«As sombras e a luz, uma política da literatura
nos Sinais de Fogo»
(As sombras e a luz, uma política da literatura
no realismo absoluto de Jorge de Sena)
Rui Costa Santos
Efetuámos uma ligeira alteração em relação à inicialmente prevista, suprimindo quase
na totalidade a referência directa a Sinais de Fogo, uma vez que o projeto inicialmente
idealizado não nos era possível fazer imediatamente sem um conjunto de passos prévios.
Esta apresentação pretende dar um desses passos. O projeto inicialmente apresentado
implicava que neste momento emitissemos um juízo global sobre a contribuição da obra
multidisciplinar de Jacques Rancière na reflexão sobre arte, literatura e política. Não é
manifestamente o caso, uma vez que a obra deste autor se estende desde estudos críticos
sobre cinema até à literatura oitocentista de operários escritores, da pedagogia até à teoria
da história, da teoria política, volumes sobre estética e teoria literária. O modo como o
pensamento deste autor se estrutura, que é observável em conceitos largamente
abrangentes como os de «partilha do sensível», que se estende da política à teoria da arte,
até à estética entendida igualmente num sentido amplo, para o qual reivindica a tradição da
Crítica do Juízo de Kant e de Schiller, tem como consequência que um juízo particular sobre
uma vertente do seu pensamento implica na verdade percorrer os outros domínios da sua
reflexão, de tal forma o seu pensamento se parece construir por analogias entre diferentes
domínios do saber.
Ao mesmo tempo, considerar em Jorge de Sena o conceito de «realismo» e estudar o
«realismo absoluto» de Sinais de Fogo sem previamente integrar as suas propostas estéticas
dentro do contexto das suas reflexões mais vastas, de âmbito da metodologia e história da
literatura, não nos parecia eficaz. Portanto, o que aqui trazemos é de facto uma leitura de
alguns dos textos teóricos de Jorge de Sena mais relevantes, principalmente aqueles onde
reflectiu sobre a aplicabilidade do termo «realismo» no domínio da literatura e uma reflexão
sobre de que forma esse seu «realismo absoluto» pode ser pensado à luz de alguns
conceitos de Rancière, nomeadamente o conceito de «política da literatura» e de «partilha
do sensível».
No prefácio a Os Grãos Capitães, publicado em 1971, Jorge de Sena distingue a sua
prosa ficcional em três tendências: realismo fantástico de Andanças do Demónio e Novas
Andanças do Demónio, realismo fenomenológico de Os Grãos Capitães e realismo absoluto de
Sinais de Fogo.
Neste prefácio, como em vários momentos da sua obra ensaística, considerações
sobre como aplicar – no campo dos estudos literários – o conceito de «realismo» permitelhe, por um lado:
1) Designar e caracterizar uma estética literária que o próprio Jorge de Sena aplica
na sua prosa ficção.
2) Defender a perspectiva, desenvolvida em «Ensaio de uma Tipologia Literária»,
pela qual realismo se opõe a onirismo apenas quanto ao plano da imaginação do
autor, sendo portanto incorrectamente aplicado quando se circunscreve a um
período histórico específico, seja ele o realismo oitocentista ou ao neo-realismo
ou ‘realismo social’, isto essencialmente porque o conceito de «realismo», nesta
perspectiva, implica uma adequação com a ideologia própria a cada autor.
3) Encetar reflexões mais propriamente filosóficas – epistemologia, ontologia –
sobre de que modo a realidade é dada, de que forma ele se impõe como tal, sobre
os seres humanos que a recebem passivamente, ou pelo contrário, de que forma
os seres humanos constroem a própria realidade, a modificam ao interagir sobre
ela.
4) Reflectir sobre os limites e as possibilidades de se fazer história da literatura.
Comecemos então por verificar de que forma define Jorge de Sena «realismo
absoluto»: é facilmente perceptível que o próprio modo como Sena conserva o termo
realismo ao mesmo tempo que se distancia do que foi o realismo oitocentista e no século
XX o neo-realismo ou realismo social, permite-lhe expor as suas próprias noções do que é
e pode ser a arte, a literatura e a ficção narrativa, mas igualmente, de que forma percebe de
forma mais fundamental a relação do ser humano com o mundo. Quanto ao primeiro
plano, a nível intrinsecamente artístico, Sena recusa que apenas possa ser dado estatuto de
realidade a acontecimentos e estados psíquicos perfeitamente comuns, quotidianos e de
algum modo quase impessoais:
“Não creio que o realismo, qualquer que ele seja, implique uma actualidade de cenário;
e, às vezes, uma pseudo-reconstituição histórica pode captar muito melhor e mais
objectivamente a realidade que nos cerca, ou fazer-nos sentir a historicidade dela, do
que o tão estimado realismo tradicional de meia-tigela estética, que pode ser, e é quase
sempre, (se o artista não tem uma mínima consciência filosófica do que a realidade
possa ser), uma forma espúria de imobilizar-se a realidade que, por sua natureza, é um
devir. Mesmo uma total fantasia, ou o aproveitamento de elementos dela, pode permitir
uma intensidade realística que seria, uma «actualidade» muito mais chocante para os
delicados e virtuosos que, neste mundo, comandam os nossos destinos, ou preparam,
solícitos, a nossa inescapável salvação.”1
Portanto, Jorge de Sena pugna por um realismo que incorpore a subjetividade, não
no sentido, como o próprio frisa, romântico do termo, mas subjetivo porque
necessariamente vivido por uma consciência e por um corpo em ação – «sejamos
objectivos com a fantasia, e subjectivos com a realidade». Esta incorportação da
subjetividade na medida em que o realismo em causa é o modo como a realidade é vivida a
partir da própria consciência permite a Sena por em causa a necessidade de uma
organização ou sequenciação lógica dos acontecimentos.
Noutros textos, mas manifestando uma posição idêntica a quando aqui, neste
prefácio de 1966 a Antigas e Novas Andanças do Demónio, afirma que:
A realidade que nos é dada é sempre algo que outros fizeram tal, para que nos
conformemos a ela. A realidade que nós reconstruímos ou despedaçamos é sempre
outra, e nova.2
1 Jorge de Sena, “Prefácio” (1966) a Novas Andanças do Demónio in Antigas e Novas Andanças do Demónio, Ed. 70, Lisboa,
1978, (pp.255-261), pp.257-258.
2
Jorge de Sena, “Prefácio” (1966) in Novas Andanças do Demónio in Antigas e Novas Andanças do Demónio, op.cit., (pp.255261), p.259.
O realismo tradicional (herdeiro do oitocentista) Jorge de Sena considera como
conservador, e é no modo como este o considera conservador que mais facilmente se pode
recuperar a perspetiva que Rancière nos apresenta o regime de arte representativo
(ancorado na mimesis aristotélica).
Este realismo que Sena queria refutar, exatamente por não fazer mediar a percepção
da realidade através de uma consciência em acção, concebia a realidade de uma forma
esquemática e estática.
«O realismo fenomenológico, pela sua descritividade minuciosa que se recusa a postular
explicativos padrões de comportamento, é muito mais crítico e muito mais subversivo.
Ao demonstrar que a realidade não tem motivações últimas, ao acumular a descrição de
gestos que cujo sentido não é, nem por hipótese, apontado, ele cria as condições
necessárias à superação daquele realismo conservantístico.»3
Quando Sena diz que:
«Não há, nem pode haver, excessivo realismo. O realismo tem sido sempre defectivo,
em relação às necessidades mais profundas da libertação humana. (...) A literatura tem
sido menos do que a vida. Mas se ela é uma criação que se acrescenta à vida, englobandoa e superando-a, é preciso que, sendo mais do que ela, a compreenda toda, em todos os
seus aspectos, especialmente naqueles que, por malditos, por terríveis, por apavorantes,
não podem, nem devem continuar fora do alcance da visão estética »4
Ora, creio ser facilmente defensável que aquilo a que Jorge de Sena espera que o
«realismo absoluto» possa trazer em relação ao realismo tradicional é por um lado a
dialética própria da ação intersubjetiva em que entre o sujeito (ator social) e a realidade não
há nem apenas alguém que age sobre uma realidade inerte, indiferente à ação humana, mas
antes uma concepção de realidade em que esta própria é produto da ação humana.
Portanto, Sena rejeita uma forma de empirismo segundo a qual a realidade é uma entidade
fixa, indiferente, externa aos seres que a percebem, a apreendem e a transformam. Para
além desta nova concepção da realidade há igualmente aquilo que Jorge de Sena quer dizer
quando qualifica o realismo como «defectivo, em relação às necessidades mais profundas
da libertação humana». Quando Jorge de Sena exige que o realismo englobe e compreenda
a vida em todos os aspetos, dizendo que sejam eles quais forem esses aspectos deve estar
ao alcance da visão estética o que não está ele a dizer por outras palavras se não aquilo que
Rancière caracterizou como sendo a grande ruptura que o regime estético introduz em
relação ao regime representativo. É obviamente significativo que aquilo que Rancière
observava ter sido uma das inovações que este novo regime artístico trouxe em relação ao
regime anterior e que, por exemplo, em «O efeito da realidade e a política da ficção»,
verificara já em Balzac ou em Flaubert, ou até no quadro de Murillo comentado por Hegel
nas suas lições de estética, fosse considerado por Roland Barthes um «excesso realista»
(obviamente um excesso de informação face ao princípio da economia de informação
pertinente) seja ainda – de um ponto de vista filosófico e moral – um desafio que em pleno
século XX português não foi ainda integrado como parte natural da realidade literária.
Entremos então por agora no pensamento de Rancière. A reflexão mais demorada de
Rancière sobre literatura e sobre arte é relativamente recente se tomarmos em linha de
conta que o seu percurso como intelectual se iniciou no fim dos anos 60. Nesses anos,
Rancière foi um dos alunos de Louis Althusser, e redigiu uma secção de um dos volumes
3
Jorge Sena, «Sobre realismo (fragmentos)» in Sobre Teoria e Crítica Literária, Porto, Caixotim, 2008, p.62.
4
Jorge Sena, «Sobre realismo (fragmentos)» in Sobre Teoria e Crítica Literária, op. cit., p.70.
que compuseram a obra Lire le Capital (1965), cujas outras secções foram redigidas pelo
próprio Althusser, por Pierre Macherey, Étienne Balibar e Roger Establet. O seu
distanciamento face ao pensamento de Althusser tornou-se evidente no livro La Leçon
d’Althusser (1974) publicado na década de 70, e no prefácio auto-crítico de Rancière à
reedição da dita secção de Lire le capital. A crítica de Althusser é posteriormente estendida
em Le Philosophe et ses Pauvres (1983) a uma tradição intelectual que identifica primeiramente
em Platão, e que vê prolongar-se na contemporaneidade em Marx, Sartre ou Bourdieu. A
crítica a Platão funda-se na divisão social do trabalho que este efectuava na República entre
aqueles que exerciam o trabalho intelectual e os que exerciam o trabalho manual, artesanal,
reservando aos primeiros a capacidade de discutir, julgar e decidir sobre os destinos da
cidade, da política.
Essa crítica, que já conduzira Rancière a estudar nos anos 70 os arquivos literários de
diversos trabalhadores-escritores da década de 40 do século XIX, a propósito dos quais
redigiu La nuit des proletaires (1981), irá posteriormente ser alargada à teoria da educação,
nomeadamente no livro Le Maitre Ignorant (1987). Rancière, pela crítica que faz a toda uma
tradição intelectual que considera ser elitista intelectualmente, e por manter uma divisão
social entre os intelectuais (quem guiaria e orientaria as revoluções e lutas emancipatórias) e
aqueles que as poriam em prática, mas que segundo Rancière continuariam ser poder
expressar-se, sem alcançar essa visibilidade, visibilidade essa que Rancière só parece crer
possível quando adquirida pelos próprios em lutas emancipatórias locais e ocasionais. O
estudo que deu origem a La nuit des proletaires orienta-se na linha de um grupo social que
procura romper a divisão social de trabalho imposta, simultaneamente trabalho nas suas
atividades operárias durante o dia e desenvolvendo a sua atividade intelectual à noite. A
concepção da realidade social e cultural como estruturada por espaços interditos,
reservados, é, no sentido mais amplo do termo, compreendido como espaço onde alguns
são visíveis e podem falar e outros estão dela excluídos e portanto não têm sequer
possibilidade de se fazerem ouvir, o que Rancière sintetizará através da expressão, a que
voltaremos mais à frente, «partilha do sensível». O modo como o filósofo francês utiliza a
palavra «estética» pode ser compreendido no seguinte excerto de um ensaio de 2006:
«The thesis is the following: aesthetics is not the theory of the beautiful or of art; nor is
it the theory of sensibility. Aesthetics is an historically determined concept which
designates a specific regime of visibility and intelligibility of art, which is inscribed in a
reconfiguration of the categories of sensible experience and its interpretation. It is the
new type of experience that Kant systematised in the Critique of Judgement.»5
Contudo se a reivindicação da tradição kantiana no pensar o conceito de «estética»
poderia ser tomado como uma afinidade com o Lyotard das Lições sobre a Analítica do
Sublime – deixando de lado a provocação de Slavoj Zizek que em «La Subjectivation
politique et ses vicissitudes» questiona se «Rancière n’est-il pas le lyotardien antilyotardien?» - em Le Partage du Sensible, esthétique et politique, Rancière que:
«ce sont les textes de Jean-François Lyotard qui marquent le mieux la façon dont
«l’esthétique» a pu devenir, dans les vingt dernières années, le lieu privilégié où la
tradition de la pensée critique s’est métamorphosée en pensée de deuil. (...) Ainsi la
pensée de l’art devenait le lieu où se prolongeait, après la proclamation de la fin des
utopies politiques une dramaturgie de l’âbime originaire de la pensée et du desastre de
sa méconnaissance.»6
5 Rancière, Jacques - «Thinking between disciplines: an aesthetics of knowledge» (Translated by Jon Roffe) Parrhesia,
number 1 • 2006 • 1 – 12
6
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible – esthétique et politique, Éditions La Fabrique, 2000, pp. 8-9.
Estética é – confirma Rancière neste opúsculo, publicado seis anos antes do primeiro
ensaio referido – um regime de específico de identificação e de pensar as artes.
«Dans le regime esthétique des arts, les choses de l’art sont identifiées par leur
appartenance à un régime spécifique du sensible. Ce sensible, soustrait à ses connexions
ordinaires, est habite par une puissance hétérogène, la puissance d’une pensée qui est
elle-même devenue étrangère à elle même.(...) Cette idée d’un sensible devenu étranger
à lui-même (...) est le noyau invariable des identifications de l’art qui configurent
originellement la pensée esthétique...»7
De forma mais assertiva ainda, Rancière define o regime estético como aquele que –
tendo afastado todas as hierarquias de temas, de géneros e de artes e – e sob influência de
Schiller e das suas cartas estéticas:
«Il affirme l’absolue singularité de l’art et détruit en même temps tout critère
pragmatique de cette singularité. Il fond en même temps l’autonomie de l’art et
l’identité de ses formes avec celles par lesquelles la vie se forme à elle-même. Et il est
le moment de formation d’une humanité spécifique.»8
Já Jorge de Sena, quando no prefácio aos Grãos-Capitães, considera que:
«no mundo actual (...) toda e qualquer visão do mundo é estética, e que a pessoa humana
nada tem a opor à arregimentação, ao conformismo, à nivelação, senão a sua própria
existência que, criticamente, se forma e define».
Facilmente se observa que a perspetiva de Sena é a do ser humano isolado e entregue
a si mesmo, enquanto a perspetiva de Rancière na sua obra é a de grupos de indivíduos que
buscam se emancipar e fazer ouvir. Para além disso, o modo como Sena parece pensar aqui
a palavra estética se por um lado é num sentido amplo e não especificamente referindo-se
ao juízo artístico, não tem contudo a dimensão quase plástica ou mesmo dramática (teatral)
presente em Rancière.
Sena, em «Sistema e Correntes e Críticas» volta a identificar o mundo moderno com
uma visão progressivamente mais estética, caracterizando esta visão através da modificação
operada pela relação estabelecida nos elementos e sujeitos que a constituíram:
«A diferença entre um automóvel e uma pintura ou um poema (...) está em que, ainda
quando a posse de um automóvel possa transformar a minha consciência pedestre
numa sociedade motorizada, essa transformação não se processa objectivamente, quer no
próprio automóvel, quer na minha consciência, quer nas relações entre ambos. Essa
tríplice processualização é precisamente o apanágio do universo estético. É óbvio que,
no mundo moderno, cada vez mais multímodo, a visão dele é progressivamente mais
estética: cada vez mais temos consciência de que o mundo não é um dado, mas algo que
existe por nós, para nós, e segundo o que fazemos dele.»9
O conceito de «partilha do sensível» que é:
«ce système d’évidences sensibles qui donne à voir en même temps l’existence d’un
commun et les découpages qui y définissent les places et les parts respectives.»10
7
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible, op. cit., pp.31-32.
8
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible, op. cit., p.33.
9
Sena, Jorge de Sena, «Sistemas e Correntes Críticas», Ed. 70, Lisboa, 1977, p.115.
10
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible, op. cit., p. 12.
O modo como pode ser entendida esta partilha ou distribuição, que em Le Partage
du sensible é também aproximado por Rancière, por meio de Kant e Foucault, ao,
«système des formes a priori déterminant ce qui se donne à ressentir»11.
Tal definição parece deixar em aberto uma questão essencial, que a sucessão dos
três regimes das artes não permite descortinar: de que forma é que esta distribuição ou
partilha pode ser simultaneamente de foro «transcendental», a priori, e ao mesmo tempo
social e politicamente motivada, dependente das lutas emancipatórias dos «sans-part», dos
que emitem ruídos mas não falam, dos que são invisíveis. Numa interpretação marxista
deste conceito de «partilha do sensível» ter-se-ia de assimilar «partilha» ou distribuição»
como «repartição» do capital, isto é, reconectar a «luta pela visibilidade» dos «sem parte» e
pela saída da inexistência na comunidade do ponto de vista político com a luta social e
económica propriamente dita, como se a existência da «mais-valia» fosse também um
instrumento para delimitar espaços de visibilidade e de obscuridade. Contudo, como diz
Oliver Davis, na sua monografia recente sobre Jacques Rancière, a economia está ausente
do pensamento de Rancière da maturidade o que impede que o seu pensamento ainda se
possa considerar marxista.12
A luta política é concebida portanto, por Rancière, menos por uma perspetiva social
e económica, em contextos históricos concretos, e mais por uma perspetiva dramática e
performativa, como frisa Peter Hallward citando uma entrevista de Rancière:
«‘En politique, on cree toujours une scene (...), la politique a toujours plus ou moins la
forme d’une constitution d’un theatre. Cela veut dire que la politique a toujours besoin
de constituer des petits mondes sur lesquels se forment (...) des sujets ou des formes de
subjectivation, qui vont mettre en scene un conflit, mettre en scene un litige, mettre en
scene une opposition entre des mondes. (...) Pour moi la politique est la constitution
d’une sphere theatrale et artificielle.’»13
Ora, não será difícil, encontrar nestes dois autores, um poeta, romancista, teórico e
crítico literário, o outro filósofo, que foi estendendo o seu domínio de preocupações para
além da filosofia propriamente dita, e que tem escrito sobre História (veja-se Les mots de
l’Histoire), sobre pedagogia (Le Maitre Ignorant) mas também sobre cinema e literatura (como
La Chair des Mots), algumas questões em que vemos algumas perspectivas similares e outras
perspectivas obviamente díspares. Uma das questões em que vemos alguma confluência
entre Sena e Rancière é na crítica que os dois autores fazem à História da Literatura. Crítica
que não significa propriamente uma recusa de qualquer possibilidade de se pensar
historicamente a Literatura, mas apenas uma identificação dos seus limites.
Não recusando liminarmente que se faça História da Literatura, e pelo contrário,
definindo o próprio Rancière o que considera serem três regimes das artes. Da seguinte
forma define Rancière o primeiro regime, o regime ético das imagens:
«Dans ce regime, «l’art» n’est pas identifié tel quel, mais se trouve subsume sous la
question des images. Il y a un type d’êtres, les images, qui est l’objet d’une double
11
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible, op. cit., p. 13.
12
Davis, Oliver – Jacques Rancière, Key Contemporary Thinkers, Polity, 2010, pp.9-10.
[Entretien avec J. Ranciere’, Dissonance 1 (2004), www.messmedia.net/dissonance/index.htm]» apud Peter Hallward,
«Jacques Ranciere et la theatrocratie ou Les limites de l’egalité improvisée»
http://www.marxau21.fr/index.php?option=com_content&view=article&id=97:p-hallward-jacques-ranciere-etlatheatrocratie-ou-les-limites-de-legalite-improvisee&catid=47:ranciere-acques&Itemid=74
13
question: celle de leur origine et, en conséquence, de leur teneur de vérité; et celle de
leur destination: des usages auxquels elles servent et des effets qu’elles induisent.»14
Este primeiro regime Rancière identifica-o com a perspectiva platónica da arte. O
segundo regime é o regime representativo, e foi criado por Aristóteles na sua concepção de
mimesis:
«Le principe mimétique n’est pas en son fond un príncipe normatif disant que l’art doit
faire des copies ressemblant à leur modeles. Il est d’abord un principe pragmatique qui
isole, dans le domaine général des arts (des manières de faire), certains arts particuliers
qui exécutent des choses spécifiques, à savoir des imitations. (...) C’est le fait du poème,
la fabrication d’une intrigue agençant des actions représentant des hommes agissant, qui
vient au premier plan, au détriment de l’être de l’image, copie interrogée sur son
modele.»
O regime representativo é apenas seguido na época contemporânea pelo regime
estético das artes. Na caracterização deste regime representativo das artes observa-se que o
modo como esta mimesis é concebida implica uma selecção do que é representável do que
é irrepresentável. Contudo, para além dessa delimitação ser feita de acordo com critérios
específicos a cada género literário ou artístico, de acordo com Rancière, a lógica
representativa estabelece uma analogia global com uma hierarquia global das ocupações
políticas e sociais:
«le primat représentatif de l’action sur les caracteres ou de la narration sur la
description, la hiérarchie des genres selon la dignité de leurs sujet, et le primat même de
l’art de la parole, de la parole en acte, entre en analogie avec toute une vision
hiérarchique de la communauté.»15
Deste modo Rancière estabelece já uma conexão entre a estética e a política. Se,
como dirá em «Politique de la littérature», ensaio publicado em livro com o mesmo nome,
''Num certo sentido, toda a atividade política é um conflito para decidir o que é
fala ou grito, para redesenhar portanto as fronteiras sensíveis pelas quais se
atesta a capacidade política.'16'
Então, esta distinção entre «fala» e «grito» como forma de demarcar o que pode ser
visível e invisível em arte é uma referência à diferença que Aristóteles estabelece entre os
homens que são animais políticos porque têm a capacidade de dizer através da fala o que é
justo e injusto enquanto os animais não têm essa capacidade. Mas se até agora verificamos
a existência, no pensamento de Rancière, de uma história das artes através da sucessão de
três regimes de arte – regime ético (platónico), mimético (aristotélico) e estético (posterior a
Kant e Schiller), de que forma há em Rancière uma crítica face aos limites do pensamento
histórico?
Em Les Noms de l’Histoire, num capítulo que intitula «O excesso de palavras» e em que
começa por comentar uma passagem de Mimesis de Eric Auerbach, e em que, como o faz
recorrentemente, associa a possibilidade de um qualquer anónimo se fazer ouvir, como na
situação de alguém que quer pisar o palco mas onde não lhe é permitido sequer ser
figurante, Rancière associa a invisibilidade social, a incapacidade de se fazer ouvir, à mais
elementar exclusão social. Ao invés, fazer-se ouvir é uma forma de se emancipar,
14
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible – esthétique et politique, Éditions La Fabrique, 2000, p. 27.
15
Rancière, Jacques - Le Partage du sensible, op. cit., p. 27.
16
Rancière, Jacques – Politique de la littérature, Galillée, Paris, 2007, p. 12.
«Todo acontecimento, en los seres hablantes, está ligado a un exceso de la palabra bajo
la forma específica de un desplazamiento del decir (...) El acontecimiento extrae su
novedad paradójica del hecho de estar ligado a lo re-dicho, a lo dicho fuera de contexto,
fuera de lugar. (...) El acontecimiento presenta la novedad de lo anacrónico. Y la
revolución, que es el acontecimiento por excelencia, es por excelencia el lugar donde el
saber social se constituye en la denuncia de la impropiedad de las palabras y del
anacronismo de los acontecimientos.»17
Rancière distingue neste momento duas lógicas diferentes de pensar a História e os
acontecimentos: por um lado a perspetiva marxista que:
«ha tomado como eje esencial la relación del futuro con el pasado»18;
por outro lado, a análise
«real empirista, hoy revitalizado por las vicisitudes del modelo marxista, procede a la
inversa en el eje de los tiempos, por la descalificación conjunta de las categorias del
pasado y del futuro. (...) El presente es su tiempo.»19
Aquilo que permite a novidade é a possibilidade de existência de uma tensão entre o
individual e o universal. Numa perspetiva histórica em que o individual não seja se não uma
actualização do geral, perfeitamente compreensível no todo no qual se integra, não é
possível explicar o surgimento de uma descontinuidade, quer de um indivíduo único e
irrepetível, que desaparece sem deixar rasto nem trazer consequências, como de uma
alteração do próprio todo ou sistema geral. Para que haja uma possibilidade de mudança da
própria estrutura da realidade, ou quando falamos de literatura, mas também de ciência, de
cultura, ou essa possibilidade de mudança está inscrita na própria estrutura presente da
realidade em causa ou ela só poderá suceder através de uma catástrofe ou aparição divina.
O que o termo dialética, no sentido hegeliano e marxista do termo, traduz é exatamente
isso. Contudo, mesmo para um Rancière que já se tinha distanciado do marxismo desde os
fins dos anos setenta – dedica a Marx um capítulo no seu livro Le Philosophe et ses Pauvres –
uma história que possibilite o novo, através de um feixe de passado e futuro é preferível à
perspetiva de um sempre presente estático.
Da mesma forma Oliver Davis, no seu livro dedicado a Rancière, afirma:
“..it would be a mistake to think of the regimes as strong, overarching, historical
paradigms which do conditioning work as forceful as Foucault’s episteme. The regime, as
Rancière formulates it, is a weaker and more malleable concept. (...) These ‘regimes’ can
and do coexist, in productive tension, within single works and particular artforms; the
regime of art is a concept both rooted in and uprooted from a historical analysis.”20
Jorge de Sena, por seu lado, identifica diversos limites à história literária e à sua
periodização que por um lado considera que esta só pode ser «aproximada»:
«...a periodização não pode senão ser aproximada (...) Um dos artifícios habitualmente
usados para encobrir a dificuldade resultante desses simplismos é a proclamação de
precursores, o reconhecimento de fundadores e participantes de um movimento, ou a
displicência para com os que seriam epígonos. E isto é manifestamente um artifício, uma
vez que, na verdade, tudo foi precursor de tudo (num sentido positivo ou negativo), e
17
Rancière, Jacques, Los Nombres de la Historia – una poética del saber, Edicion Nueva Vision, Buenos Aires, 1993, p.42.
18
Rancière, Jacques, Los Nombres de la Historia – una poética del saber, op. cit., p.43.
19
Rancière, Jacques, Los Nombres de la Historia – una poética del saber, op. cit., p.43.
20
Davis, Oliver – Jacques Rancière, Key Contemporary Thinkers, Polity, 2010, pp.137-138.
tudo continua tudo, porque nada surge de novo por milagre, mas por transmutação
qualitativa, e nada desaparece por completo...»21
Num artigo bem anterior, publicado em 1948, dirigindo-se igualmente Jorge de Sena
ao problema da história literária, manifesta a tensão, a que acima nos referimos, entre o
individual e o universal:
«O homem oscila sempre entre a necessidade de fixar linhas gerais e a consciência de
que perde imenso espaço que essas linhas não cobrem. (...) Há escritores de altissonante
obra, cuja importância foi, no seu tempo, nula, aparecendo nos píncaros das divisões
por épocas. Em que medida é do seu tempo um Stendhal? E um Lautréamont?»22
Há contudo, um aspecto muito importante para a teoria de Rancière, e que aliás é o
centro do seu livro sobre Jacotot, Le Maitre Ignorant que é a crítica à relação pedagógica
entre professor e aluno, como uma relação de desigualdade entre o professor instruído e
aluno. Face à questão do gosto e da apreciação estética, que foi centro também da polémica
entre Rancière e Bourdieu, Jorge de Sena diz peremptoriamente:
«É uma absoluta falácia supor que alguém, sem essa prévia educação, está em condições
de apreciar, numa totalidade realmente ampla, qualquer criação estética que, pela sua
alta qualidade, implique uma estilização para além dos hábitos do senso comum...» (187)
Essa mesma posição de Rancière motiva por parte de Peter Hallward a questionar:
«It is merely a question (in human societies)', Ranciere-Jacotot maintain, 'of
understanding and speaking a language' or using a tool {IS, 37). But does all learning
really proceed on the model of language learning? Is even language learning, or toolusing, devoid of explanation as Jacotot conceives it? To what extent is it possible to
avoid recourse to the economy of explanation in fields of knowledge that are less
accessible, less 'ready-to-hand' than those of natural languages — fields like quantum
physics or neurology, for instance?»
Essa posição de que só pressupondo desde início a absoluta igualdade, mais do que
esperar que ela surja através de reformas sociais ou institucionais faz com que Oliver Davis
o denomine como o filósofo da igualdade, e no que diz respeito especificamente à
pedagogia que o aproxime por exemplo de uma tradição libertárie e anarquista, ou de
pedagogos como Paulo Freire.
Finalizando, creio que uma análise do que pretendia ser o «realismo absoluto»
percebido à luz da teoria estética de Rancière teria não apenas de ler Sinais de Fogo mas
simultaneamente de estudar a sua recepção e apropriação, nomeadamente através da
adaptação feita para o cinema. Quem tiver lido o romance de Jorge de Sena provavelmente
perceberá que nada ficou no filme daquele que era o «excesso» que o «realismo absoluto»
deste livro teria face ao realismo tradicional. Ora, isso poderia fazer-nos recuperar algumas
questões talvez mais tradicionais como a da apropriação e domesticação da arte, ou então,
questionar de que forma o regime estético proposto por Rancière não é uma promessa que
nunca se efectivará enquanto não atingir e alterar radicalmente todo o espaço comum em
Jorge de Sena, «Sobre a Dualidade Fundamental dos Períodos Literários», in Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa,
Ed.70, 1977, pp.186-187.
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Jorge de Sena, Sobre Teoria e Crítica Literária, Porto, Caixotim, 2008, p.12.
que vivemos. Mas para pensar sobre isso, no interior do pensamento de Rancière, ainda
teríamos de fazer referência a outros conceitos do autor, como os de mésentente [que é aliás o
título de uma das suas obras], de politique e police.
Bibliografia:
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Rui Costa Santos - Universidade do Porto