Para que serve o exame de qualificação?
Bruno Pucci
O exame de qualificação envolve diretamente não apenas os alunos que
cursam o mestrado e o doutorado em nossas universidades. Ele tem uma
abrangência maior. Envolve também os familiares dos familiares do pósgraduando, que participam de perto da angústia e do sofrimento do filho ou da
nora em fase de redação de tese. Dizem que o processo de elaboração de uma
tese se assemelha a um parto. O exame de qualificação seria como que uma
consulta especial, e decisiva, com um grupo de experts, que poderão ajudar o
paciente a desenvolver uma feliz gestação. Em geral é realizado depois que o
pós-graduando já fez o levantamento de seus dados de pesquisa, escreveu uma
parte da monografia, particularmente seu referencial teórico, e já esboçou os
outros capítulos de seu trabalho. Isso acontece de seis meses a dois anos,
aproximadamente, antes do prazo final estipulado para a defesa de sua tese.
Pelo menos, na área de educação. Quem de nós já não teve contato direto com
um paciente em estado de tese, às véspera de um exame de qualificação?
No final de fevereiro, na quinta-feira logo após o carnaval, participei do
exame de qualificação de uma doutoranda em educação na Universidade
Federal de Minas Gerais. Sua hipótese era fascinante: “identificar o
entendimento de militantes políticos dos anos 60-70, em suas narrativas de
memória, sobre o processo de aprendizagem moral em situações de dilema“.
Nossa doutoranda parte da análise dos textos “Que é isso, companheiro”?, de
Gabeira, “Os carbonários: memórias da guerrilha perdida”, de Syrkis, e “O
Sonho exilado”, de Maurício Paiva. Examina o ato educativo na práxis política
em três situações limites: a experiência nas organizações de esquerda, a
experiência de sequestro e a experiência de prisão-tortura. Habermas, Piaget e
Kohlberg são seus interlocutores teóricos no enfoque de seu objeto de
pesquisa.
Tinha aceito o convite de participar na banca de qualificação em
consideração ao orientador da tese, meu amigo e colega de doutorado dos anos
80. Ele julgou que eu, morador longínquo de Belo Horizonte, pudesse “trazer
luzes à orientanda e também ao orientador”, segundo palavras suas.. Não
conhecia, a priori, os detalhes da temática, o referencial teórico, a distribuição
dos capítulos da monografia. Muitas vezes os professores que trabalham na
pós-graduação enfrentam situações extremamente desafiadoras. Assumem
compromissos que, para serem cumpridos a contento, exigem uma dedicação
muito além do tempo disponível para tal. Foi o que aconteceu comigo nessa
experiência formativa.
Vejam só a situação dilemática que vivenciei. Participar de uma banca de
qualificação de doutorado no Programa de pós-graduação em educação, nível
A, na conceituadíssima Universidade Federal de Minas Gerais, tendo como
parceiros de banca os reconhecidos professores e escritores Neidson
Rodrigues, orientador, e Magda Soares. Analisar uma temática que eu
dominava apenas superficialmente; na verdade, até então não havia lido
Gabeira, e muito menos Syrkis e Maurício Paiva. Defrontar-me filosoficamente
(essa é minha área de formação) com teóricos que também conhecia pouco. De
Habermas tinha lido mais críticas a seu respeito que escritos seus. Piaget tinha
despertado minha curiosidade científica há muito tempo, ainda quando fiz o
mestrado. De Kohlberg nunca tinha lido nada. E tudo isso acontecendo na
semana de Carnaval. Como já tinha aceito o convite, tive de dar um jeito.
Confesso que foi um desafio e tanto; que ao invés de passar 2ª, 3ª e 4ª de
Carnaval “pulando” ou “descansando” com meus familiares, passei-as em
companhia de Maria Elizabeth, a doutoranda, e de Habermas, pessoas a quem
passei a conhecer um pouco mais. Apesar das “broncas” compreensíveis de
minha mulher e das legítimas “cobranças” repetidas de minhas duas filhas
pequenas, reconheço que valeu a pena enfrentar esse desafio. Saí dessa um
pouco mais experiente e esclarecido. E como é gratificante conhecer as
pessoas através de sua expressão em momentos que mais se exigem delas!
O trabalho de Maria Elizabeth era bem interessante e desafiador para ela
também. Alguém como uma sólida formação científica na área de história, que
se aventura a buscar a história onde há e não há história (nos romances
autobiográficos de ativistas clandestinos), onde a ciência  há tanto tempo em
ruptura com a literatura, com a poesia  volta a se reencontrar com a arte na
narrativa. Ainda mais, o que a move nessa busca é a história, é a obra literária,
mas é, sobretudo, outra dimensão que, aparentemente, nada tem a ver com a
história, com a literatura: a educação, o processo de aprendizagem. Que
esforço extraordinário interdisciplinar teve que fazer nossa pesquisadora para
não confundir as áreas, para manter a especificidade de seus campos e objetos
de pesquisa, e encontrar-lhes a colaboração enriquecedora.
O que deve fazer um participante de uma banca, que vem de fora, que
vem de longe, para potencializar um trabalho denso, em processo, e quem
sabe, trazer alguma pista? Esse é o mais sério desafio que se coloca para os
“participantes” de bancas de qualificação. Criamos através de muitos anos de
atividade científica e acadêmica nossa maneira teórica de enxergar os dados da
realidade. Não se trata, no caso, de uma pesquisa puramente objetiva, onde as
respostas se manifestam precisas e comprovadas. Antes, são análises que se
defrontam com a complexidade do real e das categorias que tentam abarcar
esse real. São posturas científicas, onde o estético envolve em suas malhas o
ético, o político, o educacional; ou, dito de outra maneira, onde o “ato de fala
constatativo”  que se refere a algo existente no mundo exterior, com pretensão
de reproduzir conceitualmente um estado de coisas, de se atingir a verdade 
se confunde (funde com) o “ato de fala expressivo”  onde o falante refere-se a
algo de seu mundo subjetivo, procurando revelar diante de um público uma
vivência, à qual ele tem acesso privilegiado (Habermas). O que fazer diante de
tudo isso? Certamente há muitos caminhos que a curiosidade e a seriedade do
pesquisador vão construindo caso a caso. O que fiz eu? Iniciei assim minha
participação: Como seu trabalho está em processo ... e é muito denso, tenso e
instigante... permite sonhos, especulações, caminhadas soltas. Não se
impressione com que vou falar. O que escrevi, escrevi para mim. Mais ou menos
assim: se eu fosse fazer esse trabalho, eu começaria pelas observações que
vou fazer a seguir . E certamente, à medida que o trabalho fosse avançando
resgataria ou negaria essas observações na construção de outras. Receba,
pois, minhas sugestões nessa perspectiva e se alguma delas lhe servir, ficarei
sumamente feliz. Na verdade consegui escrever, a partir da análise do trabalho
e de meus delírios, 13 páginas e ainda, por falta de tempo para redigir outras
idéias, falei o correspondente a mais umas sete páginas.
Naturalmente Maria Elizabeth agradeceu muito as minhas contribuições,
prometeu que iria, junto com o orientador analisá-las com mais calma, ler alguns
textos que lhe indicara, aprofundar os conhecimentos sobre outras categorias
de análise e todas essas coisas que os qualificandos dizem por ocasião de seu
confronto com os intrusos que vêm de fora e que acham que têm muito que
contar. Mas o que ela enfatizou com intensa intencionalidade, e seus olhos
brilhavam enquanto falava, foi a sugestão que lhe dei de aprofundar o
entendimento e a utilização da categoria “ambivalência”, “ambigüidade”, na
análise dos processos de aprendizagem presentes nas situações de dilemas
dos narradores em análise. Na verdade a utilização inicial dessa categoria foi
fruto de uma de suas múltiplas intuições, presentes na atual versão da tese.
Dizia ela, após ter caracterizado as categorias “autonomia”, “heteronomia” em
Habermas, em Piaget: em contraposição podemos pensar em um terceiro
princípio, o da ambivalência (ênfase minha) que assevera a diferença e a
simultaneidade das coisas; situações políticas podem ser, a um só tempo,
marcadas por elementos heterônomos e autônomos, pensamos que a
apreensão da diferença e da simultaneidade é condição fundamental no
processo de aprendizagem política. O que fiz foi apenas reforçar que a
categoria “ambivalência”, “ambigüidade”, tomada no sentido dialético (e não da
lógica formal) é, a meu ver, fundamental para se analisar as tensões existentes
na realidade e também nos conceitos, e sugeri que ela aprofundasse o sentido
dessa orientação metodológica e dela se servisse como uma diretriz básica em
seu trabalho. Sendo assim, as expressões “autonomia X heteronomia”,
“interesses individuais X interesses do partido”, “decisões de natureza
pragmática X decisões complexas e de valor grave”, “o que quero fazer X o
que devo fazer”, “agir estratégico X agir comunicativo” - palavras chaves de
seu referencial analítico - deveriam em seu trabalho ser tratadas não como
realidades dicotômicas, puras, e sim no interior do princípio da ambivalência, na
tensão dos elementos que constituem o real e o conceitual. Essa maneira de
abordar seu objeto em pesquisa certamente daria uma nova dinâmica ao
trabalho. E chamei para me ajudar uma citação de Guimarães Rosa, no “Grande
Sertão: veredas” : Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu
careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do
outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da
tristeza! Que os todos pastos demarcados... Como é que posso com este
mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do
meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado.
Essa foi a contribuição que pude levar a Maria Elizabeth após tantos dias
de preparação, tantas páginas escritas. Aparentemente uma coisinha de nada,
mas realmente uma contribuição que mereceu não apenas a aquiescência de
seu entendimento, mas também a exteriorização de sua sensibilidade. Senti-me
plenamente gratificado pela emoção da voz e pelo sorriso grato de seu olhar.
Lembrei-me nesse momento de Adorno: a delicadeza entre seres humanos nada
mais é do que a consciência da possibilidade de relações isentas de interesse.
Bruno Pucci, professor da UNIMEP.
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