disso, vale também destacar que, embora a autora diga que o caipira paulista tenha uma
cultura oral pobre (FRANCO, 1969, p.42), o desafio está longe de ser uma prática cultural
específica do estado de São Paulo como bem destacado por Mário de Andrade. Neste sentido,
ele afirma que o desafio musical encontra-se não somente em outras regiões do Brasil (Bahia e
Rio Grande do Sul) como também em outros inúmeros países como Noruega, Espanha,
Colômbia, Portugal, etc. (ANDRADE, 1989, p.186-190). Assim, ou todas essas culturas são
igualmente pobres ou há certa complexidade que escapou à análise da renomada autora que
fez seus estudos baseados em processos criminais (arquivos judiciários de crimes) e não
propriamente na observação ou pesquisa da cultura.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond (2003). “Caso do Vestido” in Carlos Drummond de Andrade:
poesia completa, volume único. Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro. P. 161-165
ANDRADE, Mário de (1989). Dicionário Musical Brasileiro. Editora Itatiaia Ltda. Belo
Horizonte, MG.
CÂNDIDO, Antônio (1977). Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo. Livraria Duas
Cidades Ltda. 4ª edição.
ELIAS, Norbert (1994). O Processo Civilizador – volume 1. Tradução de Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho (1969). Homens livres na ordem escravocrata.
São Paulo. USP, Instituto de Estudos Brasileiros.
HOLANDA, Sérgio Buarque de (1963). Raízes do Brasil. Brasília, DF. Editora UnB.
4ª. Edição.
MAUSS, Marcel. 1991. “Ensayo sobre las variaciones estacionales en las sociedades
esquimales: um estúdio de morfologia social” in Sociologia y Antropologia. Editorial
Tecnos, Madrid.
Download

Texto 1 - FAUSTINO, J.C. Os desafios da viola