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m e d i c a m e n t o
ORDEM DOS FARMACÊUTICOS
Importância dos Estereoisómeros na Terapêutica
ESTEREOISOMERISMO
E ACTIVIDADE BIOLÓGICA (*)
Quando moléculas compostas pelos mesmos átomos
têm a mesma fórmula estrutural, mas diferem uma da
outra unicamente na forma como átomos ou grupos es­
tão orientados no espaço, elas são definidas como este­
reoisómeros.1
Os estereoisómeros englobam os enantiómeros e os dias­
tereoisómeros, incluindo estes também os isómeros geo­
métricos. Os enantiómeros exibem quiralidade devido à
assimetria molecular.1
Considerando que o local último onde um fármaco irá
exercer a sua acção – o receptor alvo – é maioritaria­
mente de natureza quiral, incluindo proteínas e polissa­
carídeos, fácil é deduzir que a tridimensionalidade tem
um papel determinante no fenómeno do reconhecimento
molecular entre a molécula do fármaco e a biomacro­
molécula receptora1. Esse fenómeno é fundamental para
que a bioactividade se manifeste; daí que a existência
de qualquer tipo de isomeria, e muito especialmente a
estereoisomeria, tenha implicações na actividade de um
fármaco. Esta influência pode ser encontrada em várias
famílias de compostos existentes na terapêutica, com
aplicações tão importantes e variadas como agentes
antidepressores, antiarrítmicos, anti­hipertensivos, anti­
‑inflamatórios, anti‑histamínicos, antitumorais, opióides,
psicotrópicos, antibióticos, antifúngicos, antitrombóticos,
entre outros.2
Quadro 1 ‑ Definições de termos utilizados
Compostos meso:
diastereoisómeros com dois ou mais centros estereogénicos, em que os quatro grupos em cada um dos centros
contêm um plano de simetria interna.
Configuração:
arranjo espacial que distingue um estereoisómero de outro e pode ser expresso pelas designações R ou S, de
acordo com as regras de Cahn­Ingold­Prelog.
Diastereoisómeros:
isómeros ópticos que não se relacionam como objecto­imagem num espelho plano, ou seja, não correspondem
a enantiómeros.
Enantiómeros:
isómeros ópticos que se comportam um em relação ao outro como objecto e respectiva imagem num espelho
plano ou como mão direita/mão esquerda, ou seja, não são sobreponíveis. O isómero que roda o plano da luz
polarizada para a direita é designado dextrógiro (+) e o que roda para a esquerda é levógiro (­).
Enantiosselectividade: escolha entre dois enantiómeros por uma entidade quiral. A nível biológico refere as diferenças entre enantióme­
ros relativamente aos seus efeitos farmacológicos e terapêuticos, assim como na respectiva toxicidade.
Estereoisómeros:
moléculas compostas pelos mesmos átomos, contendo a mesma fórmula estrutural; diferem uma da outra unica­
mente na forma como átomos ou grupos estão orientados no espaço. Podem ser isómeros ópticos (enantiómeros
e diastereoisómeros) ou geométricos.
Isómeros geométricos: não relacionados com actividade óptica e podem ser classificados como cis/trans ou Z/E.
Mistura racémica:
contém quantidade igual dos dois enantiómeros. Um processo pelo qual os enantiómeros são separados é desig­
nado resolução.
Quiralidade:
propriedade geométrica que, na maior parte dos casos, está associada à existência de, pelo menos, um centro
estereogénico e consequentemente a assimetria molecular. A designação quiralidade deriva da palavra grega
para mão; reflecte assim que as moléculas que se comportam como mão esquerda/mão direita são quirais.
Razão eudísmica:
corresponde à razão da actividade do enantiómero mais activo (eutómero) e a do enantiómero menos activo
(distómero).
(*) Para definições ver Quadro 1.
Setembro/Outubro 2005
Boletim do CIM
Director: J. A. Aranda da Silva
Boletim do CIM
Setembro/Outubro 2005
INFLUÊNCIA DA ISOMERIA GEOMÉTRICA
INFLUÊNCIA DO ENANTIOISOMERISMO
Embora os isómeros geométricos se encontrem muito
menos representados na terapêutica que os fármacos
quirais, um dos exemplos significativos da influência da
isomeria geométrica na potência da bioactividade pode
ser ilustrado pelo dietilestilbestrol (Fig.1). Este composto
Essa influência manifesta‑se a vários níveis, sendo de
crucial importância reter que a enantiosselectividade é
exibida, não só na fase farmacodinâmica (interacção com
biomacromoléculas como receptores, enzimas, etc.), mas
também na fase farmacocinética (absorção, distribuição,
metabolismo e excreção).4­6
De entre os estereoisómeros assumem especial impor­
tância os enantiómeros e os respectivos racematos, prin­
cipalmente quando se trata de agentes terapêuticos com
possibilidade de exibirem actividades agonista/antagonis­
ta. Apesar disso, actualmente a maior parte dos fármacos
quirais existe na terapêutica sob a forma de racemato,
embora a tendência para a produção/comercialização dos
enantiómeros puros tenha vindo a aumentar.
Sem dúvida que o caso trágico e sobejamente conhecido
da talidomida racémica, em que o enantiómero R mani­
festa efeito sedativo e o S é teratogénico, foi marcante
para chamar a atenção para esta problemática.
Para ilustrar a importância da estereoisomeria na tera­
pêutica, serão a seguir indicados alguns casos que exem­
plificam as situações mais frequentes quando se trata da
administração de fármacos quirais.
Um exemplo do “desejável mas pouco comum” é o caso
da estrona em que o enantiómero dextrógiro é activo
como estrogénio e o levógiro é inactivo.7
No âmbito de uma situação muito “pouco comum” po­
demos encontrar o exemplo da prometazina, em que os
enantiómeros têm propriedades praticamente idênticas
no que se refere à actividade anti­histamínica e toxicida­
de, manifestando assim o mesmo tipo de características
farmacológicas.7
A situação em que ambos os enantiómeros exibem o
mesmo tipo de actividade, mas com potências diferen­
tes, sendo um mais activo (eutómero) e o outro menos
activo (distómero), é “muito comum” nas famílias dos
fármacos quirais.
Para o grupo dos designados β‑bloqueadores dos quais o
(S)­propranolol e o (S)­metoprolol são exemplos (Fig. 2),
Figura 1 – Relação estrutural entre o estradiol e o (E)­dietilestilbestrol.
é um derivado estrogénico sintético, que se pode apre­
sentar sob a forma Z ou E, dependendo da orientação dos
substituintes relativamente à ligação dupla.3
No caso do isómero E, a distância entre os grupos hidro­
xilo do dietilestilbestrol biomimetiza a existente no es­
tradiol em meio biológico com uma molécula de água de
cristalização, o substrato natural para os receptores es­
trogénicos. Assim, a potência estrogénica no isómero E é
superior à do Z, devido a uma maior complementaridade
com o receptor.
Figura 2 – Estereoisómeros de diversos fármacos.
1. glucuronidação no hidroxilo livre
2. oxidação aromática dando o 4­hidroxipropranolol, o
qual por sua vez pode também sofrer conjugação, tanto
com sulfato como com ácido glucurónico
3. cisão oxidativa na cadeia lateral aminada.
Cada um destes passos exibe estereosselectividade, sen­
do os 1 e 3 selectivos para o enantiómero S e o passo 2
preferencial para o R.
Mas, considerando as clearances parciais para os enanti­
ómeros de cada um dos passos referidos, verifica‑se que
o metabolismo do propranolol é dominado pelo efeito de
primeira passagem (pré­sistémico) da 4­hidroxilação, a
qual é altamente selectiva para o isómero R menos ac­
tivo (o eutómero é o (S)­(­) que é e cerca de 100 vezes
mais activo que o (R)­(+). Esta situação leva a um en­
riquecimento plasmático no isómero (S)­(­) activo, con­
tribuindo assim para a aparente potência aumentada do
racemato quando administrado oralmente.6
Os anti‑inflamatórios não esteróides (AINEs) do grupo
dos profenos (derivados do ácido propiónico) contêm
um carbono estereogénico e o enantiómero que in vitro
Figura 3 – Passos metabólicos principais do propranolol.
é mais potente é o (S)­(+). Acontece que in vivo os pro­
fenos sofrem uma inversão quiral metabólica, pelo que o
enantiómero (R)­(­) se transforma em (S)­(+) (Fig. 4).9
Essa vantagem é apenas aparente, pois a velocidade e a
percentagem de inversão quiral dependem não só da es­
trutura do fármaco administrado mas também do indiví­
duo, pelo que na maioria dos casos não é completa, per­
manecendo assim uma porção do enantiómero (R)­(­) no
organismo. 10 É, por exemplo, o caso do (R)­(­)­ibuprofeno,
no qual a inversão a (S)­(+)­ibuprofeno activo (Fig. 2)
se dá em apenas 60%.10 Para além disso, durante a bio­
transformação referida, alguns intermediários levam à
formação de “triglicéridos híbridos” que podem exibir
toxicidade.
Em alguns países é já comercializado o enantiómero ac­
tivo (S)­(+) puro do ibuprofeno, designado dexibuprofe­
no. Este composto, para além da dose diária necessária
em artrite reumatóide ser cerca de um terço da utilizada
com o racemato, mostrou também um perfil menor de
efeitos adversos.11
Considerando a área dos neurofármacos, é de salientar
a importância que a questão da quiralidade tem vindo a
suscitar recentemente,12,13 o que não será de estranhar
se pensarmos que alguns neurotransmissores, como é o
caso da adrenalina e do ácido glutâmico, actuam sob a
forma de enantiómeros puros.
Um grupo de fármacos em que o estudo da influência da
estereoisomeria na actividade, metabolismo e toxicidade
tem vindo a sofrer amplo desenvolvimento é o dos agen­
tes antidepressivos. 13
Podem ser encontrados vários exemplos no grupo dos
inibidores selectivos da recaptação de serotonina. No
caso da fluoxetina, ambos os isómeros (Fig. 2) apresen­
tam uma inibição equivalente, embora o enantiómero
(R)­(­) seja eliminado mais rapidamente. Apesar disso, não
foram encontrados benefícios reais para a sua introdução
na terapêutica como agente antidepressivo, embora se
Setembro/Outubro 2005
os enantiómeros exibem qualitativamente a mesma acti­
vidade farmacológica, mas quantitativamente diferente,
sendo mais potentes na forma (S)­(­) que na forma (R)­
(+). A razão eudísmica é de 130 e 270 respectivamente
para o propranolol e para o metoprolol.8
A influência da quiralidade no metabolismo e excreção
pode ser exemplificada pelo que se passa com o propra­
nolol administrado sob a forma de racemato e se torna
mais efectivo por via oral que por via intravenosa.6
Essa aparente anomalia deve­se à estereosselectividade
encontrada na primeira passagem do metabolismo, da
qual resultam enantiómeros tendo diferente biodisponi­
bilidade.
O propranolol sofre três passos metabólicos principais
(1,2 e 3) a considerar (Fig. 3):
Boletim do CIM
Setembro/Outubro 2005
Quando se trata de fármacos quirais, verifica‑se que a
maioria se encontra na terapêutica sob a forma de mis­
tura racémica e muito tem sido discutido, principalmente
desde o final dos anos 80, sobre a conveniência ou não da
administração de racematos em relação a enantiómeros
puros. Tendo em conta a enantiosselectividade biológica
já referida, situações diversas podem ser encontradas e
devem ser analisadas caso a caso. Embora existam situ­
ações em que a comercialização de misturas racémicas
possa ser admissível, caso de enantiómeros com potên­
cia e actividades similares, por exemplo, genericamente
a administração de um enantiómero puro pode oferecer
vantagens, nomeadamente doses menores, menos efeitos
indesejáveis, perfis farmacológicos superiores e redução
de interacções com outros fármacos, pelo que as auto­
ridades reguladoras têm vindo a encorajar as indústrias
farmacêuticas a desenvolver fármacos enantiomerica­
mente puros.
A reavaliação das actividades de racematos e dos enan­
tiómeros puros poderá também levar a resultados muito
interessantes no que concerne à descoberta de novas
aplicações terapêuticas para fármacos já conhecidos.
Madalena M. M. Pinto
Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto
Figura 4 – Representação esquemática da inversão quiral de profenos
in vivo.
encontre em testes clínicos para ser usado na profilaxia
da migraine.11,14
Um dos exemplos mais recentes é o do citalopram.
Este antidepressivo foi inicialmente comercializado sob
a forma de racemato, estando actualmente já disponível
na terapêutica o enantiómero puro (S)­(+), designado
escitalopram (Fig. 2). Conclui­se ser este isómero muito
mais potente que o seu antípoda, com uma razão eudís­
mica de 167.14 Além disso, o eutómero é considerado um
inibidor ainda mais selectivo, com um início de acção mais
rápido, aparecendo assim como um agente antidepres­
sivo potente, efectivo e bem tolerado.13,14
Para além dos anteriormente indicados, uma reavaliação
dos fármacos racémicos existentes no mercado levou, nos
últimos tempos, à comercialização de alguns deles como
enantiómeros puros, nomeadamente anti‑inflamatórios
não esteróides, inibidores da bomba de protões, antimi­
crobianos, anestésicos locais, anti­histamínicos, bloque­
adores neuromusculares, entre outros.11
CONCLUSãO
Os exemplos apontados são elucidativos da necessidade
de uma utilização criteriosa dos fármacos quirais, pois a
presença do “outro” enantiómero pode ser “benéfica” ou
“prejudicial”, dependendo da situação em causa.
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