Ensaios sobre o pensamento
ensamento de
KARL POPPER
Paulo Eduardo de Oliveira
(organizador)
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Não me considero especialista nem em ciência nem em
filosofia. Tenho, contudo, tentado com afinco, durante toda a
minha vida, compreender alguma coisa acerca do mundo em
que vivemos. O conhecimento científico e a racionalidade
humana que o produz são, em meu entender, sempre falíveis
ou sujeitos a erro. Mas são também, creio, o orgulho da
humanidade. Pois o homem é, tanto quanto sei, a única coisa
no universo que tenta entendê-lo. Espero que continuemos a
fazê-lo e que estejamos também cientes das severas
limitações de todas as nossas intervenções.
Karl Raimund Popper
(O mito do contexto)
2
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Copyright © 2012
Todos os direitos desta edição reservados ao
CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES
OLIVEIRA, Paulo Eduardo de (org.)
Ensaios sobre o pensamento de Karl Popper / Paulo
Eduardo de Oliveira (org.). Curitiba: Círculo de Estudos
Bandeirantes, 2012.
ISBN
978-85-65531-02-3
1. Filosofia. 2. Filosofia da Ciência. 3. Epistemologia.
4. Filosofia Política.
Inclui bibliografia.
3
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES
Afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Rua XV de Novembro, 1050 - Curitiba – Paraná
Fone: (41) 3222-5193
http://www.pucpr.br/circuloestudos/
Presidente: Prof. Dr. Clemente Ivo Juliatto
Diretor: Prof. Sebastião Ferrarini
Conselho Editorial
Prof. Dr. Agemir de Carvalho Dias – FEPAR
Prof. Dr. Edilson Soares de Souza – FTBP
Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz – PUCSP
Prof. Drª Etiane Caloy Bovkalovski – PUCPR
Prof. Dr. Euclides Marchi – UFPR
Prof. Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI
Prof. Dr. Jean Lauand – USP
Prof. Dr. Jean-Luc Blaquart – Universidade Católica de Lille (França)
Prof. Dr. João Carlos Corso – UNICENTRO
Prof. Dr. Joaquín Silva Soler – PUC-Chile
Prof. Drª Karina Kosicki Bellotti – UFPR
Prof. Dr. Lafayette de Moraes – PUCSP
Prof. Drª Márcia Maria Rodrigues Semenov – UNISANTOS
Prof. Drª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla – PUCPR
Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira – PUCPR
Prof. Dr. Silas Guerriero – PUCSP
Prof. Dr. Uipirangi Franklin da Silva Câmara – FTBP
Prof. Drª Wilma de Lara Bueno – UTP
4
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Nota do Organizador
A sequência dos capítulos não obedece a um critério
específico. No entanto, esta mesma sequência é utilizada
para a apresentação da breve biografia dos respectivos
autores dos capítulos, na sessão Sobre os Autores.
Procurou-se, ao longo de toda a obra, dar certa
homogeneidade aos formatos das citações e referências
bibliográficas utilizadas. Contudo, na medida do
possível, respeitou-se também o estilo de cada autor.
As notas de rodapé têm numeração sequencial em toda
a obra, independentemente do capítulo, de modo a
manter a unidade do trabalho.
5
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
8
SOBRE OS AUTORES
14
TEORIA DAS PROPENSÕES
Gerson Albuquerque de Araujo Neto
19
O PLURALISMO DA TESE DO MUNDO 3 DE POPPER
João Batista Cichero Sieczkowski
32
POPPER, A DEMARCAÇÃO DA CIÊNCIA E A ASTROLOGIA
Cristina de Amorim Machado
50
POPPER E A QUESTÃO DA PSICANÁLISE
Ney Marinho
70
ALGUMAS NOTAS SOBRE A COSMOLOGIA DE KARL 89
POPPER
Julio Cesar R. Pereira
O REALISMO EM POPPER E PEIRCE: UM CONTRAPONTO
José Francisco dos Santos
113
A HISTÓRIA DA CIÊNCIA E A EPISTEMOLOGIA DE 134
POPPER
Jézio Hernani Bomfim Gutierre
AS RELAÇÕES ENTRE POPPER E KUHN
Elizabeth de Assis Dias
145
6
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
VERDADE E VEROSSIMILHANÇA NA EPISTEMOLOGIA
DE POPPER
Gelson Liston
169
NOTAS SOBRE A “PROPENSÃO QUÂNTICA” POPPERIANA 184
Raquel Sapunaru
APROXIMAÇÃO POPPERIANA À DISTINÇÃO
EXPLICAÇÃO-COMPREENSÃO
Gustavo Caponi
198
A FILOSOFIA DE KARL POPPER E SUAS IMPLICAÇÕES
NO ENSINO DA CIÊNCIA
Fernando Lang da Silveira
210
POPPER E A ECONOMIA: EXISTE UM MÉTODO PRÓPRIO 231
PARA AS CIÊNCIAS DA SOCIEDADE?
Brena Paula Magno Fernandez
INTERVENÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO
EM KARL POPPER
Solange Regina Marin
252
NOTAS EM TORNO DO DEBATE POPPER–ADORNO
Túlio Velho Barreto
274
LINGUAGEM E CONHECIMENTO: KARL POPPER
E A QUESTÃO DA COMUNICAÇÃO
Marcia Maria Rodrigues Semenov
295
ÉTICA E TOTALITARISMO: A CRÍTICA DE POPPER AO
HISTORICISMO E À DOUTRINA DO POVO
ESCOLHIDO
314
Paulo Eduardo de Oliveira
7
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
APRESENTAÇÃO
Karl Popper é a principal referência da epistemologia
contemporânea e suas ideias, como escreveu Imre Lakatos,
“constituem o mais importante desenvolvimento da filosofia
do século XX”. Para David Miller, um de seus discípulos e
principal assistente ao longo de muitas décadas, “poucos
filósofos sentiram uma sede de conhecimento tão revigorante e
insaciável”. Segundo o professor Leônidas Hegenberg,
tradutor da edição brasileira de A lógica da pesquisa científica,
Popper “se revela um dos pensadores mais fecundos de nosso
tempo, digno sucessor de Kant e Russell, e que só tem uns
poucos rivais de nota, como Carnap e Quine”.
A grandeza de seu pensamento decorre da
fecundidade e alcance de sua obra, traduzida em mais de 20
idiomas, cujos principais títulos, em forma de livro, são: A
lógica da pesquisa científica (1934), A miséria do historicismo (19441945), A sociedade aberta e seus inimigos (1945), Conjecturas e
Refutações (1963), Conhecimento Objetivo (1972), Autobiografia
intelectual (1974), O eu e seu cérebro, escrito em parceria com
John C. Eccles (1977), Os dois grandes problemas da teoria do
conhecimento (preparado na década de 1930, mas publicado
apenas em 1979), a trilogia Pós-Escrito à Lógica da Pesquisa
Científica (1982-1983), Um mundo de propensões (1990) e O mito
do contexto (1994). Entre as publicações póstumas, destacam-se:
Em busca de um mundo melhor (1995), A lição deste século (1996),
O mundo de Parmênides (1998) e A vida é aprendizagem (1999).
8
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
No Brasil, a introdução do pensamento de Popper, em
língua portuguesa, se deu em 1959, pela publicação de A
sociedade aberta e seus inimigos, seguida por A lógica da pesquisa
científica (1974) e Conhecimento Objetivo (1975). Nas décadas de
1980 e 1990, surgiram novas traduções, publicadas em
Portugal e no Brasil, além de trabalhos de comentadores,
incluindo dissertações e teses sobre elementos diversos do
pensamento popperiano.
Algumas notas biográficas poderão ser úteis para
situar o filósofo em seu contexto. Karl Raimund Popper nasceu
em Viena, em 1902. Estudou matemática, física, filosofia e
psicologia, obtendo seu doutorado em 1928, na Universidade
de Viena. Casou-se em 1930, imaginando que sua carreira seria
definida pela dedicação ao ensino secundário de matemática e
física. Porém, foi estimulado a apresentar para publicação as
ideias que havia discutido com alguns intelectuais de Viena,
inclusive com membros do Círculo de Viena. Assim nasceu sua
primeira obra, Logik der Forschung [A lógica da pesquisa
científica], em 1934: note-se que a tradução inglesa, sob o título
The logic of scientific discovery, veio a público apenas em 1959.
Nos anos seguintes, Popper fez uma série de viagens a
convite de algumas universidades europeias e norteamericanas, realizando conferências e divulgando sua obra.
Desse modo, tornou-se “filósofo profissional”.
Em 1937, por ser filho de família judia, fugiu da
perseguição nazista, emigrando com a esposa para a Nova
Zelândia, onde permaneceu até o final da Segunda Grande
Guerra. No início de 1946, partiu para a Inglaterra, para
assumir a cadeira de “Lógica e Método Científico”, na London
School of Economics. Membro da Royal Society, tornou-se Sir em
1965. Aposentado em 1969, foi eleito “Professor Emérito” da
Universidade de Londres. Desde então, nunca deixou de
estudar, escrever e fazer conferências em todo o mundo.
Continuou a viver de forma simples e modesta, em
9
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Buckinghamshire, nas proximidades de Londres, até sua
morte, ocorrida em 1994.
Popper é reconhecido pela originalidade de sua
posição filosófica acerca da ciência. Considerado, como afirma
Neurath, “a oposição oficial do Círculo de Viena”,
desenvolveu uma abordagem crítica em relação à tendência
positivista. Para ele, nosso conhecimento, incluindo o
conhecimento científico, é sempre falível, conjectural e passível
de erro. Desse modo, propõe a falseabilidade como critério de
demarcação entre teorias científicas, de um lado, e teorias não
científicas ou pseudo-científicas de outro lado (além da
matemática, da lógica e da metafísica). Para tanto, Popper
sugere que a construção de teorias científicas se apoie não
mais na lógica indutiva, cujo problema ele afirma ter
resolvido, mas na lógica dedutiva, em razão da assimetria
lógica que descobre entre indução e dedução: enquanto, na
indução, muitos casos particulares não conseguem provar a
verdade de uma teoria, na dedução um só caso consegue
provar sua falsidade. Com efeito, teorias devem ser
apresentadas como conjecturas ousadas a serem submetidas a
testes rigorosos com o intuito de falseá-las ou, eventualmente,
de corroborá-las mas, jamais, de verificá-las ou confirmá-las de
modo absoluto.
Popper sustenta, então, que o que distingue a
racionalidade científica é a atitude crítica, mais preocupada
com a busca da verdade do que com a defesa de teorias que
possam eventualmente ocultá-la ou dela se afastar: daí sua
compreensão de que a ciência se assemelha a um pântano,
onde de vez em quando se encontra uma pedra firme.
Seu racionalismo crítico, como ficou conhecido o núcleo
de seu pensamento, coloca-se frontalmente contra algumas das
principais construções teóricas de seu tempo, sobretudo a
Psicanálise de Freud, a Psicologia Individual de Adler e o
Marxismo (além do Positivismo Lógico, como já dissemos). De
10
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
outro lado, Popper afirma inspirar-se em Einstein e também
em Darwin, cujo pensamento científico denota a estrutura
conjectural que ele tanto valoriza.
A base ética do pensamento popperiano assenta-se na
compreensão dos limites do conhecimento humano, de sua
fragilidade, e da absoluta falta de condições de se estabelecer
um critério de verdade. Desse modo, cabe-nos desenvolver a
atitude da modéstia intelectual que, como Sócrates, admite a
pequenez de nosso saber diante do abismo de nossa
ignorância. Tal concepção ética terá reflexos em sua
epistemologia e também em seu pensamento político.
Expressão disso é a crítica popperiana aos regimes totalitários
e às filosofias políticas que conduzem ao totalitarismo que, na
sua opinião, estão expressas sobretudo no pensamento de
Platão, Hegel e Marx.
A concepção popperiana de racionalidade crítica vai se
opor, de igual modo, a todas as expressões filosóficas
obscuras, que fogem da simplicidade e da clareza, virtudes
que devem ser a marca do discurso de todo intelectual,
segundo Popper. O principal alvo das críticas de Popper, neste
sentido, são os pensadores da Escola de Frankfurt, sobretudo
Adorno e Habermas. No campo da epistemologia,
principalmente, o pensamento de Popper não deixou de
produzir reações críticas. Entre as expressões mais vigorosas
dessa crítica devemos recordar os trabalhos de Imre Lakatos,
Thomas
Kuhn
e
Paul
Feyerabend.
Porém,
tais
posicionamentos críticos não foram capazes de ofuscar a
grandeza da obra de Popper, que teve a oportunidade de
discuti-los e replicá-los abertamente.
Os ensaios reunidos neste volume constituem
importante contribuição não apenas para a divulgação do
pensamento de Karl Popper, mas também para abrir
perspectivas críticas para a análise de sua obra e para uma
avaliação ponderada de suas propostas. Pela forma como o
11
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
próprio Popper entende sua filosofia, desde as primeiras
linhas, trata-se de “propostas” que obrigam-nos a “tentar
encontrar respostas novas e insuspeitadas”1. Nada estaria mais
distante do racionalismo crítico que uma tentativa de
transformá-lo em dogma e “moda filosófica” aceitos sem
crítica. Não sem razão, Popper sempre esteve aberto às
críticas, nascidas até mesmo de seus discípulos mais próximos,
como Lakatos, Kuhn e Feyerabend, como já dissemos. Tentava
ele, desse modo, viver o que ensinava ao insistir tantas vezes
na seguinte expressão: “Posso estar errado e vocês podem
estar certos, mas por um esforço poderemos nos aproximar da
verdade”2.
Os autores destes ensaios, sem exceção, são
pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, que se
dedicaram, em cursos de mestrado e/ou doutorado, a
apresentar pesquisas referentes à filosofia popperiana em seus
mais diferentes aspectos. Alguns artigos resultam destas
dissertações ou teses; outros são desenvolvimentos posteriores
das pesquisas realizadas. Atualmente, como se pode ver na
seção Sobre os Autores, estes pesquisadores se dedicam ao
ensino em cursos de graduação e pós-graduação, em
instituições espalhadas de norte a sul do país, representando
assim a riqueza dos pontos de vista e das análises a partir de
contextos diversos.
Os temas aqui tratados abrangem os principais
elementos da obra de Popper, permitindo ao leitor uma visão
de amplo horizonte das temáticas desenvolvidas pelo filósofo
austríaco, embora sem esgotar todos os aspectos que a obra de
Popper apresenta. Não há uma ordem pré-estabelecida entre
os capítulos, de modo a permitir uma leitura mais livre do
conjunto da obra.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 39.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: EDUSP; Belo
Horizonte: Itatiaia, 1974, vol. 2, cap. 24, p. 232.
1
2
12
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Quero manifestar minha mais profunda gratidão a
todos os autores que participam desta publicação conjunta,
cujo empenho e dedicação a este trabalho é de reconhecido
mérito. Sem eles, esta obra não passaria de um sonho. Com
eles, ela se tornou realidade e, hoje, pode ser oferecida aos
leitores brasileiros que já conhecem a obra de Popper ou que a
ela estão sendo apresentados. É nossa esperança que estes
textos estimulem a todos para uma compreensão ampliada do
pensamento de Popper que, em última instância, como ele
mesmo afirmava, dedicou seu trabalho em prol da construção
de um mundo melhor.
Quero agradecer, de modo especial, ao Círculo de
Estudos Bandeirantes, órgão cultural agregado à Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, que aceitou a publicação
deste trabalho e envidou todos os esforços para sua produção
editorial.
Em nome dos meus co-autores, tomo a liberdade de
oferecer este trabalho a todos os nossos alunos, que são a razão
de nosso empenho em compreender sempre mais o valor do
conhecimento e, ao mesmo tempo, em desenvolver a atitude da
modéstia intelectual, que é, sem dúvida, a mais significativa
lição da vida e da obra de Popper.
Paulo Eduardo de Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
13
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
SOBRE OS AUTORES
GERSON ALBUQUERQUE DE ARAUJO NETO
Graduado em Engenharia Civil e Filosofia pela UFPI. Fez
Mestrado em Filosofia pela PUC-SP e Doutorado em
Comunicação e Semiótica pela mesma universidade. Fez PósDoutorado em Filosofia pela UERJ. É professor Associado da
UFPI, onde leciona no Departamento de Filosofia e no
Mestrado em Ética e Epistemologia.
JOÃO BATISTA CICHERO SIECZKOWSKI
Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS) e Doutor em Filosofia na área de Epistemologia
pela PUCRS. Licenciado e bacharel em filosofia pela UFRGS e
mestrado na PUCRS com a dissertação: A Falseabilidade, a tese
dos três mundos e o mundo três em Karl Popper. Leciona nas áreas
de metodologia científica e história e filosofia das ciências.
Entre outras publicações, publicou O pluralismo da tese dos três
mundos de Popper e a crítica de Habermas, em 2006, na Revista
Princípios.
CRISTINA DE AMORIM MACHADO
Bacharel em Filosofia pela UERJ, mestre em Filosofia pela
PUC-Rio e doutora em Letras também pela PUC-Rio. Lecionou
nos Departamentos de Filosofia da UERJ, PUC e Bennett, e foi
bolsista PCI do MAST, onde desenvolveu pesquisa sobre o
Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). Atualmente é
14
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
professora adjunta do Departamento de Fundamentos da
Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
NEY MARINHO
Psiquiatra e Psicanalista. Membro Efetivo com funções
didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro (SBPRJ). Coordenador dos cursos: Estudo da obra de
W.R.Bion e Investigação Psicanalítica das Psicoses, no Instituto
da SBPRJ. Doutor em Filosofia (PUC-Rio). Pós doutorando no
Programa História das Ciências, Técnicas e Epistemologia
(COPPE/UFRJ). Realiza atualmente pesquisa sobre a noção
de loucura na Comunidade de Países de Língua Portuguesa
(CPLP).
JULIO CESAR R. PEREIRA
Doutor em Filosofia pela PUCRS. Publicou: Epistemologia e
Liberalismo – Uma Introdução a Filosofia de Karl Popper e
organizou: Popper – As Aventuras da Racionalidade, além de
vários artigos em jornais e revistas. Lecionou na PUCRS,
UFSM, UEL, FACCAT.
JOSÉ FRANCISCO DOS SANTOS
É graduado em Filosofia pela FEBE (atual Unifebe – BrusqueSC), especialista em Fundamentos da Educação pela FURB
(Blumenau-SC), mestre e doutor em Filosofia pela PUC-SP. É
professor na Faculdade São Luiz e Unifebe (Brusque-SC) e
Faculdade Sinergia (Navegantes-SC).
JÉZIO HERNANI BOMFIM GUTIERRE
Professor de Filosofia da Ciência e Filosofia da Linguagem no
departamento de Filosofia da Unesp-FFC-Marília. Sua área de
pesquisa estende-se pelos debates da epistemologia anglo-saxã
em torno do racionalismo e ontologia da ciência. Entre seus
recentes trabalhos publicados encontra-se a organização e
15
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
tradução de Escritos sobre ciência e religião, de T. H. Huxley
(2008).
ELIZABETH DE ASSIS DIAS
Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de
Campinas, professora de Filosofia da Ciência da Faculdade de
Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Pará. Publicou o livro Popper e as
Ciências Humanas.
GELSON LISTON
Gelson Liston é Doutor em Filosofia (UFSC, 2008) e Bolsista da
CAPES (Proc. BEX 9362/11-8). Atualmente, é professor
Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade
Estadual de Londrina. Atua principalmente na Graduação em
Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia.
RAQUEL SAPUNARU
Graduada em Física pela UFRJ, mestrado e doutorado em
Filosofia pela PUC-Rio. Atua como professora adjunta do
Instituto de Ciência e Tecnologia da UFVJM, onde ministra as
disciplinas de Fundamentos e Técnicas de Trabalho
Intelectual, Científico e Tecnológico, Questões de Sociologia e
Antropologia da Ciência e Questões de História e Filosofia da
Ciência e coordena o Núcleo de Filosofia e História da Física
Matemática (NUFIHM).
GUSTAVO CAPONI
Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência (UNICAMP, 1992), é
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Santa Catarina e bolsista do CNPq. Ele é autor de:
Georges Cuvier: un fisiólogo de museo (UNAM: México, 2008);
Buffon (UAM: México, 2010) e La segunda agenda darwiniana
(Centro Lombardo Toledano: México, 2011).
16
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
FERNANDO LANG DA SILVEIRA
Licenciado em Física e mestre em Física pela UFRGS. Doutor
em Educação pela PUCRS. Professor associado, lotado no IFUFRGS, lecionando na graduação e membro permanente do
Programa de Pós-Graduação em Ensino da Física. Produção
intelectual relacionada ao ensino de Física, com ênfase em
Tópicos de Física Geral, História e Filosofia da Ciência e
Métodos Quantitativos aplicados à Pesquisa em Ensino de
Física.
BRENA PAULA MAGNO FERNANDEZ
Economista, formada pela UFRJ. Especialização em Filosofia
Econômica pela FGV/RJ. Pós-Graduação em Lógica, Filosofia
Pragmática e Filosofia Econômica pela Johann Wolfgang Von
Goethe Universität – Frankfurt/Alemanha. Mestrado em
Filosofia e Doutorado em Ciências Humanas pela UFSC. PósDoutorado em Epistemologia pela USP. Atualmente trabalha
como Professora Adjunta do Departamento de Economia da
Universidade Federal de Santa Catarina.
SOLANGE REGINA MARIN
Graduada
em
Ciências
Econômicas,
Mestre
em
Desenvolvimento Rural e Doutora em Desenvolvimento
Econômico, com estágio de doutoramento na Marquette
University/WI-USA. Atualmente é professora do curso de
Ciências Econômicas e do Mestrado em Economia e
Desenvolvimento da UFSM.
17
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
TÚLIO VELHO BARRETO
Cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.
Recentemente, publicou os livros Na Trilha do Golpe – 1964
Revisitado (2004), A Nova República – Visões da Redemocratização
(2006) e 1964 – O Golpe Passado a Limpo (2007).
MARCIA MARIA RODRIGUES SEMENOV
Filósofa, Pedagoga, Bacharel em Direito, Comunicóloga e
Semioticista. Experiente em Magistério desde os 17 anos de
idade. Doutora em Comunicação e Semiótica, Mestre em
Filosofia, ambos pela PUC-SP; Bacharel e Licenciada em
Filosofia na USP; Pedagoga pela UNIMES; Bacharel em Direito
pela “Católica UniSantos”onde é Professora Titular. Leciona
Filosofia da Ciência, Ontologia, Metodologia da Pesquisa
Científica e Ética e Legislação. Publicou muitos artigos de
Filosofia. Lecionou na UNISANTA e UNILUS.
PAULO EDUARDO DE OLIVEIRA
Filósofo, com Pós-Doutorado pela UFPR. Doutor e Mestre em
Filosofia das Ciências Humanas pela PUCSP. Graduado em
Filosofia pela PUCPR. Atualmente, é professor titular do
Departamento de Filosofia da PUCPR, em Curitiba. Autor,
entre outros, de Introdução ao pensamento de Karl Popper
(Champagnat, 2010, em parceria com o Prof. Bortolo Valle) e
Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper (Paulus, 2011).
18
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 1
TEORIA DAS PROPENSÕES
Gerson Albuquerque de Araujo Neto
A obra de Karl Popper, um dos maiores filósofos do
século XX, é bastante eclética. Abrange desde a questão da
demarcação do conhecimento científico, o problema da
indução, o marxismo, a história, a probabilidade, etc. Todos
estes assuntos foram tratados com profundidade,
apresentando respostas originais e polêmicas para muitas
destas questões. O objetivo deste texto é analisar a Teoria das
Propensões de Karl Popper. Esta é sua proposta para resolver
algumas questões das teorias das probabilidades.
Popper afirma que se aproximou dos problemas das
probabilidades por acreditar que “yet we still lack a
satisfatory, consistent definition of probability; or what
amouts to much the same, we still lack a satisfactory axiomatic
system for the calculus of probability” (POPPER, 1980, p.
146)3.
Acrescenta Popper que os epistemólogos precisam
explicar melhor a relação entre a probabilidade e a
3 Na tradução brasileira de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota,
publicada pela Edusp, com o título A Lógica da Pesquisa Científica, em 1993, 9ª ed.,
página 160, afirma: “continua a faltar uma definição coerente e satisfatória de
probabilidade, ou, o que vale aproximadamente dizer o mesmo, continua faltar um
sistema satisfatório para o cálculo de probabilidades”. Uma nota de esclarecimento
precisa ser feita. As citações por nós utilizadas algumas vezes aparecem em inglês,
outras vezes aparecem em português. Na escolha, utilizou-se o critério de maior
clareza.
19
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
experiência. De fato, no mesmo texto, mais adiante, ele
observa: “the ralations between probability and experience are
also still in need of clarification” (POPPER, 1980, p. 146)4.
Alguns críticos de Popper entendiam que o cálculo das
probabilidades entrava em conflito com sua teoria
demarcatória da ciência, o falseacionismo. Contudo, para
Popper, esse conflito era apenas aparente. Sobre esse fato, ele
afirma: “in investigating this problem we shaw discover what
will at first seem na almost insuperable objection to my
methodological views” (POPPER, 1980, p. 146)5.
Ele resolveu, então, elaborar uma teoria do cálculo das
probabilidades, tentando superar essa aparente confrontação,
advertindo, no entanto, que desenvolverá esta sua teoria na
linha adotada por Richard Von Mises, a teoria das
probabilidades em termos de frequência. Observa, porém, que
não adotará o axioma do limite ou axioma da convergência.
Popper, também, se propõe a resolver o problema da
relação entre probabilidade e experiência. A esse, ele chamou
de problema de decidibilidade das sentenças probabilísticas.
Queria com isso ajudar os físicos a sair de uma situação
em que as teorias das probabilidades, à sua disposição, eram
insatisfatórias. Isto está claro quando ele afirma: “my hope is
that investigations will help to relieve the present
unsatisfactory situation in which physicists make much use of
probabilities wilthout being able to say, consistently they
mean by ‘probability’” (POPPER, 1980, p. 146-147)6.
Trad. brasileira, p. 160: “As relações entre probabilidade e experiência também
reclamam esclarecimento”.
5 Trad. brasileira, p 160: “Ao investigar esse problema, descobriremos o que, à
primeira vista, parecerá um obstáculo quase insuperável a minhas concepções
metodológicas”.
6 Trad. brasileira, p. 161: “Espero que essas investigações ajudem a afastar a
insatisfatória situação atual em que os físicos se encontram, fazendo amplo uso das
probabilidades sem estarem habilitados a dizer, coerentemente, o que pretendem
dizer com ‘probabilidade’”.
4
20
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Embora Popper tenha começado a escrever sobre a
Teoria das Propensões no seu livro Lógica da Pesquisa Científica,
ele escreveu esta teoria no Pós-Escrito à Lógica da Descoberta
Científica, como aponta seu discípulo David Miller numa
conferência, de uma série realizada pelo Royal Institute of
Philosophy, no período de outubro de 1994 e março de 1995.
Posteriormente, essas conferências foram transformadas em
livro, com o título Karl Popper: Philosophy and Problems.
TEORIA DAS PROBABILIDADES
A palavra probabilidade possui diversas acepções e
diversas são as suas aplicações. Na economia, nos jogos, na
estatística, etc. Podemos arriscar dizer que é difícil um campo
de estudo que não aplique um pouco de probabilidade no seu
trabalho. Observamos que a ciência da saúde, os diversos
campos da tecnologia, a política e qualquer outra ciência
sempre se defrontam com imprecisões ou situações que
requerem o uso de probabilidade. Portanto, os teóricos dessas
ciências precisam, em alguns casos, da aplicação da
probabilidade. Na pior das hipóteses, um teórico de uma
ciência qualquer precisa conhecer noções elementares de
probabilidade. Dessa forma, ressaltando sua importância, Jan
Von Plato se reporta à relação da probabilidade com a física:
“The developement of phisics has had a profund influence on
our ideas about probability” (PLATO, 1994, p. 10).
O problema da teoria das probabilidades não pode,
portanto, ser dissociado do estudo da filosofia da ciência,
porque está ligado à ciência. Logo, qualquer reflexão sobre a
ciência tem que envolver, em algum momento, a questão da
probabilidade. Além do que David Miller, no seu livro Critical
Rationalism a Restament and Defence, afirma: “One of the
principal challenges confronting any objectivist theory of the
21
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
scientific knowledge is to provide a satisfactory understanding
of physical probabilities” (MILLER, 1994, p. 176).
NASCIMENTO E BREVE HISTÓRIA DA PROBABILIDADE
Entre os primeiros grandes teóricos das teorias das
probabilidades encontramos Bernouilli, Bayes e Laplace. Eles
definiam a probabilidade como o quociente entre o número de
casos favoráveis e o número de casos possíveis.
A questão da probabilidade não foi discutida e nem
desenvolvida pelos gregos e nem tampouco por nenhum
matemático antigo. Durante a Idade Média, o assunto não
interessou a nenhum pensador. A primeira obra de que se tem
notícia que abordou a probabilidade foi um manual de
matemática, escrito no século XVI, pelo italiano Girolamo
Cardano. Porém, o assunto era tratado de forma superficial.
A questão só veio a despertar interesse na França, a
partir de 1650. Nessa época, o jogo era algo bastante popular
na sociedade francesa. Cada vez mais, sofisticado e intrigante,
ele despertou um interesse de alguns estudiosos em encontrar
uma teoria matemática que conseguisse apresentar resultados
relativos aos chamados jogos de azar.
Um famoso jogador francês, chamado De Méré,
desenvolveu um método para o estudo de tais jogos. Contudo,
ele encontrou resultados diferentes entre os observados nos
jogos e os previstos pelo seu método. Ele resolveu, então,
inquirir o famoso matemático e filósofo Blaise Pascal sobre
esse problema. Pascal, naquele momento vivendo em Paris,
dedica-se ao problema e, nessa época, mantém uma
correspondência com outro grande matemático, Pierre Fermat
que residia em Toulouse. Dentre os inúmeros problemas
discutidos entre os dois está o problema da probabilidade. A
partir destas cartas, são estabelecidas as bases para todos os
trabalhos sobre probabilidade. A conclusão de Pascal e Fermat
22
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
foi a de que o cálculo de De Méré estava errado. Ele estava
tentando aplicar fórmulas que só eram válidas em caso geral,
não sendo aplicáveis em casos específicos.
O primeiro tratado matemático formal sobre
probabilidade foi escrito por Christiaan Huygens, em 1657.
Para escrever esta obra, Huygens se baseou na
correspondência Pascal-Fermat. Outra obra importante na
história da probabilidade foi a Ars Conjectandi, de 1713,
redigida pelo famoso matemático Jakob Bernoulli. Aliás, a
família Bernoulli contribuiu muito para o desenvolvimento da
probabilidade. Outros de seus membros, Daniel Bernoulli, por
exemplo,
escreveu
tratados
matemáticos
sobre
a
probabilidade. Dentre os matemáticos que se preocuparam
com o problema da probabilidade, podemos citar Abraham De
Moivre, Leonhard Euler, Joseph Louis Lagrange e Pierre
Simon Laplace.
Essa definição clássica de probabilidade, mencionada
acima, foi contestada por Hans Reichenbach e Richard Von
Mises. Estes dois pensadores vão propor a substituição do
número de casos pela medição de frequência relativa. Esta
frequência relaciona um determinado número de casos com a
classe a que estes casos pertencem. Já a frequência absoluta
seria a classe por completo.
Alguns pensadores acreditam que o problema da falta
de certeza na previsão de alguns fenômenos está na
incapacidade do sujeito que estuda estes fenômenos. Muitos
pensadores, então, resolveram desenvolver teorias que
trabalhassem as teorias das probabilidades pela ótica
subjetiva, entre os quais estava Keynes.
Lorde Maynard Keynes, um dos maiores economistas
do século XX, desenvolveu uma teoria subjetiva da
probabilidade. Esta era bem mais requintada que as anteriores.
Nela, ele propõe um cálculo de medida de aproximação lógica
entre os enunciados científicos. Assim, se tivermos dois
23
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
enunciados, estes podem estar numa relação de
incompatibilidade,
independência
mútua
ou
de
deduzibilidade. Na teoria de Keynes, se os enunciados p e q
forem incompatíveis, a relação de probabilidade será zero e se,
por outro lado, forem dedutíveis, será igual a um. Os valores
intermediários entre zero e um são obtidos da dedução de p e
q, sendo que a probabilidade p dado q aumenta quando o seu
conteúdo é menor do que o que já está contido em q.
CRÍTICAS DE POPPER ÀS TEORIAS DAS PROBABILIDADES
Popper critica, e com, razão, a definição clássica de
probabilidade, que é o resultado da divisão do número de
casos favoráveis pelo número de casos possíveis. Para ele, esta
definição leva a embaraços lógicos. Estes casos favoráveis, por
exemplo, dependem de quê? Para um defensor da
interpretação subjetiva da probabilidade, eles estariam ligados
à crença que o sujeito tem nestes casos. Desta forma, o grau de
probabilidade estaria ligado aos sentimentos inerentes ao
sujeito, tais como certeza, dúvida, etc.
Para Popper, é complicada a aplicação desta
probabilidade psicológica nos casos de probabilidade
numérica. Aliás, ele é um crítico do conhecimento subjetivo e,
portanto, um defensor do conhecimento objetivo. Por sinal, este é
o título de uma de suas obras.
Ele acredita, inclusive, que o conhecimento objetivo vai
ajudar na formação da nossa subjetividade. Portanto, muitas
vezes, nossas crenças e nossos sentimentos são resultados de
um processo que tem como base o nosso conhecimento
objetivo.
Podemos dizer, ainda, que na realidade Popper não
rejeita o conhecimento subjetivo. Ele, na verdade, condena a
posição daqueles que defendem esta forma de conhecimento
como única. Acredita, também, que estes dois tipos de
24
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
conhecimento se relacionam, de modo que tanto o
conhecimento subjetivo ajuda a formar o conhecimento
objetivo como vice-versa. Popper vai além e afirma: “Esta via é
seguida com muito mais frequência do que a que vai do
conhecimento subjetivo para o conhecimento objetivo”.
Na sua obra Lógica da Pesquisa Científica, Popper faz
uma exposição da Teoria Frequencial das Probabilidades de
Richard Von Mises. Popper aponta contradições nesta teoria e
afirma ser projeto seu rejeitar as teorias subjetivas da
probabilidade e elaborar uma teoria frequencial da
probabilidade que pudesse superar os problemas das teorias
até então apresentadas.
Popper vai concordar com as críticas a Von Mises pelo
conceito e por ele ter, em sua teoria, combinado os axiomas da
aleatoriedade e da convergência. Alerta Popper que a
aplicação do “conceito matemático de limite ou de
convergência a uma sequência que, por definição (ou seja, por
força do axioma da aleatoriedade) não deve estar sujeito a
qualquer regra ou lei matemática” (POPPER, 1993, p. 169).
Diante disso, ele se propõe a melhorar o axioma da
aleatoriedade e eliminar o axioma da convergência,
classificando estas duas tarefas em um problema de
matemática e um problema epistemológico.
Na Lógica da Pesquisa Científica, Popper desenvolve,
então, uma teoria das probabilidades, que ele vai modificar
depois, ao apresentar a sua Teoria das Propensões. Esta sua
primeira teoria das probabilidades já se caracteriza como uma
teoria objetiva das probabilidades.
Nessa sua primeira teoria das probabilidades, Popper
utiliza a Fórmula Binomial de Newton e também o Teorema
de Bernoulli. Ele elimina o axioma da convergência, fazendo
uma axiomatização de sua teoria das probabilidades.
Quando Popper ainda acreditava que a questão das
probabilidades poderia ser resolvida com as teorias das
25
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
probabilidades em termos de frequência, apresentou uma
regra do cálculo de probabilidades, que ele mesmo chamou de
“uma forma do teorema de Bayes” (POPPER, 1987, p. 259).
Esta fórmula é a seguinte: “Desde que p(a)=0 e que b seja
previsível a partir de a, p(a,b) aumenta com p(b), quer dizer,
com a probabilidade absoluta de não b, que é o mesmo que a
improbabilidade lógica de b, ou Ct(b), o conteúdo de b”
(POPPER, 1987, p. 259). Depois, Popper abandona este projeto
e investe em uma nova proposta intitulada teoria das
propensões.
TEORIA DAS PROPENSÕES
A teoria das propensões segue a mesma definição
clássica de probabilidade, só que, enquanto nesta o quociente
se dá entre o número de casos favoráveis e o número de casos
possíveis, e estes casos possíveis, por definição, são iguais, na
teoria das propensões isto não ocorre. Os casos possíveis
assumem valores diversos, o que provoca pesos diferentes
entre eles.
Para Popper, na teoria das propensões, os enunciados
singulares estariam sujeitos às propensões. São elas que os
determinariam. Portanto, as propensões adquirem uma
importância fundamental no que diz respeito ao estudo dos
enunciados singulares.
Considera Popper que estas propensões ou pesos são
como forças físicas que atuam na possibilidade. A este
respeito, ele explica:
é uma interpretação física das possibilidades, que considera
não serem simples abstrações, mas sim tendências ou
propensões físicas para ocasionar o estado de coisas possível –
tendência ou propensões para efectuar aquilo que é possível
(POPPER, 1987, p. 292).
26
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Ele acreditava que estas propensões podiam ser
expressas em forma de frequências relativas. Estas seriam,
assim, tradução matemática de uma propensão. As
propensões não poderiam ser visualizadas. Mas, poderiam ser
expressas matematicamente.
As teorias clássicas das probabilidades constituem-se
em um caso da teoria das propensões, onde as possibilidades
assumem pesos iguais. Portanto, a teoria das propensões não
vem para romper com as teorias clássicas das probabilidades,
mas para complementá-las. Ela procura acrescentar
tendências, ou como Popper utiliza “propensões”, para
possíveis resultados de eventos probabilísticos. Ele chega,
inclusive, a dizer que acha válidas outras teorias objetivas das
probabilidades.
Na teoria clássica, a probabilidade é dada pela fórmula:
p(a,b)=r, onde se lê: a probabilidade de acontecer a, dado b, é
igual a r. Já na teoria das propensões, a mesma fórmula é lida
da seguinte maneira: “Na interpretação em termos de
propensão, é a asserção de que as condições b produzem uma
propensão r em que se realize o resultado a” (POPPER, 1987,
p. 296).
No volume 1 do “pós-escrito”, Popper esclareceu que
prefere usar o termo grau de corroboração no lugar de
probabilidade, da seguinte forma:
Nesta secção pretendo apenas discutir uma questão
terminológica – as minhas razões para propor que se fale de
‘grau de corroboração’ e não de probabilidade de uma
hipótese à luz dos testes. A minha razão principal é, é claro,
que esta última expressão – ainda que perfeitamente legítima
– presta-se a provocar confusões (POPPER, 1987, p. 236).
Para Popper, as propensões não dependem
exclusivamente do objeto estudado, mas, também, da situação
em que o fenômeno está inserido. Vejamos o que Popper
27
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
declara: “Eu salientara que as propensões não deviam ser
vistas como propriedades inerentes a um objeto, como dado
ou moeda, mas sim como inerentes a uma situação (da qual o
objeto faz parte)” (POPPER, s/d, p. 26).
Nestas palavras de Popper, podemos ver a importância
que ele atribui à situação em que ocorre o evento. Esta,
inclusive, pode ser determinante na alteração das propensões.
Através de sua teoria das propensões, Popper vai
aceitar que todas as variáveis, ou que a maior parte delas,
sejam levadas em conta nos experimentos. Popper afirma: “É a
hipótese de que todos os dispositivos experimentais (e,
portanto, todos os estados de um sistema) geram propensões
que podem, por vezes, ser testados com frequências”
(POPPER, 1987, p. 358).
Para ele, os experimentos da física quântica, como a
experiência da dupla fresta, por exemplo, confirmam estas
suas ideias.
Mas qual a principal diferença entre a interpretação em
termos de frequência e a interpretação em termos de
propensão? Segundo Popper, “a principal diferença entre a
interpretação em termos de frequência e a interpretação em
termos de propensão reside no estatuto dos enunciados
probabilísticos singulares” (POPPER, 1987, p. 259).
Para os defensores da teoria da frequência, os
enunciados singulares não possuem muita importância.
Porém, para a teoria das propensões, estes representam o
resultado de uma propensão.
Continuando com esta reflexão sobre a diferença entre
a teoria das propensões e a teoria frequencial das
probabilidades, Popper afirma que, na teoria frequencial, se
“atribui uma probabilidade ao acontecimento individual
apenas enquanto este acontecimento individual for um
elemento de uma sequência de acontecimentos com uma
frequência relativa” (POPPER, 1987, p. 292).
28
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Na teoria das propensões, o caso é diferente, como
afirma Popper:
Em oposição a isto, a interpretação em termos de propensão
associa uma probabilidade a um acontecimento individual
enquanto este é representativo de uma sequência de
acontecimentos virtual ou concebível, e não enquanto ele é um
elemento de uma sequência concreta (POPPER, 1987, p. 292).
CRÍTICAS A POPPER
A teoria das propensões de Popper recebeu diversas
críticas. Ele mesmo classifica a mais séria:
Deste modo pode-se esperar evitar o que a mim parece ser o
aspecto mais objectável da interpretação em termos de
propensão: a sua semelhança intuitiva com ‘forças vitais’ e
antropomorfismos semelhantes, de que tantas vezes se disse
serem pseudo-explicações estéreis (POPPER, 1987, p. 355).
A nosso ver, estas acusações têm consistência. Pode-se
perceber um cunho metafísico na teoria das propensões
quando analisamos a seguinte afirmação de Popper: “Assim,
as frequências relativas podem ser consideradas o resultado,
ou a expressão exterior, ou aparência de uma disposição,
tendência ou propensão física oculta e não diretamente
observável” (POPPER, 1987, p. 292).
Constatamos haver, nesta afirmação, a incorporação ao
discurso popperiano de um pensamento semelhante aos dos
metafísicos. Ele fala de “propensão física oculta” e “não
diretamente observável”, e isto é muito parecido com o
discurso metafísico.
E como testar estas forças, estas propensões? Segundo
Popper, “uma hipótese respeitante à força desta disposição,
tendência ou propensão física pode ser testada por estatísticos,
29
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
quer isto dizer, por observações de frequências relativas”
(POPPER, 1987, p. 292).
A defesa de Popper se apega ao fato de os cientistas
terem introduzido a ideia ou conceito de força para explicar
algumas teorias físicas que apresentavam alguns problemas.
Este conceito de força não encontra nenhum objeto físico que o
corresponda, ou seja, não existe nenhum objeto no universo
que seja uma força. Ou seja, no discurso científico há o
emprego de conceitos que não têm observação empírica.
REFERÊNCIAS
MILLER, David. Critical rationalism: a restatement and defense. Illinois:
Open Court, 1994.
_______. (ed.). Popper selections. Princenton: Princenton University Press,
1985.
NEIVA, Eduardo. O Racionalismo crítico de Popper. Rio: Francisco Alves,
1999.
O’HEAR, Anthony. Karl Popper: filosofia e problemas. São Paulo: Editora
da Unesp, 1997.
PLATO, Jan Von. Creating modern probability. Cambridge: Cambridge
University Press, 1994.
PELUSO, Luis Alberto. A Filosofia de Karl Popper. Campinas: Papirus,
1995.
POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. London and New York:
Routledge, 1987. A edição brasileira está intitulada A Lógica da pesquisa
científica. 9 ed. trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São
Paulo: Cultrix/Edusp, 1993.
_______. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo
Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1975.
30
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. Pós-Escrito à Lógica da descoberta científica. Volume 1. O
realismo e o objetivo da ciência. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.
_______. Pós-Escrito à Lógica da descoberta científica. Volume 2. O
universo aberto. Argumentos a favor do indeterminismo. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1988.
_______. Pós-Escrito à Lógica da descoberta científica. Volume 3. A teoria
dos quanta e o cisma da física. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.
_______. Um mundo de propensões. Lisboa: Fragmentos, s. d.
SCHILPP, Paul (ed.). The Philosophy of Karl Popper. La Salle: Open Court,
1974.
31
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 2
O PLURALISMO DA TESE DO MUNDO 3 DE POPPER
João Batista Cichero Sieczkowski
Para Popper, os dois problemas fundamentais da
epistemologia são os problemas da indução e da demarcação.
Sendo assim, consideramos que, para ele, os dois problemas
fundamentais da Nova Metafísica são os problemas da relação
entre corpo-mente e o da existência e realidade dos objetos
matemáticos. Esses dois problemas têm uma âncora em
comum que ajuda Popper a chegar a uma solução: a Tese dos
Três Mundos (TTM) e o Mundo 3 (M3).
Pouco se tem dito a respeito da importância dessa tese
para a epistemologia de Popper, mesmo porque, muitos a
relacionam ao idealismo de Platão, sem mesmo entender a
proposta popperiana. Dessa forma, o problema aqui será o
seguinte: qual é o sentido da Nova Metafísica que Popper
oferece aos seus leitores? Ora, Popper propõe uma nova
maneira de conceber a metafísica e de compreender essa
realidade como não-física e não-psíquica. Assim, o nosso
objetivo é contribuir para o esclarecimento do papel do M3,
em sua realidade, e a existência, dentro da TTM de Popper.
Para que isso se cumpra é preciso lançar luzes à Nova
Metafísica de Popper, onde a TTM e o M3 estão inseridos.
Procuraremos desenvolver esse trabalho a partir destes
5 pontos: (1) A ciência com ou sem metafísica? Popper e o
positivismo lógico de Viena; (2) O que é metafísica?; (3) Qual
32
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
metafísica?; (4) O M3 de Popper; (5) Qual realidade? O
conceito de realidade.
1. A CIÊNCIA COM OU SEM METAFÍSICA?
Iniciemos pela relação entre Popper e o positivismo
lógico de Viena. Popper trata, no livro O Realismo e o Objectivo
da Ciência, na seção 21, do problema da eliminação da
metafísica. Os pensadores que pretendiam eliminar a
metafísica defendiam a ideia de uma ciência possuidora de
uma linguagem científica universal, e pretendiam unificar
todo o conhecimento científico por meio desta linguagem. Eles
eram os positivistas lógicos do assim chamado Círculo de
Viena. Dessa forma, esses pensadores falavam de uma análise
da linguagem onde a metafísica seria excluída, porque as suas
proposições não teriam sentido. Seria uma operação-limpeza.
O objetivo era o de limpar as teorias científicas, o discurso
científico de termos e proposições sem sentido. A ciência
deveria alcançar o seu objetivo maior que seria o de livrar-se
da metafísica. Mas, podemos eliminar todos os elementos
metafísicos da ciência? Os positivistas lógicos afirmavam que
sim. E, para tanto, desenvolviam métodos e técnicas que
serviriam de bisturi para tal operação, ou seja, análise.
Popper é enfático em sua afirmativa: “Não creio que a
metafísica seja algo sem-sentido, e não acho que seja possível
eliminar todos os ‘elementos metafísicos’ da ciência: eles estão
intimamente entrelaçados com os restantes” (POPPER, 1987, p.
195). Aqui está a primeira razão para a eliminação parcial da
metafísica, mas não completa como queriam os positivistas
lógicos. Popper percebia muito bem que havia elementos
metafísicos que poderiam ser eliminados, porque o que estava
equivocado no positivismo lógico era a eliminação completa e
definitiva da metafísica, e não simplesmente a eliminação de
alguns termos ou proposições da metafísica. Mesmo a
33
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
eliminação completa e definitiva seria impossível dado ao fato
de que estes elementos estão entrelaçados, segundo o próprio
Popper. Popper aceitava que alguns elementos fossem
eliminados para melhorar as ciências. Portanto, seria uma
eliminação parcial, que beneficiasse o avanço da ciência.
Diz Popper: “Pois a eliminação de um elemento não
testável da ciência remove um meio de se evitarem refutações;
e isto terá tendência para aumentar a testabilidade ou
refutabilidade da teoria em causa” (POPPER, 1987, p. 195).
Essa é a segunda razão contra a eliminação parcial e não
completa da metafísica. Imunizar uma teoria contra a
refutação é deixar de jogar o jogo da ciência para Popper. Usar
termos ou proposições metafísicas para camuflar uma
refutação é uma estratégia que impossibilita o avanço da
ciência. Os positivistas lógicos pensavam que o seu critério de
demarcação pudesse servir para identificar esses elementos
metafísicos e eliminá-los, por meio de técnicas linguísticas e
gramaticais. Popper apenas diz que o seu critério de
demarcação não se destina a ser uma técnica com essa
finalidade. Aliás, Popper vai além do formalismo dos
positivistas lógicos. Não podemos parar na eliminação de
termos ou proposições metafísicas, mas temos que reconstruir
a teoria afetada mediante uma nova interpretação. Diz Popper:
Não se pode construir nada sobre esses ‘dados’, mesmo se
supusermos que eles existem. Mas não existem: não há ‘dados’
não interpretados; não há nada que nos seja simplesmente
‘dado’, sem ser interpretado; nada que se tome como base.
Todo o nosso conhecimento é interpretação à luz das nossas
expectativas, das nossas teorias, e é, portanto, de alguma
maneira, hipotético (POPPER, 1987, p. 125).
Portanto, devemos melhorar uma teoria por meio da
crítica.
34
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper não pretendeu reduzir o positivismo lógico ao
papel de exterminador da metafísica, mas reconhece a
importância dos problemas levantados pelos participantes do
Círculo de Viena. Em Carnap, o objetivo de eliminar a
metafísica é bem claro. Na Sintaxe Lógica da Linguagem (1934),
Carnap quer
mostrar que as questões metafísicas tradicionais são pseudo
questões, na medida em que o seu mistério assenta na
confusão e na mistura de expressões que se referem aos
objectos do mundo e expressões que se referem às próprias
propriedades da linguagem (GRANGER, s/d, p. 87-100).
A metafísica, para Popper, cumpre um papel
importante, enquanto que no positivismo lógico não há
nenhum aspecto positivo na metafísica. Qual é o papel da
metafísica para Popper? Ora, se a metafísica não é totalmente
exterminada da ciência, então é justo que cobremos de Popper
a importância da metafísica. Em que sentido a metafísica é
positiva em Popper, então? A metafísica deve ser examinada
por outros métodos que não sejam os científicos. A
testabilidade, como critério, serve só para teorias científicas.
Porém, uma teoria metafísica pode vir a tornar-se uma teoria
científica, isto é, uma teoria testável. Os exemplos de Popper
são o atomismo de Leucipo e Demócrito e o mecanicismo de
Descartes. Assim, a função da metafísica é (a) indicar a direção
da busca de uma teoria científica; (b) indicar o tipo de
explicação que satisfaz essa busca; (c) permitir uma apreciação
crítica de uma teoria científica. Por fim, a metafísica estimula o
progresso da ciência, incitando o debate racional de teorias.
O limite do critério de verificação empírica do
positivismo lógico de Viena é, no entender de Popper, estreito
demais porque não consegue constatar a presença de termos e
proposições metafísicas dentro da ciência. Por outro lado, o
critério positivista é largo demais, porque inclui o que deveria
35
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ser excluído. Ao longo da existência do positivismo lógico, não
se demonstrou que conceitos, proposições e teorias científicas
poderiam ser definidos por meio de definições empíricas,
como salienta Popper. Por exemplo, as proposições puramente
existenciais: não há como testá-las, mas estão presentes na
ciência. Essa é a consequência de uma ciência sem metafísica.
Só há ciência com metafísica.
Em resumo, partes generosas de teorias científicas
deveriam ser excluídas, porque são metafísicas. Todas as
teorias científicas têm algum conceito e/ou alguma proposição
assentados na metafísica. Ao pretender eliminar toda a
metafísica, incorre-se no erro de excluir teorias científicas
importantes para a física, por exemplo. Não há como
confirmar de maneira definitiva a verdade de uma teoria.
Toda teoria científica não pode ser completamente verificada,
mas poder ser falsificada, ou seja, testada (falsificável,
testável). Essa é a consequência de uma ciência com metafísica.
Não há ciência sem metafísica. Essa é a primeira lição.
2. O QUE É METAFÍSICA?
O que fizemos até agora foi mostrar a razão de Popper
admitir que ciência sem metafísica não é possível. Mas, o que é
metafísica, para Popper? Popper diz pouca coisa a respeito do
que seria metafísica (mesmo porque ele dá pouca importância
para perguntas do tipo “o que é isto ou aquilo?”, por essas nos
levarem ao essencialismo). Contudo, há alguns elementos
importantes. Em primeiro lugar, Popper é adepto do realismo
metafísico. Isso ele deixa claro. Em diversas ocasiões, ele faz
referência a essa posição como sendo a melhor que dispomos. O
realismo metafísico é um pressuposto na filosofia popperiana,
e é um importante elemento para entendermos o que é
metafísica e a “sua” metafísica. Diz Popper: “o realismo de
cunho metafísico – a concepção segundo o qual existe um
36
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
mundo real a ser descoberto” (POPPER, 1977, p. 160). Um
mundo a ser descoberto. Este mundo já existe, portanto. Restanos descobri-lo. É o mundo 3, como veremos. Popper era um
realista desde a publicação da Lógica da Pesquisa Científica
(1934), mas, confessa ele, neste livro não havia dito muita coisa
a respeito do realismo: “O motivo estava em que, ao escrever a
obra, eu não havia compreendido que uma posição metafísica,
embora não passível de prova, podia ser criticada e debatida
racionalmente” (POPPER, 1977, p. 159). O realismo era uma
confissão de fé. Assim, em 1969, em Conjeturas e Refutações,
Popper assume que “as teorias metafísicas podem ser
submetidas ao crivo da crítica e da argumentação, já que são
tentativas feitas no sentido de resolver problemas – problemas
talvez passíveis de receberam soluções mais ou menos
apropriadas” (POPPER, 1977, p. 159). O realismo objetiva
atacar a concepção idealista e subjetivista de conhecimento.
Tanto como o idealismo, o realismo é irrefutável, todavia, é o
melhor recurso que dispomos no momento. A vantagem está
em que o idealismo é falso e o realismo é verdadeiro. O
realismo é pensável (no sentido kantiano), é possível
logicamente, e o idealismo não é pensável logicamente. O
realismo, apesar de indemonstrável e não testável, é pensável.
Está mais de acordo com a realidade.
Em segundo lugar, podemos falar do debate racional
que a metafísica proporciona. O debate racional de teorias está
alicerçado em princípios éticos que, para Popper, é questão
importante. Em primeiro lugar, um debate racional deve
respeitar o princípio de falibilidade. Esse princípio diz que, em
um debate racional, há três consequências possíveis: talvez tu
tenhas razão; talvez eu tenha razão; talvez nós dois não
tenhamos razão, mas nunca nós dois teremos razão, porque a
minha posição é contrária à tua. Não há debate racional
quando eu e tu concordamos. Em segundo lugar, o próprio
princípio da discussão racional. Temos que ponderar os nossos
37
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
argumentos contra e a favor a certa teoria. Devemos ser
críticos; e, por último, o princípio da aproximação da verdade.
Esse princípio diz que nossa discussão deve ser objetiva,
mesmo que não possamos chegar a um acordo. Essa ética do
debate fundamenta a metafísica de Popper, na medida em que
exige que nossas teorias acerca da realidade possam ser
discutidas ou debatidas racionalmente. Isso nos leva ao
terceiro elemento do que podemos entender por metafísica em
Popper.
O terceiro elemento é a formação da realidade. Eis aí o
ponto chave a considerar: a metafísica será uma teoria acerca
da formação da realidade ou da estrutura empírica da
realidade. Diz Popper:
a formação da realidade é, portanto, nossa obra; um processo
que não pode ser compreendido se não tentamos
compreender todos os seus três lados, esses três mundos; e se
não tentamos compreender a forma em que os três mundos
interagem entre si (POPPER, 2006, p. 45).
Teorias a respeito da formação da realidade são
metafísicas. E o realismo metafísico é verdadeiro também por
essa razão. O realismo metafísico possibilita elaborarmos
teorias metafísicas a respeito da formação da realidade. Assim
fez Popper. A realidade não permanece a mesma, mas se
modifica. Assim, as teorias metafísicas a respeito da realidade
se modificam. E a ciência aproveitará essas teorias para se
desenvolver.
3. QUAL METAFÍSICA?
Popper discordava, em relação ao Círculo de Viena,
que um critério de demarcação separasse ciência e metafísica.
Para Popper, um critério de demarcação deveria separar
ciência e pseudociência. Quanto à ciência e à pseudociência, a
38
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
pergunta principal deveria ser: em que condições eu recusaria
a minha teoria? Se não se formulassem tais condições, o debate
racional se tornaria inviável. É o que aconteceu com a
psicanálise e com o marxismo. Essas teorias, por não
apresentarem as condições em que deveriam ser abandonadas,
se imunizaram, ou seja, se protegeram contra o falseamento.
Para a metafísica, essa tese é importante, porque a viabiliza
como teoria que estimula o progresso da ciência por meio do
debate racional. Diz Popper:
Tal como imaginei na primeira vez que foi objeto de minha atenção,
o problema da demarcação não era o de traçar fronteiras entre
ciência e metafísica, mas separar Ciência e pseudociência. Naquela
época, a Metafísica não me interessava. Foi somente mais tarde que
estendi meu critério de demarcação à Metafísica (POPPER, 1977, p.
48).
Mas, qual é a metafísica que Popper propõe? As teorias
metafísicas devem ser “um possível sistema de referência para
teorias científicas comprováveis” (POPPER, 1977, p. 177).
Portanto, sua teoria metafísica deveria ter o mesmo caráter. A
teoria metafísica de Popper é a Tese dos Três Mundos (TTM). O
caminho provável que Popper seguiu para formular essa
teoria foi a partir das considerações de Bolzano, em seu livro
Wissenschaftslehr (1837). Ali, Bolzano fala de enunciados em si
mesmos em contraposição a processos mentais subjetivos.
Assim, uma coisa é apreender enunciados (o que é
psicológico) e outra é considerá-los em sua própria estrutura
(o que é próprio da lógica). São mundos distintos: o mundo
das relações psicológicas e o mundo das relações lógicas. Diz
Popper:
Se denominarmos primeiro mundo o mundo das coisas – dos objetos
físicos – e de segundo mundo o mundo das experiências subjetivas
(tais como os processos mentais), poderemos denominar de terceiro
mundo o mundo dos enunciados em si mesmos. (Atualmente,
39
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
prefiro falar em ‘mundo 1’, ‘mundo 2’ e ‘mundo 3’; a este último,
Frege denominou, por vezes, ‘terceiro reino’) (POPPER, 1977, p.
191).
O indicativo é claro: Popper é leitor de Frege, onde
descobriu a possibilidade dessa teoria. Mas quais são as
questões que preocupam Popper em relação a essa teoria? A
natureza e a existência desses mundos; a redução do M3 ao
M2; do M2 ao M1; e a caracterização desses mundos. Ora,
segundo Popper, esses mundos mantêm relações causais.
Assim, o M2 é mediador entre o M1 e o M2. O M1 é o mundo
das coisas materiais, dos estados físicos que atuam com
processos, forças, campos de força. É o efeito dessas coisas
materiais sobre nós que leva-nos a constatar a realidade do
M2. Aqui é a interação entre o M1 e o M2 que ocorre. O M2 é o
mundo dos estados mentais, da consciência, do sujeito. Popper
cita o exemplo da dor de dente como interação entre o M2 e o
M1. A cárie é um processo físico-químico material, enquanto
que a dor que advém é subjetiva. Apesar de claras essa
distinção e relação, há aqueles que negam a existência do M2.
São os defensores de teorias materialistas. Por outro lado,
Popper acredita que um dos problemas clássicos da filosofia, o
problema corpo-mente ou cérebro-mente, encontra o caminho
de sua solução na interação desses dois mundos. Diz Popper:
“Una de las soluciones concebibles de este problema es el
interaccionismo: a teoria de que los estados mentales y físicos
interactúam” (POPPER, 1977, p. 42).
A partir de então, Popper introduz a divisão tripartida
dos três mundos. Esse é o pluralismo interacionista de Popper.
Diz ele:
Um dos problemas fundamentais dessa filosofia pluralista
refere-se à relação entre esses três ‘mundos’. Os três
relacionam-se de tal modo que os dois primeiros podem
interagir e os dois últimos também podem interagir. Assim, o
segundo mundo, o mundo das experiências subjetivas ou
40
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
pessoais, interage com cada qual dos outros dois mundos. O
primeiro mundo e o terceiro mundo não podem interagir senão pela
intervenção do segundo mundo, o mundo das experiências
subjetivas ou pessoais (POPPER, 1975, p. 152).
Como dissemos, a relação entre os três mundos é
causal. Há pontos de intersecção entre o M3 e o M2, e o M1 e o
M2. Portanto, o M1 e o M3 não se relacionam de forma causal.
O M1 e o M3 se relacionam indiretamente, isto é, com a
mediação do M2. Aqui há uma lição fundamental na leitura de
Popper: o sujeito conhecedor tem uma importância decisiva no
interacionismo pluralista. A materialização das teorias do M3
em possibilidades tecnológicas do M1, passa pela descoberta
do sujeito do M2. Escreve Popper uma vez mais: “Assim, essas
possibilidades estavam ocultas nas próprias teorias, nas
próprias ideias objetivas; e foram descobertas nelas por homens
que tentaram compreender essas ideias” (POPPER, 1975, p.
153). Essa é a realidade objetiva da TTM. Aqui, o sujeito
assume a função de apreender os objetos do M3 e materializálos no M1.
4. O M3 DE POPPER
Popper passa a explicar a natureza e a existência do
M3, pensando na matemática. Ora, como M1 é o mundo físico,
o M2 o mundo psicológico e o M3 o mundo da lógica, não
dificultou mais a situação a introdução do M3, uma vez que
somente a postulação da existência e realidade de um M2
interagindo com o M1 já abriu um intenso debate? Popper tem
em vista os objetos matemáticos, também. Como se explica a
existência e a realidade desses objetos? Assim, o centro do
debate não é mais a interação entre os três mundos somente,
mas a existência e a realidade do M3. Qual é a realidade
objetiva do M3? A resposta desta questão explica a natureza e
a existência de objetos matemáticos para Popper. Popper já
41
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
havia travado um intenso debate com os monistas
materialistas por admitir a existência e a realidade do M2.
Estes queriam, na melhor das hipóteses, reduzir toda a
realidade do M2 ao M1. Outros nem mesmo admitiam a
existência do M2. Bem, agora Popper insere a ideia de um M3,
além do M1 e do M2. Qual é a explicação de Popper? Para
Popper, o problema inexplicável pelos monistas materialistas é
a existência e a realidade objetiva dos conceitos, proposições,
argumentos e teorias da matemática. Os conceitos, as
proposições e as teorias são entidades ou objetos que povoam
e são habitantes do M3, juntamente com problemas e
argumentos. A existência desses objetos no M3 é independente
da apreensão feita pelo sujeito do M2. Diz Frege, defensor do
M3, que antecedeu Popper:
É preciso admitir um terceiro domínio. O que este contém
coincide com as ideias, por não poder ser percebido pelos
sentidos, e também com as coisas, por não necessitar de um
portador a cujo conteúdo de consciência pertenceria. Assim,
por exemplo, o pensamento que expressamos no teorema de
Pitágoras é intemporalmente verdadeiro, independentemente do fato
de que alguém o considere verdadeiro ou não. Ele não requer
nenhum portador. Ele é verdadeiro não a partir do momento
de sua descoberta, mas como um planeta que já se encontrava
em interação com outros planetas antes mesmo de ter sido
visto por alguém (FREGE, 2002, p. 27).
Frege coloca várias características do M3. O M3 é
atemporal, no sentido de que uma teoria, que é verdadeira,
não ter-se tornado verdadeira no momento em que foi
formulada, mas já o sendo antes. A lógica e os números
primos o são também neste sentido; é algo independente de
um sujeito; seus objetos são descobertos, mas não construídos.
Popper aponta para uma autonomia parcial do M3 com estas
características. Na matemática, por exemplo, há a descoberta
dos seus objetos (logicismo matemático), e não a construção
42
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
por parte do matemático de tais objetos (intuicionismo
matemático). A segunda visão é mentalista e subjetivista, diz
Popper. Colocamos as construções matemáticas em uma forma
linguística que, por sua vez, requer objetos do M3. Portanto, o
M3 se antecipa a qualquer construção intuitiva do matemático.
Diz Popper:
Pois os objetos matemáticos podem agora tornar-se cidadãos
de um terceiro mundo objetivo: embora originariamente
construídos por nós – o terceiro mundo origina-se como
produto nosso – os conteúdos de pensamento levam consigo
suas próprias consequências não pretendidas (POPPER, 1975,
p. 136-7).
E continua adiante: “Surge assim uma nova espécie de
existência matemática: a existência de problemas; e uma nova
espécie de intuição: a intuição que nos faz ver problemas e nos
faz compreender problemas antes de resolvê-los” (POPPER,
1975, p. 137).
A autonomia se explica pelo fato de que o matemático
descobre problemas. Outro bom exemplo que Popper nos
apresenta da realidade do M3, como autônomo, está no livro O
Eu e o seu Cérebro, de 1977. Diz Popper ali:
Sirva como ejemplo el hecho de que los Grundgesetze de Frege
se escribieron y se imprimieron en parte cuando éste dedujo, a
partir de uma carta escrita por Bertrand Russell, que habia
una autocontradicción en sus fundamentos. Objetivamente,
esa autocontradicción había estado allí durante años. Frege no
se había dado cuenta; a autocontradicción no había estado ‘em
su mente’[...] Russell no produjo ni invento la inconsistência,
sino que la descubrió [...] Si la teoria de Frege no hubiese sido
objetivamente inconsistente, no podría haberle aplicado la
prueba de inconsistência de Russell y no se hubiera
43
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
convencido a símismo de esse modo de su carácter
insosteníble (POPPER, 1980, p. 64-5)7.
Por outro lado, o M3 é produto da atividade humana.
Aquela parte do M3 que interage com o M2 torna-o bastante
diferenciado de um mundo de essências ou formas puras,
como em Platão. Assim como o mel é produto das abelhas e as
teias são produto das aranhas, o M3 é um produto da
atividade humana quando considerado em seu ponto de
intersecção com o M2. As teorias, os problemas, os conceitos e
os argumentos (como habitantes que povoam o M3) são
formulados em uma linguagem. A linguagem é o produto da
atividade humana, assim como o mel é das abelhas e a teia é
das aranhas. Aqui está a realidade objetiva do M3. A realidade
objetiva do M3 reside em sua autonomia e por ser produto da
atividade humana. Diz Popper:
Acho que é possível manter uma posição que difira da de
ambos os grupos de filósofos: sugiro que é possível aceitar a
realidade ou (como se pode chamar) a autonomia do terceiro
mundo e ao mesmo tempo admitir que o terceiro mundo tem
origem como produto da atividade humana. Pode-se mesmo
admitir que o terceiro mundo é feito pelo homem e, num
sentido muito claro, sobre-humano ao mesmo tempo.
Transcende seus fabricantes (POPPER, 1975, p. 156).
Tradução nossa: “Sirva como exemplo o fato de que os Fundamentos de Frege foi
escrito e publicado em parte quando este deduziu, a partir de uma carta escrita por
Bertrand Russell, que havia uma autocontradição em seus fundamentos.
Objetivamente, essa autocontradição estava ali durante anos. Frege não tinha se dado
conta. A autocontradição não estava ‘em sua mente’ [...] Russell nem produziu, nem
inventou a inconsistência, mas descobriu-a [...] Se a teoria de Frege não fosse
objetivamente inconsistente, não poderia ter sido aplicada a prova de inconsistência
de Russell e não teria se convencido a si mesmo desse modo do caráter insustentável.
7
44
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
5. QUAL REALIDADE? O CONCEITO DE REALIDADE
É aqui que Popper supera Platão e torna-se
incompreensível para os materialistas radicais (fisicalistas,
etc.). Que realidade que é essa de que Popper fala? É uma
realidade que não é somente ideal ou inteligível (platônica),
mas também não é somente material ou física (fisicalistas).
Manter uma simbiose entre ciência e metafísica, sem analisar o
conceito de realidade, é algo temerário. Que realidade é essa
que é superior ou diferente da realidade física ou sensível?
Como temos acesso a essa realidade? O M3 tem duas
realidades: uma delas é autônoma, a outra é algo que interage
com o M2. Olhando separadamente, teremos na autonomia do
M3 uma realidade platônica e, olhando a interação do M3 com
o M2, teremos algo perto do materialismo fisicalista
reducionista. Mas, como compreender essas realidades como
uma só? Não podemos apenas acrescentar um mundo a mais
no pluralismo da TTM, mas temos que repensar o conceito de
realidade.
Em primeiro lugar, se a realidade é distinta da
aparência, então a realidade não poderia comportar
contraexemplos ou contrafactuais. Se tivermos uma ‘realidade’
que é aparente, o é apenas por não ser a realidade factual. Mas,
como a realidade factual pode possuir contraexemplos ou
contrafactuais, então o que seria a ‘realidade aparente’? Os
contraexemplos ou contrafactuais são a realidade ou a
realidade é aquilo que dizíamos ser quando não
considerávamos os contraexemplos ou contrafactuais? O que é
aparente pode tornar-se realidade. Com este argumento,
queremos mostrar que, se a realidade de que chamamos de
aparente pode tornar-se realidade, então mesmo que a
realidade do M3 seja aparente (o que para nós é duvidoso!)
poderá vir a ser real. Mas que realidade é essa? É uma
realidade objetiva que é independente da experiência, no
sentido de que usamos estruturas conceituais, teóricas e
45
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
argumentativas para compreender o mundo real ou factual
(em Popper, M1). A realidade entendida como tal é a pedra de
toque para entender o realismo metafísico de Popper. O
realismo metafísico diz:
(a) existem objetos reais (habitualmente a concepção se
preocupa com objetos espácio-temporais), (b) esses existem
independentemente da nossa experiência e do nosso
conhecimento deles e (c) têm propriedades e entram em
relação independentemente dos conceitos com os quais os
entendemos ou da linguagem com a qual os descrevemos
(BUTCHVAROV, 2006 in AUDI, 2006, p. 798).
Ora, é errôneo alegar que esses objetos reais (M3 de
Popper) são explicados por conceitos que já temos em nossa
linguagem e experiência. Tais conceitos só fazem parte de
nossa linguagem descritiva e argumentativa, porque suas
estruturas foram abstraídas do M3, apreendidas e aplicadas
por um sujeito ao M1 (a realidade factual). Caso contrário, de
onde teriam surgido tais conceitos? Butchvarov coloca muito
bem a questão:
Mas isso tem uma consequência de muito maior alcance
ainda: ou (i) aceitamos a ideia aparentemente absurda de que
não haja objetos reais (pois a objeção aplica-se igualmente às
mentes e a seus estados, a conceitos e palavras, a propriedades
e relações, a experiências, etc), visto que dificilmente
acreditaríamos na realidade de alguma coisa da qual não podemos
formar absolutamente nenhuma concepção; ou (ii) temos que
enfrentar a tarefa, aparentemente sem esperança, de uma
drástica mudança naquilo que queremos significar quando dizemos
‘realidade’, ‘conceito’, ‘experiência’, ‘conhecimento’, ‘verdade’ e
muito mais (BUTCHVAROV, 2006 in AUDI, 2006, p. 798).
Em segundo lugar, a distinção kantiana entre conhecer
e pensar assume uma importância decisiva em nosso modo de
ver. Há aquilo que podemos conhecer no mundo, mas há
46
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
também aquilo que nos ajuda a conhecer, assim como há
marceneiros, mas também há o conceito de marceneiro.
Podemos conhecer muitas coisas no mundo, mas também
precisamos de ‘ferramentas’ para pensar essas coisas do
mundo. Mas, ter conhecimento dessas ‘ferramentas’ em si
mesmas não está a nosso alcance. Esse é o nosso limite. O M3 é
o mundo das coisas em si mesmas, no sentido em que, não
podemos nada dali, mas podemos operar com esses objetos,
fazer uso dessas estruturas lógicas conceituais, estruturas
teoréticas, estruturas lógicas de argumentos, etc. Diz Kant, na
Crítica da Razão Pura:
Para conhecer um objecto é necessário poder provar a sua
possibilidade (seja pelo testemunho da experiência a partir da
sua realidade, seja a priori pela razão). Mas posso pensar no que
quiser, desde que não entre em contradição comigo mesmo, isto é,
desde que o meu conceito seja um pensamento possível, embora não
possa responder que, no conjunto de todas as possibilidades, a
esse conceito corresponda ou não também a um objeto
(KANT, 1985, p. 25).
Dessa forma, eu posso pensar a TTM e o M3 desde que
isso não leve acontradizer-me comigo mesmo, isto é, que o
meu pensamento seja logicamente possível. Acreditamos que
foi isso que Popper usou como sustentação para a TTM e
principalmente para o M3. Por sua vez, o anti-realismo não
passa de uma tautologia. Para os anti-realistas, nós
conhecemos (podemos conhecer) a realidade somente como a
conhecemos (podemos conhecê-la). Isso é pouco e não diz
nada da maneira, não descreve o modo de como acessamos
essa realidade.
CONCLUSÃO
Mesmo que não aceitemos o anti-realismo, por ser uma
mera tautologia, não podemos ter uma ideia simplista do
47
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
nosso relacionamento cognitivo com o mundo, como diz
Butchvarov. O que Popper fez foi reestruturar a metafísica em
uma época em que tal pensamento tinha perdido toda e
qualquer credibilidade. As ideias de David Hume sobre o
papel da metafísica como obstáculo para o progresso da
ciência e a tese da eliminação da metafísica defendida pelo
positivismo lógico do início do século XX ofuscaram qualquer
função mais importante para a metafísica. Popper recompõe a
metafísica de forma que esta aparece, com a ideia de discussão
racional, como estimulante para a descoberta científica. Toda a
nossa argumentação aqui objetivou mostrar a importância da
metafísica para Popper; mostrar que a teoria metafísica de
Popper é a TTM, e que o M3 ocupa um lugar diferenciado na
metafísica por seu caráter de descoberta.
Ademais, outro aspecto que é importante destacar é
que, em momento algum, tivemos a intenção de esgotar a
abordagem de Popper sobre o pluralismo da TTM e do M3.
Indicamos um caminho a explorar: o conceito de realidade. Na
obra de Popper O Mundo de Parmênides (1998) esse conceito é
trabalhado dentro da filosofia grega nas figuras de Xenôfanes,
Parmênides e Heráclito, entre outros.
REFERÊNCIAS
AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus,
2006.
FREGE, Gottlob. Investigações Lógicas. Org. trad. Paulo Alconforado. Porto
Alegre: PUCRS, 2002.
GRANGER, Gilles G. e outros. Filosofia Analítica. Lisboa: Gradiva, s/d.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1985.
48
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
POPPER, Karl R. O Realismo e o Objectivo da Ciência. Pós-Escrito à Lógica
da Descoberta Científica. Vol. I Lisboa: Dom Quixote, 1987.
_______.
Conhecimento
Itatiaia/Edusp, 1975.
Objetivo.
Belo
Horizonte/São
Paulo:
_______. El Mundo de Parménides. Barcelona: Paidós, 1999.
_______. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977.
_______. Em Busca de um Mundo Melhor. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_______. El Yo y Su Cerebro. Barcelona: Labor, 1980.
49
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 3
POPPER, A DEMARCAÇÃO DA CIÊNCIA E A ASTROLOGIA
Cristina de Amorim Machado
Neste capítulo8, veremos como a astrologia se insere
numa das principais questões da filosofia da ciência, a saber: o
que é ciência? Para isso, será preciso desdobrar o problema da
demarcação, formulado na década de 1930 por Karl Popper, já
na primeira versão do seu livro A lógica da pesquisa científica.
De modo esquemático, abordaremos os critérios estabelecidos
para fazer a distinção entre ciência e não-ciência, como
verificabilidade, falseabilidade e ciência normal, propostos,
respectivamente, pelo Círculo de Viena, por Karl Popper e por
Thomas Kuhn. Ademais, essas três concepções foram
questionadas nos anos 1970 por Paul Thagard, que propôs seu
próprio critério no artigo “Why astrology is a pseudoscience?”.
Sendo assim, partindo da filosofia da ciência popperiana, o
objetivo deste capítulo é apresentar o problema da
demarcação, que produz o conceito de pseudociência, e
analisar a pertinência da atribuição desse estatuto à astrologia.
Este capítulo baseia-se na minha dissertação de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio
(MACHADO, 2006).
8
50
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA DE POPPER
O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994)
considerava inadequado o critério de demarcação proposto
pelo Círculo de Viena9 – a verificabilidade –, que, por ser
indutivista, era demasiado restritivo em alguns aspectos e
amplo em outros10. Popper propôs, então, a falseabilidade
como princípio de distinção da racionalidade científica, tendo
em vista que, para ele, não há indução em ciência, pois o
princípio de indução não se baseia na experiência, e qualquer
tentativa de fazê-lo leva a um regresso infinito, como já havia
sido esclarecido duzentos anos antes pelos argumentos de
Hume acerca do princípio de indução (POPPER, 1975, p. 29).
Com seu critério – a falseabilidade –, Popper transfere
para o momento da crítica da teoria a possibilidade de
identificá-la como científica ou não, ou seja, se uma teoria não
fornece os meios para um possível falseamento empírico, se
não há experiência capaz de falseá-la, ela deve ser reconhecida
como um mito, explicação pseudocientífica do real. Uma teoria
científica deve ser falseável empiricamente, ou seja, se as
9 O Círculo de Viena (anos 1920 a 1930) formou-se por filósofos e cientistas, sob a
orientação intelectual do filósofo alemão Moritz Schlick. O que os reuniu foi o
interesse comum por certos tipos de problemas e a mesma abordagem positivistaempirista para resolvê-los. Vale lembrar que a preocupação principal dos membros do
Círculo de Viena era com a linguagem científica, que, para eles, deveria ser neutra e
livre das ambiguidades típicas da metafísica, de maneira que a ciência pudesse
garantir seus procedimentos uniformes e intersubjetivos. Para isso, era necessário
estabelecer um critério de demarcação entre enunciados significativos e não
significativos. Os significativos poderiam ser de dois tipos: 1) lógico-matemáticos, sem
compromisso com o fornecimento de informações acerca do mundo e, portanto, com a
experiência; e 2) verificáveis, ou seja, os que pretendessem fornecer informações
acerca do mundo e que pudessem ser verificados empiricamente. Se o enunciado não
fosse lógico-matemático nem verificável empiricamente, seria considerado não
significativo e, portanto, não científico (MAGEE, 1973, p. 49).
10 Amplo, porque incluiria formas de conhecimento como a astrologia, a psicanálise e
o marxismo, que contêm proposições verificáveis empiricamente; e restritivo, pois
excluiria boa parte da ciência contemporânea, cuja verificação empírica é
problemática.
51
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
proposições observacionais dela deduzidas forem falseadas, a
teoria será considerada falsa.
Para Popper, o falseamento se dá por intermédio dos
falseadores potenciais, ou seja, os resultados experimentais
previstos pela teoria que, se ocorrerem, a falsearão (POPPER,
1975, p. 90). Em outras palavras, por uma questão de
honestidade intelectual, ao propor uma teoria, o cientista
também deve explicitar em que condições abriria mão dela. A
classe dos falseadores potenciais constitui o conteúdo empírico
de uma teoria. Quanto maior o conteúdo empírico de uma
teoria, mais ela é falseável. Chalmers (1994, p. 93-96) critica
essa noção, pois ela nada diz sobre o mundo fora das situações
experimentais: o domínio da aplicabilidade da teoria equivale
ao domínio de suas situações de teste. Logo, para comparar
teorias rivais, não bastaria comparar suas classes de
falseadores potenciais.
Esse procedimento, ao contrário do critério de
verificabilidade do Círculo de Viena, nada tem a ver com o
problema do significado, como ressalta Magee (1973, p. 4),
dado que muitas teorias científicas resultam de
desenvolvimentos baseados em mitos, e não faria sentido que,
como mitos, carecessem de significado. Parece mais adequado
distinguir entre conhecimento crítico (científico) e dogmático
(não científico). Para Popper, o fato de uma teoria não ser
considerada científica não quer dizer que seja desprovida de
significado ou importância, muito pelo contrário, ela pode ser
desenvolvida para vir a ser testável.
Segundo Alan Chalmers (1994, p. 27-34), Popper chama
a atenção para o permanente caráter hipotético das teorias
científicas, ou seja, não há base segura para a ciência, cujas
teorias nunca podem ser provadas. Ao contrário dos
positivistas, cujo apreço pela ciência causou a ênfase na
geração e verificação de teorias com base no método indutivo,
Popper enfatiza a falseabilidade da ciência; no entanto, assim
52
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
como eles, acredita num método característico de todas as
ciências para demarcar a fronteira entre ciência e
pseudociência. E esse método, no caso popperiano, é
hipotético-dedutivo.
Além disso, o conhecimento, em Popper, é um produto
da cultura humana, resultante da modificação do
conhecimento anterior, estabelecido num embate com o
mundo físico, muito embora Popper ressalte o chamado
“problema da base empírica” (POPPER, 1975, p. 44-46). Grosso
modo, o problema da base empírica decorre do fato de todos
os testes serem dependentes de teorias que, como afirma o
próprio Popper, são falíveis. Consequentemente, os testes não
constituem uma base empírica sólida para confirmação ou
falseamento, e a “base empírica” é colocada entre aspas, sendo
necessário admitir que o mundo pode ser diferente do que diz
a teoria. Do ponto de vista metodológico, as teorias devem ser
expostas a críticas e não devem ser modificadas de maneira ad
hoc com a introdução de acréscimos impossíveis de testar para
resolver evidências problemáticas.
A CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA DE KUHN
O físico, filósofo e historiador da ciência norteamericano Thomas Kuhn (1922-1996) interessou-se por uma
“concepção de ciência historicamente orientada” (KUHN,
1996, p. 15), especialmente pelo que há de ordinário e
extraordinário em ciência. Afastou-se da tradição
epistemológica, adotando um discurso metacientífico e
interdisciplinar. Sua ênfase está na comunidade científica e nas
questões psicossociais, políticas, econômicas e éticas
envolvidas com a produção científica.
Em sua principal obra, Estrutura das revoluções
científicas, publicada em 1962, e que acabou por se tornar o
best-seller da filosofia da ciência, Kuhn caracteriza a ciência
53
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
como um processo cíclico11 que alterna períodos de ciência
normal, nos quais o paradigma vigente é cumprido por meio
da solução de quebra-cabeças12, e períodos de crise, que
podem culminar com a emergência das descobertas científicas
e a quebra do paradigma, o que constitui uma revolução
científica. Ao mudar de paradigma, o pensamento muda de
lugar, pois a imagem de mundo é outra, e o que era
considerado verdade ou erro talvez não o seja mais.
Segundo Kuhn, a ciência normal é a prática científica
tradicional com a qual os cientistas ocupam a maior parte do
seu tempo. Ela é condicionada por uma educação profissional
que tenta submeter a natureza a esquemas conceituais. A
ciência normal pressupõe o comprometimento e o consenso da
comunidade científica:
A ciência normal, atividade que consiste em solucionar
quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo,
extremamente bem-sucedido no que toca ao seu objetivo, a
ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento
científico. [...] A ciência normal não se propõe descobrir
novidades no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bemsucedida, não as encontra (KUHN, 1996, p. 77).
O conceito de paradigma aparece com várias definições
diferentes. A primeira delas, logo no prefácio, considerada
Entenda-se “processo cíclico” como a alternância entre ciência normal e revolução
científica, o que não implica uma repetição de conteúdo, apenas de forma. O que está
em jogo aqui é uma concepção de ciência historicamente orientada, que se caracteriza
por um modelo circular, em contraposição, por exemplo, a um modelo linear e
cumulativo. Nesse modelo circular, é possível recontar uma história a partir de outra
perspectiva, de outra imagem de mundo, ou seja, de outro paradigma.
12 Os quebra-cabeças são os problemas típicos da ciência normal, pois são previstos
pelo paradigma. Segundo Kuhn (1996, p. 59-60), eles não são os problemas mais
importantes, tendo em vista que os mais importantes, por exemplo, a paz duradoura,
talvez não tenham solução, mas os quebra-cabeças, ao contrário, certamente têm
solução, porque são compatíveis com o paradigma. Constituem, dessa maneira, os
únicos problemas aceitos como científicos pela comunidade e caracterizam-se por
regras bem definidas, enunciados reconhecidos e limitação de soluções aceitáveis.
11
54
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
pelo próprio autor como circular13 (KUHN, 1996, p. 219),
estabelece que o paradigma é constituído de “realizações
científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma
comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1996, p.
13). À última definição de paradigma, no fim do livro, “os
paradigmas determinam ao mesmo tempo grandes áreas da
experiência” (KUHN, 1996, p. 165), ainda se segue uma mais
abrangente no posfácio:
De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores,
técnicas, etc..., partilhadas pelos membros de uma
comunidade determinada. De outro, denota um tipo de
elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebracabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem
substituir regras explícitas como base para a solução dos
restantes quebra-cabeças da ciência normal (KUHN, 1996, p.
218).
Segundo Margareth Masterman (1970, p. 65), é possível
classificar todas essas definições de paradigmas em três:
metafísicos, sociológicos e de constructos. Os metafísicos
seriam aqueles definidos como mitos ou conjuntos de crenças;
os sociológicos seriam os que Kuhn definiu como conjuntos de
instituições políticas ou realizações científicas concretas; e os
de constructo seriam aqueles concebidos como ferramentas ou
analogia. Além disso, ela afirma que apenas os metafísicos
foram criticados pelos filósofos.
Outro conceito importante na obra de Kuhn é o de
anomalia. A anomalia é uma violação de expectativa
paradigmática que pode gerar uma crise aguda, causando a
perda de confiança no paradigma vigente. A ciência normal é
13 Kuhn a considera circular – por atrelar o conceito de paradigma à comunidade, que,
por sua vez, também se define pelo paradigma –, mas não viciada, constituindo uma
fonte de dificuldades reais.
55
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ameaçada pela anomalia, suas regras são reavaliadas e há um
esforço para tentar ajustar a anomalia. Ela pode dar origem a
um período de revisão extremamente conturbado em função
da insegurança profissional. Por outro lado, a descoberta
começa com a anomalia, ou seja, é nessa crise que
amadurecem as condições para uma revolução científica, na
qual o anômalo torna-se o esperado.
AS CRÍTICAS DE POPPER A KUHN E VICE-VERSA
A concepção de ciência normal de Kuhn foi criticada
por Popper não por discordar da existência daquilo que Kuhn
descreve como tal, mas pelo fato de Kuhn considerá-la
“normal”. Para Popper, a ciência normal é um perigo para a
ciência, pois resulta do espírito dogmático, típico de quem
aprende uma técnica e a aplica sem perguntar por quê. Por
esse motivo, ele distingue o cientista aplicado do cientista
puro. O cientista aplicado é esse que resolve quebra-cabeças,
que seriam nada mais do que problemas rotineiros, referentes
à aplicação de uma teoria dominante, o paradigma. O cientista
puro, ao contrário, dedica-se a situações “cheias de problemas,
problemas genuínos, novos e fundamentais, e de conjecturas
engenhosas – conjecturas que frequentemente competem umas
com as outras – sobre possíveis soluções” (POPPER, 1970, p.
54).
Popper enfatiza que discorda de Kuhn no que diz
respeito às diferentes concepções de ciência, mas admite que
talvez Kuhn use o termo “quebra-cabeça” no mesmo sentido
em que ele usa “problema”. Ainda assim, o conceito de ciência
normal, segundo Popper, exige crítica. Para ele, as noções de
paradigma e revolução científica também são problemáticas,
porque são apropriadas para a astronomia, mas não se
aplicam a outras ciências. Propõe uma concepção de
paradigma diferente, com o sentido de “programa de pesquisa
56
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
– um modo de explicação que é considerado tão satisfatório
por alguns cientistas que eles precisam da sua aceitação geral”
(POPPER, 1970, p. 55), em vez do sentido de teoria dominante,
como em Kuhn.
Outro ponto de atrito entre os dois filósofos é que
Popper considera Kuhn um relativista, já que ele pressupõe
que a racionalidade depende de uma linguagem comum e de
um acordo sobre os fundamentos, ao passo que Popper afirma
acreditar numa verdade absoluta e objetiva, apesar de não ser
ingênuo de achar que ela se encontre no “bolso de alguém”.
Ademais, a tese da incomensurabilidade14 entre
paradigmas também é negada por Popper, que a considera um
dogma perigoso. Para ele, trata-se de uma dificuldade, por
sinal muito frutífera, e não de uma impossibilidade de
tradução dos elementos de um paradigma a outro. Apesar de
concordar com a ideia de desenvolvimento revolucionário do
conhecimento, com uma nova teoria contradizendo a antiga e
corrigindo-a, Popper insiste que há uma continuidade nesse
processo e que a nova teoria deve explicar por que a teoria
antiga foi bem-sucedida.
Além dessas diferenças, há muitas semelhanças entre
as concepções de Popper e Kuhn, como estas que o próprio
Kuhn (1970, p. 1-2) lista em seu texto “Logic of discovery or
psycology of research?”:
1) preocupam-se com o processo dinâmico pelo qual o
conhecimento científico é adquirido, em vez de com
a estrutura lógica dos produtos da pesquisa
científica;
Este é mais um dos conceitos importantes da obra de Kuhn, já problematizado por
diversos autores, que diz respeito à impossibilidade de tradução dos conceitos de um
paradigma para outro. Nesse sentido, os termos de um certo paradigma não fazem
sentido para os adeptos de outro paradigma.
14
57
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
2) enfatizam os dados legitimados, os fatos e o espírito
da vida científica real;
3) retornam à história para encontrar os dados
necessários;
4) rejeitam a ideia de progresso cumulativo da ciência
e muitas outras teses positivistas;
5) realçam o processo revolucionário pelo qual uma
teoria mais antiga é rejeitada e substituída por uma
teoria nova incompatível;
6) destacam o papel da falha ocasional da teoria mais
antiga em atender aos desafios impostos pela
lógica, experimentação ou observação;
7) consideram a observação e a teoria científica íntima
e inevitavelmente relacionadas;
8) duvidam dos esforços para produzir uma
linguagem de observação neutra;
9) insistem que os cientistas podem desejar inventar
teorias que expliquem o fenômeno observado e que
fazem isso em termos de objetos reais.
Apesar dessas e de outras concordâncias, há muitas
outras diferenças entre os dois pensadores, além das que já
vimos anteriormente. É importante ressaltar aqui a
discordância de ambos, ou “diferença de intenção”, como
prefere Kuhn (1970, p. 3), em termos de demarcação de
ciência. Apesar dos resultados semelhantes, os processos são
muito diferentes, já que trabalham com aspectos distintos do
problema. Assim como Popper, que elaborou o seu critério
com base nos casos do marxismo e da psicanálise, Kuhn
concorda que ambos são pseudociências, mas afirma que
“chegou a essa conclusão por um caminho muito mais seguro
e mais direto que o dele” (KUHN, 1970, p. 7). Kuhn considera
o seu critério de solução de quebra-cabeças menos equívoco e
mais fundamental que o de Popper.
58
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Kuhn enfatiza a importância do compromisso com a
tradição científica, evita a noção de verdade e não gosta do
termo “falsificação” (KUHN, 1996, p. 186). Ele afirma também
que Popper “caracterizou o empreendimento científico inteiro
em termos que se aplicam apenas às suas partes
revolucionárias ocasionais” (KUHN, 1970, p. 6), tendo em
vista que ele só se refere aos procedimentos por meio dos
quais a ciência se desenvolve, substituindo uma teoria aceita
por outra melhor. Dessa maneira, Popper estaria ignorando
justamente a parte da ciência na qual se encontraria, segundo
Kuhn, um critério de demarcação, ou seja, a ciência normal,
onde também ocorreria o progresso da ciência.
Bryan Magee (1973, p. 43) sintetiza as diferenças entre
Popper e Kuhn da seguinte maneira:
Popper sempre se mostrou preocupado, antes de tudo, com a
descoberta e a inovação e, por conseguinte, com o teste de
teorias e com a expansão do conhecimento; Kuhn preocupa-se
com a maneira como os que aplicam essas teorias e esse
conhecimento orientam seu trabalho. [...] A teoria de Kuhn é,
em verdade, uma teoria sociológica acerca das atividades do
cientista em nossa sociedade. Essa teoria não é incompatível
com as ideias de Popper e, mais ainda, Kuhn modificou-a
sensivelmente na direção do pensamento popperiano, desde
que, pela primeira vez, a apresentou.
DIÁLOGO ENTRE POPPER E KUHN ACERCA DA ASTROLOGIA
Partindo do princípio de que Popper faz oito
referências à astrologia só no seu Conjecturas e Refutações
(POPPER, 1982), Kuhn (1970) também optou por tomá-la como
exemplo no artigo “Logic of discovery or psycology of research?”15,
15 É importante lembrar que Kuhn também menciona o problema da astrologia tanto
em Estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1996) quanto em A revolução copernicana
(KUHN, 1957).
59
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
considerando-se a recorrência do caso da astrologia como
exemplo de pseudociência.
Segundo Popper, as interpretações dos astrólogos são
muito vagas e explicam qualquer coisa, inclusive os
falseadores potenciais da teoria astrológica. Para fugir da
falsificação, os astrólogos impossibilitaram a testabilidade da
astrologia. Kuhn concorda com o que ele chama de
“generalizações” sobre a testabilidade da astrologia e a
postura dos astrólogos, mas não acha possível basear-se nelas
para identificar um critério de demarcação. Seu argumento
baseia-se na própria história da astrologia, que registra
diversas previsões que falharam. Dessa maneira, para Kuhn,
“a astrologia não pode ser excluída das ciências devido à
forma com que suas previsões foram elaboradas” (KUHN,
1970, p. 8).
Além disso, ele também não aceita a exclusão da
astrologia com base nas explicações que os astrólogos
oferecem para as falhas. Segundo Kuhn, “não há nada de não
científico nas explicações dos astrólogos sobre as falhas”
(KUHN, 1970, p. 8). Lembra, inclusive, que argumentos
similares são usados hoje em dia para explicar falhas na
medicina ou na meteorologia. No entanto, ele afirma que a
astrologia não é uma ciência, mas uma “arte prática”, como a
engenharia e a medicina de um século e meio atrás, e a
psicanálise hoje em dia.
Eu acho que a semelhança com uma medicina mais antiga e a
psicanálise contemporânea é particularmente próxima. Em
cada um desses campos, a teoria compartilhada era adequada
apenas para estabelecer a plausibilidade da disciplina e
fornecer um fundamento para as várias regras que controlam
a prática (KUHN, 1970, p. 8).
Essas regras práticas, apesar de úteis, não foram
suficientes para evitar as falhas recorrentes. Mas ainda assim
60
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
não faria sentido abandonar essas disciplinas plausíveis,
necessárias e relativamente bem-sucedidas porque ainda não
se elaborou uma teoria melhor. É justamente nessa ausência de
uma teoria melhor, que impede a pesquisa, que Kuhn
identifica o problema da pseudocientificidade da astrologia:
“embora houvesse regras para aplicar, eles não tinham
quebra-cabeças para resolver e, portanto, nenhuma ciência
para praticar” (KUHN, 1970, p. 9).
Ao comparar as atividades de astrônomos e astrólogos,
Kuhn afirma que, ao contrário dos astrônomos, com suas
atividades de medição, cálculo, correção de erro etc.,
atividades tipicamente de solução de quebra-cabeças, os
astrólogos não teriam tais desafios. Eles explicam a ocorrência
de falhas, mas tais falhas não suscitam os quebra-cabeças que
caracterizam a pesquisa científica. Com isso, “a astrologia não
pôde tornar-se uma ciência, ainda que as estrelas, de fato,
controlassem o destino humano” (KUHN, 1970, p. 10).
Ao afirmar que os astrólogos fazem predições testáveis
e reconhecem que essas predições às vezes falham, Kuhn
finaliza sua crítica ao critério de demarcação de Popper, apesar
de concordar com a exclusão da astrologia do conjunto das
ciências. Para ele, Popper teria se concentrado demais nas
revoluções ocasionais da ciência, o que o teria impedido de
perceber o real motivo dessa exclusão: “testes não são
requisitos para as revoluções por meio das quais a ciência
avança, mas isso não é verdade para os quebra-cabeças”
(KUHN, 1970, p. 10).
Uma distinção interessante é apresentada por John
Watkins (1970, p. 32). Ele sugere que os astrólogos são, de
alguma maneira, cientistas normais, na mais perfeita acepção
kuhniana. Eles resolvem quebra-cabeças no nível dos
horóscopos individuais, despreocupados com os fundamentos
da sua teoria geral, ou paradigma.
61
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
POR QUE A ASTROLOGIA NÃO É UMA PSEUDOCIÊNCIA?
Em seu artigo “Why astrology is a pseudoscience?”, Paul
Thagard (1978, p. 223-234) critica os critérios existentes para
distinguir as disciplinas pseudocientíficas, como a
verificabilidade, a falseabilidade e a ciência normal. Ele
considera que há uma falta de preocupação com o avanço da
ciência e com as questões éticas, gerada, entre outras coisas,
pela popularidade das pseudociências. Dessa maneira,
Thagard considera essa distinção necessária para poder
superar a negligência com a ciência genuína.
Assim como Popper, Thagard considera a astrologia
verificável. Desdobrando um pouco mais a questão, diz que
ela é verificável por meio de métodos estatísticos, como os
utilizados por Michel Gauquelin16, por mais controvertidos
16 Se o que se pretende é buscar uma evidência mensurável da premissa astrológica,
ou seja, de que há uma relação entre um determinado conjunto de eventos celestes e
certos eventos terrestres, dois caminhos são possíveis dentro da prática científica
padrão: o controle clínico e a verificação estatística. Segundo Gauquelin (1983, p. 14),
estatístico francês responsável pela maior pesquisa astrológica do século XX, o
controle clínico, utilizado também para avaliar a capacidade de diagnóstico de
médicos e psicólogos, é interessante e deve ser examinado, mas é também insuficiente,
pois coloca em questão a habilidade de determinado profissional e não a doutrina que
ele professa. A falha de um médico, psicólogo ou astrólogo não serve para refutar a
medicina, a psicologia ou a astrologia. Por outro lado, para Gauquelin, a verificação
estatística constitui um método mais objetivo e rigoroso para avaliar a teoria
astrológica, dado que “uma lei estatística é uma lei natural como qualquer outra”
(GAUQUELIN, 1983, p. 14), e ele cita o exemplo de Mendel para corroborar essa
afirmação. Dessa maneira, alinha-se com o que se pensa atualmente sobre o uso da
estatística como ferramenta de destaque nas ciências naturais e sociais
(GEWANDSZNAJDER, 1998, p. 77). Não é o caso aqui de nos estendermos numa
digressão sobre os métodos estatísticos, mas é importante lembrar que, na prática
científica, há também métodos qualitativos, além dos quantitativos, especialmente nas
ciências sociais (GEWANDSZNAJDER, 1998, p. 109), e que, em astrologia, há tanto
configurações qualitativas quanto quantitativas. Segundo o astrólogo André Barbault,
referindo-se aos resultados das pesquisas de Gauquelin, “até hoje nota-se que a
estatística tem proporcionado resultados convincentes quando o ‘quantitativo’
prevalece sobre o ‘qualitativo’: a passagem de um astro no horizonte e no meridiano
constitui uma configuração puramente ‘quantitativa’ e representa até a configuração
mais poderosamente valorizadora, a que dá maior ‘destaque’ a uma tendência. Não
ocorre o mesmo com as posições dos planetas nos signos. Neste caso, o ‘qualitativo’
62
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
que sejam seus resultados. Assim como Kuhn, Thagard não
considera a falseabilidade como critério suficiente para rejeitar
a astrologia, tendo em vista que ela é substituível. Como “a
falsificação só ocorre quando surge uma teoria melhor [...], a
astrologia não parece pior que as melhores teorias científicas,
que também resistem à falsificação até que surjam teorias
alternativas” (THAGARD, 1978, p. 226). Ele considera que a
falseabilidade é só uma questão de capacidade de substituição
de uma teoria por outra melhor. Além disso, ele afirma que os
problemas não resolvidos, como resultados negativos,
precessão dos equinócios, planetas novos, gêmeos e desastres,
também não são suficientes para identificar a astrologia como
pseudocientífica, dado que as melhores teorias lidam com
problemas não resolvidos. Thagard (1978, p. 228) propõe,
então, um critério de demarcação entre ciência e pseudociência
baseado em três elementos que, separados, seriam
insuficientes: teoria, comunidade e contexto histórico:
Uma teoria ou disciplina que pretenda ser científica é
pseudocientífica, se e somente se:
1) ela tem sido menos progressiva que as teorias alternativas
há bastante tempo, enfrenta muitos problemas não resolvidos,
mas
2) a comunidade de praticantes faz poucas tentativas de
desenvolver a teoria no sentido das soluções dos problemas,
não demonstra preocupação com as tentativas de avaliar a
teoria em relação às outras e é seletiva ao considerar
confirmações e negações.
prevalece sobre o ‘quantitativo’” (BARBAULT, 1990, p. 69). Para entender melhor essa
citação, é importante saber que a pesquisa de Gauquelin apresentou alguns indícios
de que há uma correlação entre certas posições planetárias no horizonte e no
meridiano e certas profissões, o chamado “efeito-Marte”, mas, em relação às posições
dos planetas nos signos, nenhuma frequência estatisticamente significativa foi
encontrada.
63
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Ao comparar o seu critério de demarcação com o de
Kuhn, Thagard afirma que são totalmente diferentes. Para ele,
a atividade da ciência normal não é capaz de distinguir ciência
de pseudociência, tendo em vista que, assim como vimos
anteriormente em Watkins, a atividade dos astrólogos se
parece muito com a típica ciência normal no sentido de Kuhn:
O que torna a astrologia pseudocientífica não é a ausência dos
períodos da ciência normal kuhniana, mas o fato de seus
proponentes adotarem as atitudes acríticas dos cientistas
‘normais’, independentemente da existência de teorias
alternativas mais progressivas (THAGARD, 1978, p. 228).
Com base nesse critério, Thagard relaciona quatro
características da astrologia que ele considera mais
importantes para classificá-la como pseudociência: 1) a
astrologia não é progressiva, de maneira que mudou pouco e
nada foi adicionado à sua capacidade explicativa desde os
tempos de Ptolomeu; 2) problemas como a precessão dos
equinócios17 estão pendentes; 3) há teorias alternativas de
personalidade e comportamento disponíveis desde o século
XIX, que explicam em termos psicológicos o que a astrologia
atribui às influências celestes. Independentemente de essas
Um dos três movimentos básicos do nosso planeta, o movimento do eixo de rotação
da Terra, que se assemelha ao movimento de um pião parando e se dá em um período
de 26 mil anos aproximadamente, define um círculo no céu dos pólos. Assim como a
rotação e a translação são percebidas da Terra de maneira diferente, definindo
respectivamente o dia e o ano terrestres (temos a impressão de que a esfera celeste gira
de leste para oeste diariamente e acompanhamos o movimento aparente anual do Sol
em meio às constelações), o movimento do eixo de rotação é percebido na Terra como
a precessão dos equinócios, ou seja, um fenômeno contínuo de deslocamento do ponto
equinocial vernal (1o a cada 72 anos), no sentido contrário à ordem das constelações,
ou seja, a cada 2 mil anos, aproximadamente, há um movimento aparente de
retrogradação de 30o do ponto equinocial vernal em relação às constelações. Com isso,
signos e constelações só se encontram sobrepostos a cada 26 mil anos,
aproximadamente, o que não afeta em nada a astrologia ocidental, já que esse sistema
astrológico baseia-se nos signos (12 divisões de exatamente 30o da eclíptica), e não nas
constelações. Cf. Machado, 2006, p. 71-3.
17
64
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
teorias psicológicas serem verdadeiras, elas seriam alternativas
mais progressivas à astrologia; e 4) a comunidade de
astrólogos geralmente não se preocupa com o tratamento dos
problemas pendentes ou com a avaliação da sua teoria em
relação às outras.
No entanto essas características também podem ser
questionadas, a saber:
1) O que Thagard entende por “mudou pouco”?
Embora essa afirmação seja vaga, não parece plausível que a
astrologia tenha “mudado pouco” desde os tempos de
Ptolomeu, ou que nada tenha sido adicionado à sua
capacidade explicativa. Além da contribuição árabe
(MARTINS, 1995, p. 76), é possível citar também as pesquisas
de Gauquelin (GAUQUELIN, 1983), só para ficarmos em dois
exemplos. Há que se notar também que o potencial
interpretativo18 da astrologia é um fator cultural, resultando
do contexto no qual se insere o astrólogo e a entidade
representada no mapa; portanto este talvez seja o elemento
que “mais muda” no âmbito da astrologia, pois acompanha as
mudanças dos sistemas de pensamento;
2) O “problema” da precessão dos equinócios já está
resolvido, tendo sido erroneamente considerado como tal em
função da confusão conceitual entre signo e constelação. No
entanto, ainda que consideremos a precessão dos equinócios
um problema, as melhores teorias científicas lidam com
problemas não resolvidos, como o próprio Thagard reconhece;
3) Ao tratar a astrologia como uma teoria de
personalidade e comportamento, Thagard a compara com a
psicologia, que seria uma teoria rival e mais bem-sucedida.
Entenda-se “potencial interpretativo” como as diversas possibilidades de se
interpretar um mapa astrológico, tendo em vista as variáveis em jogo: trata-se de um
sistema simbólico que, por ser traduzido por um ser humano, depende da experiência,
da capacidade e da disposição afetiva do astrólogo, além da própria circunstância
histórica e existencial em que isso se dá.
18
65
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Além de podermos questionar se de fato astrologia e
psicologia são teorias rivais, essa definição restringe o escopo
da astrologia, excluindo outras aplicações que nada têm a ver
com personalidade e comportamento, como meteorologia,
economia e política, só para citar algumas. Portanto não faz
sentido comparar a astrologia com a psicologia, tendo em vista
que são disciplinas distintas, cada qual com seus objetos de
estudo, métodos e problemas;
4) O argumento da comunidade astrológica toma como
modelo uma comunidade científica institucionalizada, que
conta com apoio, incentivo e patrocínio público e privado para
tratar seus problemas e fazer avaliações, o que não ocorre com
a comunidade astrológica. Contudo, apesar dessa nãoinstitucionalização, os problemas da astrologia têm sido
investigados em vários trabalhos, tanto no meio acadêmicocientífico quanto no astrológico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base no estudo apresentado neste capítulo,
percebe-se a limitação do modelo normativo de filosofia da
ciência defendido não só por Popper, mas também pelo
Círculo de Viena, que pretendiam dizer como a ciência deveria
ser. Além disso, ainda que Kuhn não estivesse propriamente
propondo um critério de demarcação nos mesmos moldes, a
sua concepção do que é ciência ou não também pode ser
criticada. O critério de Thagard, por sua vez, que pretende dar
conta do problema da demarcação, mostrando as limitações
dos critérios anteriores para definir o estatuto da astrologia,
parece igualmente insuficiente para estabelecê-la como
pseudociência. O próprio Thagard reconhece, posteriormente,
que a forma lógica que ele utilizou é imprópria, apesar de não
abrir mão da ideia de que ainda seja possível definir um
“perfil de pseudociência” (THAGARD, 1993, p. 157-173).
66
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
As perguntas que se podem fazer são: para quê? Afinal,
o que há de tão especial sobre a ciência que demande esse tipo
de diferenciação? Não seria ela um tipo de conhecimento
como outro qualquer? Ou será que é realmente mais
verdadeira, melhor ou superior a outros saberes?
Uma reflexão importante, que talvez seja a principal
justificativa para o estudo aqui proposto é: será que a filosofia
da ciência pode realmente demarcar o domínio científico?
Porque, se não pode definir o que é ciência, também não pode
definir o que não é. Tal situação de impasse, revelada pelo
estudo do caso da astrologia, indica o esvaziamento dos
modelos normativos de filosofia da ciência, que tentaram
conceber uma ciência independentemente da sua
circunstância, formulando critérios e métodos que se
aplicassem sempre. Esta é uma concepção idealizada de
ciência, considerada neutra, universal, apolítica e uniforme,
por meio da qual se poderia distingui-la de outros
conhecimentos a fim de legitimá-la como o lugar da verdade.
A partir da década de 1960, a filosofia da ciência póskuhniana passa a conceber a ciência como tributária de uma
história e, portanto, o conceito de pseudociência também.
Essas noções são construídas na narrativa histórica, tornandose aceitável a ideia de que algo que é considerado ciência ou
pseudociência hoje possa vir a não ser mais amanhã, e viceversa. O problema da demarcação, num sentido definitivo e
exclusivamente metodológico, como o proposto inicialmente
pela filosofia da ciência, torna-se, então, impróprio e, junto
com ele, o seu vocabulário. Os interesses voltam-se para a
prática científica, que, além de questões epistemológicas,
implica também questões psicossociais, políticas e econômicas.
É por isso que, nos dias de hoje, chamar a astrologia ou
qualquer outra disciplina de pseudociência parece um
anacronismo.
67
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
REFERÊNCIAS
BARBAULT, André. Tratado prático de astrologia. Tradução de Liliane
Barthod. São Paulo: Cultrix, 1990.
CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. Tradução de Beatriz Sidou. São
Paulo: UNESP, 1994.
GAUQUELIN, Michel. The truth about astrology. Tradução de Sarah
Mattews. Londres: Hutchinson, 1983.
GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais. In:
ALVES-MAZZOTTI, A; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências
naturais e sociais. São Paulo: Pioneira, 1998.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de
Beatriz e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1996.
_______. A revolução copernicana. Tradução de Marília Costa Fontes.
Lisboa: Edições 70, 1957.
_______. Logic of discovery or psycology of research. In: LAKATOS, I.;
MUSGRAVE, A (Org.). Criticism and the growth of knowledge. London:
Cambridge University Press, 1970.
MACHADO, Cristina de Amorim. A falência dos modelos normativos de
filosofia da ciência – a astrologia como um estudo de caso. Dissertação de
mestrado, PUC-Rio, 2006.
MAGEE, Brian. As ideias de Popper. Tradução de Octanny S. da Mota e
Leonidas Hegenberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
MARTINS, Roberto. “A influência de Aristóteles na obra astrológica de
Ptolomeu (O Tetrabiblos)”. Trans/Form/Ação, São Paulo, 1995.
MASTERMAN, Margareth. The nature of a paradigm. In: LAKATOS, I.;
MUSGRAVE, A (org.). Criticism and the growth of knowledge. London:
Cambridge University Press, 1970.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leonidas
Hegenberg e Ocatnny Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.
68
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília:
Editora UNB, 1982.
_______. Normal science and its dangers. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A
(Org.). Criticism and the growth of knowledge. London: Cambridge
University Press, 1970.
THAGARD, Paul. Computational philosophy of science. Cambridge: The
MIT Press, 1993.
_______. “Why astrology is a pseudoscience?” PSA 1978, volume I – p. 223234.
WATKINS, John. Against “normal science”. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE,
A (Org.). Criticism and the growth of knowledge. London: Cambridge
University Press, 1970.
69
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 4
POPPER E A QUESTÃO DA PSICANÁLISE19
Ney Marinho
Após o colapso do Império Austríaco, a Áustria havia passado
por uma revolução: a atmosfera estava carregada de slogans e
ideias revolucionárias; circulavam teorias novas e
frequentemente extravagantes. Dentre as que me
interessavam, a teoria da relatividade de Einstein era sem
dúvida a mais importante; outras três eram a teoria da história
de Marx, a psicanálise de Freud e a “psicologia individual” de
Alfred Adler.
Durante o verão de 1919, comecei a me sentir cada vez mais
insatisfeito com essas três teorias [...] passei a ter dúvidas
sobre seu status científico. Meu problema assumiu,
primeiramente, uma forma simples: “O que estará de errado
com o marxismo, a psicanálise e a psicologia individual? Por
que serão tão diferentes da teoria de Newton e especialmente
da teoria da relatividade? (POPPER, 1972, p. 64).
A psicanálise foi uma questão para Popper desde sua
juventude (17 anos), quando precocemente foi despertado
para o problema de traçar uma distinção entre a ciência e a
pseudociência. Contudo, ao contrário do que ocorreu em
relação à teoria de Einstein e ao marxismo, aos quais dedicou
inúmeros textos, pouco encontramos em Popper sobre a
Este trabalho é dedicado ao Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos, que com
paciência, tolerância e extrema competência me apresentou ao pensamento
popperiano e ao debate epistemológico anglo-saxão, em toda a sua complexidade.
19
70
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
psicanálise. As referências são esparsas, ligeiras e, até certo
ponto, pouco significativas, ou mesmo ambivalentes. Talvez,
aí esteja a origem de avaliações tão díspares em relação à
psicanálise, inspiradas na epistemologia popperiana, como as
de Adolf Grünbaum e Gregorio Klimovsky20.
No presente capítulo, pretendo fazer um breve relato
da crítica epistemológica de Popper à psicanálise e apontar o
que julgo ser algumas de suas insuficiências e até contradições.
Uma exposição mais ampla da epistemologia popperiana e sua
aplicação à teoria psicanalítica pode ser encontrada em minha
dissertação de mestrado (MARINHO, 2001), assim como a
avaliação epistemológica que proponho para a psicanálise está
contida em minha tese de doutorado (MARINHO, 2006),
ambos os textos fazem parte de uma pesquisa – Razão e
Psicanálise – iniciada no Departamento de Filosofia da PUCRio e que prossegue no programa História das Ciências,
Técnicas e Epistemologia (COPPE/UFRJ). Julgo necessárias
estas informações, pois, no momento, vou restringir-me
exclusivamente ao texto popperiano, deixando de lado toda a
ampla gama de críticas e desenvolvimentos que gerou, talvez,
um de seus maiores méritos.
1. A CRÍTICA DE POPPER À CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE
É no primeiro capítulo de Conjecturas e Refutações
[POPPER, (1963), 1972] que vamos encontrar suas críticas mais
extensas à psicanálise. Estas podem ser agrupadas nos
seguintes itens:
20 Adolf Grunbaum em sua avaliação filosófica da psicanálise defende a tese que a
psicanálise – ao contrário do que pensava Popper que a considerava irrefutável – é
uma teoria refutável e quando exposta a testes é refutada! Em sentido contrário,
Gregorio Klimovsky considera a psicanálise capaz de ser sujeita a testes, próprios para
as ciências humanas, e quando submetida a tais procedimentos se sai tão bem quanto
qualquer outra ciência humana.
71
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Uma excessiva capacidade de explicação. “Não conseguia
imaginar qualquer tipo de comportamento humano que
ambas as teorias (refere-se à de Freud e à de Adler) fossem
incapazes de explicar” (POPPER, 1972, p. 65).
A ideia de uma “confirmação” da teoria a partir de
experiências anteriores. Neste caso, a referência que faz é
diretamente a uma conversa com Alfred Adler21, embora
sugira que a atitude dos adeptos de Freud fosse a mesma:
Os analistas freudianos afirmavam que suas teorias eram
constantemente verificadas por “observações clínicas”.
Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma
experiência pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o de um
caso que não me parecia ser particularmente adleriano, mas
que ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos termos
da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem
mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiramente
chocado, perguntei como podia ter tanta certeza. ‘Porque já
tive mil experiências desse tipo’ - respondeu; ao que não pude
deixar de retrucar: ‘Com este novo caso, o número passará
então a mil e um ...’ O que queria dizer era que suas
observações anteriores podiam não merecer muito mais
certeza do que a última; que cada observação havia sido
examinada à luz da ‘experiência anterior’, somando-se ao
mesmo tempo às outras como confirmação adicional
(POPPER, 1972, p. 65).
A utilização de “observações clínicas”. “As observações
clínicas, como qualquer tipo de observação, são interpretações
empreendidas à luz das teorias, por esta razão podem parecer
sustentar as teorias à luz das quais foram interpretadas”
21 Em sua Autobiografia Intelectual (1977), Popper conta-nos que nessa época trabalhava
com Alfred Adler num ambulatório de atendimento a crianças pobres. Era um
trabalho voluntário, não esclarecendo sua específica função. Era uma atividade na
Viena Vermelha – uma das muitas vienas que coexistiam - onde as ideias socialistas
empolgavam os jovens, sendo aqueles bairros populares dominados politicamente
pela esquerda austríaca. É desta época o breve namoro de Popper com a psicanálise e
o socialismo.
72
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
(POPPER, 1972, p. 67, nota 3). Além da circularidade das
“observações clínicas”, Popper critica a falta de observações
que fossem empreendidas como testes (“tentativas de
refutação”). Pede também critérios de refutação que
estabelecessem as condições em que a teoria, não um
diagnóstico em particular, fosse passível de ser refutada.
O “Efeito de Édipo”. Expressão que cunhou para
caracterizar “a influência exercida por uma teoria, expectativa
ou predição sobre o acontecimento previsto ou descrito” (POPPER,
1972, p. 67, nota 3). Lembra a série de acontecimentos casuais
que levaram Édipo ao parricídio, a partir da predição deste
evento pelo oráculo. Popper cita Freud:
do ponto de vista da teoria analítica, nenhuma objeção pode
ser feita à afirmativa de que a maioria dos sonhos usados
durante uma análise [...] devem sua origem à sugestão (do
analista) [...] não há nada neste fato que possa prejudicar a
confiabilidade dos resultados obtidos (POPPER, 1972, p. 67,
nota 3).
Esta é uma citação truncada, que vai ser corrigida por
Grünbaum, em sua crítica não menos contundente, porém
mais rigorosa, à psicanálise. Aceitando, provisoriamente, a
leitura que Popper faz de Freud, o que desejamos registrar é
sua afirmação de que tal impossibilidade de uma previsão
“arriscada”, por parte da teoria psicanalítica, torna-a uma
teoria irrefutável. Tanto o oráculo como o analista seriam
agentes indutores de falsas corroborações de suas teorias.
Em que pese tais críticas, que embora gerais são
incisivas, acredita Popper que “pessoalmente, não duvido da
importância de muito do que afirmam (refere-se a Freud e
Adler) e acredito que algum dia essas afirmações terão um
papel importante numa ciência psicológica ‘testável’”
(POPPER, 1972, p. 67).
73
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
As objeções que Popper faz à cientificidade da
psicanálise são compatíveis com os pontos de vista que
desenvolve no que consideramos a primeira fase de sua
epistemologia22. Estava então voltado para o estabelecimento
de um critério de demarcação entre ciência e pseudociência,
servindo a psicanálise – assim como a astrologia – como um
bom exemplo da segunda (pseudociência), sobretudo por não
oferecer possibilidade de ser testada por algum enunciado
básico que a refutasse. Não teria a psicanálise previsões
arriscadas que pudessem servir como experiências cruciais
refutadoras. Além do mais, o que insinua na crítica às
observações clínicas é que estas não só seriam teorias que
interpretariam os dados, mas que, na melhor das hipóteses,
cairiam nos velhos vícios dos processos indutivos. Lembremos
de uma de suas famosas frases: “Pode ser útil colecionar
insetos, mas não observações”. Está também implícito na
primeira objeção – “excessiva capacidade explicativa” – o uso
de hipóteses ad hoc pela psicanálise, pois, só assim poderia
explicar tantos fenômenos. O uso de tal tipo de hipótese (ou
seja, hipóteses auxiliares que não podem ser testadas
independentemente) imunizaria a teoria psicanalítica de
qualquer refutação.
Algumas das críticas que Popper recebeu
relacionavam-se a este tão rigoroso critério de demarcação. É
muito comum o rigor científico encobrir uma fragilidade não
percebida e este pareceu ser o caso, segundo alguns críticos de
Popper. Referimo-nos, em especial, às críticas de Lakatos e
22 Dividimos a obra de Popper em três fases, para cada uma elegemos um de seus
livros como característico: 1) A Racionalidade Científica. A crítica à lógica indutiva. O
critério de demarcação entre ciência e pseudociência. A noção de refutabilidade. A
Lógica da Pesquisa Científica [(1934) 1974]; 2) O Racionalismo Crítico. O método das
conjecturas e refutações. Introdução da noção de “lógica situacional”. Conjecturas e
Refutações [(1963) 1972]; 3) A Epistemologia Evolucionária. A obejtividade do
conhecimento: A Teoria dos Três Mundos. Os Programas de Pesquisa Metafísica.
Conhecimento Objetivo [(1973) 1975].
74
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Feyerabend que, utilizando exemplos de outros campos do
conhecimento (ciências naturais), recusam que os cientistas
trabalhem como propõe Popper e, Lakatos em particular,
considera ingênuo (ou dogmático) o falseacionismo desta fase da
obra de Popper, Acrescentaríamos que Gregório Klimovsky
(em Las Desventuras Del Conocimiento Científico), autor de
declarada
orientação
popperiana,
após
discutir
minuciosamente as dificuldades de utilização de experiências
cruciais (experiências capazes de refutar uma teoria, segundo
Popper), assim como o caráter necessariamente convencional
dos enunciados de primeiro nível (observacionais), conclui:
Toda afirmação acerca da base empírica é de natureza
hipotética e é, portanto, revisável [...] Se isto é assim, o que
resta da ambição da ciência de dispor de uma série de
conhecimentos indiscutíveis a partir dos quais se possam
contrastar hipóteses e teorias? Desde o ponto de vista
filosófico, a resposta é que tal conhecimento indiscutível não
existe (KLIMOVSKY in ETCHEGOYEN, 1989, p. 223).
Popper certamente concordaria com tais afirmações.
Contudo, seu critério de demarcação foi excessivo, a nosso ver,
não tanto pelo rigor, mas por substituir a questão da
racionalidade pela da cientificidade, ou, pelo menos, borrar tal
distinção num primeiro momento de sua obra. Mesmo que
aceitemos o critério proposto – com todo o necessário caráter
hipotético dos refutadores – não nos satisfaz a vasta gama de
produção científica que ficaria relegada à pseudociência, num
limbo epistemológico pouco diferenciado: psicanálise,
astrologia, teoria da seleção natural de Darwin etc. A mesma
insatisfação acometeu Popper, até por sua grande simpatia
pela teoria darwiniana, daí propor o método de conjecturas e
refutações e a “análise ou lógica situacional”.
Curiosamente, Popper não retoma o tema da teoria
psicanalítica no restante de sua obra. Entretanto, a proposta de
75
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
utilização da “análise situacional” visa exatamente fornecer
um espaço mais amplo para a discussão daquelas teorias que,
embora não testáveis – metafísicas, na terminologia popperiana
-, são passíveis de discussão racional, uma vez que se propõem
a dar conta de problemas reconhecidos pela comunidade
científica. Lembraríamos que, nesta segunda fase, Popper
passa a falar com maior insistência de escolha entre teorias
rivais. Na fase anterior, talvez, o que avalizasse mais a crítica
de Lakatos seria o fato da pretensão (dogmática) de refutação
de uma teoria isolada. Neste sentido, oferecemos um exemplo,
a partir de Freud, de uma das teorias componentes da teoria
psicanalítica que pretende exatamente dar conta de uma
situação-problema. Não entraremos na discussão da solução
dada por Freud, porém registramos sua formulação, uma vez
que corresponde, a nosso ver, ao modelo que Popper espera
encontrar nas legítimas teorias metafísicas.
Nossa proposta é tomar a teoria psicanalítica – em
termos popperianos – como um programa de pesquisa metafísica,
isto é: uma teoria não empírica (metafísica), não passível de
refutação, mas capaz de avaliação racional e aperfeiçoamento
através do método de lógica (ou análise) situacional. Tal posição
vem ao encontro de outros comentadores como Elizabeth
Saporiti, Renée Bouveresse Quilliot e Roland Quilliot
(SAPORITI, 1997).
2. POPPER VERSUS POPPER
A análise situacional é expressa por Popper através da
fórmula muitas vezes repetida:
P1 → TT → EE → P2
Em que:
76
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
P1: Problema apresentado.
TT: Teoria ou Solução Experimental, Teoria Testável.
EE: Eliminação de erros (por discussão crítica ou por
testes experimentais).
P2: Novo problema surgido.
O ponto que defenderemos neste tópico é que, ao
contrário do que Popper pensava, a psicanálise se presta de
forma muito feliz à aplicação da proposta popperiana de
análise situacional. Consideremos uma das teorias que
compõem o edíficio psicanalítico.
Referimo-nos à obra de Freud Análise do Ego e Psicologia
do Grupo (FREUD, 1921, S.E. 18, p. 66-143). Vejamos como o
texto freudiano se enquadra numa análise situacional:
Problema (P1): Os indivíduos, quando em grupo, sob
certas condições, se comportam, sentem, pensam, de modo
muito diverso do que seria esperado por suas formas usuais
de comportamento, sentimento e pensamento.
E esta condição (pertencer a um determinado grupo) é sua
inserção numa coleção de pessoas que adquiriram as
características de um ‘grupo psicológico’. O que é, então, um
‘grupo’? Como ele adquire a capacidade de exercer uma tão
decisiva influência sobre a vida mental do indivíduo? E qual é
a natureza da mudança mental que ele impõe ao indivíduo?”
(FREUD, 1921, S.E. 18, p. 72).
Freud considera que é tarefa de uma teoria psicológica
sobre grupos dar conta destas três questões. A validade do
problema e a pertinência das questões são dadas pelo
reconhecimento pela comunidade científica, que apresentou
77
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
várias teorias a respeito, e pela observação cotidiana. No
correr do texto, Freud examina as principais teorias
disponíveis, como a de Le Bon, a de McDougall e a de Trotter.
Aponta concordâncias e assinala as insuficiências de tais
teorias como, por exemplo, a incapacidade de darem uma
resposta adequada ao fenômeno do pânico. Este ocorreria de
forma desproporcional ao perigo existente. Assim, as teorias
que atribuíam o pânico ao “contágio” (“indução primária”),
como a de McDougall, não dariam conta do contra-exemplo de
estados de pânico em ausência de graves perigos, ou o inverso,
da capacidade do grupo de enfrentar estados de reais graves
ameaças.
Teoria proposta (TT): Os grupos psicológicos se
formam por desenvolver uma ligação entre seus membros de
caráter libidinal23 e seu líder representar para cada membro
seu próprio ideal.
Tal teoria dá conta das três perguntas acima levantadas
e esclarece o papel do líder melhor que as anteriores, outra das
críticas que Freud faz em seu texto às teorias até então
disponíveis. Além disso, o texto freudiano estimulou
23 “Libido é uma expressão tomada da teoria das emoções. Chamamos por este nome a
energia, vista como uma magnitude quantitativa (ainda que no momento não seja
realmente mensurável), daqueles instintos relacionados com tudo o que pode ser
compreendido sob a palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos dizer por amor
consiste (e isto é o que comumente é chamado amor, e aquilo que os poetas cantam)
naturalmente do amor sexual com a união sexual como seu objetivo. Mas não
separamos disto – o que em qualquer caso tem uma participação no termo ‘amor’quer o amor por si mesmo (self-love), quer o amor pelos pais ou filhos, amizade e
amor pela humanidade em geral, e também a devoção a objetos concretos e a ideias
abstratas. Nossa justificação jaz no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou
que todas essas tendências são uma expressão dos mesmos impulsos instintivos; nas
relações entre os sexos esses impulsos forçam seu caminho em direção à união sexual,
mas em outras circunstâncias eles se afastam de seu objetivo ou são impedidos de
alcançá-lo, ainda que sempre preservem bastante de sua natureza original para
manter sua identidade reconhecível (em traços como o anseio pela proximidade, e o
auto-sacrifício)” (FREUD, 1921, S.E. 18, p. 90-91).
78
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
experiências de tratamento psicanalítico em grupo, assim
como da utilização de técnicas grupais para diversas formas
de assistência, que por sua vez trouxeram novos problemas.
Assim, o conhecimento foi ampliado, como desejava Popper
de uma teoria. Uma das aplicações da compreensão
psicanalítica aos grupos foi o caso das experiências de W. R.
Bion e John Rickman (BION, 1970)24 no exército britânico – na
recuperação psicológica de combatentes – e de W. R. Bion na
Tavistock Clinic (BION, 1970).
Eliminação de erros (EE): As experiências citadas
exigiram a correção da teoria original (T1), a qual não dava
suficientemente conta do papel e do processo de escolha do
líder, entre outros problemas (P2).
Novos problemas (P2): Como é escolhido o líder num
grupo? Qual o seu papel (além do que Freud havia sugerido)?
Como explicar a formação e o papel que exercem os subgrupos dentro do grupo maior?
Nova teoria (T2): Para dar conta dessas questões, a
nova teoria foi formulada por Bion, colocada a teste, através
da aplicação de sua metodologia em grupos variados,
surgindo novos problemas (P3) que exigiram repensar e
formular nova teoria (T3)25, a partir da correção de erros (EE).
24 As experiências foram realizadas na década de 40 e, inicialmente, publicadas no
início dos anos 50.
25Ver Atenção e Interpretação. Uma aproximação científica à compreensão interna na
psicanálise e nos grupos [BION, (1970) 1973], onde o autor, através da utilização de
novos conceitos (continente/contido; mudança catastrófica, etc.), estuda problemas da
psicologia dos grupos até então não enfrentados pelas teorias psicológicas, tais como:
qual o mecanismo de mudanças súbitas nos grupos, dos cismas, ou, da substituição de
lideranças.
79
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A experiência psicanalítica com grupos, somente
possível a partir do trabalho original de Freud, permitiu a
formulação de novas teorias, eliminando erros anteriores, ou
seja, tendo uma maior capacidade explicativa e abrindo novos
campos de investigação. Os resultados empíricos se
expressaram pela capacidade que a experiência citada
forneceu de uma mais rápida e melhor recuperação de
combatentes, assim como pela possibilidade de utilização de
técnicas grupais no tratamento de pacientes internados em
hospitais psiquiátricos (a experiência de comunidades
terapêuticas, na qual a própria vida comunitária representava
um importante fator terapêutico, reduzindo o tempo
tradicional de internação e facilitando a ressocialização), e
ainda nos tratamentos em hospitais gerais de pacientes com
distúrbios psicossomáticos ou com resistência a tratamentos
de enfermidades crônicas (como a diabetes), entre outras
aplicações de terapêuticas grupais.
Citamos, muito sumariamente, este exemplo de análise
situacional de uma das teorias componentes da teoria
psicanalítica, apenas para registrar que há um espaço que não
foi explorado por Popper para uma aproximação mais criativa
e menos dogmática da “questão da psicanálise”.
3. POPPER, FREGE E BION – PENSAMENTOS EM BUSCA DE UM
PENSADOR
Em nossa divisão da obra de Popper, reservamos para
sua última fase a noção de conhecimento objetivo, e tomamos
como texto de referência a obra Conhecimento Objetivo
[POPPER, (1972) 1975] e, neste ensaio, o capítulo
“Epistemologia sem um sujeito conhecedor”. Neste texto, há
uma indicação explícita de Frege como uma das fontes de sua
ideia da independência dos pensamentos. Contudo, há
diferenças
nas
duas
formulações.
Popper,
muito
80
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
impressionado pela teoria darwiniana, vai propor uma
abordagem evolucionária – subtítulo do livro - para a sua
proposta epistemológica, que cada vez mais vai tornando-se
uma descrição da evolução natural do pensamento, nos
moldes de como vê a evolução darwiniana. Não cabe aqui
discutir a validade das afirmações de Popper ou mesmo se
esta interpretação desta fase de Popper é a melhor. O que
pretendemos, no momento, é chamar a atenção para mais um
ponto de contato com o desenvolvimento da teoria
psicanalítica que foi ignorado por Popper e que poderia
permitir um diálogo muito enriquecedor para ambas as partes.
Com o desenvolvimento da psicanálise, ou seja, a
aplicação do método psicanalítico ou de seus príncipios a
novos campos além do tratamento individual de pacientes
adultos neuróticos, novas questões e teorias surgiram. Assim,
a análise de crianças, principalmente a partir dos trabalhos de
Melanie Klein, na Inglaterra, abriu espaço para a compreensão
de estágios mentais precoces, o que permitiu um
entendimento muito maior das psicoses. Tal entendimento
permitiu a análise de psicóticos. Algo semelhante ao que
ocorreu com o trabalho com grupos, conforme já comentamos.
Muitos dos seguidores de Melanie Klein eram psiquiatras
experimentados e passaram a dedicar-se com afinco à análise
de psicóticos. Destacamos, entre eles, Wilfred Ruprecht Bion,
que muito publicou a respeito, além de ter sido um leitor de
Popper e Frege, assim como um importante epistemólogo da
Psicanálise. Bion, independente de Frege e Popper, chegou à
conclusão – a partir de sua experiência de análise com
pacientes com graves distúrbios de pensamento – da
importância de postular a existência de “pensamentos sem
pensador” ou, em termos mais Pirandellianos26, “pensamentos
26 Num posfácio a O Falecido Mattia Pascal, em resposta a seus críticos que o
consideravam um autor “muito cerebral”, Luigi Pirandello faz uma bela e convincente
defesa da liberdade e independência da criação artística. Realça a diferença entre
81
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
à espera de um pensador”, como os Seis personagens em busca
de um autor.
O ponto que desejamos realçar é o desperdício de
Popper ao prender-se a um modelo de ciências da natureza,
mais especificamente da Física, que o impediu de aproveitar o
diálogo com outras áreas, como a Psicanálise e a Estética27.
Pois, da mesma forma que Frege, na derradeira revisão de sua
obra filosófica, sentiu a necessidade de encontrar um espaço
mais apropriado aos pensamentos verdadeiros, também
outros pensadores sentiram igual necessidade. Como já
mencionamos, Pirandello expõe este ponto de vista em várias
obras. No caso da Psicanálise, a questão se torna mais
premente, uma vez que os distúrbios de pensamento que
caracterizam as psicoses envolvem e acarretam um
afastamento da realidade, da verdade, como ideia reguladora
e, em especial, do pensamento crítico. Pois, se não podemos ter
acesso direto à realidade, podemos reconhecê-la28 através de
nosso compromisso com a verdade e, consequentemente, com
a atitude crítica. Curiosamente, Popper, como já comentamos
anteriormente, captou esta contribuição da psicanálise, mas
infelizmente não avaliou sua profundidade na formulação de
uma teoria do pensar. Esta teoria do pensar será formulada em
termos psicanalíticos por Bion, em 1961 (ver BION, 1961), e
atenderá a muitas das sugestões do texto de Frege acerca da
investigação lógica dos pensamentos.
verossimilhança e verdade, sublinhando que esta última é, como a vida,
necessariamente independente e assim não precisa ser “verossímil”. Ver “Advertência
sobre os escrúpulos da fantasia”, in O Falecido Mattia Pascal [PIRANDELLO, (1904)
1971].
27 Importante registrar o abandono por Popper do que consideramos um importante
insight ao concordar com a teoria psicanalítica que aproxima o pensamento neurótico
do dogmático (POPPER, 1972, p. 79).
28 Utilizamos aqui o termo reconhecimento no sentido ambíguo de respeito e
conhecimento, ou seja: admissão de limites.
82
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Bion vai sugerir que o aparelho para pensar surge da
necessidade de lidarmos com os pensamentos, isto é: os
pensamentos precedem o pensar; não são produzidos conforme
pretende a tradição. Esta independência em relação ao pensar
vai permitir, por exemplo, o reconhecimento da mentira como
fruto de um pensador, o que não ocorre com os pensamentos
verdadeiros que podem passar anos ou séculos sem serem
formulados por um único pensador. É importante registrar
que Frege já havia observado que
quando um pensamento é apreendido, em princípio, ele só
produz mudanças no mundo interior de quem o apreende,
permanecendo ele próprio intocado em sua essência, uma vez
que as mudanças que sofre só dizem respeito às propriedades
não-essenciais [FREGE, (1918-19) 2001].
A referida menção de Bion à questão dos pensamentos
precedendo o pensar, como já dissemos, está muito ligada à
sua experiência com pacientes psicóticos. Nestes casos, os
distúrbios de pensamento, além de ocuparem um lugar
privilegiado na psicopatologia e diagnóstico, têm um
importante papel na ordenação da vida do paciente. Em
outros termos: o distúrbio de pensamento não é um fenômeno
isolado de toda uma forma de vida peculiar e, a nosso ver,
sempre – mesmo que sutilmente – bizarra. Neste sentido é que
um pensamento crítico que estivesse comprometido com a
noção de verdade – qualquer que fosse – ameaçaria toda uma
arquitetura mental que obedeceria outros parâmetros, tais
como: a realização de desejos, o afastamento de aspectos
dolorosos da realidade (como perdas afetivas, por exemplo),
para citar os mais gritantes. Uma série de outras implicações
do abandono da noção de verdade e, muitas vezes, sua
substituição por soi-disant “valores morais” (lembremos que os
delírios nunca são neutros, enaltecem ou desqualificam
cruelmente
seus
portadores)
acarreta
o
caráter
83
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
incompreensível ou extravagante da manifestação psicótica.
Assim, certas questões que costumam frequentar a academia,
questões epistemológicas, passam a ser cruciais no dia a dia
dos pacientes com distúrbios graves de pensamento.
Lembremo-nos ainda o sofrimento com que são descritos
aqueles casos de pacientes que, no início do surto psicótico,
procuram lugares ermos para verificar se as “vozes”
continuam, isto é, quando ainda há uma incerteza a respeito
das alucinações auditivas. Em geral, a progressiva organização
de um delírio dá a coerência que faltava ao paciente em sua
nova condição.
Fizemos esta breve digressão para mostrar que uma
aproximação maior, sem preocupações prescritivas, de como
os pesquisadores da área da psicopatologia trabalham, poderia
ter permitido a Popper uma reflexão diversa da tentativa de
dar uma “objetividade” à psicologia que, caso alcançada, lhe
retiraria todo o interesse e não tocaria nos seus reais
problemas. Junto com a recusa a dar à psicanálise uma
cientificidade, ou, como sugerimos, o status de um programa de
pesquisa metafísica, afastou-se Popper dos problemas com que a
psicanálise se defrontava e procurava dar suas respostas.
Assim, as noções de sugestão ou ambivalência, para citar apenas
dois exemplos, antes de mencionar a mais importante – a
loucura - não foram apreciadas como deveriam na obra
popperiana. São questões que qualquer teoria psicológica terá
que dar conta, pois frequentam o cotidiano deste campo de
conhecimento e acompanham os problemas interessantes da
psicologia.
4. RAZÃO, LOUCURA E EPISTEMOLOGIA
Este é um breve ensaio sobre Karl Popper e a
Psicanálise. O tema nos levaria muito longe, uma vez que
pensamentos tão vigorosos surgiram num lugar e momento
84
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
histórico – lembremo-nos de Viena Fin-de-siècle29 – onde tudo
foi discutido, talvez, numa antevisão da catástrofe que se
anunciava: a Segunda Grande Guerra, o Holocausto,
Hiroshima e Nagasaki. Viena, o “laboratório de pesquisa da
destruição do mundo”, segundo Karl Kraus, era uma fábrica
de sonhos, esperanças e ressentimentos. Como temos um
limite de espaço a respeitar, registramos sumárias e
provisórias conclusões de um debate que poderíamos
identificar como entre a razão e a loucura. Afinal, Freud trouxe
para o centro da discussão aquilo que a ciência tradicional
relegava à vala comum do irracional, à espera de alguma
explicação fisiológica ou anatômica, que encerrasse de vez a
investigação. Contudo, a loucura – a desmedida, o irracional, o
nonsense, o que não pode ser dito –, em quaisquer de suas
formulações, mostrou-se resistente ao aprisionamento, ou
mesmo banimento do debate. Partilhamos com aqueles, como
Porchat (2003), que consideram insatisfatório o tratamento
dado por Descartes ao seu argumento da loucura e, em texto
específico, tentamos mostrar as consequências dogmáticas – a
sedução da certeza – do arbitrário afastamento da loucura
(MARINHO, 2002).
Talvez nossa maior crítica à proposta popperiana não
seja tanto em relação à sua indiscutível má vontade com a
psicanálise – uma idiossincrasia como outra qualquer – mas o
ignorar a loucura como interlocutora imprescindível de
qualquer projeto de racionalidade. Popper ficou muito preso à
noção de cientificidade que não abrange a de racionalidade,
fato que reconheceu, mas não explorou suficientemente,
conforme procuramos mostrar. Além disso, sua relutância em
29 O clássico livro de Schorke (1988) mostra o início de um debate que, a rigor, se
estenderá até a anexação, o Anschluss (1938), e que pode ser acompanhado por uma
vasta bibliografia, da qual fazem parte muitos dos personagens do ambiente
popperiano (como o Círculo de Viena, Ludwig Wittgenstein, Paul Feyerabend, entre
outros). Uma ótima referência, dentre muitas, é A Viena de Wittgenstein (JANIK e
TOULMIN, 1991).
85
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
admitir um papel para a linguagem, além de um mero
intermediário entre pensamento e realidade, impediu-no uma
compreensão maior das questões com que lidam as ciências
humanas. Estas, caso seguissem o projeto popperiano de
transformá-las em subsidiárias de um pensamento sociológico
objetivo ou mesmo da economia (POPPER, 1978), ganhariam a
seu ver status científico, mas em troca de se tornarem
extremamente desinteressantes, perdendo seu objeto de
investigação. Este é um ponto que desejamos frisar.
A questão da psicanálise é, a nosso ver, a questão da
loucura.
Concordemos com suas conclusões, ou não, Freud
trouxe para o cotidiano de nossas reflexões a loucura, o
irracional, que desde então não pode mais ser evitado ou
banido da reflexão filosófica, como a tradição sempre o fez.
Pensar a loucura como uma das dimensões do humano, talvez,
seja o desafio que se coloca tanto para freudianos como para
popperianos, que certamente muito lucrariam com um amplo
e fraterno debate.
Infelizmente, Popper, sempre interessado nas questões
da racionalidade, não teve acesso, supomos pela intensa
censura que o nazismo e os belicistas em geral impuseram, ao
diálogo entre um pensador que tanto admirava, Einstein, e
Freud sobre o Por que a guerra? (FREUD, 1933, S.E. XXII). Este
texto se presta a uma bela investigação epistemológica do
papel do conhecimento e da ciência para o desenvolvimento
do Homem. Esperamos, através deste gentil convite, contribuir
de alguma forma para o resgate deste diálogo perdido.
REFERÊNCIAS
BION, W. R. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1970
(1948).
86
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. “Uma teoria sobre o processo de pensar”. In Estudos Psicanalíticos
Revisados. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988 (1962), p. 101-109. (Trad.
Wellington M. De Melo Dantas).
_______. Atenção e interpretação. Tradução de Carlos Heleodoro Pinto
Affonso. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1973 (1970).
FREGE, G. Investigações lógicas e outros ensaios. Cadernos de Tradução,
n.7, DF/USP, 2001.
FREUD, S. Group psychology and the analysis of the ego. S.E. XVIII (1921).
_______. (1933 [1932]) “Why War?”. In: New Introductory Lectures on
Psycho-Analysis. Idem, vol. XXII.
GRUNBAUM, A. The foundations of psychoanalysis, a philosophical
critique. Berkeley: University of California Press, 1984.
JANIK, A. e TOULMIN, S. A Viena de Wittgenstein. Rio de Janeiro:
Campus, 1991.
KLIMOVSKY, G. Aspectos epistemológicos da interpretação psicanalítica.
In: ETCHEGOYEN, H. Fundamentos da técnica psicanalítica. 2. ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989.
_______. Las desventuras del conocimiento científico, una introdución a la
epistemología. Buenos Aires: A-Z editora, 1999.
MARINHO, F. e MARINHO, N. ‘Le Dieu Trompeur’. Notes on private
knowledge in Descartes, Wittgenstein and Borges. Variaciones Borges –
Journal of Philosophy, Semiotics e Literature da Universidade de Aahrus,
Dinamarca, p. 23-40, 2002.
MARINHO, N. Discussão da racionalidade da teoria psicanalítica a partir
da epistemologia de Karl Popper – avaliações, impasses, alternativas. 2001.
189 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Departamento de Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
_______. Razão e Psicanálise. “O Caso Schreber (Freud, 1911)” revisitado a
partir das contribuições de Marcia Cavell e Ludwig Wittgenstein. 2006.
283 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Departamento de Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
87
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
PIRANDELLO, L. Advertência sobre os escrúpulos da fantasia. In: O
falecido Mattia Pascal. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971
(1904).
PORCHAT, O. P. “O Argumento da Loucura”. Manuscrito – Revista
Internacional de Filosofia da Unicamp, Campinas, vol.26, n0. 1, 2003.
POPPER, K. Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1974 (1934).
_______. Conjecturas e refutações. Brasília: Ed. Universidade de Brasília.
1972 (1963).
_______. Conhecimento objetivo. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo.
1975.
_______. Autobiografia intelectual. São Paulo: Ed. Universidade de São
Paulo. 1977.
_______. Lógica das ciências sociais. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1978.
SAPORITI, E. A cientificidade da psicanálise, Popper e Pierce. São Paulo:
Escuta, 1994.
SCHORKE, C. E. Viena Fin-de-Siècle – política e cultura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
88
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 5
ALGUMAS NOTAS SOBRE A COSMOLOGIA DE KARL POPPER*
Julio Cesar R. Pereira
No prefácio da 1ª edição inglesa de The Logic of
Scientific Discovery, Popper expressa de maneira clara os seus
interesses cosmológicos, ao afirmar
eu acredito que exista pelo menos um problema filosófico no
qual todos os homens estão interessados. É o problema
cosmológico: o problema de compreender o mundo –
incluindo nós mesmos e o nosso conhecimento como parte
desse mundo (POPPER, 1990, p. 15).
Porém, nem por isso nos parece que todas as
implicações dessa problemática se achem imediatamente
dadas. Defenderemos a ideia de que é a tentativa de
desenvolver plenamente essa questão que comanda a evolução
da filosofia de Popper.
1. CONHECIMENTO E REALIDADE
A obra The Logic of Scientific Discovery parte da
constatação de que a atividade científica é um procedimento
de teste de enunciados, e busca descobrir o que demarca sua
*
Para o meu amigo Rogério Gobetti, uma verdadeira rocha em todos os momentos
difíceis.
89
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
especificidade. A resposta popperiana – dedutivismo falibilista
– pressupõe, em primeiro lugar, uma clara distinção entre
problemas lógicos e problemas psicológicos. A epistemologia
trata apenas da validade dos enunciados e não de sua origem
(PETRONI, 1992), a origem resulta de uma intuição criadora30
que, uma vez formulada, é submetida a teste.
A ideia da testabilidade está estribada na assimetria
entre enunciados singulares e enunciados universais, que se
formaliza no Modus Tollens. Popper, obviamente, está ciente de
que qualquer refutação pode ser evitada ad hoc, mas julga que
o método científico se caracteriza
pela maneira com que busca expor a falsificação, de todas as
formas possíveis, o sistema que está sendo testado. Sua meta
não é salvar a vida de sistemas insustentáveis mas, pelo
contrário, selecionar aquele que se revele comparativamente
melhor, expondo a todos a mais violenta luta pela
sobrevivência (POPPER, 1990, § 6, p. 42, grifo nosso)31.
A testabilidade resolve o problema da demarcação,
ainda de que de maneira inversa à solução dada pelo
empirismo clássico e pelos positivistas lógicos. O referencial
empírico da ciência não se dá no sentido positivo, mas sim no
sentido negativo e permite, na medida em que está fundado
no Modus Tollens, substituir a insustentável lógica indutiva por
transformações tautológicas da lógica dedutiva, o que
implicará na existência de enunciados que sirvam de premissa
nas inferências falseadoras. A objetividade desses enunciados,
30 “A suprema tarefa do físico consiste, então, em procurar as leis elementares mais
gerais, a partir das quais, por pura dedução, se adquire a imagem do mundo.
Nenhum caminho lógico leva a tais leis elementares. Seria antes exclusivamente uma
intuição a se desenvolver paralelamente à experiência” (EINSTEIN, 1981, p. 140).
31 Nessa passagem, já temos clara a analogia com o darwinismo. Cabe ressaltar,
entretanto, que este tipo de interpretação não é, em absoluto, uma questão pacífica; cf.,
por exemplo, WATKINS, 1995.
90
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
denominados ‘básicos’ decorreria da possibilidade de seu teste
intersubjetivo, o que pressupõe:
1) enunciados científicos não descrevem eventos
únicos;
2) se os enunciados básicos são objetivos então serão
sempre revisáveis, o que implicará que na ciência
não podem existir enunciados definitivos;
3) a capacidade do teste intersubjetivo pressupõe, a
nosso juízo, o Realismo32, caso contrário o que nos
garantiria que apenas a adoção de uma mesma
forma lógica de enunciados conduziria outra
pessoa ao mesmo resultado?
No § 15 de Realism and the Aim of Science, Popper
advoga que a meta da ciência é obter explicações satisfatórias,
nela buscamos explicações causais, o que pressuporá leis
gerais explicitamente formuladas, fazendo com que a
explicação assuma a forma de um argumento dedutivo onde
teremos:
a) Leis Relevantes;
b) Condições Iniciais;
c) Prognose - fato a ser explicado.
32 Popper é, no mínimo, ambíguo nessa questão. No Realism and the Aim of Science,
aparentemente descarta nossa interpretação, apontando apenas um valor heurístico
para o Realismo: “[...] parece-me que em metodologia não precisamos pressupor o
realismo metafísico. Nem podemos retirar dele nenhuma ajuda, a não ser do tipo
intuitivo” (POPPER, 1996 a, § 15, p. 145). Por outro lado, o reconhecimento do suporte
metafísico realista, como estamos propondo, acarretará uma concepção sistêmica de
filosofia. Lakatos, ao discutir a polêmica Popper-Kneale, percebeu essa implicação:
Popper e Kneale teriam em comum a assunção de uma metafísica realista: “Crêem que
existe um mundo real independente de nossa mente e governado por algum tipo de
lei natural.”, como ambos acreditam que esse mundo real pode ser conhecido “[...]
esse otimismo epistemológico equivale a uma Weltanschuung completa” (LAKATOS,
1981, p. 168-169). A recusa em seguir nessa direção é patente em Lakatos, o que gera
sua concepção de programas de pesquisa.
91
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Reconhece Popper que, usualmente, podemos chamar
as condições iniciais de “causas” e a predição de “efeito” e,
dessa maneira, aparentemente, nos livrarmos não só das leis
gerais, como também, do princípio de causalidade.
Infelizmente as coisas não são assim tão simples. Atentemos
para o seguinte exemplo proposto por Popper: se tomarmos
um relógio de corda e o desmontarmos, e tornarmos a montar
poderemos, talvez repetindo algumas vezes o processo,
“explicar” o funcionamento do relógio, e mesmo consertar
seus eventuais defeitos. Nesse sentido poderemos dizer que o
relógio é consequência da interação das partes que o
compõem. Teríamos assim a prognose inferida apenas das
condições iniciais, sem aparentemente o concurso de leis
gerais. Porém, se atentarmos melhor, veremos que as
condições iniciais pressupõem, por exemplo, que as peças do
relógio são rígidas, impenetráveis, possuem uma determinada
resistência ao desgaste, etc.; essas últimas, por sua vez,
somente se compreendem a partir da estrutura de seus
átomos, que pressupõem uma estrutura subatômica, e assim
por diante. Nesse sentido, a explicação pressupõe o que
Popper denomina “propriedades estruturais do mundo”, que
são justamente as propriedades presentes nas Leis Universais.
A falsificação a que tais leis podem ser submetidas nos garante
a existência de algo frente ao que podem se chocar, isto é, um
mundo independente, tal como explicitamente afirmado por
Popper: “ainda que as nossas teorias sejam feitas por nós,
ainda que sejam invenções nossas, não deixam por isso de ser
asserções genuínas acerca do Mundo, pois podem chocar com
algo que não fomos nós que fizemos” (POPPER, 1996 a, § 15,
p. 137). Novamente a ambiguidade ressurge. O Realismo não
parece ter apenas uma função heurística, sendo, portanto
passível de ser altaneiramente dispensado por uma
92
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
metodologia auto-suficiente. Popper, no entanto, não parece
saber muito bem como enquadrá-lo33:
O realismo metafísico não é uma tese da LScD [The Logic of
Scientific Discovery], nem em parte alguma desempenha o
papel de um pressuposto. E, no entanto, está lá, e está muito
presente, constitui uma espécie de pano de fundo que dá
corpo à nossa busca da verdade (POPPER, 1996 a, § 7, p. 81).
Um “pano de fundo”, seja lá o que isso possa significar,
independente e, em princípio, dotado de regularidades
causais.
2. O PROBLEMA DA BASE EMPÍRICA
A discussão até aqui levada a cabo nos permite precisar
a definição popperiana de teoria científica: uma teoria será dita
científica quando a classe de seus falseadores potenciais não é
vazia. Todo o problema é que estes falseadores potenciais
devem igualmente ser passíveis de teste intersubjetivo. Desta
forma, como sustentar a objetividade dos enunciados básicos
sem nos embretarmos nos meandros do Trilema de Fries?
O Trilema de Fries34 pode ser enunciado de maneira
bem sucinta da seguinte forma:
se os enunciados da ciência não são aceitos dogmaticamente,
nós devemos poder justificá-los. Se exigirmos uma justificação
por meio de argumentação, em seu sentido lógico seremos
levados a concepção segundo a qual enunciados somente
podem ser justificados por enunciados. A exigência de que
todos os enunciados devam ser logicamente justificados
33 É provável que esse tipo de receio leve alguns intérpretes a subestimar o papel da
metafísica na filosofia de Popper. Cf., por exemplo, Corvi (1997, p. 77ss).
34 Wettersten (1992, principalmente p. 140-154), tece toda uma série de considerações
em torno das influências externas que conduziram Popper a redigir o argumento que
apresentaremos a seguir baseados fundamentalmente no Capítulo V de The Logic of
Scientific Discovery.
93
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
(descrita por Fries como ‘predileção por provas’) nos conduz,
portanto, a um regresso infinito. Agora, se nós desejamos
evitar o perigo do dogmatismo, como também a regressão ao
infinito, parece que o único recurso que nos cabe é o
psicologismo, isto é, a doutrina segundo a qual enunciados
podem não apenas ser justificados por enunciados, como
também por experiências perceptuais (POPPER, 1990, § 25, p.
93-94).
Dogmatismo, regressão ao infinito ou psicologismo, tal
é o Trilema de Fries. Ora, como estamos às voltas com a
ciência empírica, o psicologismo parece ser a opção mais
adequada, pois nele encontraríamos um conhecimento
imediato e indubitável, o que tornaria a ciência uma
gigantesca classificação e organização de nossas convicções
subjetivas. Nesse ponto, Popper apresenta um de seus
argumentos favoritos: o caráter imediato das impressões
sensoriais é apenas ilusório:
(Uma ‘experiência imediata’ é ‘imediatamente dada’ apenas
uma vez; ela é única.). Pela palavra ‘copo’ nós denotamos
corpos físicos que apresentam certo comportamento legalóide
(law-like behaviour), o mesmo acontecendo com a palavra
‘água’ (POPPER, 1990, § 25, p. 95).
Mas, se assim é, qual seria a alternativa? Sobra-nos
apenas o dogmatismo e a regressão ao infinito...
A alternativa consiste em reposicionar o problema. A
Epistemologia não deve indagar sobre a origem dos
enunciados científicos, mas tão-somente pela maneira pela
qual, por dedução, podemos submetê-los a testes. Nessa
perspectiva o teste de uma teoria se interrompe em algum
enunciado básico que decidimos aceitar; todavia, sob o ponto
de vista lógico, não existe qualquer necessidade de interrupção
do processo de teste. Popper reconhece estar pressupondo que
seja possível chegarmos a enunciados básicos frente aos quais
os investigadores optam por convencionar sua aceitação. Feito
94
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
esse acordo, decidimos encerrar os testes; apenas nesse sentido
podemos admitir o dogmatismo, porém, se por qualquer razão
objetiva o acordo for rompido, os testes podem continuar; a
regressão infinita sempre é possível, apenas é estéril, pois o
que buscamos na ciência são explicações sobre o
funcionamento do mundo35. O acordo se estabelece com base
na corroboração que os testes propiciam à teoria, o motivo que
nos guia poderia ser tanto o valor preditivo, quanto a
dominação da natureza, ou qualquer outro que se queira
aventar. Na base da ciência, temos uma decisão livre36 que, no
caso de Popper, opta por uma explicação causal da realidade.
Novamente se coloca de maneira explícita a questão da
realidade, coisa que se aparentemente não surge de maneira
clara no texto frio do Capítulo V de The Logic of Scientific
Discovery, mas aparece de forma cabal no Adendo de 1968,
incluído na 5ª edição alemã de 1973:
(2) O capítulo assenta um robusto realismo e revela que ele é
compatível com um empirismo novo, não dogmático e não
subjetivo. Esse realismo orienta-se contra as teorias do
conhecimento que se assentam em experiências ou percepções
subjetivas – contra, pois, o empirismo (subjetivista) clássico, o
idealismo, o positivismo [...]. Procuro substituir a clássica
ideia de experiência (observação) pelo exame crítico objetivo –
e a experimentação (observabilidade) por uma testabilidade
objetiva (POPPER, 1972, p. 120)37.
35 Como podemos observar, o papel da experimentação em Popper é sempre
enquadrado a partir das demandas teóricas, nesse sentido talvez seja oportuna a
seguinte observação de Ian Hacking: “Não existe filósofo da ciência europeu no século
vinte mais influente do que Karl Popper. No entanto, Popper escreve sobre a
experiência como se fosse um mero apêndice da teorização” (HACKING, 1992, p. 21);
o mesmo se dá com Thomas Kuhn, que virtualmente não teria dito nada sobre a
experiência (cf. p. 23ss).
36 Discuti as implicações políticas dessa questão em Pereira (1993).
37 Grifos de Popper. Referimos à edição em português, porque esta passagem não se
encontra na edição inglesa que estamos manuseando.
95
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Cabe sublinhar, em primeiro lugar, que no texto de The
Logic of Scientific Discovery, de 1934, Popper em momento
algum afirma de maneira clara o Realismo Metafísico38,
mesmo em algumas passagens de Realism and the Aim of
Science parece não saber muito bem como enquadrá-lo; o
Realismo surge explicitamente formulado apenas nos textos
posteriores, principalmente a partir do 3º Volume do Posfácio
da Lógica da Pesquisa Científica – Quantum Theory and the Schism
in Physics39. Vejamos como isso se dá.
Na base da ciência moderna, temos Copérnico e
Galileu. O primeiro não partiu de problemas concretos nem de
dados observacionais40, na linguagem de Popper o
heliocentrismo, como qualquer outra teoria científica, é fruto
de uma intuição criadora; essa intuição produziu uma teoria
que tem sua validade fundada a partir de sua capacidade
explicativa, da qual deduzimos certas predições passíveis de
teste. O Sidereus Nuncius, de Galileu, ao introduzir o telescópio
no âmbito da ciência, já pressupunha em Copérnico pelo
menos três dos quatro ingredientes básicos do Realismo.
Newton-Smith (1991, p. 39-43) os designa da seguinte maneira:
a) ingrediente ontológico: as teorias são verdadeiras ou falsas
em virtude de um mundo que delas independe; b) ingrediente
causal: as evidências que tornam a teoria verdadeira refletem
as conexões do mundo; c) ingrediente epistemológico: é
possível oferecermos boas razões para se optar por essa teoria
em detrimento de outra; d) tese da verossimilhança, - não
38 Alan Musgrave (1994) argumenta que mesmo em The Logic of Scientific Discovery é
possível perceber o Realismo. Confesso não reconhecer isso com a mesma nitidez que
Musgrave.
39 A esse respeito Gattei (2009, p. 52) concorda conosco.
40 “Temos aqui o que parece um exemplo quase perfeito de uma mudança de
pensamento sem ser dirigida à resolução de nenhum problema novo, apresentando,
contudo uma nova solução” (HALL, 1988, p. 85). Popper (1963, p. 187) sugere que
foram razões de ordem metafísica, de cunho platônico, que orientaram a mudança
proposta.
96
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
presente em Galileu, devido a seus aspectos essencialistas -,
historicamente a sequência de teorias que se sucedem nos
aproxima da verdade. Em seus aspectos (b) e (c), essa
realidade independente se revela dotada de uma estrutura
uniformemente determinada, passível de ser descrita em
linguagem matemática. Esse Realismo Metafísico culmina em
Newton no grande projeto mecanicista.
A demarcação surge, para Popper, exatamente na
falência do projeto newtoniano. Popper percebeu que a
relatividade, ao derrubar a mecânica de Newton, o faz
afirmando o ingrediente ontológico do Realismo (a), e a tese
da verossimilhança (d) – ainda que sob forma intuitiva,
apresentando como convite ao filosofar a reelaboração de (b),
(c) e (d) numa dimensão não tão subjetiva. As respostas
modernas – Hume e Kant - pressupunham, ainda que por
razões distintas, o mecanicismo: para Hume, enquanto
fundamento ontológico para suas inferências indutivas
psicológicas41, e para Kant em seus juízos sintéticos a priori. A
resposta do Positivismo Lógico apresentava, em sua base,
graves dificuldades: a ideia de que o discurso científico seja
em si auto-sustentável, porque oriundo do método indutivo,
transformava as leis científicas em: a) enunciados carentes de
sentido, pois sua inferência não é logicamente justificável; b)
regras para a formação de enunciados, semelhantes a regras de
inferência, o que em nada ajudaria já que a fundamentação das
regras de inferência na dedução se dá por sua capacidade de
transmissão de verdade, e como a indução não permite isso....
c) instrumentos preditivos, o que suprimiria o aspecto
descritivo da ciência.
O dedutivismo falibilista reconheceu, na refutação
einsteiniana, a afirmação de um mundo independente,
ingrediente ontológico, e a ideia do conhecimento enquanto
41
Cf., por exemplo, Popper (1996a, § 4-7).
97
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
processo governado por conjecturas e refutações, ingrediente
epistemológico. Mediante a constatação da assimetria existente
entre as hipóteses universais intuitivamente criadas e os
enunciados básicos delas dedutíveis, compreendidos como
seus falseadores potenciais, temos um critério de demarcação
perfeitamente enquadrado na cosmologia – preocupação
central de Popper. A objetividade do discurso científico,
enquanto teste intersubjetivo, tornou necessário que não
apenas os enunciados universais fossem passíveis de teste,
como também os enunciados básicos, que adquirem sua
legitimação pela possibilidade de estabelecerem um “choque”
com o mundo - o que é uma decorrência do Realismo -, que
torna a opção por esses, enquanto corroboração, uma resposta
às demandas explicativas que se constituem no objetivo da
ciência.
3. INDETERMINISMO E PROPENSÕES
A questão que se impõe agora é a seguinte: se nos foi
dado argumentar que o Realismo, enquanto metafísica, é um
pressuposto necessário da epistemologia de Popper, cabe
reconhecer que isso acarreta pelo menos uma espinhosa
dificuldade. A realidade nos garante a testabilidade, mas se
afirmamos a sua independência e, ao mesmo tempo, o fato de
ser essa dotada de regularidades - sem as quais noções como
teste, corroboração etc., não fariam o menor sentido -, então
por que, por exemplo, a indução não é admissível? Conciliar
Realismo e Indeterminismo torna-se, assim, uma tarefa
imperativa para a sustentação do pensamento de Popper.
O argumento que Popper julga decisivo contra o
determinismo metafísico, e que lhe permite propugnar a
defesa de um Realismo Indeterminista, é o argumento
98
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
denominado ‘Lâmina de Landé’42. Sua estrutura é a seguinte:
tomemos 1000 bolas de bilhar perfeitamente idênticas a descer
por um tubo em direção de uma lâmina de aço. O resultado
será uma média de 50% das bolas caírem à direita da lâmina e
50% caírem à esquerda. Sempre é possível atribuir a alguns
desses lançamentos o caráter acidental, porém um
determinista deverá dizer que estava pré-fixado na estrutura
das bolas que caem à direita esse comportamento, o mesmo se
dando com as que caem à esquerda. Se pedirmos ao
determinista uma justificativa da média de 50%, ele deverá
responder que também essa razão já estava antecipadamente
determinada. A questão é que 50% de cada lado é uma média
que pode oscilar de acordo com a estatística dos
acontecimentos aleatórios, por que estaria também a estatística
de acordo? A resposta deverá ser que existiria uma harmonia
pré-estabelecida entre acontecimentos que se comportam
como se fossem aleatórios, e a realidade, que é pré-fixada. O
problema é que isso inverte as coisas. O real é a aleatoriedade,
o “como se” é que é a construção determinista, se ele nos
dissesse que este “como se” se dá a partir de uma realidade
anterior determinada, cairá numa regressão infinita.
O que a Lâmina de Landé fornece a Popper é a
possibilidade de introduzir a indeterminação dentro da
própria realidade, isto é, a possibilidade de racionalmente
argumentar a propósito de uma Metafísica Realista de cunho
Indeterminista mediante a noção de ‘propensão’. Vejamos
como isso se dá por um cotejo inicial com a noção de
‘probabilidade’.
Na perspectiva de Popper, a teoria clássica da
probabilidade se constrói a partir da seguinte definição: “a
probabilidade como sendo o número de casos favoráveis
42 Popper (1992 b, § 29). O argumento é bem mais complexo e extenso do que estamos
apresentando aqui; nós o resumimos por uma questão de espaço; ainda assim, David
Miller (1995 e 2007) apresenta várias ressalvas quanto a esse argumento.
99
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
dividido pelo número de casos possíveis. Isto sugere que
possamos interpretar a probabilidade como uma medida de
possibilidades” (POPPER, 1996a, p. 286). Dessa forma, a
possibilidade de dar “coroa” no lançamento de uma moeda é
1/2, e de dar ‘4’ em um lance de dados é 1/6. A pergunta que
pode ser formulada agora é: e se o dado estiver viciado, ou a
mesa sobre a qual se joga a moeda não for plana? As
possibilidades continuariam a ser as mesmas, mas os
resultados não. Se o dado contiver um pequeno peso sob a
face ‘1’, aumentam as chances de sair ‘6’. O que coloca de
imediato a questão: como descobrir essas tendências? A
resposta é óbvia: mediante um método estatístico, através do
qual um número suficientemente grande de repetições nos
permitirá calcular a frequência do resultado. Isso posto,
podemos extrair como conclusão inicial que a tendência de
sair ‘6’ no dado viciado é inerente ao objeto, é uma propensão,
que num elevado número de repetições aponta para uma
estabilidade, estabilidade essa produzida pelo objeto em si e
pela interação que esse estabelece com o restante da situação
física com a qual interage.
Na interpretação de Popper, as propensões não são
possibilidades lógicas, “mas sim tendências ou propensões
físicas para ocasionar o estado de coisas possível – tendências
ou propensões para ocasionar aquilo que é possível”
(POPPER, 1996a, p. 286), mas, ao contrário das probabilidades
matemáticas, que se medem entre ‘0’ e ‘1’, onde ‘0’ é
impossibilidade e ‘1’ é certeza, nas propensões físicas ‘1’
significa a noção clássica de causalidade, onde causa-efeito se
conectam de forma necessária. Para todos os valores menores
que ‘1’, devemos assumir que forças distintas interagem
apontando para possibilidades que podem ou não ser
atualizadas numa ou noutra direção, na medida em que o
objeto está imerso em uma situação objetiva - o dado viciado
ainda precisa ser lançado, e mesmo que o fosse por uma
100
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
máquina, esbarraríamos não só na impossibilidade de
construí-la de forma absolutamente determinada, como
também com a interação com as demais forças em ação.
Não resta dúvida que a ideia de ‘propensão’ é
altamente especulativa, porém permite a Popper uma
alternativa objetiva entre o “Demônio de Laplace” e o “Deus
jogador de dados” de Heisenberg. Seguindo a metáfora, não é
que Deus não jogue dados, ele até é um grande jogador,
porém os dados de Deus são viciados, no entanto se o ‘6’
ocorre mais vezes, isso não significa que o ‘4’ não possa
ocorrer: “todas as possibilidades não-zero, mesmo aquelas que
só têm uma pequena propensão não-zero, concretizar-se-ão no
tempo, desde que tenham tempo para isso”(POPPER, s.d., p
32). Em sendo a realidade um sistema de propensões, ela não é
pré-fixada, é objetivamente aberta ao novo, sendo justamente
essa abertura da realidade que permite a Popper a elaboração
de sua ontologia evolutiva, como veremos a seguir.
4. UM UNIVERSO CRIATIVO E EMERGENTE
O indeterminismo e a teoria das propensões permitem
a Popper compreender o universo como um sistema onde
todas as propriedades são disposicionais, sendo que o seu
estado real é a soma de todas as suas propensões. Nesse
mundo, o movimento é a atualização de algumas dessas
propensões, que se cristaliza em algo que novamente é
propensão, porém não redutível às anteriores. Como
resultado, as propensões nos forneceriam uma imagem de
mundo “em que há lugar para os fenômenos biológicos, para a
liberdade humana e para a razão humana” (POPPER, 1992a, p.
160). Em sendo as propensões “reais”, cabe precisar o que se
entende pela palavra ‘realidade’.
De um modo geral, o termo ‘realidade’ é empregado
para designar coisas materiais, de um tamanho mais ou menos
101
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
manipulável, se estendendo posteriormente tanto para aviões
quanto insetos. O princípio que parece reger essa inferência é o
que diz que coisas são reais se podem exercer algum efeito
causal sobre objetos que prima facie podemos manipular. É
claro que os átomos ou as bactérias não são diretamente
observáveis, nós os admitimos enquanto tais por terem seus
efeitos corroborados, o que pressupõe uma teoria que os
constitua enquanto “realidade”. Desse modo, entidades reais
podem ser mais ou menos abstratas, dependendo do tipo de
teoria que as constitua, porém na medida em que sua
realidade é constituída por corroboração, em momento algum
podem ser ditas entidades últimas.
O interessante é que nesse
universo material alguma coisa nova pode emergir. A matéria
morta parece assim ter mais potencialidades do que
meramente produzir matéria morta. Em particular produziu
mentes – sem dúvida em lentos estágios – e por fim o cérebro
humano, a mente humana, a consciência humana do eu e a
consciência humana do universo (POPPER e ECCLES, 1993,
parte 1, § 5, p. 11).
Temos aqui uma argumentação que parece conduzirnos na direção do evolucionismo:
Esse interesse me levou, no transcurso dos anos, desde que
escrevi essa parte do Post Scriptum (Parte III), mais além da
física, especialmente à biologia, à mente humana e aos
produtos da mente humana (a que chamei de Mundo 3)
(POPPER, 1992a, Preface, 1982, § X, nota 39, p. 31).
Seguindo nessa direção, Popper elabora, a partir do
Posfácio da Lógica da Pesquisa Científica, a noção de ‘programa
metafísico de pesquisa’. E o que faz esse programa? Deixemos
que Popper nos diga:
102
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Chamo ‘metafísicos’ a esses programas também porque são o
resultado de concepções gerais sobre a estrutura do mundo e,
ao mesmo tempo, de concepções gerais sobre como se situam
esses problemas dentro da cosmologia física. Os chamo
“programas de investigação” porque incorporam, junto com a
perspectiva sobre quais os problemas são mais urgentes, uma
ideia geral sobre qual seria uma solução satisfatória para esses
problemas (POPPER, 1992 a, § 20, p. 161).
Para Popper, a interpretação usual da seleção natural a
toma como resultando do cego acaso interno – mutação –
interagindo com forças externas sobre as quais o organismo
não tem controle algum, pelo menos é o que parece, em
princípio, se depreender da conceituação de Darwin:
Por outro lado, podemos estar certos de que qualquer variação
que se mostre nociva, por menor que seja, acarretaria
inflexivelmente a destruição do indivíduo. É a essa
preservação das variações favoráveis e eliminação das
variações nocivas que dou o nome de Seleção Natural
(DARWIN, 1994, p. 89-90).
Nessa interpretação, as preferências e objetivos do
organismo não podem ser tomados em si, mas apenas como
produto da seleção natural. O erro dessa ideia foi descoberto
pelos darwinistas J. M. Baldwin e C. Lloyd Morgan, que
denominaram sua teoria de “evolução orgânica“.
A ideia básica dessa teoria é que todo o organismo vivo
dispõe de um conjunto mais ou menos amplo de disposições
comportamentais, isto é, na linguagem de Popper, os
organismos são sistemas de propensões, nenhuma das quais
iguais a ‘1’, e quando adotam uma delas, não necessariamente
a de grau mais elevado, o organismo pode alterar o seu meio,
o que significa dizer que decisões por parte de um organismo
criam alterações no seu meio e, por consequência, pressões
seletivas distintas para seus descendentes, influindo e
alterando a própria direção do processo de seleção natural. O
103
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
interessante na ideia de evolução orgânica é que essa, ao
imprimir dentro da realidade da evolução o caráter subjetivo
das decisões dos organismos, permitirá compreendermos
como emerge no processo a mente humana:
Nós poderemos dizer que ao decidir falar e ter interesse por
falar, o homem decidiu desenvolver seu cérebro e sua mente;
a linguagem, uma vez criada, exerceu uma pressão seletiva
sobre a emergência do cérebro humano e da consciência do eu
(POPPER e ECCLES, 1993, Parte. 1, § 6, p. 13).
A ser correta essa ideia, isso implicaria, em Popper, que
o novo se formaria por uma “causação descendente”, as
escolhas dos organismos alteram o meio criando pressões
hereditárias que terminaram por tornar os descendentes
diferentes dos genitores, nesse sentido o descendente não é
pré-formado pelo genitor.
Permanece, todavia, a pergunta sobre como interpretar
essa realidade independente. A resposta surgirá a partir da
conhecida tese dos Três Mundos, que permitirá a Popper um
enlace entre o caráter formal da epistemologia de The Logic of
Scientific Discovery e o Evolucionismo.
A tese dos Três Mundos é bem conhecida43, Popper
argumenta sobre ela em vários textos44, e pode ser inicialmente
enunciada de maneira bem simples: um livro, por exemplo, é
um objeto físico, nesse sentido, faz parte do que Popper chama
de Mundo 1; porém, foi escrito por alguém, é o que Popper
43 Talvez essa minha afirmação reflita certo otimismo. Niinluoto (2006, p. 59), por
exemplo, afirma que a tese dos 3 Mundos é ignorada pela maioria dos filósofos que
trabalham com questões similares. Por outro lado, no universo popperiano, ela nos
parece central, não apenas para o ponto que estamos discutindo, como também em
outros aspectos da filosofia de Popper. O’Gorman (2008) aponta sua importância para
a epistemologia da economia; Shearmur (1996, p. 78ss) sublinha seu papel na política;
fizemos o mesmo quanto a ética em Pereira (2009); Gorton (2006, cap. 2 e 3), a discute
enquanto fundamento das ciências sociais.
44 Para nossos propósitos, dois textos serão nossa referência principal: Popper e Eccles
(1993), e Popper (1996b).
104
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
chama de Mundo 2; entretanto, esse livro veicula uma ideia,
que pode ser verdadeira ou falsa, consistente ou contraditória,
é o que Popper chama de Mundo 3. Esse singelo exemplo
chama a atenção por distinguir M2 de M3; afinal de contas, se
não existem grandes dificuldades em admitir que um livro é
um objeto físico, distinguir M2 de M3 é distinguir entre o fato
de o livro ter sido produzido por alguém e o conteúdo do
livro. Para fins de argumentação, Popper oferece-nos um
exemplo oriundo da matemática para sublinhar essa distinção:
parece ser inegável que os homens inventaram a sequência
dos números, mas eles inventaram que ela era infinita, ou
descobriram, dentro de sua invenção, que ela não tem fim? Da
mesma maneira, os homens inventaram a sequência dos
números naturais, mas essa invenção tem regras, regras das
quais deduzimos consequências imprevistas e talvez mesmo
insolúveis. Quanto mais se avança na sequência, menos
números primos aparecem, terão os números primos um fim?
Existirá o maior de todos os números primos? Nada disso foi
inventado, foi descoberto dentro da invenção. A pergunta que
se impõe, portanto, é: se a sequência dos números foi
inventada e escrita num livro, os números primos, o infinito, o
maior de todos os números primos foram descobertos. Onde
existiam antes de serem descobertos? São objetos
“incorporais” ou existiam no M2? Se existirem no M2, caem a
objetividade e a autonomia do M3, portanto a resposta de
Popper deverá conduzi-lo não só a argumentar a favor da
existência de objetos incorporais, como também que a
captação dos objetos do M3 não depende de sua incorporação
física em um livro ou numa partitura musical. Temos agora
duas questões: qual é o modo de existência dos objetos
incorporais, e como captá-los. Comecemos com a segunda.
Para Popper, a compreensão de qualquer objeto do M3
se dá mediante sua reconstrução sistemática. Para clarificar
esse ponto, tomemos o exemplo de uma teoria falsa (POPPER,
105
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
1979, cap. 4, § 7-9): a Teoria das Marés de Galileu. Galileu a
apresentava como prova indireta do movimento da Terra. A
Terra giraria em torno do Sol e em torno do seu eixo.
Chamemos de ‘α’, o movimento em torno do Sol, e assim
distinguimos o movimento da Terra à meia-noite do
movimento da Terra ao meio-dia; chamemos de ‘β’ ao
primeiro e de ‘χ’ ao segundo. Em uma face da Terra, teríamos
uma situação de ‘α’ e ‘β’ apontando na mesma direção,
enquanto que na face oposta ‘χ’, a Terra operaria em sentido
oposto a ‘α’. Partindo dessa mudança de velocidade, Galileu
explicava o movimento das marés e inferia a veracidade do
heliocentrismo copernicano. Para compreender essa teoria, é
necessário descobrir qual o seu problema imediato, e qual a
situação-problema na qual se insere. O problema imediato é
óbvio: explicar as marés; já a situação-problema é algo mais
complexo, pois, ao buscar as marés como forma de
argumentação sobre a validade do heliocentrismo, a teoria está
implicada numa enorme reformulação do M3 de sua época,
que envolve não só a supressão do modelo ptolomaico e a sua
substituição pelo modelo copernicano, como também na
rejeição da física aristotélica e a construção de uma nova física
fundada na ideia de inércia e na conservação dos movimentos
circulares. Mas por que basear a fundamentação de Copérnico
apenas sobre duas ideias e, principalmente, por que admitir a
questão dos movimentos circulares quando Galileu já conhecia
as órbitas elípticas de Kepler? E mais, por que Galileu negou
qualquer influência da Lua sobre as marés?
Popper responde a essas questões da seguinte maneira:
a restrição explicativa de Galileu apenas a duas leis gerais é
sem dúvida uma simplificação, mas é uma simplificação que
expõe claramente sua teoria ao processo crítico de refutação.
Galileu simplifica para viabilizar a refutabilidade do sistema
teórico que constrói. E pó rque rejeitar qualquer papel à Lua?
106
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Porque Galileu está comprometido em construir uma nova
física, e nesse momento histórico a astrologia associa os corpos
celestes a deuses e falar numa atração a distância seria abrir o
flanco para os poderes ocultos.
A compreensão desse objeto do M3 leva-nos ao
seguinte esquema:
P¹ → TE → EE → P²
Onde ‘P¹’ é a reconstrução da situação-problema de
Galileu, ‘TE’ é a teoria de Galileu, que por sua estrutura lógica
viabiliza ‘EE’, isto é, todos os processos de eliminação de erro
que viriam a culminar em Newton gerando ‘P²’. Como
podemos observar, a captação de um objeto do M3 é um metaproblema para o sujeito que está desde já imerso nos objetos
do M3; é por sermos sujeitos imersos em M3 que podemos
compreender e captar M3. Certo, objetará o leitor, mas a teoria
de Galileu, mesmo sendo falsa, é um objeto incorporado nas
estruturas lingüísticas do M3, e quanto aos objetos não
incorporados? Os objetos não incorporados nada mais são do
que consequências lógicas que os objetos linguisticamente
formulados estabelecem não só a partir de si, como também
entre si.
Como podemos observar, o que Popper faz com as
entidades não incorporadas nada mais é do que transferir a
ideia de propensões não atualizadas, que no M1 são
possibilidades físicas, para o M3, agora com o estatuto de
possibilidades lógicas, que geram sobre o M2 o mesmo
processo de “causação descendente” que anteriormente
discutimos.
Popper reconhece que a ideia dos três mundos pode
parecer, à primeira vista, como pareceu para ele mesmo, algo
“imensamente abstrato, filosófico e vago”, somente se
decidindo por sua publicação quando percebeu ser possível
107
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
uma “abordagem biológica e evolutiva do mundo 3”
(POPPER, 1996b, p. 32), pois, afinal de contas, a autonomia do
M3 é parcial, já que é produto do ser humano, mas não de
uma abstrata razão humana, mas sim de um sujeito inserido
no processo de evolução da vida. Vejamos como isso se dá.
O indivíduo que está a resolver problemas o faz
criando modelos de comportamento, ensaia procedimentos de
solução e os corrige em caso de erro. Popper chama de ‘armas’
os comportamentos propostos pelo indivíduo. Sob esse
aspecto, os comportamentos são as armas dos indivíduos,
enquanto os indivíduos são as armas da espécie para
conquistar determinado nicho ecológico. Cada organismo
dispõe de uma estrutura genética e um conjunto de
disposições comportamentais, ‘TE’, que, por um processo de
enfrentamento com o meio, EE, busca sua perpetuação.
Todavia, nesse esquema não podemos falar em uma ascensão
genética, mas sim num processo de ensaio e erro, onde
aumenta a variedade com vistas à solução de novos problemas
que se apresentam. O interessante é que ‘P²’ não é redutível a
‘P¹’, tal como podemos observar rapidamente por uma análise
da linguagem.
Popper distingue, na linguagem humana, quatro
funções; duas das quais compartilhadas com as linguagens
animais, e uma talvez parcialmente: a) função sintomática ou
expressiva; b) função sinalizadora; c) função descritiva; d)
função argumentativa. Em suas duas primeiras funções, a
linguagem pode ser considerada como veiculando
conhecimento subjetivo, disposições para comportamentos e,
se tomarmos a linguagem enquanto objeto escrito, também os
animais teriam um correlato na figura da casa do joão-debarro ou na colméia da abelha. “Estes produtos do
comportamento animal têm uma base genética, conquanto
alguns deles também contenham um componente de tradição,
e constituem o antecedente de animalidade que se
108
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
transformaria no Mundo 3 dos seres humanos” (POPPER,
1996b, p. 82-83). Como podemos observar, não temos um
abismo entre o reino especificamente humano e os demais
seres vivos45. Apesar disso, nenhum animal produz algo
semelhante ao M3, portanto, o específico do humano radica no
conhecimento objetivo. Um segundo ponto a ser considerado é
o caráter evolutivo das funções da linguagem: se as funções ‘a’
e ‘b’ estão presentes nos animais, e se talvez possamos dizer,
como conjectura Popper, que uma abelha pode expressar sua
excitação por descobrir um novo grupo de flores, comunicar
isso às demais e descrever sua direção, ainda assim não pode
contar uma história ou dizer uma mentira, sob esse aspecto a
descrição humana introduz os valores de verdade.
O proveito biológico das funções superiores da
linguagem é elementar - mediante descrições podemos
flexibilizar antecipações instintivas, substituindo-as por
descrições conscientes sobre o futuro; perguntar e responder,
objetivando resolver problemas; desenvolver a imaginação e
posteriormente estruturas explicativas; tudo isso torna
possível uma hereditariedade não genética de características
adquiridas, o arco e flexa, por exemplo, etc. Todavia, a
autonomia do M3, que decorre da linguagem, cria um
esquema geral enriquecido, no qual um mesmo ‘P¹’ pode
demandar várias alternativas:
TEa → EEa → P²a
P1 → TEb → EEb → P²b
TEn → EEn → P²n
Tendendo, potencialmente, ao infinito...
45 No prefácio de The Self and its Brain, Popper e Eccles apontam essa questão como um
de seus pontos de divergência: Eccles julga que essa distância é bem maior do que
pensa Popper.
109
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
REFERÊNCIAS
CORVI, Roberta. An Introduction to the Thought of Karl Popper,
Translated by Patrick Camiller. London: Routledge, 1997.
DARWIN, Charles. Origem das Espécies, tradução de Eugênio Amado. Belo
Horizonte: Villa Rica, 1994.
EINSTEIN, Albert. Como Vejo o Mundo, tradução de H. P. Andrade. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
GATTEI, Stefano. Karl Popper’s Philosophy of Science - Rationality
Without Foundations. New York: Routledge, 2009.
GORTON, William A. Karl Popper and the Social Sciences. Albany: State
University of New York Press, 2006.
HACKING, Ian. Experimentation and Instrumentation in Natural Science.
In: NEWTON-SMITH, William. H. e TIANJI, J. (ed.) Popper in China.
London: Routledge, 1992.
HALL, A. Rupert. A Revolução da Ciência: 1500-1750, tradução de Maria
Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1988.
LAKATOS, Imre. Matemáticas, ciencia y epistemologia, tradução de Diego
Ribes Nicolas. Madrid: Alianza, 1981.
MILLER, David. Propensities and Indeterminism. In: O’HEAR, Anthony
(org.). Karl Popper: Philosophy and Problems. Cambridge: Cambridge
University Press, 1995.
_______. Critical Rationalism – A Restament and Defense. Chicago: Open
Court, 1994.
_______.”Tres pasos de las frecuencias a las propensiones”. Praxis
Filosófica, Nueva serie, No. 24, Enero-Junio 2007, p. 5-20.
110
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
MUSGRAVE, Alan. Explanation, Description and Scientific Realism. In:
KEUTH, Herbert (org.). Karl Popper – Logik der Forschung. Berlin:
Akademie Verlag, 2004.
NEWTON-SMITH, William. H. The Rationality of Science. London:
Routledge, 1991.
NIINLUOTO, IIkka. World 3: A Critical Defence. In: JARVIE, Ian et alie (ed.)
Karl Popper: A Centenary Assessment, Volume II. England: Ashgate, 2006.
O’GORMAN, Paschal F. Situational analysis and Popper’s Three World
Thesis - The quest for understanding. In: BOYLAN, Thomas A. e
O’GORMAN, Paschal F. (ed.) Popper and Economic Methodology Contemporary challenges. London and New York: Routledge, 2008.
PEREIRA, Julio Cesar Rodrigues. Epistemologia e Liberalismo. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1993.
_______. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos”, THAUMAZEIN
– Revista on-line do Curso de Filosofia, Número 4, março de 2009, Santa
Maria-RS. Artigo eletrônico disponível no seguinte endereço:
http://www.unifra.br/thaumazein/edicao4/edicao4.asp.
PETRONI, Angelo M. On Some Problems of The Logic of Scientific
Discovery. In: NEWTON-SMITH, William. H. e TIANJI, J. (ed.). Popper in
China. London: Routledge, 1992.
POPPER, Karl Raimund. A Lógica da Pesquisa Científica, tradução de
Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1972.
_______. Conjectures and Refutations. New York: Basic Books, 1963.
_______. Objective Knowledge. Oxford: Clarendon Press, 1979.
_______. Quantum Theory and the Schism in Physics. London: Routledge,
1992a.
_______. The Open Universe. London: Routledge, 1992b.
_______. Realism and The Aim of Science. London: Routledge, 1996a.
111
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. Knowledge and The Body-Mind Problem. London: Routledge,
1996b.
_______. The Logic of Scientific Discovery. London: Unwin, 1990.
_______. Um Mundo de Propensões, tradução de Tereza Barreiros e Rui G.
Feijó. Lisboa: Fragmentos, s.d.
_______. e ECCLES, John C. The Self and its Brain. London: Routledge,
1993.
SHEARMUR, Jeremy. The Political Thought of Karl Popper. London and
New York: Routledge, 1996.
WATKINS, John. Ciência e Cepticismo, tradução de Maria João Ceboleiro.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.
_______. Popper and Darwinism. In: O’HEAR, Anthony (org.). Karl Popper:
Philosophy and Problems. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
WETTERSTEN, J.R. The Roots of Critical Rationalism. Amsterdam-Atlanta:
Rodopi, 1992.
112
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 6
O REALISMO EM POPPER E PEIRCE: UM CONTRAPONTO
José Francisco dos Santos
Peirce e Popper desenvolveram suas filosofias em
épocas diferentes, e Popper teve um contato muito superficial
com as obras de Peirce, insuficiente para que estas pudessem
influenciar de modo decisivo o seu pensamento. Não obstante,
ambos desenvolvem teses bastante convergentes acerca da
falibilidade da ciência. O presente capítulo resume trabalho de
maior fôlego, que compara a teoria dos dois autores, buscando
destacar seus pontos em comum e suas divergências,
sobretudo no que se refere ao realismo, que aparece como
fundamento necessário à tese do falibilismo. O realismo mais
abrangente de Peirce fortalece seu falibilismo, enquanto o
realismo de Popper, que não consegue superar a noção do
senso comum, faz com que seu falseacionismo apresente
lacunas e inconsistências.
1. SOBRE A NOÇÃO DE REALISMO
A concepção de realismo, no contexto da metafísica,
influi na visão que Popper e Peirce têm da ciência. Este viés
constitui a contribuição principal da tese aqui apresentada. A
noção de ciência dos dois pensadores apresenta muitas
similaridades, sobretudo na ênfase à sua falibilidade, que se
contrapõe à crença tradicional de ciência como conhecimento
113
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
universal e necessário. Embora o termo “falibilismo” se
aplique genericamente aos dois autores, utilizamos esta
expressão para caracterizar, mais especificamente, a teoria
peirceana e o termo “falseacionismo” para nos referir à teoria
de Popper.
Ambos atacam o subjetivismo e o idealismo que
aparecem como consequência do modelo empirista. Advogam,
ainda, um princípio de indeterminação operante na natureza,
contra os necessitaristas, que defendem um mundo regido por
leis rígidas, onde uma possível aleatoriedade já teria sido dada
desde o início.
Há, no entanto, diferenças importantes na abordagem e
na fundamentação de suas teses, que procuramos evidenciar
ao longo deste capítulo, que tenta responder à questão acerca
do embasamento realista de cada um e sua força na
sustentação de seus respectivos posicionamentos.
2. REALISMO E FALSEACIONISMO EM POPPER
O problema levantado por David Hume acerca da
validade da indução é um dos pontos de partida da filosofia
de Popper. Hume concluiu, sumariamente falando, que a
necessidade e a universalidade, imprescindíveis à ciência, não
nos podem ser dadas a posteriori e não há nenhum outro
recurso lógico que possa nos socorrer neste ponto, dado que,
pela concepção empirista, todas as ideias são formadas apenas
após as sensações e impressões.
Para Popper, o ponto central do problema é o fato de se
exigir que a adoção ou rejeição das teorias científicas dependa
dos resultados da observação e experimentação, o que ele
chama de “princípio do empirismo”. A solução de Hume é o
abandono da justificação racional, afirmando que a confiança
nas conclusões gerais se deve ao hábito.
114
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A “solução”46 popperiana se dá com o acréscimo do
que ele chama de “princípio do racionalismo crítico”. O autor
declara: “exigimos que a nossa adoção e a nossa rejeição de
teorias científicas dependam do nosso raciocínio crítico
[combinado com os resultados da observação e da
experimentação]” (POPPER, 1992, p. 32, grifos no original). A
novidade é a tese de que as nossas teorias funcionam apenas
como conjecturas ou suposições, que podem ser testadas por
observações, na esperança de se atingir a verdade. A ideia de
verdade é retida como o padrão ou “ideia reguladora”, o que
denota a crença realista que Popper se recusa a abandonar.
Assim, se a crítica nos permite escolher uma teoria em
detrimento de outra, não é porque a teoria escolhida seja
verdadeira, o que, afinal, nunca saberemos. Escolhemos entre
uma teoria falsa e uma que “pode” ser verdadeira. E o que faz
com que consideremos uma teoria melhor que sua concorrente
é o nosso interesse em aproximar-nos sempre mais da
verdade, nosso “ideal regulador”.47 Esta visão conjectural da
ciência, segundo Popper, permite resolver o problema da
indução sem o recurso a qualquer princípio apriorístico.
Em O Realismo e o Objetivo da Ciência, o autor distingue
quatro fases do problema. A primeira aparece da consideração
de que, se não podemos dar uma justificativa válida para uma
teoria a partir da observação, ela seria tão razoável quanto
qualquer outra, não se podendo distinguir o cientista do
lunático. A resposta de Popper a esta questão é de que a
observação pode, a favor do cientista, demonstrar a falsidade
de sua teoria e nisto consiste o cerne do seu falseacionismo. A
46 Utilizamos as aspas no intuito de não nos comprometermos pessoalmente com a
aceitação da tese popperiana de que sua abordagem de fato tenha solucionado o
problema da indução. Por outro lado, não adentramos nessa polêmica específica,
muito embora algumas das críticas à tese popperiana possam aparecer neste trabalho.
47 Esta questão, fundamental para a sustentação do realismo popperiano, é mais
discutida adiante, quando abordamos sua crítica ao convencionalismo e ao
instrumentalismo.
115
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
segunda fase, denominada “problema da crença racional”,
deve-se à insistência do cético de que, embora tenhamos
teorias bem testadas e preferíveis, não se poderia justificar a
crença na ciência como algo que tenha uma grande quantidade
de conhecimento positivo.
A este problema, que Popper considera menor por não
dar importância ao aspecto da “crença” em sentido subjetivo,
ele contrapõe a ideia de que, embora possamos crer
racionalmente na ciência, isso não significa crer na verdade de
teorias científicas particulares. É a verossimilhança, e não a
verdade, o objetivo da nossa crença racional na ciência. Uma
teoria verossímil é aquela que resistiu a severos testes e
constitui-se, assim, numa boa aproximação da verdade48. A
terceira fase do problema da indução, chamada por Popper de
“problema do amanhã”, consiste em se saber se o futuro será
do mesmo modo que foi o passado, ou seja, se as leis da
natureza continuarão a ser válidas amanhã. Esta questão
contém um viés de metafísica analisado na quarta fase do
problema. Popper a trata em termos de crer-se que uma teoria
até aqui aceita e que tenha resistido a testes continuará a sê-lo
no futuro. Sua resposta é evidentemente negativa, uma vez
que aceitar o contrário seria uma “recaída” indutivista, o que
invalidaria todo o corpo de suas teorias. A história da ciência
está repleta de casos de teorias aceitas e corroboradas que
acabaram sendo refutadas. Nesses casos, foi refutada uma
teoria acerca do funcionamento do universo em tal ou tal caso,
o que nada mais é do que uma produção humana, e não o
modo real como o universo se apresenta (POPPER, 1992, p. 5271).
A quarta fase, que consideramos de maior relevância
para a análise do realismo popperiano, é decorrente da terceira
e se constitui num problema metafísico. A questão aqui é se,
Esta ideia é desenvolvida no capítulo X de Lógica da Investigação Científica (POPPER,
2002, p. 29-31).
48
116
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
para além de qualquer teoria específica, há leis universais
verdadeiras. Popper diz acreditar num princípio mais fraco de
que “existe pelo menos uma lei universal verdadeira”. Sua
justificativa se liga à solução que dera aos estágios 1 e 3 do
problema da indução anteriormente discutidos. Primeiro,
tendo em vista que as teorias científicas são conjecturas que
podem ou não ser verdadeiras, o fato de não saber se uma
teoria é verdadeira não determina sua falsidade. Em segundo
lugar, há razões para acreditar numa teoria científica bem
testada e discutida. Assim,
desde o momento que nós temos, de fato, um número
considerável de leis da natureza minuciosamente discutidas e
bem testadas, há, na verdade, razões empíricas a favor da
crença de que existe pelo menos uma lei da natureza
verdadeira (POPPER, 1992, p. 79).
Isto implica a questão da realidade do mundo físico
que o indutivismo não pode sustentar. Popper propõe
reformular o quarto estágio do problema do seguinte modo:
“eu acredito que vivemos num mundo real, que ostenta
alguma espécie de ordem estrutural que se nos apresenta sob a
forma de leis. É possível mostrar que essa crença é razoável?”
(POPPER, 1992, p. 80).
Não se trata apenas da existência de corpos físicos, mas
de leis. Para o autor, a crença neste realismo é o pano de fundo
do que ele desenvolveu em Lógica da Investigação Científica,
muito embora esta sua crença realista não tivesse sido
utilizada para justificar o que lá estava exposto. Este viés é
dado, segundo o autor, pelo seu afastamento de qualquer
teoria subjetivista acerca do conhecimento que, afinal, não
consegue sustentar o realismo metafísico.
O abandono da questão acerca da origem do
conhecimento permitiria fugir ao inevitável subjetivismo que o
empirismo acarreta. Uma vez formuladas, as hipóteses
117
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
adquirem, segundo Popper, um caráter objetivo, não
dependendo mais do sujeito que as formulou. Este ponto é
parte da “teoria dos três mundos”. Não cabe aqui detalhar
tema tão amplamente conhecido49. Ressaltamos, para os fins
deste trabalho que O Mundo 3 tem existência própria e consiste
no conjunto das ideias que produzimos teoricamente para
explicar o mundo. A ideia de dar vida própria às nossas
teorias é desvincular a epistemologia de seus laços subjetivos.
Deste modo, poderiam desaparecer todos os homens do
planeta, mas as ideias permaneceriam e poderiam ser
decifradas e discutidas por outros seres inteligentes que
porventura viessem parar aqui. As teorias poderiam ser
refutadas e nós sobrevivermos, fazendo conjecturas cada vez
mais ousadas. É neste sentido que podemos falar de
“conhecimento objetivo”.
O que há de realismo nesta concepção? Primeiramente,
há que se considerar a crença na existência do mundo físico
para além das consequências idealistas do empirismo. A
afirmação do Mundo 1, como o mundo das coisas naturais, que
não se confunde como o mundo dos nossos estados mentais
(Mundo 2), é uma reafirmação do que Popper já havia indicado
na sua crítica ao subjetivismo dos empiristas. A realidade e a
autonomia do Mundo 3, no entanto, não nos parecem ser um
passo tão significativo na direção do realismo metafísico, uma
vez que não se trata da realidade das leis naturais, mas apenas
da autonomia das nossas conjecturas em relação à nossa
subjetividade. Não obstante esteja além do processo de
“fabricação”, no sentido de que uma obra, depois de fabricada,
não depende mais do seu autor, as teorias e, ademais, todos os
outros “habitantes” do Mundo 3 são obras humanas (POPPER,
1972, p. 157).
49 Sobre o tema do “Mundo 3”, veja-se o capítulo 2 deste livro: O pluralismo da tese do
Mundo 3 de Popper, de João Batista Cichero Sieczkowski. [Nota do organziador].
118
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Destarte, os três mundos não nos parecem fornecer
nenhum argumento positivo em favor do realismo científico,
senão argumentos negativos contra o idealismo e o
subjetivismo em teoria do conhecimento.
A vantagem do realismo sobre o idealismo se dá ainda
porque, caso a tese idealista seja verdadeira, qualquer coisa
será possível, inclusive o que realmente acontece (uma vez que
não existiria uma realidade objetiva para se contrapor às
nossas ideias), o que torna esta tese vazia de qualquer poder
explicativo.
Há muitos aspectos do falseacionismo de Popper que
não podem ser analisados aqui, mas que confirmam o viés
realista do autor. Este realismo se mostrou, desde o início, na
solução que Popper pretende dar ao problema da indução,
fugindo do subjetivismo e do idealismo aos quais o
indutivismo, segundo ele, inevitavelmente leva. Daí a ideia de
que o nosso conhecimento não surge das sensações, o que,
aliás, Popper considera como algo simplesmente fictício.
O falseacionismo, como critério de demarcação entre
ciência, pseudociência e metafísica, mostra sua veia realista
enquanto faz o cientista buscar evidências que refutem sua
teoria. Cada vez que uma teoria é falseada, ela terá se chocado
com a realidade e terá havido um avanço em direção à
verdade, o ideal regulativo da ciência. O verificacionismo, ao
contrário, como Popper mostrou na sua discussão acerca da
tese freudiana da interpretação dos sonhos, tende sempre a
enxergar em tudo a confirmação da teoria proposta, uma vez
que toda observação está carregada de teoria. Isto dificulta o
confronto com a realidade, estimula a formulação de hipóteses
ad hoc e serve mais para salvar a reputação da teoria e do
próprio cientista do que para buscar a verdade.
Deste modo, o realismo constitui, no entender de
Popper, o “pano de fundo” do falseacionismo, que procura
fugir do subjetivismo e do idealismo, buscando testes que
119
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
permitam “tocar” a realidade e, assim, aprofundar-se cada vez
mais nela.
A formulação deste realismo, no entanto, nos parece
bastante tímida. Talvez a principal evidência disto seja o
assombro de Popper frente à questão da realidade das leis
naturais que parecem ainda estar envoltas na nuvem da “coisa
em si” kantiana, a qual Popper parece querer repelir, mas sem
dar um passo verdadeiramente decisivo neste sentido.
3. PEIRCE E A REALIDADE DAS LEIS
Tal como Popper, Peirce se dedica à tarefa de
superação do subjetivismo e do idealismo que caracterizaram
a filosofia moderna. Peirce caracteriza como “nominalismo”
toda filosofia que tenda a colocar no sujeito, ou na mente
individual, a solução para o problema da unidade das
impressões dos sentidos. Ele afirma que “o nominalismo surge
a partir daquela concepção de realidade que encara tudo o que
está no pensamento como causado por algo nos sentidos, e
tudo o que está nos sentidos como causado por algo fora da
mente” (CP, 8.25)50.
Nesta perspectiva, sua tarefa é encontrar uma
explicação alternativa que supere também a solução kantiana,
a qual coloca o sujeito transcendental como o constituidor da
síntese necessária à validação da ciência, relegando a realidade
do mundo como a “coisa-em-si” incognoscível.
Esta alternativa viria com o que Apel (1981, p. 22)
chamou de “transformação semiótica”, na qual o conceito de
signo adquire importância fundamental. O signo passa a ser o
elemento que rompe a dualidade sujeito-objeto que prevalecia
tanto no cartesianismo quanto no empirismo.
Essa é a forma clássica de citação da obra Collected Papers of Charles Sanders Peirce,
dividida em oito volumes. CP indica o nome da obra, o número imediatamente após a
vírgula indica o volume e o número após o ponto, o parágrafo.
50
120
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A noção de signo como mediador entre o sujeito e o
objeto permitiu a Peirce afastar-se das consequências
nominalistas tanto do cartesianismo, que via a intuição e a
introspecção como formas de conhecimento, quanto do
empirismo que, ao colocar nas sensações o fundamento das
ideias, abria caminho mesmo para a negação da existência do
mundo exterior independente da mente subjetiva.
Para Peirce, toda ação mental pode ser reduzida a uma
das formas de raciocínio válido (CP, 5.267). O autor entende
que ocorre algo dentro do organismo que é equivalente ao que
acontece num processo silogístico, já que “se um homem
acredita nas premissas, no sentido em que ele agirá segundo
elas e dirá que são verdadeiras, sob certas condições
favoráveis também estará pronto a agir conforme a conclusão
e dizer que é verdadeira” (CP, 5.268).
O que ocorre na mente é um processo inferencial e
nunca uma mera intuição ou associação de sensações.
As formas de raciocínio válido são a dedução, a
indução e a hipótese (abdução). A indução é definida por
Peirce como uma inferência que atribui verdade para uma
inteira coleção, a partir do que é verdadeiro para uma amostra
dela, ou um certo número de casos tomados ao acaso, o que
poderia ser chamado, segundo ele, de argumento estatístico.
A validade de um tipo de inferência, assim, só poderia
ser estabelecida em longo prazo (long run), quando se poderia
chegar a conclusões bastante corretas a partir de premissas
verdadeiras (CP, 5.275).
A necessidade de uma investigação em longo prazo
para determinar a validade da indução introduz um elemento
extremamente importante na constituição do realismo
peirceano e também do seu falibilismo. Trata-se da
“comunidade de investigadores” que, num processo contínuo
de investigação, possibilitaria a correção dos erros e o avanço
em direção à verdade – que seria a opinião final da
121
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
comunidade de investigadores, não estando atrelada a um
indivíduo nem a um número definido de indivíduos (CP
5,311-316). Este é um passo adiante na superação do
subjetivismo e implica uma noção histórica da investigação,
num ambiente virtual de discussão crítica que, parece-nos,
teria interessado muito a Popper na formulação de seu
racionalismo crítico.
Outro passo em direção a um realismo mais consistente
se dá quando Peirce assume a tese de que uma representação
geral significa mais que um acordo ou convenção
(nominalista) para reduzir à unidade a multiplicidade das
sensações. O signo, fundamento das nossas concepções, não é
produto da nossa mente, embora seja relativo a ela.
Eu a limitei [a ideia de signo] a uma definição em que um
signo é qualquer coisa que, de um lado, é determinado (ou
especializado) por um objeto e, de outro lado, determina a
mente de seu intérprete, o último sendo assim imediatamente,
ou indiretamente, determinado pelo objeto real que determina
o signo (NEM51 III, 886).
O signo, assim, é determinado pelo objeto real e a ele se
refere, sendo também nossa única forma de contato com esse
objeto. Conforme Santaela (2000, p. 49), “ainda que a
percepção constitua uma porta de entrada para o
conhecimento, nunca estamos em situação de corpo e mente
imediatamente colados a uma objeto que possa ser tomado
como sendo originário de uma semiose”.
Se, de um lado, o objeto nunca se apresenta “em si
mesmo”, senão através da mediação sígnica, de outro lado não
se pode dizer que não exista um objeto real. Este objeto
(chamado na semiótica de objeto dinâmico) é apreendido na
51
New Elements of Mathematics.
122
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
percepção e é a fonte de toda a intrincada rede de significações
que se darão no seu processo de significação.
Compreender o processo de percepção é, portanto,
fundamental para entender o papel do signo e como a teoria
peirceana da percepção constitui-se num importante passo na
superação do subjetivismo e suas consequências nominalistas.
Em Peirce, encontramos três elementos fundamentais na
percepção: o percepto, que é o objeto externo; o percipuum, o
modo como esse objeto aparece à mente daquele que percebe;
e o julgamento perceptivo (CP, 7.643).
Em que esta tríade reforça o realismo peirceano?
Primeiramente, pelo aspecto da realidade do percepto como
exterior e independente da mente. Afastando-se da máxima
“ser é ser percebido”, típica do idealismo subjetivista, Peirce
realça a realidade do mundo exterior em relação à mente.
Santaella (1998, p. 90) comenta que a grande prova que
Peirce apresentou em favor do seu realismo “encontra-se na
evidência de que nossa percepção comete erros. Deve,
portanto, haver alguma coisa lá, em algum lugar diferente da
nossa mente, que não depende da nossa percepção”.
O erro nos coloca frente aos “fatos duros” da
segundidade52, que se forçam à nossa percepção e que, em
última análise, nem mesmo precisariam ser percebidos. Este
elemento é físico e nunca poderá ser exaurido pelo nosso
julgamento de percepção, uma vez que nosso aparato
perceptivo nos faz perceber algumas coisas e não outras, e
percebê-las de um determinado modo, de acordo com nossa
natureza e a nossa capacidade de interpretação. Santaella
apresenta ainda um interessante exemplo como argumento a
favor da realidade do percepto, quando escreve acerca da
É a categoria da percepção que indica a resistência que a mente encontra em relação
aos fatos do mundo. Na tríade das categorias de Peirce, a “primeiridade” corresponde
ao acaso e a “terceiridade” à generalidade ou lei. Para uma explanação mais completa
sobre estas três categorias, cf. Ibri (1992).
52
123
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
abelha que vem em nossa direção. Quando tentamos nos livrar
dela, damo-nos conta de quanto é real e independente da
mente (SANTAELLA, 1998, p. 93).
Assim, muito embora não tenhamos um contato
cognitivo direto com o objeto (percepto), senão através da
mediação sígnica, sua realidade fica demonstrada. De igual
modo, essa realidade está além do percipuum, que é o modo
como o objeto se apresenta à percepção. Um homem atingido
por um tiro mortal nas costas, por exemplo, terá uma
determinada percepção do fato, dependendo da dor que sentir
ou das suas informações anteriores sobre esse tipo de
ferimento, o que fará com que produza um julgamento
perceptivo quiçá deficiente. Mas a realidade do objeto
dinâmico (percepto) terá sido inexorável.
Acreditamos estar suficientemente fundamentada a
realidade do percepto enquanto segundo, como algo externo
que resiste e força-nos à cognição. Mas em que aspecto temos
generalidade ou terceiridade53 na percepção e qual a sua
“realidade”?
Na definição de signo, também aparece a ideia de
generalidade, uma vez que, segundo Peirce, nenhum signo
pode ser absolutamente preciso, já que sua relação com o
objeto que representa também nunca o será, deixando para um
outro signo, o seu interpretante, a tarefa de complementá-lo,
num processo contínuo. Estas características de generalidade e
vagueza se ligam ao realismo, porque permitem afirmar a
realidade das concepções gerais, que não se confundem com a
determinação de um individual. Concepções gerais, como
correlatos da terceiridade, podem ser estabelecidas como
verdadeiras ou falsas no processo histórico de investigação da
comunidade de investigadores. Conceitos gerais representam
alguma coisa e são verdadeiros ou falsos em relação a essa
53
Categoria da generalidade ou da lei.
124
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
coisa que representam. Como afirma Peirce, o conceito geral
“homem” é verdadeiro em relação a alguma coisa, então, o
que ele significa é real (CP, 5.312).
A cognição, assim, é equivalente à realidade no sentido
de que a estrutura do signo mostra que a verdade é objeto de
um processo contínuo, que se estende ad infinitum, referindose sempre ao mundo exterior, cuja representação só pode ser
esgotada no consenso ou opinião final da comunidade de
investigadores. Esta opinião, é claro, só pode ser considerada
verdadeira na sua relação com o mundo, o objeto dinâmico do
signo que ela representa. No fluxo do tempo, a repetição dos
eventos parece associá-los a um caráter de generalidade, à
medida que deixam de ser meros reagentes individuais,
pondo-se em relação segundo uma regra que permite sua
compreensão pela consciência. Assim, forma-se o conceito de
lei, subsumida à categoria da terceiridade. Isto só é possível
devido às regularidades das reações do mundo que, quando
tomadas isoladamente, formam a segunda categoria: “o mero
poder ser do fenômeno mediativo tem seu fundamento lógico
no dever ser da generalidade real” (IBRI, 1992, p. 32).
Está levantada, então, a hipótese da terceiridade real,
ou seja, da existência de leis, independentes da consciência,
que regem o comportamento dos individuais. Evolui-se de um
realismo de individuais para um realismo de universais, numa
aproximação ao realismo escolástico. Nós percebemos não
apenas individuais reagentes, mas também a regularidade de
suas reações, e essa regularidade permite-nos conhecer o
comportamento das coisas no fluxo do tempo.
Dizer que essa regularidade é uma construção da
própria consciência, como faz o nominalismo, seria negar a
própria observação. Ora, tal generalização deve dizer sobre o
futuro, pois pressupõe a permanência dessa regra geral. Como
pode se dar isso, se o mundo não se comportar da mesma
forma mais adiante? Como definir a lei como mero constructo
125
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
da mente humana sem descaracterizar dela o papel de esse in
futuro? Parece não poder haver lei sem que estejam presentes,
ao mesmo tempo, a generalidade e a alteridade (CP, 5.48).
Um mundo composto de meros individuais, sem
quaisquer relações de ordem entre si, seria um mundo caótico
e dele nenhuma representação seria possível. Segue-se, então,
que uma generalidade real se impõe como condição de
inteligibilidade. Quando a reação se manifesta com
regularidade, insistindo contra a consciência, deixa de ser
mera reação bruta, podendo ser representada em uma
mediação, passando da segunda à terceira categoria. Sua
realidade é a realidade das leis.
4. CONTRAPONDO OS DOIS REALISMOS
Em Popper, como vimos no início deste capítulo, há
uma versão fraca do realismo, que ele denomina “realismo de
senso comum”, enfatizando a existência do mundo concreto,
do mundo dos objetos físicos, em oposição ao idealismo
subjetivo. A versão mais forte do realismo, acerca da realidade
das leis naturais, está subentendida em Popper, mas muito
pouco desenvolvida, embora seja fundamental ao seu projeto
falseacionista.
Em Peirce, estas questões estão amplamente discutidas,
com os contornos bem delineados do mundo dos objetos,
entendidos como reagentes, subsumidos à categoria da
segundidade. O mesmo acontece com a terceiridade real, o que
dá o toque distintivo ao realismo peirceano.
Embora possam aparentar alguma semelhança, os três
mundos de Popper são muito diferentes das três categorias de
Peirce. Acreditamos que, mais uma vez, é o tipo de realismo
de cada um que sustenta estas diferenças. Para Popper, o
toque de realismo está dado no seu Mundo 1, ou o mundo dos
objetos físicos. Este Mundo 1 é, basicamente, o que Peirce
126
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
chama de segundidade, o mundo dos individuais reagentes.
As teorias, entendidas apenas como as formulações humanas,
independentes da subjetividade de quem as formulou, e que
formam o Mundo 3 popperiano, são diferentes da terceiridade
de Peirce, visto que Peirce confere o estatuto de real também a
esta categoria.
Nossas teorias, segundo Popper, “tocam a realidade”,
tendendo a chegar cada vez mais próximas da verdade,
entendida como correspondência com os fatos. Este realismo,
embora se incline para a posição peirceana, é o que
poderíamos chamar de “realismo de segundidade”,
encontrando aí sua limitação. Parece faltar aquele grau de
objetividade das leis naturais, do qual Popper pode ter se
aproximado, mas acabou se rendendo ao seu “mistério”.
Consideradas
como
hipóteses
formuladas
subjetivamente, sem uma relação mais direta com algum tipo
de “terceiridade real”, as teorias em Popper apresentam um
indesejável grau de nominalismo, que poderia ser evitado com
a assunção de um realismo mais robusto. O nominalismo
entende que os universais são apenas criação da mente e pode
conviver tranquilamente com uma noção realista do tipo
popperiana, já que a realidade do Mundo 3 é considerada real
apenas como artefato humano, como o mel é artefato da
abelha e, após produzido, torna-se independente dela. Assim,
embora se advogue a existência do mundo como realidade, as
leis gerais não encontram correlato nessa realidade, sendo
apenas conjecturas humanas, muito embora Popper afirme
que, quando falseada, a teoria toca a realidade.
Podemos afirmar que há algo em Popper que tende a ir
além do que isso, mas não está formulado de modo claro. Tal
aparenta ser o estatuto do Mundo 3 de Popper. A realidade (ou
objetividade) do Mundo 3 consiste na realidade “física” das
teorias, que depois de formalizadas, subjetivamente,
cristalizam-se nos livros, e acabam tendo consequências e
127
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
desenvolvimentos independentes do controle subjetivo. No
modelo evolucionista popperiano, a realidade do Mundo 3
representa uma forma de interação dos humanos com o meio,
na qual a espécie pode sobreviver apesar dos erros que suas
conjecturas sempre têm. A realidade do Mundo 3 permite que
o aprendizado por tentativa e erro, que é o eixo central do
falseacionismo, seja uma ferramenta a mais para a
sobrevivência dos humanos, enquanto, para outras espécies,
um erro poderia ser fatal.
Para Peirce, há outros ingredientes nesta questão. Em
Pragmatismo e Abdução (CP, 5.180-212), ele apresenta, nas suas
“proposições cotárias”, a gênese da abdução como uma
conaturalidade entre a mente e o mundo, caracterizadas por
aquele “afinamento” que nos permite “adivinhar” as leis da
natureza, uma capacidade que o autor compara com a
capacidade aeronáutica dos pássaros (CP, 7.48). Popper não
vai tão longe. Em Lógica da investigação científica, ele ressalta
que não crê que exista algum método lógico de conceber ideias
novas e se afasta desta questão por considerá-la de natureza
psicológica e não lógica (POPPER, 2002, p. 8). A força de sua
argumentação está na possibilidade de refutação das teorias já
elaboradas. Há bastante proximidade com Peirce neste ponto,
mas parece faltar em Popper (ou seria “sobrar” em Peirce?)
um elemento mais ousado que decorre do realismo extremo de
Peirce. O realismo de Popper não consegue, ou evita dar esse
passo.
Desconhecemos, além da posição peirceana, outra que
assuma uma postura realista desta natureza. Peirce abordou o
tema (sem prever, obviamente, o seu desdobramento no século
XX), nas suas Lições de história da filosofia (CP, 1.1-40). Ali, ele
afirma que, nos dias de Roger Bacon, Santo Tomás de Aquino
e Duns Scotus, a questão entre o realismo e o nominalismo era
tomada conclusivamente a favor do realismo. No mesmo
parágrafo, Peirce entra na discussão sobre o teor metafísico da
128
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
questão, pois a realidade dos universais é uma noção de
metafísica e não de lógica. No entanto, quando se pergunta se
as nossas convicções do senso comum são verdadeiras, a
análise do significado da questão é lógica e não metafísica.
Nesta perspectiva, a metafísica peirceana estava
fundada na lógica, pois a realidade da terceiridade não é uma
formulação a priori, mas responde à questão de como são
possíveis as nossas cognições num mundo caótico,
“(des)organizado” nominalisticamente. Ao assumir uma tal
posição metafísica, ele está embasado na lógica. Como ressalta
Haack (1992, p. 21), esta questão tem profundas consequências
e é um importante argumento em favor do realismo, sendo o
pragmatismo, propriamente entendido, inerentemente realista.
Peirce considera que questões políticas acabaram sendo
determinantes na desarticulação do realismo e na ascensão do
nominalismo, criando uma maré nominalista na filosofia
moderna, dentro da qual se encontram filósofos como
Descartes, Locke, Berkeley, Hume, Leibniz e Kant. Aliás,
Peirce afirma que a filosofia de Kant seria mais forte e
consistente, tivesse ele se orientado pelo realismo, “como teria
feito certamente, se tivesse lido Scotus” (CP, 1.19). Ainda no
mesmo texto, Peirce afirma, ao comentar acerca da
terceiridade:
Não passam cinco minutos de nossa vida enquanto acordados,
sem que façamos algum tipo de predição [...] uma predição é
essencialmente de uma natureza geral. [...] dizer que uma
predição tem uma tendência a ser cumprida, é dizer que os
eventos futuros realmente estão, nalguma medida,
governados por lei. [...] ‘Oh’, dizem os nominalistas, ‘esta
regra geral não é mais que uma palavra ou um par de
palavras’. Eu respondo: ‘Ninguém sonhou em negar que o que
é geral é da natureza de um signo geral; mas a pergunta é se
eventos futuros se conformarão a isso ou não. Se eles vão [se
conformar], seu adjetivo mera parece estar mal colocado. Uma
regra para qual eventos futuros têm uma tendência para
129
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
conformar é ipso facto uma coisa importante, um elemento
importante no acontecimento desses eventos’ (CP, 1.26).
O reconhecimento de generalidades reais se perdeu
enquanto a filosofia moderna se afastou do realismo
escolástico e teve um tratamento assaz preconceituoso no
século XX. Na sua forma mais extremada, esse sentimento
antimetafísico fez com que um discurso dessa natureza fosse
taxado de pseudoproposição. Popper, embora tenha se
colocado do lado oposto dos positivistas lógicos e tenha
controvérsias com o Círculo de Viena acerca dessa demarcação
entre ciência e metafísica pelo critério do significado (POPPER,
1992, p. 174-177), não superou a oposição ao “realismo
escolástico extremo”54, estando sua posição realista presa ao
senso comum, ou seja, à sustentação da realidade do mundo
dos objetos individuais, e carente de uma sustentação mais
consistente quanto à realidade das leis gerais. Apesar disto,
sua posição, às vezes, é bastante parecida à de Peirce,
sobretudo em O Realismo e o Objetivo da Ciência, onde chega a
afirmar que as leis da natureza podem ser interpretadas como
descrição de estruturas do mundo. Ao mesmo tempo em que
aceita esta posição, reconhece que se trata de uma metáfora
vaga.
Devemos, julgo eu, aceitar a existência de leis da natureza;
mas fazê-lo, receio bem, como um mistério que se tornou
talvez ainda mais impenetrável de Einstein para cá; pois as
próprias leis da natureza, que postulam, segundo Einstein,
que não há efeitos que se possam difundir com velocidades
superiores à da luz, fazem com que seja impossível
compreender a onipresente homogeneidade estrutural do
Mundo (POPPER, 1992, p. 150).
54
Utilizamos a expressão de Haack (1992).
130
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper aponta isso fazendo alusão ao “místico” de
Wittgenstein, como um embaraço para o realista metafísico. O
idealista se sai melhor, pois pode, como Kant, dizer que o
nosso intelecto é que impõe a ordem ao universo. Popper
(1994, p. 152) salienta: “não acho que se possa resolver esse
mistério pensando que o mundo é o que é por uma espécie de
necessidade lógica. A esperança de reduzir as ciências naturais
à lógica me parece absurda e repelente”.
Popper parece totalmente seduzido por um realismo
que vá além do que chamamos anteriormente como seu
“realismo de segundidade”. Sua necessidade de que existam
leis gerais o faz estar no limiar da terceiridade peirceana,
passo que, ao final das contas, ele não dá. Para Peirce, o
problema não se apresenta com esta mesma coloração. A
existência das tais “leis estruturais” é consequência natural de
sua abordagem.
Convém apontar, aqui, a observação de Apel, que
indica o uso limitado que Popper faz do critério de
falseacionismo, reduzindo-o apenas à experimentação. Peirce,
ao contrário, dá importância fundamental ao processo de
descobrimento, ou abdução, e a experimentação caminha para
um princípio de convergência progressiva até “um realismo
cada vez melhor justificado” (APEL in LANDÁZURI, 2002, p.
9). Faltaria, para Popper, um princípio desta natureza, que
regulasse adequadamente o processo de melhoramento das
teorias, rumo a uma aproximação cada vez maior da realidade.
No nosso entender, isso está, de certa forma, implícito em
Popper, mas seu realismo incompleto o impede de formulá-lo
melhor.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não pudemos aqui, pelas limitações óbvias desse tipo
de trabalho, tecer todas as considerações acerca da filosofia
131
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
dos autores analisados, apresentando apenas um relato
conciso do caminho percorrido na pesquisa. A abordagem, no
entanto, parece suficiente para chamar a atenção sobre um
contraponto que só recentemente vem sendo considerado,
uma vez que o conhecimento limitado que Popper parece ter
tido da obra peirceana o impediu de levá-la na consideração
que deveria, ao formular seu falseacionismo. De fato, o
realismo, tão enfaticamente sustentado por Popper, careceu
nele de um fundamento mais abrangente, ao passo que Peirce,
um autor que Popper, nas poucas alusões que lhe faz, parece
admirar, já havia trabalhado o mesmo problema de modo bem
mais abrangente.
Somos tentados a imaginar que se esse diálogo tivesse
ocorrido de modo mais intenso, teria modificado em boa parte
a discussão filosófica no século XX, que se viu presa às
amarras de um nominalismo que não logrou ser refutado
consistentemente, mesmo por Popper, que se opôs a ele com
veemência. Acreditamos que um conhecimento maior da obra
de Peirce teria sido um ingrediente decisivo nessa discussão. O
presente século, ao que tudo indica, será tempo de suprir tais
lacunas, e esperamos estar contribuindo, em alguma monta,
para essa finalidade.
Evidenciar o realismo, nas bases em que Peirce o
propõe, coloca na nossa agenda filosófica também um novo
olhar para a metafísica, tão combalida nas considerações
filosóficas do século passado. O próprio Popper parece ter sido
presa dessa aparente falta de fundamentação da metafísica,
uma vez que não conseguiu formular seu realismo no âmbito
completo em que poderia sustentar suas teses.
REFERÊNCIAS
APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia II: o a priori da comunidade de
comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
132
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
IBRI, Ivo Assad. Kosmos noetos: Arquitetura Metafísica de Charles S.
Peirce. São Paulo: Perspectiva, 1992.
LANDÁURI, Carlos Ortiz de. Dos meglioristas: decisionismo
metodológico o ética de las creencias, 2002. [on line] Disponível em
http://www.unav.es/gep/AF69/AF69Ortiz.html. Acessado em 13 ago.
2005).
PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce.
Edited by Charles Harsthorne, Paul Weisse Arthur Burks Cambridge,
Massachussets: Harvard University Press, I vol., 1931-35 e 1958.
_______. The new elements of mathematics by Charles Sanders Peirce.
Edited by Carolin Eisele. The Hague, Mounton Publishers, 5 vols, 1976.
POPPER, Karl R. The logic of scientific discovery. London and New York:
Routledge, 2002.
_______. Objective knowledge: an evolutionary approach. New York:
Oxford Clarendon Press, 1972.
_______. Conjectures and refutations. London: Routledge and Kegan Paul,
1999.
_______. Realism and the aim of science: postcript to the Logic of Scientific
Discovery, vol. I. London and New York: Routledge, 1992.
SANTAELLA, Lúcia. A percepção: uma teoria semiótica. São Paulo: Editora
Experimento, 1998.
SANTOS, José Francisco dos. Realismo e falibilismo: um contraponto entre
Peirce e Popper. Curitiba: Editora CRV, 2011.
133
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 7
A HISTÓRIA DA CIÊNCIA E A EPISTEMOLOGIA DE POPPER
Jézio Hernani Bomfim Gutierre
A História e a prática da ciência têm papel coadjuvante
ou central na epistemologia de Popper? Uma resposta a essa
pergunta é relevante para a caracterização e cenário crítico do
falsificacionismo ao circunscrever muito do campo de batalha
há tanto tempo tão frequentado por Popper e seus desafetos.
Várias das interpretações mais recentes lançam mão de
evidências historiográficas para a análise do racionalismo
crítico e frequentemente consideram os custos que recairiam
sobre ele caso se confirmasse a decantada ausência de
exemplos históricos que o corroborassem. Como se sabe,
Kuhn, Feyerabend, Lakatos e tantos outros depois deles
assacaram contra Popper uma presumível vacuidade
historiográfica, e a consequência decorrente e amplamente
difundida é a de que aquela teoria epistemológica não passaria
de um esqueleto seco, uma teoria idealizada sem aplicação ou
interesse para a intelecção e normatização de um organismo
dinâmico, vivo e concretamente evolutivo como é a ciência
empírica. De fato, considerando-se sua vacuidade histórica, a
admissão de uma teoria assim contribuiria, no limite, para o
gradual afastamento entre cientistas e filósofos, circunstância
134
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
propiciadora de efeitos epistemologicamente perniciosos e,
segundo alguns, socialmente catastróficos55.
Não cabe aqui considerar a correção do severo
diagnóstico, estritamente historiográfico, que subtrai do
falsificacionismo qualquer corroboração da prática56. O que se
pretende discutir é o vínculo entre aquela proposta
epistemológica e a História, uma convivência que amiúde se
acredita não apenas conflitiva, mas inaplicável ao caso do
sistema
popperiano
–
um
sistema,
presume-se,
estruturalmente a-histórico e, justamente por isso, irrelevante.
Mas seria a relação de Popper com a prática científica
concreta realmente tão frágil quanto fazem crer os intérpretespadrão? Quando na tão citada passagem de A estrutura das
revoluções científicas Kuhn fala dos que tratam a História como
mero repositório de “anedotas ou cronologias” (KUHN, 1970a,
p. 1), a carapuça serviria em Popper? Tal caracterização
anedótica do uso anedótico da História parece trivialmente
aplicável a várias passagens da obra do filósofo austríaco. Se
considerarmos o uso ilustrativo que a História pode ter para a
exposição de uma metodologia, certamente que isso é
identificável desde a primeira edição de Logik der Forschung.
Mas é também claro que o emprego da ilustração
historiográfica não é privilégio de Popper, e mesmo filósofos
com as melhores credenciais historicistas (Kuhn inclusive)
seguem, compreensivelmente, esse caminho. O que se critica
não é obviamente a eventual ilustração historiográfica, mas o
55 Cf., por exemplo, o diagnóstico de Evert Bethe: “a crescente discrepância entre
ciência e filosofia [...]” seria “uma das principais causas para a queda da filosofia
contemporânea [...]”, e “ameaça seriamente o futuro desenvolvimento da Civilização
Ocidental.” [citado em SUPPE, 1989, p. 6]. Consequências igualmente trágicas são
extraídas das mesmas causas por autores à primeira vista tão diversos quanto Popper
e Feyerabend.
56 Popper e seguidores – particularmente J. Agassi (cf. AGASSI, 1963) – certamente
nunca abandonaram o front historiográfico. Para eles, a história da ciência,
especialmente em seus grandes momentos revolucionários, reflete invariavelmente na
prática a aplicação do modelo metodológico falsificacionista.
135
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
emprego sistemático e exclusivo dos registros da práxis
científica apenas como ilustrações. Seria este o caso de Popper?
O próprio Kuhn responde negativamente a essa
questão quando reconhece que Popper é o mentor de uma
linhagem de filósofos que, ao contrário de seus predecessores
positivistas, estão atentos à práxis e lhe dão papel substantivo.
E essa é justamente a fonte da perplexidade de Kuhn frente às
críticas popperianas (cf. KUHN, 1970b, p. 235ss): por que um
autor com esse perfil lhe endereçaria críticas anti-historicistas?
Assim, delineia-se uma (mais uma) indagação hermenêutica:
quando Popper faz uso não anedótico da História e da prática
da ciência? Ou, pergunta relacionada, como dissipar a
perplexidade kuhniana frente às críticas popperianas?
Para enfrentar essas questões é interessante que
isolemos dois ângulos do sistema popperiano – o metametodológico e o metodológico – e analisemos os diferentes
papéis que reservam para a História.
Na definição de sua epistemologia, Popper é um
pensador clássico. Em linhagem racionalista canônica - em que
se estabelece a Filosofia, em particular suas ramificações
gnosiológicas, como a rainha das ciências, uma Filosofia
Primeira -, ele pretende definir normas, uma reconstrução
racional do que o cientista deveria fazer caso pretendesse
seguir um processo racional de decidibilidade. É isso que
permite a Popper caracterizar sucintamente o centro de sua
doutrina como “uma recomendação (normativa)” (POPPER,
1981, p. 99-100, n. 41, grifo no original). Entretanto,
paralelamente ao teor normativo de sua proposta, ele também
sustenta reiteradamente a rígida distinção entre questões de
fato e de direito, mais especificamente, entre questões
empíricas e de justificação (cf. POPPER, 1992, p. 7 e passim).
Segue-se daí que a maneira como os cientistas realmente se
comportam – sua práxis e a História da ciência - é tema de
saída epistemologicamente desinteressante. Por isso mesmo
136
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper se permite dizer que “minha teoria da ciência não
pretendeu ser uma teoria histórica, ou uma teoria sustentada
por fatos históricos ou fatos empíricos de outra ordem”
(POPPER, 2000, p. xxxi)57. Essa é a posição que Popper
professa contundentemente por várias vezes e de maneira
aparentemente
inequívoca
quando
caracteriza
seu
empreendimento e o objetivo que persegue:
Inclino-me a afirmar que deveríamos tentar determinar o que
eles [os cientistas] “devem” [“ought”] fazer. Esse “devem”
obviamente não tem teor ético (embora a ética esteja também
envolvida aqui), mas seria antes o “devem” de um imperativo
hipotético. A questão é: “Como deveríamos proceder caso
desejássemos contribuir para o crescimento do conhecimento
científico?” E a resposta é: “Você não tem melhor alternativa
que proceder conforme o método crítico de tentativa
(conjectura) e eliminação do erro, procurando testar ou refutar
suas conjecturas.” O argumento que suporta essa resposta
pertence à lógica situacional. Não penso que devemos nos
voltar para a questão (sociológica) sobre o que os cientistas
realmente fazem ou dizem (POPPER, 1974b, p. 1036).
Alicerça-se assim uma teoria da racionalidade, teoria
que não parte da necessidade de retratar alguma característica
típica à ciência ou qualquer outra entidade histórica definida.
É bem verdade que mais de um autor afirmou que
Popper teria partido da apodítica constatação do progresso
científico, uma característica essencial e primitiva da ciência,
para estruturar o falsificacionismo (e.g., O’HEAR, 1980, p. 2-3
e 96). O raciocínio desses intérpretes é direto: Popper teria o
objetivo de identificar o legítimo método científico,
responsável pelo conspícuo sucesso da ciência, e comunicá-lo
Na sequência imediata à mesma passagem, Popper complementa: “Entretanto,
duvido que exista qualquer teoria da ciência que possa lançar tanta luz sobre a história da
ciência quanto a teoria da refutação seguida pela reconstrução revolucionária, embora
conservadora“ [grifos no original].
57
137
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
a outras disciplinas que não usufruem da mesma sorte. E,
reconheça-se, algumas observações popperianas parecem dar
peso a essa alegação. Passagens como “o crescimento do
conhecimento pode ser mais bem estudado a partir do estudo
do crescimento do conhecimento científico” (POPPER, 1992, p.
xix) podem ser entendidas como um estímulo para o
desempenho de tarefa semelhante a uma cópia, uma
transposição de regras e práticas, sabidamente bem-sucedidas
no caso da ciência empírica, ao conhecimento em geral.
Entretanto, isso simplesmente não se aplica ao projeto de
Popper: ele não pressupõe o “fato” do progresso científico e,
por extensão, não pode justificar a escolha de um método com
base em que ele assegura aquele sucesso – na verdade, nunca
se pode pressupor o progresso gnosiológico (ou qualquer
progresso humano) e, de fato, por vezes, a História da Ciência
pode bem ser a história de uma tragédia epistêmica58. O
máximo que podemos tentar alcançar é o estabelecimento e
disseminação dos traços definidores da racionalidade de
nossas escolhas, sem que isso garanta o desempenho futuro
das teorias escolhidas.
Tudo isso leva à inescapável conclusão de que, no
terreno meta-metodológico, Popper recusa a ingerência
histórica e reafirma seu vínculo com o racionalismo normativo
clássico. Seu interesse não reside na procura de um método
que espelhe um progresso efetivamente alcançado, mas sim na
busca de uma metodologia que sustente processos de
decidibilidade empírica, assegurando a crítica (leia-se, a razão)
no âmbito científico.
58 Nesse particular, a história do embate entre Mach e Boltzmann em torno da teoria
atomística seria, segundo Popper, icônico. De acordo com a História, Boltzmann foi,
ao menos ao longo de sua vida, derrotado. Entretanto, conclui Popper, se o juízo
histórico foi desfavorável a Boltzmann, isso apenas desqualifica aquele juízo: “Tanto
pior para a História” (POPPER, 1974b, p. 125). A redenção historiográfica é um mito, e
injustiças gnosiológicas podem muito bem ser chanceladas historicamente.
138
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Até este ponto, portanto, o decantado alheamento
popperiano em relação à prática e a evidências históricas
parece bem atestado. Entretanto, a fortuna da História
experimenta uma reviravolta quando se considera uma outra
face do edifício popperiano: sua proposta metodológica. Para
evidenciar essa diferente atitude frente à História,
reexaminemos alguns dos bem conhecidos elementos
fundamentais de um típico processo popperiano de teste.
Conforme o modelo falsificacionista e os parâmetros
centrais da metodologia dedutivista, para a efetivação de
testes na ciência as hipóteses testadas devem ser confrontadas
com enunciados básicos aceitos e eventualmente rejeitadas
quando contradizem as hipóteses. O que distingue a seleção
popperiana dos enunciados básicos - relativamente à
aparentemente abraçada por neo-positivistas extremados
como M. Schlick – é que a aceitação de tais enunciados não
equivaleria à aceitação de “fatos”. Tal aceitação é decorrente
de um debate interno à comunidade científica, travado ao
longo do processo de teste e finalmente estabelecida por um
acordo, uma convenção. Que este debate não é aleatório ou
artigo de fé é o que Popper procura ilustrar ao equipará-lo à
deliberação de um júri: embora não guiado por regras que
forcem uma determinada conclusão, nem por isso deixa de ser
judicioso e racional.
No entanto, para a análise de uma dívida historicista
em Popper, o que é proveitoso levar em conta é o papel que se
atribui à comunidade científica e ao conhecimento de fundo a
ela acoplado. O que fornece a baliza crítica aos testes
empreendidos é o conhecimento de base aceito por uma
comunidade científica59, e o rigor dos testes empreendidos,
59 Note-se que os perfis do conhecimento de base e da comunidade em larga medida
se entrelaçam e se definem mutuamente: as fronteiras de comunidades distintas são
estabelecidas por distintos conhecimentos de base e o conhecimento de base é o
139
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
elemento central da dinâmica de seleção e corroboração
teóricas, depende fundamentalmente da expectativa que o
conhecimento de base impõe àquela comunidade. Como
afirma Popper:
Qualquer teste empírico sério consiste sempre em tentativa de
encontrar refutação, um contra-exemplo. Para procurar
contra-exemplos precisamos usar nosso conhecimento de
base: sempre procuramos refutar em primeiro lugar as
previsões mais arriscadas, as “consequências [...] mais
improváveis” [...]; o que significa que sempre procuramos os
contra-exemplos mais prováveis nos lugares mais prováveis – mais
prováveis no sentido de que esperamos encontrá-los à luz do
nosso conhecimento contextual (POPPER, 1989, p. 240, grifos
no original).
Em síntese, uma corroboração empírica legítima
proviria da eficiência da teoria em responder a testes
rigorosos, e testes rigorosos seriam aqueles que, à luz do
conhecimento de base, provavelmente levem à refutação da
teoria.
Mas comunidade e conhecimento de base, seus
parâmetros, valores e fronteiras, variarão diacronicamente. E
sendo esse o caso, o coração do método falsificacionista será
constituído por entidades essencialmente históricas. De fato,
qualquer corroboração de uma teoria científica dependerá do
contexto histórico no qual a teoria foi proposta, tanto quanto
será uma tarefa historiográfica determinar quais as entidades
componentes do conhecimento de base em cada situação
concreta de teste60.
Nesses termos, o trajeto hermenêutico que levou ao
famoso momento gestáltico de Kuhn, quando reconhece a
conhecimento que conjunturalmente não é posto em dúvida pela comunidade (Cf.,
e.g., POPPER, 1979, p. 55 e 75).
60 A esse respeito, consulte-se a extensiva análise apresentada por Musgrave (1974, p.
7).
140
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
presença dos demais pressupostos teóricos assumidos pela
física aristotélica e deixa de considerar Aristóteles um físico
medíocre (cf. KUHN, 2000, p. 16ss), é algo deslocado, mais
previsível e corriqueiro, para alguém que trilhe os passos
popperianos. Popper não tem qualquer dificuldade em trazer
para o campo do racional episódios como o do obstinado
apego de Galileu à sua teoria das marés, ou ainda sua
igualmente firme resistência à teoria kepleriana das órbitas
planetárias – ambas posições inconcebíveis à luz do
conhecimento atual. Um estudo historiográfico competente,
que pusesse à mostra a base e a estrutura teóricas sob as quais
Galileu (ou Aristóteles...) trabalhava, segundo Popper,
demonstraria
que
nessa
situação-problema
seu
comportamento foi racional e metodologicamente correto (cf.
POPPER, 1979, p. 170ss). E é justamente nessa circunstância
que explicitamente enaltece o relevo hermenêutico da
historiografia da ciência:
há duas coisas a dizer sobre a história da ciência. Uma é que
só quem compreende a ciência (isto é, os problemas
científicos) pode compreender sua história; e a outra é que só
quem tem alguma compreensão real de sua história (a história
de suas situações-problema) pode compreender a ciência
(POPPER, 1979, p. 185).
O Popper “algoz da História” é agora dramaticamente
substituído pelo “historicista”. Mas a esquizofrenia é apenas
aparente: navega-se aqui no nível do método científico, da
identificação da racionalidade dos procedimentos científicos
por parte da averiguação historiográfica, e tendo a
metodologia popperiana reservado o papel que reserva para a
práxis, não é estranho que seja a dinâmica histórica, ao final
das contas, a definidora do destino das escolhas científicas.
Dada a centralidade dos enunciados básicos aceitos para todo
o desenvolvimento da ciência, não deixa de ser um tanto
141
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
intrigante que Popper seja tão lacônico a respeito do processo
que, afinal, rege a comunidade científica em sua escolha
daqueles enunciados. O máximo que fornece é a metáfora do
júri – tão elucidativa quanto insuficiente. Mas talvez não seja,
afinal, tão estranho que se restrinja a isso quando se reconhece
que nesse contexto modelos são sistematicamente superados
pela multifacetada trajetória dialética e dialógica vivenciada
pela comunidade científica, um caleidoscópio tão multiforme
quanto multiforme é a história (qualquer história) humana.
A pergunta original da qual partimos está assim
parcialmente respondida. A prática e a História não são
empregadas apenas na ilustração (“anedota e cronologia”) da
metodologia popperiana. Ambas têm lugar e função mais
destacados e orgânicos em meio à dinâmica do
falsificacionismo. Considerando-se o quadro resultante, aquele
grupo de questões bem poderia ser substituído por outro
referente à integração entre a meta-metodologia e a
metodologia popperianas: é harmônica a convivência entre
uma meta-metodologia a-historicista e uma metodologia que
preconiza ser a base empírica de teste - e, em última instância,
da definição da decidibilidade crítica - dependente da história
e da prática? A complexa dinâmica de uma metodologia como
essa deverá se conformar com ideais regulativos, em particular
ideais aléticos, que presumivelmente serão preservados pelo
método empregado. No caso popperiano, a meta-metodologia
tem o objetivo explícito de preservar processos metodológicos
racionais de crítica que idealmente possibilitem a eliminação
sistemática de erros, de enunciados falsos, e que permitam a
maximização, senão da verdade, da verossimilhança. Mas
como a metodologia historicista de Popper responde aos
requisitos a-historicistas de sua meta-metodologia?
Essa nova bateria de questões (bem mais abrangente
que a anterior) ironicamente enseja a conclusão de que talvez o
repto historicista mais contundente a ser transposto pelo
142
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
falsificacionismo advenha não de seus clássicos adversários,
mas do próprio Popper, que precisa exibir a proficiência de
seu método de acordo com os seus próprios critérios metametodológicos de aceitação.
REFERÊNCIAS
AGASSI, Joseph. Towards an Historiography of Science. Middletown:
Wesleyan University Press, 1967.
KUHN, Thomas Samuel. The Structure of Scientific Revolutions (2nd
edition). Chicago: University of Chicago Press, 1970a.
_______. “Reflections on my critics”. In: LAKATOS, Imre e MUSGRAVE,
Alan (orgs.). Criticism and the Growth of Knowledge, p. 231-278.
Cambridge: Cambridge University Press, 1970b.
_______. The Road since ‘Structure’. Chicago: University of Chicago Press,
2000.
MUSGRAVE, Alan. “Logical versus Historical Theories of Confirmation”. In:
The British Journal for the Philosophy of Science, vol. 25, p. 1-23, 1974.
O’HEAR, Anthony. Karl Popper. London, Boston, Henley: Routledge e
Kegan Paul, 1980.
POPPER, Karl Raimund. “Autobiography of Karl Popper”. In: SCHILPP,
Paul Arthur (org.). The Philosophy of Karl Popper (vol.I), p. 1-181. La Salle:
Open Court, 1974a.
_______. “Replies to my Critics”. In: SCHILPP, Paul Arthur (org.). The
Philosophy of Karl Popper (vol.II), p. 959-1197. La Salle: Open Court, 1974b.
_______. Objective Knowledge: An Evolutionary Approach. Oxford:
Oxford University Press, 1979.
_______. “The Rationality of Scientific Revolutions”. In: HACKING, Ian
(org.). Scientific Revolutions, p. 80-106. Oxford: Oxford University Press,
1981.
143
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific
Knowledge. London, New York: Routledge, 1989.
_______. The Logic of Scientific Discovery. London, New York: Routledge,
1992.
_______. Realism and the Aim of Science. London, New York: Routledge,
2000.
SUPPE, Frederick. The Semantic Conception of Theories and Scientific
Realism. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1989.
144
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 8
AS RELAÇÕES ENTRE POPPER E KUHN
Elizabeth de Assis Dias
No presente estudo, pretendemos tratar das relações
entre dois eminentes filósofos da ciência do século passado,
Karl Popper e Thomas Kuhn. Esses filósofos tiveram a
oportunidade de confrontar seus pontos de vista acerca da
ciência e de seu progresso em um Seminário Internacional
sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres, em 1965.
Outros importantes filósofos da ciência, seguidores de Popper,
também contribuíram para o debate que teve como cerne das
controvérsias a concepção de ciência de Thomas Kuhn. Dentre
esses filósofos, destacam-se Imre Lakatos, Paul Feyerabend,
Stephen Toulmin e John Watkins. O debate foi reproduzido
em um livro intitulado A Crítica e o desenvolvimento do
conhecimento, organizado por Lakatos e Musgrave. Nosso
objetivo não é reconstruir o debate Popper-Kuhn em todas as
suas nuances, mas sim delinear pontos em comum entre eles
de modo a mostrar a proximidade de suas ideias, como
também destacar aspectos problemáticos sobre os quais eles
divergem. No nosso entender, Kuhn é um popperiano
heterodoxo, que tem a intenção de superar seu mestre, ao
pretender ter uma compreensão mais precisa da atividade
científica e de seu progresso, levando em consideração, em sua
análise do desenvolvimento científico, não apenas os aspectos
145
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
lógico-metodológicos, mas também, os aspectos históricos e os
psicossociais.
No seu artigo “Lógica da descoberta ou psicologia da
pesquisa?”, Kuhn se diz um admirador da obra de Popper e
considera difícil criticá-la (KUHN, 1979, p. 5). Declara que,
antes mesmo de ter publicado sua obra A Estrutura das
Revoluções científicas, já percebera “características especiais e
frequentemente enigmáticas” da relação entre suas ideias e as
de Popper. E reconhece certa similaridade entre seus pontos
de vista: “nossas opiniões sobre ciência são quase idênticas”
(KUHN, 1979, p. 6).
Essa similaridade de pontos de vista não é uma mera
coincidência, pois Kuhn assistiu, por diversas vezes,
conferências proferidas por Popper, em Harvard, em 1950, nas
quais este expôs suas principais ideias sobre a ciência como
“Conferencista William James”. Kuhn foi, inclusive, um dos
membros mais ativos e críticos dos seminários dos quais
participou. Haveria, então, uma dívida intelectual de Kuhn
para com Popper? Mas qual seria esse legado intelectual que
Popper teria lhe repassado? Ao se reportar a esta dívida,
Kuhn admite que ela existe, mas que, devido às circunstâncias
nas quais manteve contato com Popper, considera não ser
possível especificá-la. No nosso entender, é por reconhecer
essa dívida que Kuhn procura, em suas obras, sobrepor os
seus pontos de vista, acerca da ciência, aos de Popper, na
tentativa de mostrar, não só pontos de concordâncias entre
eles, mas também aspectos sobre os quais eles divergem e que
sua forma de abordá-los teria lhe possibilitado avanços
significativos com relação a Popper.
Mas, fazer uma comparação entre a concepção de
ciência de Kuhn e a de Popper, de modo a distinguir em que
pontos o filósofo norte-americano teria suplantado a tradição
epistemológica, em sua “nova filosofia da ciência”, não é tarefa
146
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
fácil. Stegmuller chama atenção para vários obstáculos que
esta tarefa envolve:
As tentativas feitas por Kuhn, objetivando separar sua
concepção da ciência natural de concepções tradicionais,
esbarram, naturalmente, em vários obstáculos; como ele
próprio reconhece, há exageros em muitos pontos
particulares; ênfase excessiva dada a certos aspectos, em
detrimento de outros; e alguns senões semelhantes aos que
são comuns nas concepções rivais que ele procura suplantar
(STEGMULLER, 1977, p. 370).
Consciente destas dificuldades, em nossa análise
daremos ênfase não só aos pontos de concordância e de
divergência, mas também aos aspectos que a concepção de
ambos foi mal-entendida, possibilitando leituras equivocadas
de suas posições.
Kuhn inicia seu artigo “Lógica da descoberta ou psicologia
da pesquisa?” relacionando os pontos de concordância com
Popper. Um primeiro aspecto diz respeito ao interesse maior
pelo processo dinâmico de aquisição do conhecimento
científico do que pela estrutura lógica das teorias científicas.
Em virtude desse interesse comum, ambos consideram como
dados legítimos, para compreender esse processo, os fatos da
vida científica real e a história da ciência. Esse
compartilhamento de dados os conduz a conclusões idênticas
em relação ao progresso científico: ambos se contrapõem à
ideia de que a ciência progride por acumulação; ambos
defendem uma concepção de progresso científico como
revolucionário e enfatizam o fracasso da teoria mais antiga na
evolução do conhecimento, ao ser confrontada com desafios
provenientes da lógica, da experimentação ou da observação
(KUHN, 1979, p. 6). No que diz respeito a este último aspecto,
referente aos testes das teorias, há divergências reais entre os
dois filósofos, e Kuhn parece querer superar as limitações da
147
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
concepção de seu mestre, com veremos, quando tratarmos das
divergências entre ambos.
Um segundo ponto de confluência de ideias entre os
dois filósofos diz respeito à oposição às teses do positivismo.
Ambos sustentam as inter-relações entre as observações e as
teorias científicas e se mostram contrários à ideia de uma
linguagem observacional neutra; ambos se declaram nãoindutivistas e negam a existência de regras para se inferir
teorias corretas tendo por base os fatos, não aceitando
tampouco que teorias corretas ou incorretas sejam obtidas a
partir do procedimento indutivo; finalmente, ambos
sustentam que os cientistas inventam suposições imaginativas
para explicar os fatos, ou melhor, recorrem ao método
hipotético-dedutivo para a descoberta de suas teorias (KUHN,
1979, p. 6).
Esses focos de preocupações comuns já nos permitem
ver Kuhn como um herdeiro do legado popperiano. Mas, a
atitude do filósofo norte-americano não é de apenas concordar
com Popper, pois ele pretende suplantá-lo. Em que aspectos
Kuhn teria dado um passo à frente de seu mestre? Qual seria a
“região periférica” das divergências entre eles a que Kuhn se
refere? É importante esclarecer que muitos aspectos referentes
às divergências entre os dois filósofos, que vieram à tona no
debate Popper-Kuhn, são frutos de mal-entendidos do
pensamento de ambos, que uma vez esclarecidos acabam por
atenuar ou até mesmo dissipar tais divergências.
Kuhn, reportando-se aos mal-entendidos, considera
que estes levaram a uma leitura distorcida de suas ideias e
ressalta a necessidade de que estes sejam esclarecidos até
mesmo para tornar visíveis as divergências entre ele e seus
críticos.
Estes mal-entendidos são todos danosos, não importando qual
seja minha responsabilidade por possibilitá-los. Posto que
ainda deixe uma profunda divisão entre mim e os meus
148
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
críticos, a eliminação dos mal-entendidos é indispensável até
para descobrir nossas divergências (KUHN, 1979, p. 321-322).
A acusação de ter um entendimento equivocado das
ideias do opositor é mútua. Popper, ao analisar uma crítica
feita por Kuhn, no que diz respeito ao caráter da prática
científica, considera que este não o entendeu ou o interpretou
mal por ter se aferrado a um trecho de sua obra que ele
supunha tratar-se de uma discordância entre ambos, não
tendo, com isto, percebido a concordância:
Kuhn cita com desaprovação um trecho do início do primeiro
capítulo do meu livro, The Logic of Scientific Discovery [...]. Ao
passo que o breve trecho citado por Kuhn poderá soar, fora do
contexto, como se eu não tivesse a par do fato, destacado por
ele, de que os cientistas desenvolvem necessariamente suas
ideias dentro de uma estrutura teórica definida, seu imediato
predecessor de 1934 soa quase como uma antecipação desse
ponto central da opinião de Kuhn (POPPER, 1979, p. 63).
Kuhn acusa Popper de ter ignorado um dos traços
característicos da atividade científica que a distingue das
demais, a saber: a existência de uma estrutura organizada de
suposições. Mas, Popper não nega a existência dessa estrutura.
Ele defende não só sua existência como, também, que esta
constitui um dos traços definidores da atividade científica,
antes mesmo do reconhecimento de Kuhn. No prefácio à
primeira edição da Lógica da pesquisa científica, de 1934, ao
distinguir o cientista do filósofo, Popper procura mostrar que
os dois estão em posições diferentes. O cientista conta sempre
com a existência de uma estrutura organizada de doutrinas já
existentes e com situações de problemas que são reconhecidas
como problemas nessa estrutura. Ao passo que o filósofo não
dispõe de uma “estrutura organizada”, mas apenas de “um
amontoado de ruínas, muito embora haja aí tesouros”
(POPPER, 1975 p. 23).
149
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Uma vez esclarecidos esses mal-entendidos, fica claro
que ambos comungam a ideia de que há uma estrutura
organizada no âmbito da ciência que fornece aos cientistas os
parâmetros que irão orientar suas pesquisas. O próprio Kuhn,
em artigo posterior (“Resposta a meus críticos”), reconhece que
um dos pontos de concordância entre eles diz respeito ao fato
acentuado por Popper de que “os cientistas desenvolvem
necessariamente suas ideias dentro de um referencial
comum”, de uma estrutura (KUHN, 1979, p. 299).
Kuhn, por sua vez, reportando-se à forma equivocada
da interpretação de suas ideias, observa que do debate travado
no Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência emergiu um
outro Kuhn, moldado a partir das leituras de sua obra feitas
por Popper, Lakatos, Toulmin, Watkins e Feyerabend. Este
outro Kuhn defende pontos de vistas que subvertem o
pensamento original do filósofo norte-americano.
Kuhn1 é o autor deste ensaio e do primeiro artigo deste
volume. Também publicou em 1962 um livro chamado “A
Estrutura das revoluções científicas” [...]. Kuhn2 é o autor de
outro livro com o mesmo título. [...]. O terem os dois livros o
mesmo título não será de todo acidental, pois os pontos de
vista que apresentam coincidem com frequência e, de
qualquer maneira, são expressos com as mesmas palavras.
Chego, porém, à conclusão de que suas preocupações centrais
são em geral muito diferentes. Segundo afirmam meus críticos
[...] Kuhn2, parece, em algumas ocasiões, defender pontos de
vista que subvertem aspectos essenciais da posição delineada
pelo seu homônimo (KUHN, 1979, p. 285-286).
Os pontos referentes aos mal-entendidos, com relação à
teoria da ciência de Kuhn, dizem respeito a três categorias:
método, ciência normal e natureza da mudança de uma
tradição científica normal para outra, bem como as técnicas
que se utiliza para se resolver os conflitos resultantes. Cada
uma dessas categorias ilustra, de certa forma, as dificuldades
150
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
do debate travado entre eles e os equívocos decorrentes dessas
questões.
O primeiro aspecto diz respeito às divergências quanto
aos procedimentos metodológicos: lógica versus história e
psicologia social. Kuhn, no que diz respeito a este aspecto, não
considera que haja propriamente uma diferença entre eles.
Afirma o filósofo: “Embora possamos diferir em nossos
padrões e diferimos seguramente no tocante a algumas
questões substanciais, dificilmente poderemos ser distinguidos
por nossos métodos” (KUHN, 1979, p. 287-288). E acrescenta:
“No tocante aos métodos, os que emprego não diferem
significativamente do método dos meus críticos popperianos”
(KUHN, 1979, p. 298).
Kuhn, tal como os outros filósofos da ciência de sua
época, valoriza os aspectos lógico-empíricos da atividade
científica, a reconstrução racional das teorias e a descoberta de
seus fundamentos. Seu objetivo é, também, ter uma
compreensão da ciência, das razões de sua eficácia, bem como
de seu status teórico. Mas, diferentemente dos demais filósofos
da ciência, sua análise da atividade científica vai da história da
ciência para a epistemologia. O seu olhar de historiador da
ciência lhe possibilitou ver que os “cânones metodológicos”
não são suficientes para definir a prática científica, pois muitos
cientistas, apesar de os violarem, conseguem ter êxito em suas
pesquisas. Sua pretensão não é a de descartar os aspectos
lógico-empíricos, defendidos pela tradição epistemológica,
como característicos da racionalidade científica, uma vez que,
de certa forma, determinam a aceitação ou rejeição de um
sistema teórico, mas, sim, ir além, complementando essa
abordagem com uma análise dos aspectos históricos e
psicossociais da atividade científica.
Reportando-se, mais especificamente, às críticas de
Popper, que afirma ser “surpreendente e decepcionante” o
fato de ele ter recorrido à sociologia, à psicologia e à história
151
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
com o propósito de esclarecer as metas da ciência e de seu
progresso, uma vez que essas ciências são “amiúde espúrias”,
não podendo assim, encontrar nelas uma “descrição pura,
objetiva”, Kuhn confessa não entendê-las, pois neste aspecto
parece não existir diferenças entre eles, já que o trabalho de
ambos não tem por base essas ciências. Kuhn levanta a
possibilidade de Popper estar duvidando da importância, para
a Filosofia da Ciência, de observações coligidas por
historiadores e por sociólogos. Nesse sentido, seria difícil
compreender o trabalho de Popper, pois ele tem uma posição
muito próxima à de Kuhn no que diz respeito à valorização da
história da ciência, recorrendo frequentemente a esta, em suas
obras, para ilustrar seus pontos de vista. Atribui a Popper ter
treinado uma legião de seguidores que valorizam a
historiografia da ciência, entre os quais ele próprio se inclui.
Um interesse sistemático pelos problemas históricos e uma
disposição para empenhar-se em pesquisas históricas originais
distinguem os homens que ele treinou dos membros de
qualquer outra escola atual de filosofia da ciência. Nesses
pontos me confesso popperiano impenitente (KUHN, 1979, p.
291).
Kuhn se revela aqui um popperiano convicto não só no
que diz respeito à valorização dos aspectos lógicometodológicos característicos da racionalidade científica, mas
também quanto à importância dada à história da ciência.
Muito embora existam desacordos explícitos entre os
dois filósofos quanto à existência de pesquisa de ciência
normal, parecem existir certos acordos implícitos entre eles.
Popper nega que a evolução da ciência obedeça à tipologia
estabelecida por Kuhn: períodos de ciência normal,
dominados por um paradigma, seguido de períodos de ciência
revolucionária. Mas, compartilha com ele a ideia de que as
revoluções científicas exigem a definição de novos referenciais
152
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ou de estruturas organizadas e que elas supõem a substituição
de uma estrutura por outra. Ora, sendo a ciência normal a
pesquisa que tem por base uma estrutura organizada, ela só
pode ser considerada como “o reverso de uma moeda cujo
anverso são as revoluções” (KUHN, 1979, p. 299). Então, se há
revoluções é porque existe a ciência normal. Nesse sentido,
estaria implícito nos trabalhos de Popper que a ciência normal
é corolário da existência de revoluções. E, por outro lado, as
revoluções, através da crítica, tal como Popper as defende,
exigiriam a ciência normal tanto quanto as revoluções, através
da crise, concebidas por Kuhn.
Outra categoria de mal-entendidos diz respeito à
natureza da mudança de uma tradição normal para outra e o
recurso à persuasão, nos debates sobre a escolha de teorias,
que levou os críticos de Kuhn a acusarem-no de
“irracionalismo e relativismo,” por entenderem que ele teria
proposto que nem a lógica, nem a observação, nem as boas
razões estão implicadas na escolha de teorias, sendo a verdade
completamente relativa. Popper, a este respeito, diz que
“Kuhn parece propor a tese de que a lógica tem pouco
interesse e nenhum poder explanatório para o historiador da
ciência” (POPPER, 1979, p. 68).
Mas, Kuhn não descartou a lógica e a observação, nem
tampouco sugeriu que não haja boas razões para a escolha de
uma teoria em detrimento de outra. O que ele sustenta é que
as boas razões, assim como a exatidão, a simplicidade, a
produtividade são valores que norteiam as escolhas e não
propriamente regras de escolha. Podendo ocorrer que
cientistas que compartilham boas razões façam escolhas
diferentes nas mesmas situações. Dois fatores determinariam
essas escolhas diferentes: o primeiro diz respeito ao fato de
que, em muitas situações concretas, valores diferentes
conduzem a conclusões e escolhas diferentes; o segundo diz
respeito ao compartilhamento de valores pelos cientistas, pois
153
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
muito embora eles tenham valores em comum ao desenvolver
sua prática, não os aplicam da mesma maneira. Valores como
simplicidade, alcance, produtividade, precisão podem ser
julgados diferentemente por pessoas distintas, e estas podem
diferir em suas conclusões, sem violarem regras aceitas.
Por outro lado, os cientistas muito embora partilhem
valores em seus campos de estudos, não podem escolher
qualquer teoria que lhes agrade justamente porque concordam
em suas escolhas e as põem em prática. A grande maioria dos
enigmas (puzzle solving)61 da ciência normal é ditada
diretamente pela natureza e todos envolvem indiretamente
esta. Portanto, não é possível impor arbitrariamente uma
teoria à natureza.
O relativismo de Kuhn, na interpretação de seus
opositores, estaria relacionado à tese de que a prática científica
pressupõe uma estrutura organizada, um referencial, que é
compartilhado por todo o grupo de praticantes de uma
ciência. Este referencial comum que norteia esta prática
implicaria na existência de uma linguagem e de um conjunto
de suposições comuns. De acordo com este ponto de vista, a
comunicação e o entendimento, bem como a discussão crítica,
seriam impossíveis entre os praticantes de uma determinada
especialidade científica que não partilhasse os mesmos
referenciais. A mudança de referencial, ou de teoria, implicaria
na conversão do grupo de praticantes de uma ciência a uma
nova teoria ou a um novo referencial.
Opondo-se a essa forma de conceber o progresso
científico, por não ver nela regras lógicas que nos permitam
decidir sobre a superioridade de uma teoria em relação à sua
antecessora, Popper acusa Kuhn de estar comprometido com o
mito do referencial comum, que pode ser assim enunciado:
61 Para facilitar a leitura deste capítulo, evitamos as repetições da expressão inglesa
puzzle solving que se vincula, aqui, ao conceito de enigmas. O uso do itálico ajudará o
leitor a se recordar deste sentido que o termo assume. [Nota do organizador].
154
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A existência de uma discussão racional e produtiva é
impossível, a menos que os participantes partilhem um
contexto comum de pressupostos básicos, pelo menos tenham
acordado em semelhante contexto em vista da discussão
(POPPER, 1999, p. 57).
Muito embora Popper concorde que os cientistas
desenvolvem suas pesquisas no âmbito de uma estrutura
organizada, de um referencial, ele não aceita a impossibilidade
da discussão crítica e uma comparação entre referenciais
divergentes, pois em sua perspectiva estes não são
intraduzíveis, conforme advoga Kuhn.
Em sua resposta à acusação de relativismo, Kuhn
admite dois sentidos em que este termo pode ser atribuído à
sua posição. O primeiro diz respeito ao fato de ele negar a tese
de que a ciência progride de acordo com critérios objetivos.
Para responder a essa acusação, Kuhn recorre à metáfora da
árvore evolutiva. De acordo com essa imagem, o
desenvolvimento das diferentes especialidades científicas é
um processo evolucionário que tem uma origem comum na
filosofia natural primitiva. As teorias científicas, ao longo
desse desenvolvimento, relacionam-se entre si por
descendência. Se analisarmos duas teorias não muito próximas
da origem, poderemos determinar qual é a mais velha e a sua
descendente, levando em conta critérios tais como: “precisão
de predições, graus de especializações e número de soluções
de problemas concretos” (KUHN, 1979, p. 326). O
desenvolvimento científico seria assim, “unidirecional e
irreversível,” e, no decorrer desse processo evolutivo, seria
possível determinar o nível de desenvolvimento das teorias. A
mais desenvolvida seria aquela que atingisse melhores níveis
de precisão, especialização e de solução de problemas. Nesse
sentido, Kuhn parece concordar com Popper a respeito de um
progresso genuíno no âmbito da ciência e não simplesmente
155
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
uma mera substituição de um paradigma por outro. De acordo
com seus critérios, o novo paradigma é objetivamente superior
a seu predecessor. Essa posição, defendida por Kuhn, o
distanciaria do relativismo histórico de que é acusado de
defender.
Mas há um segundo sentido, referente ao termo
relativismo, que se atribui a Kuhn, relacionado aos contextos
em que ele se mostra cauteloso com relação à aplicação do
conceito de verdade. O emprego deste conceito, tal como é
pensado por Kuhn, em contextos intra-teóricos, não parece ser
problemático, pois no que diz respeito às consequências de
uma teoria, compartilhada por membros de uma comunidade
científica, existe concordância entre eles sobre as teorias que
foram capazes de suportar o teste da experiência e que,
portanto, são verdadeiras, e as que não foram bem sucedidas
nos testes, e que por isso são falsas.
Mas, o conceito de verdade é empregado com certa
cautela quando se trata de comparar teorias que pretendem
explicar a mesma extensão de fenômenos naturais. Diz Kuhn:
Quando se trata de teorias históricas [...] posso dizer com Sir
Karl que cada uma delas foi dada por verdade em sua época e
depois posta de lado por falsa. De mais a mais, posso dizer
que a teoria mais recente é a melhor das duas como
instrumento para a prática da ciência normal [...]. Podendo
chegar a esse ponto, não me sinto relativista (KUHN, 1979, p.
326-327).
Assim, quando analisa as teorias sob a perspectiva de
seu progresso, Kuhn compartilha com Popper a ideia de que,
em um determinado momento da história de uma ciência,
mesmo quando uma teoria é reconhecida como verdadeira
pode, posteriormente, com o advento de uma melhor, ser
colocada de lado como falsa. Kuhn não afirma, assim, a
relatividade da verdade aos períodos históricos, mas sim,
156
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
condiciona a verdade ou a falsidade das teorias à evolução do
conhecimento. Enfim, ao progresso científico.
Muito embora Kuhn concorde com Popper neste
aspecto, rejeita a noção de verdade como correspondência,
bem como a ideia de verossimilhança defendida por Popper.
Não obstante, há outro passo, ou espécie de passo, que muitos
filósofos da ciência desejam dar e que eu recuso. Eles desejam
comparar teorias como representações da natureza, como
enunciados sobre “o que há realmente lá fora”. Admitindo-se
que nenhuma teoria de um par histórico é verdadeira, eles
procuram, apesar disso, um sentido em que a mais recente
está mais perto da verdade. Acredito que nada disso existe
(KUHN, 1979, p. 327).
Kuhn não compartilha com Popper o seu realismo
científico, que considera a ciência como representação de um
mundo real, de uma realidade objetiva. Não vê os casos de
mudança de teoria, no âmbito da história da ciência, como
uma tentativa de aproximação da verdade.
Esclarecidos esses mal-entendidos entre os dois
filósofos, caberia indagar em que aspectos suas concepções se
distanciam. Em que aspectos Kuhn teria tentado suplantar
Popper? Onde estaria o foco de suas divergências?
Muito embora os dois filósofos defendam que a ciência
se desenvolve por um processo não-cumulativo, no qual uma
determinada estrutura teórica é substituída por outra,
divergem entre si sobre os mecanismos e a extensão destas
mudanças, na medida em que elas envolvem maneiras
distintas de se conceber a prática científica. Para Popper, esta
prática se desenvolve dentro de uma tradição crítica, que
procura submeter a testes as teorias e falseá-las. Para Kuhn,
essa prática realiza-se em dois momentos: no âmbito da
ciência normal, que tem como tradição a solução de enigmas;
no âmbito da ciência extraordinária, que desenvolve pesquisas
157
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
na tentativa de solucionar anomalias não resolvidas pela
ciência normal.
Kuhn resumiu a dois aspectos os pontos sobre os quais
a sua discordância com o filósofo austríaco é mais explícita: “a
ênfase que dou à importância de um compromisso profundo
com a tradição e meu descontentamento com as implicações
do termo falseamento” (KUHN, 1979, p. 7). Para analisar as
divergências entre os dois filósofos, tomaremos esses dois
aspectos como pontos centrais.
Quanto ao primeiro, muito embora ambos valorizem a
tradição e considerem que esta desempenha um papel
essencial no desenvolvimento científico, eles concebem de
forma diversa a natureza e o papel da tradição na prática
científica. Para Popper, esta tradição tem o papel de crítica, de
debate das teorias produzidas de modo a garantir a
objetividade do conhecimento. O cientista deve ser ao mesmo
tempo um crítico e um proliferador de teorias alternativas.
Os cientistas que exercitam a crítica estão empenhados
em refutar a teoria ou, pelo menos, pretendem mostrar que ela
não foi capaz de resolver o problema que pretendia resolver.
Na discussão crítica, avaliam-se os méritos e os pontos fracos
de duas ou mais teorias comparativamente. Os méritos de
uma teoria dizem respeito ao seu poder explicativo, à sua
capacidade de resolver problemas e de explicar os fatos, à sua
consistência com outras teorias e à sua capacidade de lançar
luz sobre velhos problemas e de sugerir problemas novos. O
principal ponto fraco está relacionado à sua inconsistência,
inclusive com relação a resultados de experiências que outras
teorias concorrentes conseguem explicar.
A origem dessa tradição de discussão crítica de teorias
remonta aos primeiros filósofos gregos, mais precisamente à
Escola Jônica. Tales teria fundado essa tradição baseado em
um novo relacionamento entre mestre e aluno, por não só
tolerar a crítica de seus discípulos, como também por
158
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
estimulá-la. Esta tradição de discussão crítica constitui o único
meio praticável de expansão do conhecimento. Assim, a
mudança de teorias e o progresso científico ocorrem através
do processo de crítica das teorias produzidas e a consequente
substituição das que fracassam em suas pretensões.
Na perspectiva de Kuhn, a descrição de Popper da
tradição crítica, onde “razões, contra-razões e debates sobre
questões fundamentais” (KUHN, 1979, p. 12) são travados, é
muito bem feita, mas em nada se assemelha com a prática da
ciência. Caracterizaria mais propriamente a Filosofia e boa
parte das Ciências Sociais, nas quais não há enigmas a serem
solucionados, pois, “é precisamente o abandono do discurso
crítico que assinala a transição para uma ciência” (KUHN,
1979, p. 11). Trata-se do momento em que um determinado
campo de estudo atinge sua maturidade ao instaurar-se a
pesquisa de ciência normal e com ela uma tradição de solução
de enigmas. Para que esse campo de estudo conquiste este
estágio de desenvolvimento, faz-se necessário que adquira
uma estrutura organizada ou um paradigma (teorias, técnicas,
valores, etc.) para nortear a sua prática. Essas teorias e técnicas
que compõem o paradigma devem satisfazer às seguintes
condições:
Em primeiro lugar, o critério de demarcação de Sirl Karl, sem
o qual nenhum campo é potencialmente uma ciência: para
certas classes de fenômenos naturais as predições concretas
terão de emergir da prática do campo. Em segundo lugar,
para algumas subclasses interessantes de fenômenos, o que
quer que passe por sucesso preditivo deve ser
sistematicamente alcançado [...]. Em terceiro lugar, as técnicas
preditivas precisam ter raízes numa teoria que, embora
metafísica, simultaneamente as justifique, explique seu
sucesso limitado e sugira meios para melhorá-los não só na
precisão mas também no alcance. Finalmente, o
aprimoramento da técnica preditiva precisa ser uma tarefa
desafiadora, que exige em certas ocasiões a mais alta dose de
talento e devoção (KUHN, 1979, p. 303).
159
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
O cientista, de posse de uma boa teoria, que satisfaz
todos esses requisitos, desenvolve pesquisas de ciência normal
com o objetivo de ampliar a esfera de ação da teoria, de
precisar a teoria e a experiência existentes, bem como de
melhorar o ajuste entre elas. Sua pretensão é também a de
eliminar conflitos entre as diferentes teorias empregadas em
sua prática e entre as formas de se usar uma única teoria em
diferentes aplicações. Nesse estágio, não há lugar para a crítica
e para a proliferação de teorias. Há uma espécie de fé do
cientista na teoria que norteia suas pesquisas. O discurso
crítico só se apresenta em momentos de crise, quando o
paradigma se mostra incapaz de solucionar determinados
enigmas.
O segundo ponto de discordância entre os dois
filósofos diz respeito aos testes das teorias. Kuhn destaca três
aspectos concernentes aos testes sobre os quais ele diverge da
posição de Popper: o que está sendo testado, o momento em
que o teste deverá ocorrer e a sua natureza.
Na análise popperiana da prática científica, o cientista,
ao se defrontar com problemas, formula enunciados ou
sistemas de enunciados para solucioná-los. No caso das
ciências empíricas, propõe hipóteses ou sistemas de teorias e
testa-os confrontando-os com a experiência. Este teste não visa
confirmar a teoria, mas antes se constitui em uma tentativa
séria de falseá-la ou refutá-la, não importando qual o elemento
que esteja sendo testado. Todo conhecimento, embora testado,
não deixa de ser falível, e mesmo conjectural.
No que diz respeito a esse aspecto, Kuhn critica Popper
por não ter especificado o elemento teórico que deverá ser
testado: se a teoria ou os enunciados. Os testes no âmbito da
ciência normal não são dirigidos à teoria corrente, pois esta
funciona como uma “espécie de regra do jogo” (KUHN, 1979,
p. 9), que norteia a prática científica, já que o objetivo do
160
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
cientista é resolver os enigmas de ciência normal. A teoria se
mostra fundamental não só para definir os enigmas, mas
também para assegurar a possibilidade de solucioná-lo, se o
cientista for suficientemente talentoso.
O que é testado no âmbito da ciência normal são as
conjecturas pessoais dos cientistas no sentido de equacionar o
enigma (puzzle solving). Se as suas conjecturas passarem no
teste, então, é sinal de que ele fez uma descoberta ou resolveu
o enigma (puzzle solving) para o qual buscava solução. Caso
seja mal sucedido, terá de deixar de lado o enigma (puzzle
solving), ou então, buscar uma nova hipótese. Kuhn admite
assim que, no âmbito da ciência normal, há dois tipos de
enunciados ou teorias: um que diz respeito à estrutura
organizada que norteia a prática da ciência normal; e outro
referente às hipóteses do cientista, em sua tentativa de
solucionar o enigma (puzzle solving). O teste só se aplica à
capacidade do cientista de conjecturar soluções para os
problemas de ciência normal e não propriamente à teoria.
É evidente que quem se propõe a um tal empreendimento
precisa testar com frequência a solução conjectural do enigma
que seu engenho lhe sugere. Mas só é testada a sua conjectura
pessoal. Se ela não passar pelo teste, só se impugna a
capacidade do cientista e não o corpo da ciência corrente. Em
suma, conquanto ocorram com frequência na ciência normal,
esses testes são de um gênero peculiar, pois na análise final, é
o cientista e não a teoria vigente que se põe à prova (KUHN,
1979, p. 10).
O outro aspecto criticado por Kuhn diz respeito ao
momento em que ocorrem os testes das teorias, uma vez que,
em sua concepção, a prática científica se desenvolve em dois
momentos distintos: o da pesquisa de ciência normal e o da
pesquisa revolucionária.
Os testes, tal como são concebidos por Popper, se
apresentam no decorrer do desenvolvimento científico, ao
161
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
visar à exploração das limitações da teoria e à revelação dos
seus pontos fracos, ao submetê-la a provas severas. Para que
uma teoria nova seja considerada um avanço com relação à
sua antecessora, ela deve ser confrontada com esta e conduzir
pelo menos a algum resultado conflituoso. Do ponto de vista
lógico, significa dizer que a nova teoria deve contradizer sua
antecessora, isto é, deve derrubá-la. Nesse sentido, a
substituição de uma teria por outra é sempre um processo
revolucionário.
Esse tipo de teste, considerado como clássico por Kuhn,
só ocorre raramente, nos momentos da prática científica
revolucionária, onde os compromissos básicos de um
determinado campo de estudo estão sendo testados. Mas, para
que tal ocorra, faz-se necessário que a pesquisa normal revele
os aspectos que devem ser testados e a maneira pela qual eles
serão testados. Assim, Popper teria caracterizado toda a
prática científica levando em conta um determinado tipo de
situação, os testes empíricos, que só se apresentam em
momentos revolucionários ocasionais (KUHN, 1979, p. 11).
Olhando a questão dos testes sob a perspectiva da
história da ciência, Kuhn observa que muitos exemplos,
citados por Popper, ilustram o que de fato ocorre. Mas, tais
situações são raras e só ocorrem de tempos em tempos, sendo
possível encontrar teorias, no âmbito da história da ciência,
que foram substituídas por outras sem antes terem sido
testadas. Este é, por exemplo, o caso da teoria de Ptolomeu,
citado por Popper. Kuhn conclui que, em algumas ocasiões, os
testes não são essenciais às revoluções. No âmbito da ciência
normal, esta situação é completamente diferente, pois uma
teoria só é substituída por outra se ela deixar de sustentar uma
tradição de solução de enigmas. E é esta tradição que, tendo
consciência do funcionamento defeituoso da teoria, estabelece
as condições para sua substituição.
162
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Esses pontos de divergências de Kuhn em relação a
Popper, acerca dos testes das teorias, têm como pano de fundo
a existência da ciência normal, vista como o momento de
pesquisa estável, que é ignorada ou considerada de pouca
importância por Popper. No âmbito desta não ocorre o tipo de
teste proposto por Popper, uma vez que os compromissos
teóricos do grupo não estão sendo avaliados.
A tentativa de Kuhn é de suplantar certos problemas
que a maneira de Popper conceber a prática científica os trás à
tona, ao considerar que a crítica é uma atitude permanente na
produção do conhecimento científico. Deste modo, as teorias
científicas estariam sempre em crise, sujeitas a serem
constantemente derrubadas e substituídas por outras, uma vez
que não há momentos de estabilidade teórica e de possível
defesa de uma teoria. Kuhn, ao distinguir os momentos de
pesquisa normal e de pesquisa revolucionária, deixa claro que,
no decorrer do desenvolvimento científico, há momentos de
pesquisa convergente nos quais segue-se uma determinada
tradição e, por outro lado, momentos revolucionários, em que
esta tradição entra em crise e é substituída por outra.
Mas, o cerne da discórdia entre os dois filósofos diz
respeito à natureza do falseamento ou refutação das teorias. A
posição de Popper tem seus pilares em uma assimetria entre
verificabilidade e falseabilidade, de modo que uma teoria
jamais poderá ser verificada por um determinado número de
fatos particulares, mas poderá ser falseada por estes.
Essa assimetria se torna possível porque Popper tem
por base as inferências puramente dedutivas da lógica
tradicional e, utilizando-se do modus tollens, pode concluir pela
falsidade de enunciados universais a partir da verdade de
enunciados singulares. Assim, se aceitamos um enunciado
singular que esteja em contradição com a teoria que estamos
tentando testar, essa deverá ser rejeitada, por ter sido falseada.
163
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Mas isso não significa que essa teoria tenha sido verificada,
pois não é possível a verificação de teorias ou leis universais.
Divergindo da posição de Popper, Kuhn defende a
ideia de que, no âmbito da prática científica, uma teoria não é
substituída por outra só porque uma situação particular a
contradiz, ou porque a teoria não se aplica a ela. Pois, entende
que é contestando observações e ajustando teorias que o
conhecimento científico progride.
Todas as experiências podem ser contestadas, quer quanto à
relevância, quer quanto à exatidão. Todas as teorias podem ser
modificadas por uma variedade de ajustamentos ad hoc sem
com isso deixar de ser, em suas linhas gerais, as mesmas
teorias (KUHN, 1979, p. 20).
O falseamento não é, assim, condição suficiente para a
rejeição de teorias, pois o que geralmente ocorre no âmbito da
pesquisa de ciência normal, quando há um aparente fracasso
da teoria, é a contestação da experiência falseadora e o
ajustamento da teoria. O recurso a hipóteses ad hoc, no sentido
de corrigir uma teoria de modo a evitar o falseamento é uma
atitude que Popper reprova, mas que Kuhn considera como
uma prática corrente no âmbito da ciência normal. Ao invés
dos cientistas rejeitarem uma teoria por existir um enunciado
que a contradiz, todo o esforço deles é o de salvar a teoria,
fazendo os ajustes necessários de modo a eliminar a
contradição e a evitar, assim, o falseamento da mesma.
A crítica de Kuhn com relação ao falseamento de uma
teoria diz respeito ainda, ao modo como este deverá ser
realizado pelos cientistas, pois, muito embora Popper tenha
rejeitado a refutação concludente de uma teoria, por
considerar que os resultados experimentais possam ser
questionados, ele não teria proposto uma alternativa para esta,
na medida em que não esclarece como o cientista relacionaria
sentenças derivadas de uma teoria (pertencentes ao campo da
164
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
lógica) com observações e experiências reais (provenientes do
âmbito factual).
Popper, reportando-se às críticas de Kuhn sobre esse
aspecto, qualifica como “lenda” a ideia de que Kuhn teria
mostrado que seu falseacionismo pode ser refutado pelos
fatos, ou seja, pela história da ciência, pois não considera que
ele tenha tido tal pretensão, uma vez que, em relação ao
falseacionismo, não vê grandes diferenças entre seu ponto de
vista e o dele:
Mas a respeito quer da falseabilidade, quer da impossibilidade
de haver provas terminantes de falsificação, e do papel que
estas desempenham na história das ciências e das revoluções
científicas, não me parece que haja qualquer diferença
significativa entre Kuhn e eu (POPPER, 1987, p. 30).
O filósofo cita, inclusive, uma passagem da obra A
Revolução Copernicana, na qual não só Kuhn “aceita na prática”
os seus pontos de vista sobre o caráter revolucionário da
evolução das ciências, como parece seguir de perto seu
falseacionismo:
Mas o cientista paga um certo preço pelo seu
comprometimento [...]. Uma simples observação que seja
incompatível com a sua teoria pode demonstrar que tem
estado a usar uma teoria errada o tempo todo. O seu esquema
conceptual tem então de ser abandonado e substituído
(KUHN, 1990 in POPPER, 1987, p. 31).
Em outra passagem da mesma obra, ao apresentar um
“resumo útil” da lógica de uma revolução científica, Kuhn
reforça novamente a ideia de que a revolução ocorre devido ao
falseamento de teorias, ou seja, é fruto da “incompatibilidade
entre teoria e observação”.
A forma como Kuhn descreve a atitude falseacionista é
criticada por Popper por considerá-la uma simplificação de
165
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
suas ideias, pois considera ser impossível produzir uma
refutação indiscutível de uma teoria empírica com base na
observação. Muito embora Kuhn concorde com ele, continua a
acusá-lo de “falsificacionista ingênuo”. É claro que o conceito
de falseamento de Popper apresenta problemas, conforme
Lakatos teve oportunidade de mostrar, mas Kuhn não
conseguiu perceber a sutileza das questões envolvidas com
este conceito. Sua pretensão não é a de negar todo e qualquer
processo de falseamento das teorias, mas mostrar suas
dificuldades.
No decorrer deste estudo, tivemos oportunidade de
mostrar a existência de focos de preocupações comuns entre
Popper e Kuhn, que nos permitem situar a ambos como
membros de um grupo seleto de filósofos da ciência
contemporânea. Mas, as relações entre ambos não se esgotam
nos pontos em que ambos compartilham. Em nosso entender,
Kuhn é o grande herdeiro do legado popperiano, que, ao
contrário dos outros discípulos que mantiveram-se fiel ao
falseacionismo de Popper, viu nele problemas e procurou
superá-los. Kuhn é um popperiano não-ortodoxo, pois embora
tenha conservado em sua teoria da ciência vários aspectos com
os quais comunga com Popper, não teve o pudor de introduzir
elementos novos e de abandonar aspectos problemáticos da
teoria de seu mestre, em sua tentativa de dar um passo à
frente. Por isso, não segue fielmente o falseacionismo de
Popper, já que não vê nele o único traço característico da
atividade científica, ao reconhecer a existência de novos
elementos que complementam a lógica da pesquisa científica
proposta pelo filósofo austríaco. Esses elementos dizem
respeito aos aspectos históricos e psicossociais da atividade
científica.
A ciência é vista por Kuhn como produto de uma
comunidade de especialistas e, para explicar o seu
desenvolvimento científico, julga necessário examinar não só
166
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
os cânones lógico-metodológicos que fundamentam suas
teorias, mas também a natureza do grupo científico, a
educação que recebeu, os valores que compartilha, além dos
que tolera e que desdenha.
REFERÊNCIAS
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1975.
_______. “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?”. In: LAKATOS,
I. e MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento:
quarto volume da atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da ciência,
realizado em Londres, em 1965. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 5-32.
_______. “Reflexões sobre meus críticos”. In: LAKATOS, I. e MUSGRAVE,
A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento: quarto volume da atas
do Colóquio Internacional sobre Filosofia da ciência, realizado em Londres,
em 1965. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 285-343.
_______. “Reconsiderações acerca dos paradigmas”. In: A tensão essencial.
Lisboa: Edições 70, 1989.
_______. A revolução copernicana. Lisboa: Edições 70, 1990.
LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do
conhecimento. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979.
POPPER, Karl. “A ciência normal e seus perigos”. In: LAKATOS, I. e
MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento, quarto
volume da atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da ciência,
realizado em Londres, em 1965. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 33-48.
_______. A Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
_______. O realismo e o objectivo da ciência: 1º volume do Pós-escrito à
Lógica da Descoberta Científica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.
167
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. O mito do contexto: Em defesa da ciência e da racionalidade.
Lisboa: Edições 70, 1999.
_______. Conjecturas e refutações: pensamento científico. Brasília: Ed. da
UnB, 1982.
STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. São Paulo: EPU,
1977, vol. 2.
WORRAL, John. “Normal Science and dogmatism, paradigms and progress:
Kuhn versus Popper and Lakatos”. In: Contemporary Philosophy in focus.
Edited by Thomas Nickles, Cambridge University Press, 2003, p. 65-100.
VALLE, Bortolo e OLIVEIRA, Paulo Eduardo de. Introdução ao
pensamento de Karl Popper. Curitiba: Champagnat, 2010.
168
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 9
VERDADE E VEROSSIMILHANÇA NA EPISTEMOLOGIA
DE POPPER
Gelson Liston
São muitas as formas de abordagem da epistemologia
crítica de Karl Popper. Pretendemos, neste capítulo, discutir os
conceitos de verdade e verossimilhança enquanto ideias centrais
do método de conjecturas e refutações: o método de formular
teorias e submetê-las criticamente a provas, selecionando-as de
acordo com o desempenho alcançado. Para tanto, faremos
uma apresentação, ainda que breve, a título de introdução, do
critério de demarcação do discurso empírico científico. A
demarcação é um problema central da filosofia da ciência de
Popper. Trata-se do seu interesse em proporcionar um
adequado critério que possibilite analisar o método e o
desenvolvimento racional da ciência empírica, traçando uma
linha demarcatória entre ciência e não-ciência. Em nossa
análise, a demarcação deve ser vista como um problema lógico
e metodológico; um problema que envolve os procedimentos
da investigação científica.
O falseacionismo é o critério que permite a
demarcação, pois, de posse deste critério, podemos avaliar a
cientificidade de uma teoria na medida em que ela faz
asserções sobre o ‘mundo’ e tais asserções podem colidir com a
‘realidade’, podendo, portanto, ser refutada com base na
experiência. Mais precisamente, uma teoria é científica quando
faz afirmações que proíbem determinados eventos
169
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
(falseadores potenciais), cuja ocorrência permite seu
falseamento. O critério popperiano de falseabilidade sustentase no método dedutivo de prova – um procedimento crítico
para testar e selecionar hipóteses a partir de seu conteúdo
informativo. As hipóteses, por sua vez, podem ser refutadas
ou corroboradas pela experiência. Quanto às hipóteses cujas
decisões forem positivas, porque resistiram a severos testes,
estas permanecem aceitas apenas temporariamente, até que
novos testes surjam e, com eles, mantenha-se a possibilidade
de serem refutadas. Uma teoria (ou sistema teórico), segundo
Popper (1995, p. 32), deve ser logicamente consistente; ser
empírica (não tautológica) e ser passível de comparação com
outras teorias, pois ela deve representar avanço científico.
Após tal exame, a teoria é submetida a testes empíricos,
realizados a partir do confronto dos enunciados logicamente
deduzidos (predições) com os enunciados metodologicamente
aceitos.
A preocupação de Popper em demarcar o campo do
discurso científico, eliminando dele as hipóteses consideradas
não-falseáveis, demonstra um interesse eminentemente
epistemológico, pois, através do critério falseacionista, Popper
enfrenta o problema da indução que, segundo ele, ameaçava a
racionalidade dos procedimentos de investigação científica.
Sobre isso, Popper afirma que “encontrar um critério aceitável
de demarcação deve ser uma tarefa crucial para qualquer
epistemologia que não aceita a lógica indutiva” (POPPER,
1995, p. 35). Deste modo, a falseabilidade, enquanto critério de
demarcação, é uma questão lógica: “tem a ver somente com a
estrutura lógica de enunciados e de classes de enunciados”
(POPPER, 1992, p. xx). Assim, um enunciado (ou uma teoria) é
classificado como falseável e, consequentemente, como
científico se, e somente se, existir ao menos um falseador
potencial que descreva um acontecimento (observações
possíveis) que seja logicamente inconsistente com ele.
170
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Dada a noção lógica de falseabilidade, devemos fazer
uma distinção entre falseabilidade e falseamento. A
falseabilidade é a possibilidade ou capacidade lógica de uma
teoria entrar em conflito com os enunciados básicos e,
portanto, de ser falseada. O falseamento é um fato, uma
consequência deste conflito. Contudo, o falseamento, na
epistemologia popperiana, não pode ser uma simples
consequência lógica, conforme a definição dada, pois envolve
dificuldades
que
exigem
regras
metodológicas
imprescindíveis. No empreendimento científico da proposta
popperiana, o falseamento é uma decisão e, como tal, depende
de regras metodológicas determinadas pelo contexto da
pragmática da investigação científica.
É neste contexto de investigação que passamos a
analisar os conceitos de corroboração e de verossimilhança
enquanto constituintes fundamentais da epistemologia
falseacionista de Karl Popper. O primeiro se refere ao
desempenho e resistência de uma teoria frente à imposição de
rigorosos e constantes testes. O segundo está relacionado com
a definição de verdade enquanto ideia reguladora que motiva
a busca constante de leis universais verdadeiras. Contudo, a
busca de teorias mais próximas da verdade ou mais
satisfatórias envolve a necessidade de um confronto direto
entre teorias. Neste confronto, temos o exame crítico de teorias
– uma tentativa de teste e, consequentemente, de refutação. A
escolha entre teorias competidoras tem como referencial a
expansão do conhecimento e aproximação da verdade. Assim,
a teoria corroborada (teoria que resistiu) representa um avanço
em relação à teoria refutada, uma vez que os testes são sempre
cruciais.
Uma hipótese é corroborada toda vez que submetida a
teste for capaz de resistir e manter-se no jogo científico. Tratase, portanto, da resistência diante de rigorosos testes, cujo
objetivo é o falseamento. A severidade destes testes determina
171
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
em que medida uma teoria é corroborada. Assim, podemos
falar de maior ou menor grau de corroboração entre duas
teorias concorrentes na medida em que estas são submetidas
aos mesmos testes, sendo que uma delas resiste aos testes que
falseiam a outra.
Ao apreciar o grau de corroboração de uma teoria,
Popper refere-se à relação lógica entre teoria e enunciados
básicos aceitos (enunciados de teste), segundo a qual o grau de
corroboração aumenta conforme o número de instâncias
corroboradoras. Deste modo, quanto maior for o grau de
universalidade de uma teoria, maior será sua testabilidade,
podendo aumentar o grau de corroboração. Neste caso, o grau
de universalidade de uma teoria T1 é atribuído em relação a
outra teoria T2. Esta relação pode ser explicada da seguinte
forma:
Considerem-se as seguintes hipóteses;
(1) Todo metal quando aquecido se dilata.
(2) Todo cobre quando aquecido se dilata.
Comparando os dois enunciados acima, podemos ter
uma ideia dos conceitos de grau de universalidade e grau de
falseabilidade. Estes enunciados possibilitam uma comparação
a partir das relações de subclasses, ou seja, o enunciado (1)
possui um grau maior de universalidade e de falseabilidade
porque sua classe não-vazia de falseadores potenciais inclui a
classe não-vazia dos falseadores potenciais do enunciado (2)
como sua subclasse. O conteúdo informativo da hipótese (1) é
maior, o que pode ser visto ao compararmos as respectivas
classes de falseadores potenciais, pois qualquer enunciado que
falsear (2), falseará necessariamente (1). Contudo, o contrário
não é verdadeiro.
Segundo Popper (1992, p. 134), o objetivo da ciência é
“avançar para teorias de conteúdo cada vez mais rico, teorias
172
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
com um grau cada vez mais elevado de universalidade, e com
um grau cada vez maior de precisão”. Tal busca está de acordo
com outro objetivo da ciência que é o de encontrar explicações
satisfatórias, isto porque uma explicação (causal) se dá a partir
de leis, rigorosamente testadas, e de condições iniciais. As
refutações são de fundamental importância na medida que
impulsionam o avanço rumo a melhores explicações.
A testabilidade de uma teoria está estreitamente
relacionada ao seu conteúdo empírico. Assim, quanto maior
for o conteúdo de uma teoria, maior será sua testabilidade e,
consequentemente, a falseabilidade aumenta, diminuindo a
probabilidade, já que o conjunto de falseadores potenciais é
maior.
A consideração de Popper é a seguinte:
Caracteriza-se como preferível a teoria que nos diz mais – isto
é, a teoria que contém mais informação empírica, ou conteúdo;
que é logicamente mais forte; que tem maior capacidade
explicativa e poder de previsão; e que, portanto, pode ser
testada mais rigorosamente, pela comparação dos fatos
previstos com observações. Em resumo, preferimos as teorias
interessantes, ousadas e altamente informativas às que são
triviais (POPPER, 1994, p. 243).
O progresso através de refutações tem como
pressuposto a ideia de verossimilhança. Deste modo, a teoria
aceita deve manifestar um grau maior de corroboração em
relação à teoria falseada, representando uma maior
aproximação à verdade. Conforme a metodologia popperiana,
também podemos afirmar que uma teoria pode ser preferível
em relação à sua concorrente antes mesmo de serem testadas,
com base apenas na relação de conteúdo, pois o conteúdo
determina a testabilidade e esta, por sua vez, é um fator de
escolha.
Ao tratarmos da escolha racional de teorias em conflito
a partir da noção de grau de corroboração, devemos fazer uma
173
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
importante distinção entre corroboração e verossimilhança.
Em primeiro lugar, devemos dizer que o conceito de
corroboração não pode ser identificado com o conceito de
verdade. Portanto, o grau de corroboração não pode ser
tomado como medida de verossimilhança de uma teoria, ou
seja, a corroboração não é um valor verdade, pois depende de
um momento no tempo. O alto grau de corroboração de uma
teoria não representa, por si só, uma maior aproximação da
verdade. A corroboração é uma apreciação lógica que resulta
da relação entre uma teoria ou sistema teórico e um conjunto
de enunciados básicos aceitos em um determinado ponto no
tempo (cf. POPPER, 1995, p. 275). O que está em jogo, neste
caso, é o desempenho da teoria e não o valor de verdade que,
por sua vez, é atemporal.
A distinção entre corroboração e verossimilhança é
apresentada, por Karl Popper, da seguinte forma:
O grau de verossimilhança objetiva precisa também ser
distinguido claramente do grau de corroboração; o grau de
verossimilhança de uma teoria, como a ideia da verdade, é
atemporal, embora difira desta por ser relativa. O grau de
corroboração de uma teoria depende essencialmente do
tempo, sendo um conceito histórico (POPPER, 1994, p. 439).
A noção de progresso sustentada pela ideia de
aproximação da verdade tem como pano de fundo a definição
de verdade62 dada por Popper. Postular a verdade como um
ideal regulador impulsiona a busca constante de leis
verdadeiras, ainda que busquemos a verdade sem saber se a
encontraremos, pois não dispomos de um critério para
reconhecê-la. Ter um conceito de verdade é algo muito distinto
de possuir um critério para decidir acerca da verdade de um
enunciado. Um critério de verdade pode ser interpretado
62
A verdade é a correspondência entre enunciados e fatos (cf. POPPER, 1994, p. 252).
174
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
como um método de decisão, a partir do qual podemos inferir
o valor de verdade de um enunciado. A definição de verdade,
por sua vez, nos dá o significado da palavra verdade (cf.
HAACK, 1978, p. 88). Contudo, a falta de um critério de
verdade, aliada à constante possibilidade de erro, não torna
arbitrária ou não-racional a escolha entre teorias concorrentes,
apenas apóia a tese que assevera a falibilidade de nosso
conhecimento (cf. POPPER, 1974a, p. 394).
Embora a metodologia popperiana seja negativa, no
sentido de admitir o progresso através de refutações, Popper
defende uma visão realista do mundo, segundo a qual o
objetivo da ciência deve ser o de conseguir explicações cada
vez melhores (cf. POPPER, 1992, p. xxv). Para Popper, o
realismo constitui uma espécie de ‘pano de fundo’ para a
busca da verdade:
A discussão racional, isto é, a argumentação crítica com o
interesse de nos aproximarmos da verdade, seria vazia sem
uma realidade objetiva, um mundo que empreendemos
descobrir; desconhecido, ou em parte desconhecido: um
desafio ao nosso engenho, à nossa coragem e à nossa
integridade intelectual (POPPER, 1992, p. 81).
A visão realista de Popper é manifestamente expressa
ao discutir e argumentar em favor da possibilidade de
progresso científico a partir da constante superação
(revolucionária) de teorias. O argumento de Popper é o de que
uma teoria é uma tentativa de solução para algum tipo de
problema real. É deste modo que podemos falar de uma
aproximação da verdade no sentido de que uma teoria T2 está
mais próxima da verdade que outra T1. É claro que neste caso
as teorias devem ser vistas como tentativas de solução para os
mesmos problemas, que é o que torna possível a comparação.
Popper expressa a importância destes problemas para a
prática científica da seguinte forma:
175
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A discussão racional não deve, porém, ser praticada apenas
como um jogo para passar o tempo. Ela não pode existir se
não houver problemas reais, sem a busca da verdade objetiva,
se não houver a missão de descoberta que nos impomos: sem
uma realidade a descobrir – uma realidade a explicar por leis
universais (POPPER, 1992, p. 157).
Ao tratar da verossimilhança, Popper assume uma
posição realista na medida em que caracteriza o êxito da
investigação científica na possibilidade de uma progressiva
aproximação da verdade, isto é, “de descrições verdadeiras de
certos fatos ou aspectos da realidade” (POPPER, 1975, p. 48).
A tentativa de aproximação da verdade só tem sentido
quando toma como referencial a busca de soluções para algum
problema de relevância científica. É neste caso que a
capacidade explicativa de uma teoria deve ser explorada e
rigorosamente testada. Assim, duas teorias concorrentes, T1 e
T2, podem ser avaliadas sob a luz da verossimilhança. Deste
modo, T2 pode ser considerada uma melhor aproximação da
verdade (corresponde melhor aos fatos) do que T1 nas
seguintes situações:
(1) Quando T2 faz assertivas mais precisas do que T1, as quais
resistem a testes que são também mais precisos
(2) Quando T2 leva em consideração ou explica mais fatos do
que T1;
(3) Quando T2 descreve ou explica os fatos com mais detalhes
do que T1;
(4) Se T2 resistiu a testes que refutaram T1;
(5) Se T2 sugere novos testes experimentais, que não haviam
sido considerados antes da sua formulação, conseguindo
resistir a eles;
(6) Se T2 permitiu reunir ou relacionar entre si vários
problemas que até então pareciam isolados (POPPER, 1994, p.
258).
176
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A teoria da verossimilhança permite uma avaliação
crítica de teorias concorrentes tendo como referência o
conteúdo verdade (Ctv) e o conteúdo falsidade (Ctf). A partir
disso, Popper sugere a seguinte definição de verossimilhança:
Vs(a) = Ctv(a) – Ctf(a) (cf. POPPER, 1994, p. 259). Neste caso, o
conteúdo de a é a classe de todas as consequências lógicas de a
[Cn(a)]. Popper divide o conteúdo lógico ou classe de
consequência de um enunciado T em duas subclasses; a
subclasse das asserções verdadeiras derivadas de T e a
subclasse das asserções falsas derivadas de T. Feito isso ele
nomeia a primeira subclasse como o conteúdo verdade de T, e
a segunda subclasse como o conteúdo falsidade de T [Av =
Cn(A) ∩ V; Af = Cn(a) ∩ F]. Com a nova definição, podemos
dizer que T2 é melhor que T1 nos seguintes casos:
(a) Ctv(T2) > Ctv(T1) ∧ Ctf(T1) ≥ Ctf(T2);
(b) Ctf(T2) < Ctf(T1) ∧ Ctv(T1) ≤ Ctv(T2).
Testar uma teoria é sempre uma tentativa crucial de
falseamento que envolve uma situação-problema. As teorias
são hipóteses feitas a partir de algum problema. Os testes
fazem parte de um processo científico que visa a eliminação de
erros, possibilitando ou impulsionando o surgimento de novas
hipóteses e de novos problemas. Este é o método das ciências
empíricas e devemos estar conscientes de que podemos
aprender com nossos erros desde que assumamos uma
postura eminentemente crítica. O esquema deste método,
segundo Popper (1975, p. 223 e 1994, p. 443), é o seguinte:
P1 → TT → EE → P2...
Este esquema mostra que a ciência começa e avança
com problemas. No esquema, P1 é o problema inicial; TT são
as teorias tentativas para resolvê-lo; EE é o processo de
177
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
eliminação de erros e P2 é o novo problema que surge,
exigindo novas teorias tentativas. O conceito de verdade
absoluta e objetiva constitui o fundamento do racionalismo
crítico de Karl Popper (cf. MALHERBE, 1979, p. 125). O
esquema que simboliza o estabelecimento da crítica constante
e rigorosa pressupõe a possibilidade do avanço científico,
rumo a teorias melhores, através da eliminação de erros.
Na Lógica da Pesquisa Científica, ao tratar das teorias,
Popper faz uso de uma metáfora63, em que identifica as teorias
com redes que são “lançadas para capturar aquilo que
denominamos de ‘mundo’: para racionalizá-lo, explicá-lo,
dominá-lo. Nossos esforços são no sentido de tornar as malhas
da rede cada vez mais estreitas” (POPPER, 1995, p. 59). As
teorias ou redes, seguindo a metáfora, são construídas ou
inventadas por nós para descrever ou explicar propriedades
do mundo. Tornar a malha mais estreita significa aumentar o
grau de precisão, tornando a teoria mais vulnerável à
refutação.
Popper, ao defender a noção intuitiva de
verossimilhança, estabelece como pressuposto básico de
aplicabilidade que os conteúdos (Ctv e Ctf) das teorias
concorrentes sejam comparáveis. Satisfeita esta condição,
podemos asseverar que um enunciado p está mais próximo da
verdade do que outro enunciado q, mesmo que ambos sejam
falsos. A fim de evidenciar esta posição, Popper exemplifica da
seguinte forma:
(1) Estamos agora entre 9 horas e 45 e 9 e 48;
(2) Estamos agora entre 9 horas e 40 e 9 e 48 (POPPER,
1975, p. 61).
63 A metáfora também aparece como epígrafe desta obra de Popper: “As hipóteses são
redes: só quem as lança colhe alguma coisa” (Novalis).
178
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Dado que a observação é feita às 9 horas e 48, podemos
asseverar, segundo Popper, que o enunciado (1) está mais
próximo da verdade do que o enunciado (2). Este exemplo é
particularmente interessante por permitir dois tipos de análise,
uma vez que podemos interpretar a palavra ‘entre’ de duas
maneiras distintas, a saber, ela pode tanto incluir, quanto
excluir os limites (cf. POPPER, 1975, p. 62). Se ela for
interpretada de modo a incluir o limite maior, então os
enunciados (1) e (2) são verdadeiros. Em contrapartida, se ela
excluir o limite maior, então os enunciados se tornam falsos. A
questão que mais nos interessa nesta análise é a posição de
Popper frente às duas possibilidades de interpretação, pois nos
dois casos, segundo Popper, é possível, a partir da noção
intuitiva de verossimilhança, afirmar que o enunciado (1) tem
maior verossimilhança do que o enunciado (2), já que, nas
duas situações, eles são comparáveis. A conclusão de Popper é
que a ideia de verossimilitude pode ser aplicada a quaisquer
tipos de asserções (verdadeiras e falsas), desde que sejam
comparáveis. Contudo, a verossimilitude de uma teoria não
pode ser expressa em termos numéricos, ou seja, os graus de
verossimilhança são uma ideia intuitiva que, por sua vez, não
pode ser numericamente determinada.
No entanto, como veremos, as posições de Popper com
relação à teoria da verossimilhança foram alvo de inúmeras e
contundentes críticas. As críticas apontam a insustentabilidade
da teoria popperiana ao assumir que, entre duas teorias falsas,
uma pode ser preferível à outra por estar mais próxima da
verdade (cf. TICHÝ, 1974, p. 155).
Para Tichý, não faz sentido enunciar, de duas teorias
concorrentes falsas, que uma está mais próxima da verdade do
que a outra. Assim, se b é falsa, então a não tem menos
verossimilhança que b, ou seja, não há como demonstrar, a
partir da definição popperiana de verossimilhança, que uma
179
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
teoria falsa pode estar mais próxima da verdade do que outra
teoria falsa.
David Miller, ao analisar a teoria da verossimilitude,
afirma que Popper foi o único que fez progresso no sentido de
resolver o problema da verossimilitude (cf. MILLER, 1974a, p.
166). No entanto, a teoria de Popper não alcança todos os seus
objetivos, pois apenas teorias verdadeiras podem ser
avaliadas. A objeção de Miller aponta para o fato de que, se
duas teorias são comparáveis através da verissimilitude, então
elas devem ser comparáveis pelo conteúdo verdade. De duas
teorias falsas, o que pode ocorrer é que uma delas pode
exceder a outra tanto em conteúdo verdade, quanto em
conteúdo falsidade, anulando a proposta popperiana de
aproximação da verdade. Uma observação importante a ser
feita é que, ao falarmos de conteúdo excedente, estamos,
obviamente, referindo-nos a uma comparação que permite a
inclusão de conteúdos, no sentido de que o Ctv(T2), por
exemplo, inclui o Ctv(T1) como sub-conjunto, por isso o
excede. A objeção de Miller também atinge os casos em que
duas teorias, uma verdadeira e uma falsa, (por suposição) são
avaliadas, e uma delas, sendo falsa, excede a outra,
verdadeira, em conteúdo falsidade e em conteúdo verdade, o
que é perfeitamente possível, tornando-as incomparáveis pela
condição de verossimilitude (cf. MILLER, 1974a, p. 172). Sendo
assim, a conclusão de Miller é que a teoria popperiana é
inadequada.
O que torna problemática a discussão sobre a teoria da
verossimilhança de Popper é o fato de haver uma relação
intrínseca com o objetivo de Popper ao ver a ciência como algo
que busca progredir na direção de teorias cada vez melhores,
aproximando-se, cada vez mais, da verdade objetiva e
absoluta. O problema, como aponta Harris (1974, p. 162), é
explicar o significado de tal pressuposto, ou seja, o de “dizer
que uma teoria está mais próxima da verdade do que outra,
180
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
especialmente nos casos em que ambas são falsas” (“são
algumas falsidades menos falsas que outras?”). A definição de
verissimilitude não satisfaz o pressuposto popperiano,
perdendo a plausibilidade.
Em uma nota (POPPER, 1976), respondendo às críticas,
Popper considera o debate sobre a teoria da verissimilitude
um acontecimento muito importante, pois a preocupação
principal aponta para a possibilidade de se obter uma posição
segura, resolvendo o problema da verissimilitude. Para
Popper, o problema central, a saber, o de comparar a
verossimilhança de teorias falsas, ainda não foi resolvido.
Contudo, o enunciar, de duas teorias concorrentes, a e b, que
uma delas está mais próxima da verdade do que a outra,
embora não seja demonstrável, pode ser assumido como uma
conjectura (cf. POPPER, 1976, p. 158). A discussão crítica,
incluindo a severidade dos testes, não pode ser esquecida, pois
desempenha um papel fundamental na escolha de teorias. A
constante busca de teorias melhores (mais próximas da
verdade) deve ser mantida, o que só é possível mediante um
procedimento altamente crítico.
A análise objetiva sempre é possível, mesmo quando
duas teorias, a e b, não podem ser comparadas por
verossimilhança. Isso acontece, por exemplo, quando a teoria a
é uma melhor aproximação com respeito a um objetivo x, e b é
melhor com relação a um objetivo y. O que pode ser feito, de
acordo com Popper (1976, p. 159), é buscar (ou construir) uma
teoria com as vantagens de a e b, mas sem suas desvantagens.
Enfim, a definição popperiana de verissimilitude não
consegue demonstrar que a ciência faz progresso rumo à
verdade. No entanto, ela é compatível com a metodologia
falseacionista que impulsiona a escolha de teorias científicas
com maior conteúdo, maior poder explicativo e,
consequentemente, com um alto grau de testabilidade.
181
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
REFERÊNCIAS
HAACK, S. Philosophy of Logics. Cambridge: Cambridge University Press,
1978.
HARRIS, J. H. “Popper’s Definitions of Verisimilitude”. In: British Journal
for the Philosophy of Science, 25, p. 160-166, 1974.
MALHERBE, J.–F. La Philosophie de Karl Popper et le Positivisme
Logique. Namur: Presses Universitaires de Namur, 1979.
LISTON, G. A Indução e a Demarcação nas Epistemologias de Karl Popper
e de Rudolf Carnap. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2001.
_______. Unidade da Ciência e Tolerância Linguística. Tese de Doutorado.
Florianópolis: UFSC, 2008.
MILLER, D. “Popper’s Qualitative Theory of Verisimilitude”. In: British
Journal for the Philosophy of Science, 25, p. 166-177, 1974a.
_______. “On the Comparison of False Theories by their Bases”. In: British
Journal for the Philosophy of Science, 25, p. 178-188, 1974b.
ODDIE, G. “The Poverty of the Popperian Program for Truthlikeness”. In:
Philosophy of Science, 53, p.163-178, 1986.
POPPER, K. R. The Logic of Scientific Discovery. London and New York:
Routledge, 1995.
_______. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
_______. “A Note on Verisimilitude”. In: British Journal for the Philosophy
of Science, 27, p. 147-164, 1976.
_______. Conhecimento Objetivo. São Paulo: Edusp e Itatiaia, 1975.
_______. Conjecturas e Refutações. Brasília: UNB, 1994.
_______. “Fatos, Padrões e verdade: Uma Crítica Adicional ao Relativismo”.
Adendo à Segunda parte de A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Belo
Horizonte e São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974.
182
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. “Intellectual Autobiography”. In: SCHILPP, Paul. The Philosophy
of Karl Popper. Books I and II, La Salle, Illinois: Northwestern University
and Sourthern Illinois University, 1974, p. 3-181.
_______. “Replies to my Critics”. In: SCHILPP, Paul. The Philosophy of Karl
Popper. Books I and II, La Salle, Illinois: Northwestern University and
Sourthern Illinois University, 1974, p. 961-1197.
_______. O Universo Aberto. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
_______. Realism and the Aim of Science. London and New York:
Routledge, 1992.
_______. “The Rationality of Scientific Revolutions”. In: POPPER, Karl. The
Myth of The Framework: In Defense of Science and Rationality. London
and New York: Routledge, p. 1-32, 1996.
_______. “The Demarcation Between Science and Metaphysics”. In:
SCHILPP, P. A. (org.). The Philosophy of Rudolf Carnap. La Salle: Open
Court, 1963.
TICHÝ, P. “On Popper’s Definitions of Verisimilitude”. In: British Journal
for the Philosophy of Science, 25, p. 155-160, 1974.
_______. “Verisimilitude Redefined”. In: British Journal for the Philosophy
of Science, 27, p. 25-42, 1976.
183
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 10
NOTAS SOBRE A “PROPENSÃO QUÂNTICA” POPPERIANA
Raquel Sapunaru
O presente estudo pretende discutir a evolução do
pensamento popperiano em torno do problema do cálculo das
probabilidades envolvido na fundamentação da Teoria
Quântica.
Logo na primeira edição da Lógica da Pesquisa Científica,
datada de 1934, e, posteriormente, em sua Autobiografia
Intelectual, de 1975, Karl Popper confrontou uma interpretação
objetiva contra uma interpretação subjetiva da probabilidade.
No artigo intitulado “Propensões, probabilidades e teoria
quântica”, de 1957, Popper colocava o problema da
objetividade versus subjetividade na Mecânica Quântica da
seguinte forma:
(1) Solucionar o problema de como interpretar a teoria das
probabilidades é fundamental para interpretar a teoria
quântica, uma teoria probabilística. (2) A ideia de uma
interpretação estatística é correta, mas carece de clareza. (3)
Como consequência dessa falta de clareza, a interpretação
costumeira das probabilidades na física oscila entre dois
extremos: uma interpretação objetiva, puramente estatística, e
uma interpretação subjetiva que destaca o nosso conhecimento
incompleto ou a informação disponível. (4) Na interpretação
ortodoxa de Copenhagen sobre a teoria quântica encontramos
a mesma hesitação entre uma interpretação objetiva e outra
subjetiva: a famosa intromissão do observador na física. (5) Em
184
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
contraste com tudo isso, proponho uma interpretação
estatística revista ou reformada, a interpretação da probabilidade
como propensão. (6) A interpretação baseada na propensão é
puramente objetiva. Elimina a oscilação entre interpretações
objetiva e subjetiva e com ela a intromissão do sujeito na física
(POPPER, 2010, p. 197).
A primeira, objetiva, denominada frequentista,
formulada por Richard Von Mises, afirmava, resumidamente,
que se se pudesse repetir ou observar um experimento um
grande número de vezes e registrar quantas vezes um evento
A ocorreria, então, a probabilidade de A, P(A), seria igual ao
número de vezes em que A ocorre dividido pelo número total
de repetições do experimento (NAGEL, 1969, p. 19-26). Na
segunda, a probabilidade era interpretada como uma medida
de grau de convicção ou como uma quantificação de um ponto
de vista particular (POPPER, 1974, p. 161), e isto denotava que
não seria preciso que um experimento fosse não-repetitivo
para considerar subjetiva sua probabilidade de ocorrer. Em
linhas gerais, a interpretação subjetiva alegava que uma
proposição verdadeira seria redutível ao sentimento de
aprovação, e uma proposição falsa, ao sentimento de
desaprovação. Explicando de outro modo, o verdadeiro ou o
falso dependeria da mente do observador, ou seja, seria
valorativa e não factual, como se marca qualquer ciência. No
entanto, para a interpretação objetiva, o conhecimento poderia
ser qualificado como algo acerca de uma realidade
independente da mente, que se exprimiu através de juízos que
continham proposições verdadeiras e estas proposições seriam
verdadeiras, e não falsas, porque representariam com precisão
uma realidade. Por fim, Popper (1974, p. 166-175) se decidiu,
neste primeiro momento, pela interpretação frequentista e
justificou sua escolha afirmando:
A probabilidade criou-me problemas, assim como o trabalho,
levando-me a estudo agradável e estimulante. O problema
185
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
fundamental, examinado na Lógica da Pesquisa Científica, era o
de prova de enunciados probabilísticos da Física. Esse problema
era um desafio importante para minhas concepções gerais
acerca da Epistemologia e eu o resolvi com o auxílio de uma
ideia que fazia parte integral dessa epistemologia e não,
penso, de uma ideia ad hoc. [...]. Na Lógica da Pesquisa Científica,
eu sublinhara que havia muitas interpretações possíveis para a
noção de probabilidade, ressaltando que somente uma teoria
das frequências (como a proposta por Von Mises) seria
aceitável nas Ciências Físicas (POPPER, 1977, p. 107-115).
Posteriormente, aventarei de modo sucinto a
interpretação da propensão, substituta de Popper da
interpretação objetiva de probabilidade em termos de
frequência. Esta interpretação, criada por Popper, seria uma
nova interpretação objetiva, fortemente relacionada com a
teoria frequentista anteriormente mencionada. Na ideia de
Popper, esta nova interpretação objetiva seria “uma teoria de
probabilidades, em termos de teoria frequencial (modificada)”
(POPPER, 1974, p. 164). Por enquanto, vale lembrar a letra de
Popper sobre a interpretação objetiva das teorias, ideia que
acompanhou o filósofo por toda sua vida: “Manifesto, assim, a
fé que tenho numa interpretação objetiva, acima de tudo por
acreditar que somente uma teoria objetiva é capaz de explicar
a aplicação dos cálculos de probabilidades em ciência
empírica” (POPPER, 1974, p. 164). Historicamente falando, o
interesse de Popper pela questão da probabilidade advinha de
duas fontes distintas, a saber: 1) dos problemas da Física, mais
especificamente da Teoria Quântica em plena ascensão e 2) de
sua crítica à tese do Círculo de Viena de que a verificação das
teorias científicas poderia ser medida via cálculo de
probabilidades64. A título de esclarecimento, vale lembrar as
Ressalto que, para Popper, quanto maior o conteúdo empírico, maior a testabilidade
da teoria. Sobre esta afirmação, Popper exemplificou: “Seja a a sentença ‘Choverá na
sexta-feira’; b a sentença ‘O tempo estará bom no sábado’; e ab a sentença ‘Choverá na
sexta-feira e o tempo estará bom no sábado’: é obvio que o conteúdo informativo da
64
186
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
diferenças entre as teses de Popper e as do Círculo de Viena,
isto é, as diferenças entre o racionalismo crítico e o empirismo
lógico, respectivamente:
a) o realismo, para o empirismo lógico, seria uma
tentativa de descobrir a verdade através da observação e da
indução e, para o racionalismo crítico, a observação seria seu
princípio de falsificação;
b) sobre a demarcação, o empirismo lógico gostaria que
esta tese fosse forte o suficiente para negar tudo aquilo que
não é ciência; o racionalismo crítico, por sua vez, veria as
teorias não-científicas como fonte possível de inspiração para
teorias que seriam falsificadas ou não;
c) a ciência e o progresso acumulativos do empirismo
lógico teriam um sentido de soma através da observação e,
para o racionalismo crítico, este progresso se daria pelo
descarte de teorias que foram falsificadas;
d) a distinção entre observação e teoria no empirismo
lógico se daria no sentido observação/teoria e, no
racionalismo crítico, o sentido seria o oposto;
e) a precisão de conceitos científicos e termos
empregados na ciência seria típico do empirismo lógico;
f) o contexto de descoberta no empirismo lógico seria a
observação e no racionalismo crítico seria a invenção em geral,
e o contexto de verificação no primeiro seria a análise lógicolinguística e no segundo seria a falsificação.
Neste contexto, cujas diferenças são menos sutis do que
se supõe, destaco que, para Popper, o verificacionismo não
última sentença, a conjunção ab, será maior que sua componente a e também que sua
componente b. E também a probabilidade de ab (ou, o que dá no mesmo, a
probabilidade de ab ser verdadeira) será menor que cada um de seus componentes”
(POPPER, 2002, p. 295). Assim, para o filósofo, o conteúdo informativo não é dado
pelo cálculo da probabilidade, visto que Ct(a)Ct(ab)Ct(b) ≠ p(a)p(ab)p(b).
187
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
seria o bom método de ajuizar teorias e, portanto, o filósofo
estaria amarrado à crítica ao uso do cálculo da probabilidade
para asseverar sua tese falseacionista: segundo Popper, a
falsificação deveria substituir a verificação enquanto critério
de cientificidade de teorias. Na letra do autor:
Todavia, para poder abordar, em toda a sua generalidade, o
problema dos enunciados probabilísticos, era preciso
desenvolver um sistema axiomático para o cálculo da
probabilidade. Isso era também necessário para outro
propósito – o de estabelecer minha tese, proposta na Lógica da
Pesquisa Científica, de que a corroboração não é uma
probabilidade, no sentido do cálculo de probabilidades. Em outras
palavras, era preciso desenvolver o sistema axiomático para
estabelecer que certos aspectos intuitivos da corroboração
tornavam impossível identificá-la com a probabilidade, tal
como esta aparece no cálculo de probabilidades (POPPER,
1977, p. 108).
Complementando,
decididamente,
Popper
não
acreditava no verificacionismo do Círculo de Viena, pois,
como seguidor da corrente realista do pensamento, ele afirma:
“Nossas falsificações, deste modo, indicam os pontos onde nós
tocamos a realidade, como ela seria” (POPPER, 2002, p. 156).
Desse modo, percebo que Popper estava ciente do fato de que
era preciso desenvolver um sistema axiomático para o cálculo
da probabilidade para provar que sua teoria falseacionista, ou
tese corroborativa, não era uma probabilidade no sentido
usual do cálculo de probabilidades. Concomitantemente,
Popper, como crítico severo da disseminação do positivismo
entre os físicos, estava muito interessado em alguns problemas
de interpretação da então emergente Teoria Quântica. Para
Popper, a teoria das propensões
difere da interpretação puramente estatística ou de frequência
apenas nisto: considera a probabilidade como uma
propriedade característica do arranjo experimental, e não
188
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
como uma propriedade de uma sequência. O ponto principal
dessa mudança é que passamos a considerar fundamental a
probabilidade do resultado de um único experimento, relacionandoo às suas condições, em vez da frequência de resultados numa
sequência de experimentos. Se desejarmos testar um
enunciado probabilístico, temos de testar uma sequência
experimental. Agora, porém, o enunciado da probabilidade
não é uma afirmação sobre essa sequência: é um enunciado
sobre propriedades das condições experimentais ou do arranjo
experimental (POPPER, 2010, p. 200).
Nessa linha de ação, Popper criticou duramente
Werner Heisenberg pela defesa das relações que levam certos
limites à medição de certas grandezas físicas, o que, em outras
palavras, na explanação do físico José Leite Lopes, seria:
“Heisenberg propõe que a teoria só introduza grandezas ou
variáveis construídas a partir de dados experimentais e assim
capazes de serem fisicamente observadas” (LOPES, 1993, p.
13). Essas relações, conhecidas como Relações de Heisenberg
mostram, de fato, que é impossível localizar uma partícula
quântica num ponto preciso do espaço com o momentum
definido ou medir, simultaneamente, a energia e o tempo de
sua duração. Em outras palavras, é impossível traçar a
trajetória bem determinada de uma partícula quântica. Estas
partículas são corpúsculo e onda, simultaneamente, diferentes
das partículas mecânicas que são somente corpúsculos. Para
completar, as ondas da Mecânica Quântica também são
diferentes das ondas da Mecânica Clássica: essas são ondas de
probabilidade de achar a partícula, ou melhor, as ondas que
permitem o cálculo da realização de um estado final a partir
de um estado inicial (LOPES, 1993, p. 13). Popper afirmou que
as relações de Heisenberg, assim como a interpretação
estatística da função de onda da Teoria Quântica, proposta por
Max Born, expressavam somente uma dispersão estatística de
um conjunto de dados experimentais. Esta visão, apesar de
compatível com a teoria frequentista da probabilidade
189
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
defendida por Popper, inicialmente, era diferente da posição
da Escola de Copenhague, para a qual indeterminismo
quântico não significaria jamais acaso ou imprecisão, mas era
algo fundamental, inerente à natureza. Contudo, Popper não
tinha uma ideia tão clara do indeterminismo quântico: para o
filósofo, este indeterminismo seria sinônimo de utilitarismo.
Acredito que o indeterminismo popperiano com relação às
teorias físicas teria tomado seu maior vulto não logo de início,
quando o filósofo começou a se interessar pelas interpretações
dos problemas da Teoria Quântica, mas somente a partir da
segunda metade da década de 50, quando ele começou a
perceber a verdadeira dimensão da Mecânica Quântica. Em
sua Autobiografia Intelectual, Popper alega:
A luz começou a fazer-se quando percebi a importância da
interpretação estatística da teoria, devida a Born. De início, a
interpretação de Born desagradou-me: a interpretação original
de Schrödinger me parecia mais apropriada, quer sobre um
ângulo estético, quer na condição de explicação do assunto. Ao
notar, porém, que a interpretação de Schrödinger não era
sustentável e que a de Born era bem sucedida, perfilhei esta
última e não compreendia como alguém que aceitasse as
ideias de Born podia defender a interpretação que Heisenberg
atribuía às suas fórmulas de indeterminação (POPPER, 1977,
p. 108).
De acordo com Popper era evidente que, se a Teoria
Quântica teria que ser, a fortiori, interpretada estatisticamente,
as fórmulas de Heisenberg teriam que ser entendidas como
funções de ondas ou relações de espalhamento, como queria
Born. Ressalto que Born formulou a bem aceita interpretação
da densidade da probabilidade da equação de Schrödinger na
Mecânica Quântica (LOPES, 1993, p. 14), e esta interpretação
estava em perfeita sintonia com o conjunto do pensamento
popperiano, pois se tratava de um pensamento objetivo que
imprimia uma quase realidade à Mecânica Quântica, ao
190
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
contrário das visões de Heisenberg e Niels Bohr. Segundo
Popper,
essa interpretação encara o princípio da incerteza como um
limite imposto a nosso conhecimento; por conseguinte ela é
subjetiva. A outra interpretação possível, objetiva, assevera ser
inadmissível, ou incorreto, ou metafísico atribuir à partícula
algo como uma ‘posição cum momentum’ ou uma ‘trajetória’
claramente definida: a partícula simplesmente não tem
‘trajetória’, mas apenas ou uma posição exata, combinada com
um momento inexato, ou um momento exato, combinado com
uma posição inexata (POPPER, 1974, p. 243).
Todavia, a interpretação aludida por Popper, a
frequentista de Von Mises, não resolvia totalmente uma
questão-chave: saber se as relações de Heisenberg tinham
significado quando aplicadas a fenômenos singulares65.
Popper só reconheceu esta questão quando formulou a já
mencionada interpretação das propensões. Como já foi
aludido anteriormente, grosso modo, as teorias frequentista e da
propensão normalmente afirmavam que se pode aplicar o
conceito de probabilidade de modo cientificamente objetivo
apenas a eventos ou classes de objetos, diferentemente das
teorias subjetiva e lógica. Noto que, na teoria subjetiva, a
probabilidade é um grau de crença e, na lógica, ela mede uma
relação entre duas proposições de uma linguagem objeto; e
mais ainda: tratando-se da Teoria Quântica, subjetividade não
significa necessariamente falta de objetividade: às vezes, o que
está em jogo, não é o grau de crença, mas sim, a falta de
conhecimento do estado do sistema. Esta interpretação, em
65 A teoria frequentista de von Mises diz que se pode chegar à probabilidade de um
dado atributo ocorrer em uma classe de indivíduos, por exemplo, a proporção de
gatos que morrem de AIDS felina, mas não de um evento singular, ou seja, a
probabilidade do gato de meu vizinho morrer de AIDS felina.
191
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
particular, é chamada de interpretação epistêmica66.
Recolocando a análise anterior, Popper propôs a interpretação
probabilística da propensão, segundo a qual seria possível
quantificar o grau com o qual certas condições geradoras
teriam a propensão de produzir um evento que pertencesse a
uma sequência cuja frequência seria determinável por essas
condições geradoras. Na interpretação probabilística da
propensão, diferentemente da frequentista, termos teóricos
como condições e disposições são definidos a priori, apesar de
o resultado depender do arranjo experimental correspondente.
A probabilidade como propensão indicaria uma tendência na
natureza de que determinado acontecimento ocorresse
seguindo-se a determinadas causas físicas. Trata-se de uma
probabilidade que é relativa ao tempo, pois à medida que o
tempo no qual o evento previsto para ocorrer se aproxima, a
probabilidade de sua ocorrência pode mudar, aumentando ou
diminuindo a propensão do mesmo ocorrer. Assim, para
Popper, “o mais importante na interpretação da propensão é
que ela retira o mistério da teoria quântica, deixando na teoria, ao
mesmo tempo, a probabilidade e o indeterminismo” (POPPER, 2010,
p. 201). No entanto, mesmo que, na década de 30, Popper
tenha assumido um papel de destaque nos meios filosóficos
analíticos, principalmente devido às suas pertinentes críticas
ao positivismo lógico do Círculo de Viena, infelizmente, o
mesmo não ocorreu em relação aos acalorados debates sobre a
interpretação da Teoria Quântica. Em sua Autobiografia
66 Na interpretação epistêmica, a negação significa literalmente que aquilo que está
sendo negado não é conhecido ou não é acreditado. A interpretação epistêmica tem a
vantagem de poder ser combinada muito simplesmente com a negação clássica para
formalizar sentenças como “o contrário não pode ser mostrado”, onde “contrário” é a
negação clássica e “que não pode ser mostrado” é a interpretação epistêmica da
negação por falha. Ver: “Possibilidades Discursivas do e – um conector coringa”
(MONNERAT,
2003,
p.
185-204).
Disponível
em:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0401/v4%20n1.pdf. Último
acesso em 27 de fevereiro de 2011.
192
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Intelectual, o filósofo admite ter ficado assaz desencorajado
com o erro que cometera ao julgar precipitada e
indevidamente a interpretação indeterminista da Mecânica
Quântica de Heisenberg e Bohr, como confessa:
No que diz respeito à Física Quântica, senti-me assaz
desencorajado por vários anos. Não conseguia esquecer o erro
do meu experimento conceptual. Hoje, todavia, embora ache
natural lamentar qualquer engano, penso que atribuí
demasiada importância a essa falha (POPPER, 1977, p. 101-2).
Porém, Popper reavaliou nessa mesma Autobiografia
Intelectual os erros cometidos na Lógica da Pesquisa Científica e
em outros textos, escritos principalmente ao longo dos anos
50, como, por exemplo, afirma: “O instrumentalismo é
adotado por Bohr e Heisenberg somente para se livrarem das
dificuldades especiais que a teoria quântica tem” (POPPER,
2002, p. 153). Nessa autocrítica, Popper chegou a conclusões
interessantes, a saber: 1) sobre o determinismo e o
indeterminismo, não haveria nada na Mecânica Quântica que
depusesse contra o determinismo, pois ela seria uma teoria
estatística e não-determinista67. Recordo que a equação de
Schrödinger é uma equação diferencial e, portanto, uma vez
resolvida, ela fornece os possíveis estados futuros e suas
probabilidades. Isto pode ser chamado de determinismo
quântico, que difere do determinismo clássico, produtor de
certezas ao invés de probabilidades. Indo um pouco além: não
haveria nada que provasse também que o determinismo
tivesse uma base sólida na Física, e a teoria newtoniana, já
refutada, seria a maior prova disso e 2) sobre a probabilidade,
67 Cabe observar que, para Popper, uma teoria não-determinista difere de uma teoria
indeterminista. O filósofo argumentava que ser não-determinista é, por exemplo, ser
diferente da teoria newtoniana cuja parametrização inicial leva ao resultado final. A
seu turno, ser indeterminista era justamente o que Popper dizia que uma teoria
científica não poderia ser.
193
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
no que tange à Mecânica Quântica, esta deveria ser, tout court,
física, objetiva e realista; e mais ainda: passível de provas
estatísticas, aplicáveis aos casos singulares e relativas aos
experimentos (POPPER, 1977, p. 101-103). A dureza desta
autocrítica pode ser percebida nas palavras de Popper escritas
a respeito de um encontro com o físico Bohr:
Isso me levou a cogitar da “compreensão”. Bohr afirmava, de
certa maneira, que a Mecânica Quântica era apenas em parte
compreensível e, mesmo assim, só através da Física clássica.
Parte da compreensão era alcançada por via do clássico
“modelo de partículas” e por via do clássico “modelo
ondulatório”; os dois modelos eram incompatíveis e
constituíam o que Bohr chamava de complementaridade. Não
havia esperanças de chegar a uma compreensão mais
completa ou mais direta da teoria; exigia-se “renúncia” a
qualquer tentativa de compreensão mais cabal (POPPER, 1977,
p. 101).
No entanto, ao olhar mais cuidadosamente, numa
perspectiva histórica, o contexto no qual Popper cometeu os
erros de interpretação citados, isto é, nos anos 40-50, concluo
que o desconforto de Popper expressava também algo de
obscuro com relação aos aspectos político-intelectuais daquela
época. Argumento que a Escola de Copenhague, por falta de
teorias concorrentes fortes, tomou conta, de modo ditatorial,
da inteligência que sustentava a Teoria Quântica, impondo a
complementaridade como uma espécie de mandamento
divino. A seu turno, nos anos 20-30, quando ainda havia
opositores de calibre grosso à então emergente Teoria
Quântica, em fase de consolidação (como Einstein e de Broglie,
entre outros), Popper aliou-se abertamente a estes físicos, cujas
interpretações realistas e deterministas se encontravam em
perfeita harmonia com sua filosofia. Em 1956, provavelmente
um pouco antes de perceber seus erros de interpretação com
194
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
relação à Teoria Quântica, Popper criticou severamente os
dogmas interpretativos de Bohr nas seguintes passagens:
Então, a filosofia instrumentalista fez uso de hipóteses ad hoc
em vez de fornecer uma saída para as contradições que
ameaçavam a teoria [quântica]. Esta filosofia tem sido usada
de maneira defensiva - para resgatar a teoria existente; e o
princípio da complementaridade tem (eu acredito que por esta
razão) permanecido completamente estéril com relação à
física. Em vinte e sete anos, esta teoria não produziu nada
além de discussões filosóficas, e alguns argumentos para a
confusão dos críticos (especialmente Einstein) (POPPER, 2002,
p. 135).
E ainda:
Se teorias são meros instrumentos nós não precisamos
descartar nenhuma teoria em particular, mesmo que nós
acreditemos que nenhuma interpretação física consistente dos
formalismos desta teoria em questão exista. Resumindo,
podemos dizer que o instrumentalismo é incapaz de dar conta
da importância da ciência pura que testa severamente até a
mais remota implicação de suas teorias, pois ele [o
instrumentalismo] é incapaz de dar conta do puro interesse
científico no que é verdadeiro ou falso. Em contraste com a
mais alta atitude crítica requisitada pela ciência pura, a atitude
do instrumentalismo (como o da ciência aplicada) é
complacente com o sucesso das aplicações. Logo, ele [o
instrumentalismo] pode ser responsável pela recente
estagnação da teoria quântica (POPPER, 2002, p. 152-155).
Finalizando, compreender o processo científico que
induziu à transformação do panorama da discussão sobre os
fundamentos e a interpretação da Teoria Quântica será sempre
um desafio para os filósofos e historiadores da ciência,
principalmente se eles analisarem este período sob a luz da
epistemologia popperiana. As preocupações com esta teoria,
somadas à interpretação da Teoria das Probabilidades,
acompanharam quase toda a vida político-intelectual de
195
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper e, muitas vezes, os historiadores e filósofos da ciência a
tomaram como o mesmo evento: um belo fruto de sua visão
científica absolutamente original, porém compatível com o
discurso científico da época. Em face do que procurei mostrar
anteriormente, fica claro que foram as exigências de
interpretação da Teoria Quântica que levaram Popper à
formulação da interpretação probabilística da propensão.
Como argumentei ao longo deste capítulo, Popper foi um dos
mais proeminentes protagonistas, entre os anos 30 e 50 do
século XX, dos debates sobre as interpretações da Teoria
Quântica. Sem dúvida, foi Popper quem legitimou estes
debates como eventos de cunho científico-filosófico. Seu
realismo, aliado a um grande prestígio nos meios filosóficos,
contribuiu para o desenvolvimento de uma visão realista da
Mecânica Quântica, mesmo que, inicialmente, Popper tenha
encarado esta nova e estranha visão da Física como puro
utilitarismo. Em suas próprias palavras:
Eu acredito que os físicos irão brevemente dar-se conta de que
o princípio da complementaridade é ad hoc e (o que é mais
importante) que sua única função é evitar críticas e prevenir
discussões sobre interpretações físicas; embora a crítica e as
discussões sejam urgentes e fundamentais para reformular
qualquer teoria. Eles irão em breve acreditar que o
instrumentalismo lhes está sendo imposto pela estrutura da
física teórica contemporânea (POPPER, 2002, p. 153).
Contudo, a história mostrou e continua mostrando o
retumbante sucesso da Teoria Quântica que, num primeiro
momento, fora mal interpretada por Popper. Esta
interpretação equivocada lhe custou uma dolorosa autocrítica.
Porém,
a
principal
contribuição
científico-filosófica
genuinamente popperiana para o debate sobre a Teoria
Quântica foi a Teoria das Propensões. Na busca de uma
alternativa que realmente respondesse à altura as demandas
da Teoria Quântica, Popper propôs a adoção de uma nova
196
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
interpretação, em termos de propensões, para os enunciados
probabilísticos. Destarte, considerando o fato de que as
disputas sobre a interpretação da Teoria Quântica ainda não
estão totalmente decididas, a simples existência de uma
possibilidade interpretativa não deve, de modo algum, ser
desprezada. Não posso também ignorar o fato de que a
interpretação em termos de propensões de Popper teria sido,
no mínimo, muito útil para fins heurísticos.
REFERÊNCIAS
LOPES, José Leite. A Estrutura Quântica da Matéria. Rio de Janeiro: UFRJ,
1993.
MONNERAT, Rosane Santos Mauro. Possibilidades Discursivas do e – um
conector coringa. In: Linguagem em (Dis)curso, 2003, p. 185-204. Disponível
em
versão
eletrônica
no
seguinte
endereço:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0401/v4%20n1.p
df. Último acesso: 27 de fevereiro de 2011.
NAGEL, Ernest. Principles of the Theory of Probability. Chicago: The
University of Chicago Press, 1969.
POPPER, Karl. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix e Edusp, 1977.
_______. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Pensamento e Cultrix,
1974.
_______. Three Views Concerning Human Knowledge. In: POPPER, Karl.
Conjectures and Refutations. Londres: Routledge, 2002, p. 130-190.
_______. Truth, Rationality, and the Growth of Knowledge. In: POPPER,
Karl. Conjectures and Refutations. Londres: Routledge, 2002, p. 291-338.
_______. Propensões, Probabilidades e Teoria Quântica. In: MILLER, David.
(org.) Popper: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio,
2011, p. 197-203.
197
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 11
APROXIMAÇÃO POPPERIANA À DISTINÇÃO
EXPLICAÇÃO-COMPREENSÃO
Gustavo Caponi
Em Miséria do Historicismo, Popper (1973, p. 145)
sustentou que não havia nenhuma diferença metodológica
essencial entre as ciências humanas e as ciências naturais.
Ambos os conjuntos de disciplinas, dizia ele ali, obedecem a
tentativas de construir e contrastar explicações causais dos
fenômenos estudados em um e outro caso: sejam eles sociais ou
naturais. Mas, em escritos posteriores, essa posição foi
revisada, e a mesma noção de análise situacional, que
inicialmente tinha sido proposta para caracterizar um mero
recurso heurístico que se utilizaria na construção de supostas
explicações nomológico-dedutivas da ação humana (POPPER,
1973, p. 163ss), começou a ser identificada com a noção de
compreensão objetiva (POPPER, 1978, p. 25; 1974, p. 177).
Este último conceito foi introduzido por Popper (1978,
p. 25) para caracterizar a operação teórica distintiva e comum
a todas as ciências humanas: uma operação cuja peculiaridade
consistiria em que, ao executá-la, já não pensamos a ação
humana como um comportamento cuja descrição pode-se
deduzir de uma conjunção de condições iniciais e enunciados
nomológicos, mas a consideramos como uma resposta
adequada para determinada situação problema cuja
reconstrução conjetural constitui justamente aquilo que
denominamos ‘compreensão’. E o que essa reconstrução nos
198
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
mostraria é como, dada uma determinada equação entre as
metas de um agente, seus valores e as informações com as
quais ele conta, o percurso de ação por ele escolhido pode ser
considerado como o mais indicado, o mais oportuno ou o mais
conveniente e aceitável para resolver a situação-problema na
qual dito o agente está inserido.
COMPREENSÃO E RACIONALIDADE
Pode-se caracterizar a compreensão objetiva como
obedecendo a uma estrutura silogística muito simples, cuja
conclusão (C) é uma descrição da ação ou opção que queremos
compreender e cujas premissas são: (A) uma descrição das
supostas metas do agente e (B) uma descrição, não só das
informações e das teorias, mas também das pautas axiológicas
às quais obedece a sua opção. Assim, é possível representar
esse tipo de raciocínio com este esquema geral:
(A) A meta do agente X é Y.
(B) Considerando as teorias, informações e pautas
axiológicas de X, Z é o melhor e mais aceitável dos
recursos ou caminhos disponíveis para obter Y.
(C) X opta por (realizar, empreender ou apelar a) Z.
Mas se o que nos interessa é, justamente, explicitar a
forma e a lógica dessa operação chamada compreensão, um
esquema tão simples e claro como esse que acabamos de
propor só pode nos servir para mostrar que a ideia popperiana
de análise situacional parece supor algo a mais do que a mera
referência às metas e pautas cognitivas ou axiológicas do
agente cuja ação ou opção nós queremos compreender. E esse
algo a mais, tal como o próprio Popper (2010, p. 351) apontou,
não é outra coisa que esse princípio “conhecido na literatura
como princípio de racionalidade” segundo o qual “os agentes
199
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
sempre agem de maneira apropriada à situação em que se
encontram”. Entende-se aqui, é claro, que os fins e as atitudes
de tais agentes são os elementos definidores dessa situação
(POPPER, 2010, p. 351). Ou, como explicou John Watkins
(1974, p. 86):
um indivíduo está imerso em uma situação-problema objetiva;
ele tem determinadas metas […] ou possivelmente uma meta
única, e ele faz uma apreciação factual, que pode ser uma
apreciação errônea, da sua situação problema. O princípio de
racionalidade diz que ele atuará de um modo apropriado para
sua[s] meta[s] e apreciação situacional.
A questão principal, entretanto, reside menos na
formulação de dito princípio que na determinação do seu
estatuto epistemológico. Assim, uma possibilidade consistiria
em pensá-lo como uma espécie de enunciado nomológico,
entre inexato e trivial, ao qual, talvez por não contar com uma
alternativa melhor ou talvez por motivo dessa mesma
trivialidade, nós sempre apelamos na explicação da ação. Mas
outra possibilidade diferente seria a de considerá-lo como
constituindo uma referência indispensável para toda tentativa
de compreender a ação. No primeiro caso, voltaríamos para a
posição que Popper (1985, p. 427) já tinha esboçado naquele
parágrafo de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, onde dizia que
a maior parte das explicações históricas faz um uso tácito nem
tanto de leis sociológicas e psicológicas triviais, mas do que
chamamos […] a ‘lógica da situação’; quer dizer que, além das
condições iniciais que descrevem os interesses, objetivos
pessoais e demais fatores da situação […], essas explicações
históricas supõem tacitamente, como primeira aproximação, a
lei geral trivial de que as pessoas normais atuam, em geral, de
forma mais ou menos racional.
Assim, não só poderíamos concluir que, para Popper, a
compreensão não é mais do que um tipo de explicação
200
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
nomológica, mas também poderíamos identificar seu princípio
de racionalidade com aquele enunciado legaliforme que,
segundo Churchland (1970), está implícito nas nossas
explicações causais da ação. Todavia, e embora o próprio
Popper (2010, p. 355-6), por fim, parecesse inclinado a optar
por esse modo de ver as coisas, seus escritos também nos dão
elementos suficientes para tentarmos esboçar e propor aquela
outra maneira de entender o “princípio de agir de maneira
adequada à situação” (POPPER, 2010, p. 353) à qual aludi
acima: aquela maneira de pensá-lo em que o consideramos não
como um mero recurso para a explicação da ação, mas
justamente como um princípio metodológico constitutivo e
definidor dessa outra operação chamada compreensão. Quer
dizer: considerando-o como se esse princípio fosse aquilo que
propõe e define a forma de toda indagação que, com relação
ao sentido da ação, caiba colocar e desenvolver.
Trata-se, em definitivo, de atender à possibilidade de
reconhecer que esse enunciado constitui uma “genuína
máxima reguladora da pesquisa social” (FARR, 1983, p. 172),
cujo lugar na compreensão da ação humana poderia ser
pensado como análogo ao lugar que, segundo o próprio
Popper, o princípio de causalidade ocupa na explicação dos
fenômenos físicos, e quando digo isso estou aludindo ao
tratamento proposto para esse último princípio na Lógica da
Pesquisa Científica.
REGRAS METODOLÓGICAS
Na Lógica da Pesquisa Científica, na apresentação do
modelo nomológico-dedutivo de explicação, Popper (1980, p. 59)
afirma que, no contexto de uma reflexão metodológica como a
que ali está sendo desenvolvida, não é necessário introduzir
nenhuma afirmação relativa à aplicabilidade universal desse
modelo de explicação, tal como o seria um princípio de
201
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
causalidade universal, entendido seja como um enunciado
empírico, seja como um princípio relativo à constituição da
própria experiência. Sob uma perspectiva metodológica, diz,
com efeito, Popper (1980, p. 59), basta aceitar a decisão ou
cláusula metodológica de que “não abandonaremos a busca de
leis universais e de um sistema teórico coerente, nem
cessaremos as nossas tentativas de explicar causalmente todo
tipo de acontecimento que possamos descrever”.
Quer dizer, a metodologia não somente não precisa
apelar para uma frágil ou impossível justificação empírica do
princípio de causalidade, como a proposta por Mill: ela tampouco
requer uma fundamentação metafísica desse princípio. E
quando digo isso, não só penso em uma clássica ontologia
determinista, ou simplesmente causalista, mas também aludo,
em geral, a qualquer alternativa de apresentar dito princípio,
em virtude de argumentos transcendentais, como se fosse
constitutivo de toda experiência possível, seja esse o caso de
Kant, e sua segunda analogia da experiência, ou o caso do primeiro
Wittgenstein (1987, 6.362), para quem: “o que se pode
descrever pode ocorrer também, e o que exclui a lei de
causalidade é coisa que tampouco pode ser descrita”.
Trata-se, em resumo, tanto de prescindir de qualquer
tentativa de prometer o mundo às nossas hipóteses causais
(quer dizer: de garantir a priori a sua inteligibilidade), como de
evitar toda pretendida justificação dos eventuais, duvidosos e
frágeis êxitos obtidos nos nossos esforços por explicar e
predizer os fenômenos em termos nomológico-dedutivos. Mas, se
tais recursos são evitados, não é tanto porque sejam
considerados problemáticos, e inclusive ilegítimos, mas por
considerar-se que, no contexto de uma reflexão metodológica,
nós só necessitamos de uma norma que nos conduza a
procurar uma explicação causal aceitável para todo fenômeno
físico registrado ou observado. Desse modo, torpemente
formulada, essa regra metodológica seria mais ou menos
202
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
assim: Sendo a descrição (C) de um fenômeno X, deve-se formular e
testar um conjunto de hipóteses tal que contenha: [1] a descrição (B)
de outro fenômeno Y, e [2] a formulação de um enunciado
nomológico (A) tal que este estabeleça uma conexão causal entre X e
Y.
Entretanto, muito mais importante do que obter uma
formulação mais ou menos elegante e precisa dessa máxima
reguladora da pesquisa física, é reconhecer que ela, longe de
pretender nos oferecer um guia para resolver problemas
físicos, o que faz é instituir a forma e o princípio gerador de
tais problemas. Ela nos dá, podemos dizer, a pauta do que se
espera que saibamos: mas nada nos diz sobre como sabê-lo.
Ela nos propõe, em definitivo, um modo de interrogação: aquele
que é próprio e definidor da Física e de outras ciências
naturais, e em cujo contexto, perante um fato qualquer, o
pesquisador haverá sempre de se perguntar sob a mediação de
que leis, que causas, produziu-se esse fato. E a resposta que se
espera para essa pergunta é o que se considerará uma
explicação do fenômeno constatado.
O
PRINCÍPIO
DE
METODOLÓGICA
RACIONALIDADE
COMO
REGRA
É claro, de todo modo, que nem sempre interrogamos a
realidade em termos causais: nem sempre pedimos explicações
nomológicas dos fenômenos. Em algumas ocasiões,
indagamos o mundo a partir de outra perspectiva, e há alguns
fenômenos que não consideramos como efeitos resultantes de
uma conjunção de leis naturais e condições iniciais. É o que
ocorre nas ciências humanas. Ali as ações, que são os
fenômenos a serem explicados, são consideradas, conforme
vimos acima, como respostas ou soluções para situaçõesproblema que devem ser elucidadas. Nesse caso, já não se
atende a essa máxima reguladora, ou decisão metodológica, que
203
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
nos exige que os fenômenos em estudo sejam explicados
nomológico-causalmente: ali se segue o imperativo dessa outra
decisão metodológica que muito bem poderíamos chamar
princípio de racionalidade, ou, inclusive, princípio da adequação das
ações.
Tal princípio poderia ser formulado da seguinte forma:
Sendo a descrição (C) de um percurso de ação Z escolhido por
um agente X, deve-se formular e contrastar um conjunto de
hipótese tal que contenha: [1] a atribuição (A) de uma meta E
a X, e [2] a enumeração (B) de um conjunto de informações,
teorias, preferências e pautas axiológicas, também imputáveis
a X, sob cuja consideração Z poderia ser pensado como a
melhor, ou mais correta, alternativa disponível para
conseguir Y.
É mister não perder de vista, entretanto, que essa
versão metodológica do princípio de racionalidade já não cumpre
nem a função daquele L1 formulado por Churchland, nem a
função daquela grosseira e inexata aproximação ao real de que
Popper nos falava. O papel dessa regra metodológica não é o
de completar a explicação intencional explicitando uma
premissa tácita que permitiria predizer uma ação em virtude
de hipóteses sobre metas, crenças e preferências: seu papel é o
de nos dizer qual deve ser a forma de tal explicação intencional.
Assim, longe de nos ajudar a compreender, o princípio de
racionalidade nos diz em que consiste a compreensão e estipula o
que devemos saber para poder afirmar que compreendemos
um determinado curso de ação ou uma determinada opção.
Por isso, se essa máxima reguladora da ação social não
serve como complemento do modelo de explicação teleológica
proposto por Von Wright (1980a; 1980b), é simplesmente
porque a sua função é justamente a de nos mostrar a forma e
sancionar a suficiência desse modelo, indicando-nos que
204
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
compreender não é outra coisa que conhecer as pautas
cognitivas e axiológicas sob cuja consideração uma ação pode
ser pensada como adequada a um fim. É nesse sentido que as
analogias entre ambas as formulações metodológicas dos
princípios de causalidade e de racionalidade são óbvias e bemvindas.
Entendido como regra metodológica, o princípio de
causalidade define a operação epistêmica requerida para tornar
inteligível um fenômeno físico, e, desse modo, essa regra
marca o rumo à Física e às outras ciências naturais. Enquanto
isso, ao ser entendido como regra metodológica, o princípio de
racionalidade faz o mesmo com a operação requerida para
tornar inteligível uma ação, e, desse modo, ele marca o rumo
às ciências humanas. O princípio de causalidade, poderíamos
assim dizer, nos diz o que é explicar causalmente, e o princípio
de racionalidade nos diz o que é compreender. Mas nenhuma
dessas regras, insisto, constitui um recurso para tais operações:
nem o princípio de causalidade reforça a explicação causal, nem
o princípio de racionalidade reforça a compreensão.
Notemos, além disso, como a ambas as regras se
seguem, de um modo tácito, critérios para avaliar a suficiência
dos elementos de julgamento com que contamos para explicar
os fenômenos físicos e para compreender a ação humana.
Assim, enquanto no primeiro caso o princípio de causalidade nos
indica que aquilo que aduzimos para explicar um fenômeno
deveria ser suficiente para predizê-lo, no referente ao segundo
caso o princípio de racionalidade parece nos dizer que: se o curso
de ação adotado por determinado agente não se mostra adequado aos
objetivos e atitudes que hipoteticamente lhe imputamos, então esse
último conjunto de hipóteses deve ser retificado ou ampliado com
informação adicional. E isso significa que, se compreendêssemos
cabalmente uma ação, nós deveríamos ser capazes de
antecipá-la, sendo que a dificuldade para obter esse feito pode
ser considerada como índice de uma falta, ou insuficiência, de
205
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
compreensão. Por isso, e como o próprio Popper (2010, p. 3545) o explica,
sempre que procuramos compreender um ato, inclusive de
um louco, usamos o princípio de racionalidade até o limite.
Tentamos explicar os atos do louco, tanto quanto possível, por
seus objetivos (que podem ser monomaníacos) e pelas
informações com base nas quais ele age, isto é, por suas
convicções (que podem ser obsessões, ou seja, teorias falsas,
sustentadas com tamanha tenacidade que se tornam
praticamente incorrigíveis). Ao explicar desse modo as ações
de um louco, nós as explicamos em termos de nosso
conhecimento mais amplo de uma situação problemática, a
qual inclui a visão mais estreita que ele tem de sua situação;
compreender seus atos significa ver a adequação deles
segundo sua visão – loucamente equivocada – da situação
problemática.
No estudo da ação humana, desistir da compreensão
está tão fora de cogitação, assim como desistir de procurar
causas na Física ou na Fisiologia. Contudo, abundar aqui em
analogias pode ser menos proveitoso do que chamar a atenção
para as diferenças entre as operações de explicar e
compreender que os princípios de racionalidade e de causalidade
permitem estabelecer. Assim, do mesmo modo que já se disse
que o princípio de racionalidade não deve ser considerado como
um tipo peculiar, ou precário, de lei científica, também se deve
insistir que a compreensão não deve ser entendida como um
tipo peculiar, talvez parcial, de explicação causal.
Compreender não é determinar as causas de um
comportamento, ou mesmo os motivos ou estímulos que o
desencadearam. As metas, as teorias, as informações e as
pautas axiológicas, sob cuja consideração uma ação pode ser
julgada como adequada a uma situação, não são a causa eficiente
dessa ação. A compressão não exibe uma conexão causal: exibe
uma conexão teleológica, uma conexão de sentido. E era a isso
que eu aludia quando me referia a esses contextos onde a
206
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
experiência já não é pensada em termos de relações
nomologicamente estabelecidas de causa e efeito, e sim em
virtude da dupla solução-problema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É necessário entender, por fim, que esse deslocamento
no modo de interrogar a experiência tampouco deve ser
pensado em termos de auxílio ou de complemento. A
compreensão não está chamada a completar, a socorrer, ou
mesmo a suplantar a explicação causal quando esta enfrenta
fenômenos muito complexos ou muito especiais: ambas as
operações respondem a interesses cognitivos diferentes, a
modos distintos de interrogar os fenômenos que ficam
plasmados em duas regras metodológicas também diferentes.
A compressão não pode responder às perguntas que pedem
por uma explicação causal, e as explicações causais não
satisfazem nossos esforços por compreender. Quando
deixamos de considerar um comportamento em termos
puramente fisiológicos, quando deixamos de considerá-lo
como um movimento ou uma reação passível de explicação, e
começamos a entendê-lo como uma ação digna de
compreensão, não é porque careçamos de recursos para
responder às perguntas do fisiologista, mas porque as próprias
perguntas mudaram.
O que queremos saber, o que ignoramos, já não é o
mesmo. E o que mudou é, antes de tudo, a própria forma da
nossa interrogação: ela passou a ser guiada por outra regra
metodológica. Eis aí, pois, a primeira e fundamental diferença
entre compreensão e explicação causal que esse outro enfoque
popperiano da questão nos permite visualizar e destacar.
Por fim, e retornando agora ao jogo de analogias entre
os princípios de racionalidade e de causalidade, no qual antes me
demorei, quero também insistir no fato de que as duas regras
207
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
permitem caracterizar e distinguir as operações de explicar
causalmente e de compreender sem apelar para considerações
relativas à constituição da própria experiência. Sendo
enunciados puramente metodológicos, essas máximas
reguladoras da pesquisa definem dois procedimentos
cognitivos diferentes sem pressupor nada com relação aos
fenômenos aos quais cada um deles aponta. Nem o princípio de
causalidade promete uma natureza legaliforme e, portanto,
explicável, nem o princípio de racionalidade promete uma
humanidade racional e, portanto, compreensível.
REFERÊNCIAS
CHURCHLAND, Paul. “The logical character of action-explanations”. The
Philosophical Review 79: 214-236, 1970.
FARR, James. “Popper’s hermeneutics”. Philosophy of Social Sciences 13:
157-176, 1983.
POPPER, Karl. La miseria del historicismo. Madrid: Alianza, 1973.
_______. Conocimiento objetivo. Madrid: Tecnos, 1974.
_______. La lógica de las ciencias sociales. México: Grijalbo, 1978.
_______. La lógica de la investigación científica. Madrid: Tecnos, 1980.
_______. La sociedad abierta y sus enemigos, Vol. II. Buenos Aires: Orbis,
1985.
_______. “O princípio de racionalidade”. In: MILLER, David (ed.). Popper:
textos escolhidos [p. 349-358]. São Paulo: Unesp, 2010.
VON WRIGHT, Georg. Explicación y comprensión. Madrid: Alianza, 1980.
_______. “El determinismo y el estudio del hombre” [p.183-204]. In: Ensayos
sobre explicación y comprensión. Madrid: Alianza, 1980b.
208
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
WATKINS, John. “Racionalidad imperfecta”. In: La explicación en las
ciencias de la conducta [p. 80-98]. Madrid: Alianza, 1974.
WITTGENSTEIN,
Alianza, 1987.
Ludwig.
Tractatus
Lógico-Philosophicus.
Madrid:
209
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 12
A FILOSOFIA DE KARL POPPER E SUAS IMPLICAÇÕES
NO ENSINO DA CIÊNCIA68
Fernando Lang da Silveira
O filósofo da ciência Karl Popper repensou algumas
questões importantes relativas ao conhecimento científico.
Suas ideias são revolucionárias e não podem permanecer
desconhecidas para todos aqueles que fazem ou ensinam
ciências. Ele debateu as ideias com grandes pensadores e
cientistas do século XX, em especial Einstein e Schrödinger
foram seus interlocutores.
O presente capítulo pretende apresentar uma parte do
pensamento de Popper e discutir algumas implicações para o
ensino de ciências.
A LÓGICA DEDUTIVA
Segundo Popper, a lógica dedutiva desempenha papel
de importância capital dentro do método da ciência. Ela é:
a) transmissora da verdade;
b) retransmissora da falsidade; e
c) não retransmissora da verdade.
68 Uma primeira publicação deste trabalho aparece em Cardenos Catarinenses de
Estudo de Física, Florianópolis, agosto de 1989, p. 148-162.
210
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Ela transmite a verdade das premissas para a
conclusão, ou seja, sendo verdadeiras as premissas de um
raciocínio dedutivo, será necessariamente verdadeira a
conclusão. Ela retransmite a falsidade da conclusão para as
premissas, ou seja, se a conclusão de um raciocínio dedutivo
for falsa, então uma ou mais premissas são falsas. Ela não
retransmite a verdade da conclusão para as premissas, ou seja,
sendo a conclusão de um raciocínio dedutivo verdadeira,
poderão ser falsas uma ou mais premissas.
Essas três propriedades da lógica dedutiva podem ser
exemplificadas através de um silogismo válido:
a) premissa maior: todos os A são B;
b) premissa menor: X é A; e
c) conclusão: X é B.
A transmissão da verdade das premissas para a
conclusão ocorre no seguinte exemplo no qual as premissas
são verdadeiras:
a) premissa maior: todos os metais são condutores
elétricos;
b) premissa menor: o cobre é metal; e
c) conclusão: o cobre é condutor elétrico.
A retransmissão da falsidade da conclusão para as
premissas ocorre no seguinte exemplo onde a conclusão é falsa
porque a premissa menor é falsa:
a) premissa maior: todos os metais são condutores
elétricos;
b) premissa menor: o vidro é metal; e
c) conclusão: o vidro é condutor elétrico.
211
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A não retransmissão da verdade da conclusão para as
premissas ocorre no seguinte exemplo em que a premissa
maior e a conclusão são verdadeiras e a premissa menor é
falsa:
a) premissa maior: todos os metais são condutores
elétricos;
b) premissa menor: o carvão é metal; e
c) conclusão: o carvão é condutor elétrico.
A REFUTAÇÃO DA LÓGICA INDUTIVA
Um dos problemas da filosofia da ciência em que
Popper trabalhou é o chamado “problema da indução”.
Acreditavam os indutivistas ser possível, a partir dos fatos,
obter leis, as teorias científicas. Dado um conjunto de fatos
poder-se-ia, utilizando a lógica indutiva, chegar às leis
universais, às teorias. Como Popper explica,
é comum dizer-se ‘indutiva’ uma inferência, caso ela conduza
de enunciados singulares (por vezes também denominados
enunciados particulares), tais como descrições de resultados
de observações ou experimentos, para enunciados universais,
tais como hipóteses ou teorias. [...] Ora, está longe de ser
óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no
inferir enunciados universais de enunciados singulares,
independente de quão numerosos sejam estes; com efeito,
qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode revelarse falsa: independentemente de quantos cisnes brancos
possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos
os cisnes são brancos. A questão de saber se as interferências
indutivas se justificam e em que condições é conhecida como o
problema da indução (POPPER, 1985, p. 27-28).
Outra maneira de se formular o problema da indução é
indagar se há leis naturais sabidamente verdadeiras. Pode-se
212
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
justificar a alegação de que uma teoria é verdadeira a partir de
resultados experimentais ou observações? A resposta de
Popper é negativa. Não importa quantas asserções de teste
(resultados experimentais ou de observações) se tenha, não é
possível justificar a verdade da teoria porque de uma teoria
falsa pode-se obter conclusões verdadeiras (não retransmissão
da verdade das conclusões para as premissas).
Outra razão contra a existência de uma lógica indutiva
está em que um conjunto de fatos sempre é compatível com
mais de uma lei. Por exemplo, se todos os cisnes até hoje
observados são brancos, algumas possíveis leis compatíveis
são as seguintes:
a) todos os cisnes são brancos; ou
b) todos os cisnes são brancos ou negros; ou
c) todos os cisnes são brancos ou vermelhos.
Tendo refutado o método indutivo, sobre o qual
pretensamente estavam apoiadas as ciências empíricas (física,
química, biológica, etc.), Popper parte então para outro
problema: qual é o método das ciências empíricas?
MÉTODO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO
Não é tarefa da lógica do conhecimento a
“reconstrução racional” das fases que conduziram o cientista à
descoberta da teoria científica (POPPER, 1985, p. 32). Não há
caminho estritamente lógico que leve à formulação de novas
teorias e, como veremos mais adiante, a história da ciência
mostra com frequência o surgimento de novas teorias
inspiradas não em fatos novos, mas em teorias metafísicas.
Para Popper a tarefa da epistemologia ou da filosofia
da ciência é reconstruir racionalmente “as provas posteriores
pelas quais se descobriu que a inspiração era uma descoberta
213
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ou veio a ser reconhecida como conhecimento” (POPPER,
1985, p. 32). Em outras palavras, a epistemologia não deve se
preocupar em reconstruir a inspiração do cientista e não é
importante para ela em que condições o cientista formulou a
teoria; importa, sim, discutir como a teoria é testada.
O método da ciência se caracteriza pela crítica das
teorias e pode ser denominado método hipotético-dedutivo.
Dada uma teoria, é possível, com auxílio de condições iniciais
ou de contorno e com auxílio da lógica dedutiva, derivar
conclusões. Essas conclusões são confrontadas com os fatos.
Exemplificando, consideremos a teoria sobre a queda dos
corpos que diz que a velocidade de queda de um corpo é
proporcional ao seu peso, ou seja:
a) hipótese: a velocidade de queda de um corpo é
proporcional ao seu peso;
b) condições iniciais: o tijolo é mais pesado do que uma
pedra
pequena;
ambos
são
abandonados
simultaneamente a 2 m acima do solo;
c) conclusão: o tijolo atingirá o solo antes da pedra.
O confronto da conclusão com os fatos pode levar a
dois resultados: a conclusão é incompatível ou compatível com
os fatos. No primeiro caso, como a lógica dedutiva é
retransmissora da falsidade, no mínimo uma das premissas é
falsa; se as condições iniciais forem verdadeiras, então a teoria
foi falseada. No segundo caso, como a lógica dedutiva é não
retransmissora da verdade, não é necessariamente verdadeira
a teoria. Na terminologia de Popper, a teoria foi corroborada,
passou no teste empírico.
Sempre haverá a possibilidade de, no futuro, derivar
da teoria uma consequência que seja incompatível com os
fatos e, portanto, teorias científicas são sempre conjecturas que
poderão ser refutadas. Não há forma de se provar a verdade
214
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
de uma teoria científica, mas às vezes é possível descobrir que
uma teoria é falsa.
Os indutivistas sempre enfatizaram a necessidade de se
verificar as teorias através das suas consequências. No
pensamento indutivista, o que importa é a verificação, pois,
através dela poder-se-ia saber se uma teoria é verdadeira ou
pelo menos provável. Para Popper, as verificações somente são
relevantes na medida em que constituem os resultados de
tentativas de refutação da teoria, casos verificadores são
facilmente encontráveis para quase todas as teorias.
Exemplificando, mais uma vez, com a teoria de que a
velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso:
é possível encontrar uma imensidade de casos verificadores
constituídos por pares de corpos do tipo pedra e pena. Outro
bom exemplo de alto grau de verificação pode ser encontrado
na teoria astrológica, pois qualquer astrólogo é capaz de
apresentar um número grande de previsões realizadas. As
severas tentativas de refutar uma teoria e que resultaram em
corroborações são as que realmente importam.
A história da ciência mostra teorias que, durante um
certo período de tempo, foram corroboradas e que acabaram
sendo refutadas. O exemplo mais impressionante é o da
mecânica newtoniana, que durante mais de duzentos anos foi
corroborada espetacularmente. Aliás, algumas corroborações
da mecânica newtoniana mostram que a “lógica indutiva” é
insustentável. A mecânica newtoniana corrigiu os fatos dos
quais os indutivistas acreditam ter sido derivada a lei da
gravitação universal, ou seja, frequentemente se afirma que a
lei da gravitação universal teria sido induzida das leis de
Kepler. Isso não é possível logicamente, pois a mecânica
newtoniana rigorosamente contradiz aquelas leis, afirmando,
por exemplo, que as órbitas planetárias não são exatamente
elípticas, mas aproximadamente elípticas. Nesse caso, a
corroboração é espetacular, pois a teoria de Newton prevê
215
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
perturbações nas órbitas planetárias que posteriormente foram
observadas. Ora, se existisse a “lógica indutiva”, o mínimo que
deveria ocorrer nas “induções” das leis a partir dos fatos é que
as leis não contraditassem os fatos que as geraram.
Outras corroborações impressionantes da mecânica
newtoniana são as descobertas dos dois últimos planetas do
sistema solar (Netuno e Plutão). Primeiramente, foi observado
que o planeta Urano, o último planeta conhecido, violava a
órbita prevista a partir das leis de Newton. Essa violação foi
interpretada não como uma refutação das leis de Newton, mas
como resultado da ação de um planeta até ali desconhecido
sobre a órbita de Urano. A hipótese da existência do planeta
Netuno possibilitou, inclusive, prever teoricamente a sua
posição; os astrônomos posteriormente conseguiram observálo. O mesmo fato se repete em relação a Netuno, que
aparentemente não cumpria as leis da mecânica. Mais uma
vez, salva-se a teoria de Newton admitindo-se a existência de
uma perturbação provocada por um planeta ainda
desconhecido, mais uma vez os astrônomos conseguiram
observar a existência do novo planeta, Plutão.
A descoberta dos dois últimos planetas do sistema
solar exemplifica um outro aspecto relativo ao método
científico: a possibilidade de se evitar o falseamento de uma
teoria a partir de uma hipótese suplementar. Se a
consequência de uma teoria é contraditada pelos fatos,
logicamente é possível retransmitir a falsidade às condições
iniciais ou de contorno ao invés de retransmiti-la à teoria. Foi
isso que efetivamente ocorreu quando da descoberta dos dois
últimos planetas. Entretanto, essa hipótese, que salva a teoria,
é testável de forma independente. Hipóteses suplementares,
que não sejam testáveis independentemente, isto é, hipóteses
ad-hoc (hipóteses a favor das quais os únicos fatos são aqueles
que elas pretendem explicar) devem ser evitadas.
216
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Quando uma teoria é refutada, como finalmente o foi a
mecânica newtoniana, a nova teoria deverá ser capaz de
explicar todos aqueles fatos corroboradores da teoria superada
e os novos fatos que a refutaram. A antiga teoria pode, então,
sobreviver como um caso limite da nova teoria.
Historicamente, é o que aconteceu com as teorias de Galileu e
Kepler, que são casos limites da teoria de Newton; esta, por
sua vez, é um caso limite da teoria de Einstein.
Para concluir esta seção, são citados alguns trechos da
palestra que Popper proferiu em 1948, intitulada “O Balde e o
Holofote: Duas Teorias do Conhecimento”, que ajudam a
compreender as questões até aqui apresentadas.
Não há estrada, real ou como seja, que leve da necessidade de
um “dado” conjunto de fatos específicos a qualquer lei
universal. O que chamamos “leis” são hipóteses ou
conjecturas que sempre fazem parte de um sistema de teorias
mais amplo (de fato, de um horizonte inteiro de expectativas)
e que, portanto, não podem ser testadas em isolamento. O
progresso da ciência consiste de experiências, de eliminação
de erros, e de mais tentativas guiadas pela experiência
adquirida no decorrer das tentativas e dos erros anteriores.
Nenhuma teoria em particular pode, jamais, ser considerada
absolutamente certa: cada teoria pode tornar-se problemática,
não importa quão bem corroborada possa parecer agora.
Nenhuma teoria científica é sacrossanta ou fora de crítica
(POPPER, 1975, p. 330).
Popper continua afirmando que esse fato foi esquecido
principalmente no século XIX quando, devido às
corroborações espetaculares das teorias mecânicas, elas vieram
a ser tomadas como verdadeiras e
chegamos agora a ver que é tarefa do cientista submeter sua
teoria a testes sempre novos e que nenhuma teoria deve ser
declarada definitiva. Realizam-se os testes tomando a teoria a
ser testada e combinando-a com todos os tipos possíveis de
condições iniciais, assim como outras teorias, e comparando
217
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
então com a realidade as predições resultantes. Se isto leva a
expectativas decepcionantes, a refutações, então teremos que
reconstruir nossa teoria (POPPER, 1975, p. 331).
A única forma do conhecimento científico avançar é
através do falseamento das teorias. “É verificando a falsidade
de nossas suposições que de fato entramos em contato com a
‘realidade’” (POPPER, 1975, p. 331). Entretanto, sempre é
possível salvar a teoria da refutação através de hipóteses
suplementares, mas esse não é o caminho do progresso.
A reação adequada ao falseamento é buscar novas teorias que
pareçam ter a possibilidade de oferecer-nos melhor apreensão
dos fatos. A ciência não está interessada em teorias que
pareçam ter a probabilidade de oferecer-nos melhor apreensão
dos fatos. A ciência não está interessada em ter a última
palavra, se isso significar o fechamento de nossas mentes ao
falseamento das experiências, mas sim em aprender com as
nossas experiências; isto é, em aprender com os nossos
enganos (POPPER, 1975, p. 331).
Finalmente, Popper conclui dizendo que os princípios
do progresso científico são muito simples:
Requerem que abandonemos a ideia antiga de que podemos
atingir a certeza (ou mesmo um alto grau de ‘probabilidade’
no sentido do cálculo de probabilidade) com as proposições
ou da ciência (ideia que deriva da associação da ciência com a
magia e do cientista com o mago): o alvo do cientista não é
descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada
vez melhores (ou inventar holofotes cada vez mais potentes),
capazes de ser submetidas a testes cada vez mais severos (e
conduzindo-nos com isto sempre a novas experiências, que
iluminam para nós). Mas isto significa que essas teorias
devem ser mostradas falsas: é pela verificação de sua falsidade
que a ciência progride (POPPER, 1975, p. 332).
218
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO
Outro problema da filosofia da ciência com que Popper
se preocupou é o chamado “problema da demarcação”, ou,
como ele mesmo formula, “como é que se pode distinguir as
teorias
das
ciências
empíricas
das
especulações
pseudocientíficas, não científicas ou metafísicas?” (POPPER,
1987, p. 177).
Para os indutivistas, a demarcação entre ciência
empírica e pseudociência, não ciência e metafísica era
realizada pelo “método indutivo”. As teorias científicas eram
obtidas a partir dos fatos e podiam por eles ser verificadas.
Além disso, os positivistas (indutivistas) tomaram o termo
metafísico como pejorativo: as ideias metafísicas não tinham
qualquer importância para a ciência, pois, na sua opinião,
careciam de sentido.
Para Popper, ao contrário, o critério de demarcação é
dado pela refutabilidade ou testabilidade. As teorias das
ciências empíricas podem em princípio ser refutadas pelos
fatos; porém, as teorias pseudocientíficas, não científicas ou
metafísicas não são testáveis, ou seja, não há fatos que as
possam refutar.
Essa é uma concepção de ciência que considera a abordagem
crítica sua característica mais importante. Para avaliar uma
teoria o cientista deve indagar se pode ser criticada – se se
expõe a críticas de todos os tipos e, em caso afirmativo, se
resiste a essas críticas (POPPER, 1982, p. 284).
A irrefutabilidade das teorias não é uma vantagem e
não pode ser confundida com a verdade. É possível se ter duas
teorias contrárias, o que implica que ambas não podem ser
verdadeiras, apesar de ambas serem irrefutáveis (um exemplo
de teorias contrárias e irrefutáveis é o determinismo e o
indeterminismo), por isso não é uma atitude científica a
formulação de uma teoria irrefutável, assim como também não
219
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
é uma atitude científica o salvamento da teoria através de
hipótese ad hoc. Entretanto, Popper nota a existência de teorias,
tidas como científicas, que são capazes de dar conta de
qualquer fato. Não importando qual seja o fato em pauta, ele
sempre poderá ser tomado como uma “verificação” da teoria.
Entre essas teorias pseudocientíficas, ele cita a psicanálise de
Freud, a psicologia individual de Adler e o materialismo
histórico de Marx. Neste sentido, afirma Popper,
um marxista não era capaz de olhar para um jornal sem
encontrar em todas as páginas, desde os artigos de fundo até
os anúncios, provas que constituíam verificações da luta de
classes; e encontra-las-ia sempre também (e em especial)
naquilo que o jornal não dizia. E um psicanalista, fosse ele
freudiano ou adleriano, diria sem dúvida que todos os dias,
ou até de hora a hora, estava a ver as suas teorias verificadas
por observações clínicas (POPPER, 1987, p. 180).
O método de procurar verificações para as teorias,
utilizado pelos freudianos, adlerianos, marxistas e astrólogos,
além de ser acrítico, promovia uma atitude acrítica nos leitores
e “ameaçava assim destruir a atitude de racionalidade, de
argumentação crítica” (POPPER, 1987, p. 181).
Popper não considera a metafísica necessariamente
destituída de sentido como faziam os positivistas: com efeito,
afirma, “é impossível negar que, a par de ideias metafísicas
que dificultam o avanço da ciência, têm surgido outras – tais
como as relativas ao atomismo especulativo – que o
favoreceram” (POPPER, 1985, p. 40).
Um exemplo importante de como a metafísica inspira
as teorias científicas é a revolução copernicana. Copérnico teve
a ideia de colocar o Sol como centro, em vez da Terra, não
devido a novas observações astronômicas, mas sim devido a
uma interpretação de fatos à luz de concepções semireligiosas, neoplatônicas. Para os platônicos e neoplatônicos, o
220
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Sol era o astro mais importante e por isso não poderia girar em
torno da Terra, esta é que deveria girar em torno do Sol.
Kepler foi um seguidor de Copérnico e, assim como
Platão, estava imerso em ensinamentos astrológicos. Kepler
procurava descobrir a lei aritmética subjacente à estrutura do
mundo (misticismo numerológico dos pitagóricos), que
forneceria, entre outras coisas, os raios das órbitas circulares
planetárias. Ele nunca encontrou o que procurava, não
descobriu, nos dados de Tycho Brahe, a desejada confirmação
da crença que Marte girava em torno do Sol em movimento
circular uniforme. Os dados de Tycho Brahe levaram-no a
refutar a hipótese de órbita circular. Depois de diversas
tentativas, adotou a hipótese de órbita elíptica e pôde então
notar que as observações astronômicas podiam se ajustar a
essa nova hipótese somente se admitisse que Marte não se
deslocava com velocidade constante. “As observações
astronômicas não provaram que a hipótese elíptica estava
correta, mas podiam ser explicadas por essa hipótese –
ajustavam-se a ela” (POPPER, 1982, p. 215). Apesar da
inspiração metafísica, Kepler foi um crítico. Aceitou a
refutação da sua teoria pelos fatos e formulou uma nova
teoria.
A ideia metafísica que talvez tenha motivado o maior
número de descobertas científicas foi a da “pedra filosofal”
(existe uma substância capaz de transformar metais vis em
ouro). Esses e outros exemplos da história de ciência mostram
que a metafísica pode servir como ponto de partida para as
teorias científicas e que, portanto, teorias metafísicas não são
necessariamente sem sentido.
Para os positivistas, era muito importante justificar de
onde o cientista formulou a teoria e a única fonte válida para a
formulação da teoria estava nos fatos. Para Popper, a questão
epistemológica importante não tem a ver com as fontes da
teoria (todas as fontes são válidas e bem-vindas), mas tem a
221
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ver com a testagem da teoria. “Não há ‘fontes últimas’ do
conhecimento. Toda fonte, todas as sugestões são bem-vindas;
e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exame crítico”
(POPPER, 1982, p. 55).
A TEORIA DO CONHECIMENTO
Popper denomina de “teoria do balde mental” a
concepção de que nosso conhecimento consiste em percepções
acumuladas ou em percepções assimiladas, separadas e
classificadas. “O ponto de partida desta teoria é a doutrina
persuasiva de que, antes de podermos conhecer ou dizer
qualquer coisa acerca do mundo, devemos ter tido percepções
– experiências de sentido” (POPPER, 1975, p. 313).
Os empiristas ingênuos aconselham-nos a interferir o
mínimo possível no processo de acumular conhecimento.
Segundo eles, o conhecimento verdadeiro está livre de
preconceitos, ele é constituído da experiência pura e simples.
Popper contesta a “teoria do balde”, notando que o que
tem valor para o conhecimento é mais do que a simples
percepção, é a observação. Esta é um processo ativo, é uma
percepção planejada e organizada. Qualquer observação é
precedida de um problema, uma hipótese que a orienta. As
observações são sempre seletivas e pressupõem um princípio
de seleção. Não é possível observar tudo, aquilo que se
observa já é antecedido por algo teórico. Assim, todas as
observações estão impregnadas de teoria.
Em cada instante de nosso desenvolvimento pré-científico ou
científico estamos vivendo no centro do que costumo chamar
um ‘horizonte de expectativas’. Com isto, quero significar a
soma total de nossas expectativas, sejam subconscientes, ou
talvez mesmo explicitamente proferidas em alguma
linguagem (POPPER, 1975, p. 317).
222
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A observação é importante, pois em função dela
poderemos alterar a teoria que a originou. Nesse sentido, é
possível sustentar que o novo conhecimento (nova teoria) é
precedido pela observação.
A “teoria do balde” considera que as hipóteses surgem
da observação por generalização, associação, ou classificação.
Em contraste, podemos agora dizer que a hipótese (ou teoria
expectativa, ou seja lá o que se chame) precede a observação,
ainda que uma observação que refute certa hipótese possa
estimular uma nova hipótese (e, portanto, uma
temporalmente posterior) (POPPER, 1975, p. 318).
A hipótese é um guia, que “ilumina” as observações e
conduz a novos resultados observacionais (“teoria do
holofote”). A ciência nunca está livre de suposições, o que
caracteriza a ciência é a possibilidade de se criticar as
suposições.
A “teoria do holofote” pode ser representada pelo
esquema abaixo:
P1 →TS →EE →P2
P1 é o problema de partida; TS é a tentativa de solução,
é a hipótese ou teoria que conjecturamos para resolver o
problema; EE (eliminação do erro) consiste em um rigoroso
exame crítico da teoria; P2 é o problema que emerge da
primeira tentativa crítica da solução.
A teoria do conhecimento de Popper é evolucionária. O
conhecimento evolui por um processo de tentativa e
eliminação do erro. A sua concepção é uma extensão do
darwinismo ao problema do conhecimento. As teorias “mais
aptas à sobrevivência” passam pelo crivo da crítica racional e
empírica, entretanto, a sobrevivência passada não garante a
223
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
sobrevivência no futuro, pois o exame crítico sempre poderá
ser aprofundado, levando à refutação.
Ele estende a sua teoria do conhecimento além do
conhecimento científico, pois acredita que todo o
conhecimento surge da necessidade de solucionar problemas e
é sempre precedido por uma expectativa, hipótese ou teoria.
Os seres vivos já trazem teorias inatas, talvez determinadas
geneticamente. A aprendizagem por tentativa e erro é
confundida com a aprendizagem por repetição (indução).
AS IDEIAS DE POPPER E O ENSINO DA CIÊNCIA
A versão indutivista (empirista) da ciência continua
dominante entre os professores e cientistas. Ela pode ser
encontrada facilmente nos livros-texto, como exemplificam as
citações seguintes: “As leis da física são generalizações de
observações e de resultados experimentais” (TIPLER, 1978, p.
3); “Tudo que sabemos a respeito do mundo físico e sobre os
princípios que o governam foi aprendido de observações dos
fenômenos da natureza” (SEARS; ZEMANSKY; YOUNG,
1983, p. 3); “A física, como ciência natural, parte de dados
experimentais” (NUSSENZVEIG, 1981, p. 5); “Através de um
processo indutivo, [é possível] formular leis fenomenológicas,
ou seja, obtidas diretamente a partir dos fenômenos
observados” (NUSSENZVEIG, 1981, p. 5). Ainda nos livrostexto a versão indutivista é encontrada nas “reconstruções
racionais” da criação das teorias a partir dos fatos.
As atividades experimentais são outros bons exemplos
da influência do empirismo. Quantas vezes os alunos são
levados ao laboratório para que aprendam como as teorias são
construídas a partir dos fatos, ou para verificarem a verdade
das teorias.
Há necessidade de uma mudança de concepção.
Mesmo aqueles filósofos da ciência que criticam Popper, como
224
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Kuhn e Feyerabend, por exemplo, aceitam a posição
popperiana de que a concepção indutivista está ultrapassada.
Um possível caminho para se conseguir essa mudança de
mentalidade é a introdução de disciplinas de filosofia e
história da ciência nos cursos de graduação. Penso que essas
disciplinas não devam ocorrer no início do curso, mas no final,
quando o aluno já tenha um bom domínio do conteúdo da
ciência que estuda e talvez já tenha se deparado com
problemas relativos ao conhecimento científico.
Passarei agora a abordar alguns aspectos do ensino da
ciência que têm relação com as ideias de Popper e que deverão
ser repensados em função destas.
Para algumas pessoas, o problema da aprendizagem
estaria resolvido se o aprendiz entrasse em contato com os
fatos. Se o aluno tiver a possibilidade de realizar
experimentos, redescobrirá as leis e as teorias. Portanto seria
suficiente que a abordagem de um novo conteúdo começasse
com atividades experimentais. Essa forma de encarar o
processo de construção e aquisição do conhecimento nada
mais é do que a “teoria do balde mental”. Mesmo que fosse
possível a construção da teoria a partir dos fatos, é
ingenuidade crer que o aluno pudesse reconstruir em curto
espaço de tempo o conhecimento científico produzido em
muitos anos ou até mesmo em séculos. Fica evidente, na
“teoria do holofote”, a importância de todo o conhecimento
trazido pelo aluno. O aluno não pode ser tratado como uma
“tábula rasa”, as teorias ou expectativas que ele traz são
relevantes para a aquisição do novo conhecimento. Popper
afirma que todo o novo conhecimento é uma modificação do
conhecimento anterior.
Penso que o ensino poderá ser mais eficiente na
medida em que o professor conhecer as teorias que seus
alunos possuem. Uma formulação clara e precisa dessas ideias
seria tomada como ponto de partida. Nesse sentido, temos
225
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
aprendido muito nos últimos anos através dos estudos
voltados às concepções alternativas, intuitivas, espontâneas ou
seja lá como nós as denominamos.
O primeiro passo seria a crítica dessas ideias: o
professor deverá ser capaz não apenas de apresentar a “teoria
oficial” mas também de criticar as teorias inadequadas. Ele
não pode assumir a posição ingênua de acreditar que seus
alunos aprenderão porque ele está ensinando “o certo”; um
professor já dizia: esqueçam tudo que vocês sabem porque
agora eu lhes ensinarei a verdade. Ele não pode admitir que os
alunos sejam capazes de efetivamente abandonar as suas
ideias enquanto essas não forem mostradas como
problemáticas. O confronto entre a “teoria oficial” e a(s)
“teoria(s) alternativa(s)” não deve ser evitado, ele é desejável e
necessário para que o aluno perceba a vantagem da primeira.
O professor também não pode esquecer que o aluno sempre
terá a possibilidade de fugir à refutação da sua teoria através
da introdução de hipóteses suplementares.
Atrevo-me a propor uma sequência de passos, coerente
com as ideias de Popper, visando à superação da “teoria
alternativa” e à apreensão da “teoria oficial”:
a) primeiro passo: formulação mais clara e precisa
possível da “teoria alternativa”;
b) segundo passo: discussão crítica da “teoria
alternativa”, visando não apenas identificar pontos
problemáticos, mas também corroborações. Essa discussão
crítica pode ter aspectos não-empíricos e exclusivamente
racionais, lógicos. Às vezes, é possível apontar uma
inconsistência lógica dentro da “teoria alternativa”: os
experimentos mentais têm essa função e Popper dedica uma
seção sobre eles em seu A Lógica da Pesquisa Científica. A crítica
empírica também é relevante, ou seja, é preciso mostrar casos
226
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
refutadores da “teoria alternativa”. Se a “teoria alternativa”
reproduzir alguma teoria encontrada ao longo da história da
ciência, pode-se buscar na história os subsídios relevantes; e
c) terceiro passo: apresentação da “teoria oficial” e seu
debate crítico. É importante ressaltar as vantagens dessa teoria
sobre a anterior, mostrar como ela é capaz de dar conta tanto
de todos os aspectos que corroboravam quanto dos aspectos
problemáticos da anterior.
Penso também que essa discussão deva ser retomada
diversas vezes, em momentos diferentes, quando se avança em
profundidade na “teoria oficial”. Creio que um bom indicador
da apreensão da “teoria oficial” pelo aluno é quando ele se
torna capaz de responder questões baseando-se em ambas as
teorias.
Tentarei exemplificar esses passos com uma “teoria
alternativa” à mecânica newtoniana (o leitor certamente
poderá melhorar o exemplo):
a) primeiro passo: a “teoria alternativa” pode ser
formulada em termos dos seguintes princípios: para que um
corpo esteja em movimento, deve agir sobre ele uma força; a
força e a velocidade do corpo têm a mesma orientação; e
quanto maior a força, maior é a velocidade;
b) segundo passo: trazer casos que corroboram a teoria
(por exemplo: um corpo que estava em repouso sobre a mesa
do professor é colocado em movimento através de uma força
aplicada por este, a orientação do movimento desse corpo
coincide com a da força, etc).
Uma conclusão importante que pode ser derivada dos
princípios enunciados no primeiro passo é a seguinte:
cessando a força, cessa o movimento. O professor notará,
227
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
então, que a força que ele aplica no corpo sobre a mesa cessa
quando ele perde o contato com o corpo. A experiência
mostrará que a cessação do movimento ocorrerá algum tempo
depois da perda do contato. O professor observará a existência
de outras ações sobre o corpo, em especial a da mesa na
direção paralela à superfície (força de atrito), que não cessam
quando ele deixa de agir. Uma possibilidade de evitar essa
refutação é formular a hipótese ad hoc de que a força que o
professor fez ficou impressa, capitalizada no corpo;
c) terceiro passo: enunciar a primeira e a segunda leis
de Newton, retomar os exemplos práticos anteriores,
mostrando que as leis de Newton dão conta de explicá-los;
enfatizar que a diminuição da velocidade e o retorno ao
repouso observados no corpo sobre a mesa é consequência da
força de atrito; prever, a partir da teoria, uma duração mais
longa para o movimento do corpo quando a força de atrito for
menor; e testar experimentalmente essa conclusão (aqui se
poderia relatar as experiências de Galileu a esse respeito).
Essa foi, grosso modo, a sequência seguida pelo
professor e relatada no artigo “Validação de um teste para
detectar se o aluno possui a concepção newtoniana sobre força e
movimento” (SILVEIRA, et al., 1986). Conforme esse artigo,
poder-se-ia atribuir a mudança significativa observada na
concepção dos alunos à sequência apresentada.
Nas atividades de laboratório, é usual propor um
experimento no qual o aluno, manipulando uma variável (por
exemplo, a diferença de potencial elétrico aplicada sobre um
condutor), observa e mede o comportamento de outra variável
(por exemplo, a intensidade da corrente elétrica no mesmo
condutor), obtenha uma série de pontos. Em seguida, pede-se
que o aluno descubra a lei que rege o fenômeno, encontrando
a curva que descreve o comportamento observado. Essa
228
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
proposta nada mais é que a aplicação do “método indutivo”.
Quando se pede que o aluno descubra a lei, está implícita a
ideia de que há uma maneira de determinar inequivocamente
a curva que descreve aqueles resultados experimentais.
Existem infinitas curvas que descrevem com precisão absoluta
os resultados obtidos (curvas que passam exatamente pelos
pontos obtidos) e outras infinitas curvas que descrevem os
mesmos resultados com o grau de precisão que se quiser
(curvas que passam próximas aos pontos obtidos). Não existe
um procedimento que leve a uma única curva (qualquer conjunto
de fatos é compatível com mais de uma lei conforme
destacado na terceira seção deste trabalho). Qualquer
procedimento analítico (como, por exemplo, o método dos
mínimos quadrados, para citar apenas um) permite,
especificada a forma da curva (por exemplo, uma equação do
segundo grau), determinar os parâmetros da equação. Em
outras palavras, se a lei for uma equação do segundo grau, o
método dos mínimos quadrados permitirá determinar a
melhor parábola que se adequa aos resultados experimentais.
Fica claro que essa proposição – descubra a lei a partir
dos dados – não é realizável. Qual é a abordagem mais
adequada? Uma possibilidade é solicitar ao aluno que formule
a sua teoria e verifique se os resultados experimentais são
compatíveis com ela. Por exemplo, se a sua teoria for uma
equação do primeiro grau, avalie se os pontos obtidos
experimentalmente se situam próximos de uma reta. A rigor,
para se efetivar este julgamento, o conhecimento de uma teoria
dos erros de medida terá que ser utilizada.
Outra possibilidade é fornecer a teoria ao aluno, em
vez de ele a formular, aliás, isso ocorre frequentemente, pois
as aulas de laboratório costumam ser antecedidas pelas aulas
teóricas sobre o assunto. Se o aluno já conhece a “teoria
oficial”, a atividade de laboratório consistirá na testagem da
teoria.
229
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A versão empirista do método científico não se
sustenta, como bem notou Popper, por volta de 1930.
Entretanto, os professores e os próprios cientistas ainda
acreditam nela. Urge que se adote a nova concepção: a teoria
vem antes dos fatos. Os fatos podem corroborar ou refutar a
teoria, mas nunca poderão prová-la: todo conhecimento
científico é conjectural e está aberto à crítica. É justamente o
aprofundamento do exame crítico, expondo uma teoria ao
falseamento, que torna possível o progresso e a evolução do
conhecimento.
REFERÊNCIAS
NUSSENZVEIG, H. M. Curso de física básica. São Paulo: Editora Edgard
Blücher, 1981.
POPPER, K. R. Conhecimento objetivo. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1975.
_______. Conjecturas e refutações. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1982.
_______. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix, 1985.
_______. O realismo e o objectivo da ciência. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1987.
SEARS, F.; ZEMANSKY, M. W.; YOUNG, H. D. Física 1 – Mecânica da
partícula e dos corpos rígidos. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
1983.
SILVEIRA, F. L.; MOREIRA, M. A.; AXT, R. “Validação de um teste para
detectar se o aluno possui a concepção newtoniana sobre força e
movimento”. Ciência e Cultura, v. 38, n. 12, p. 2047-55, 1986.
TIPLER, P. A. Física 1. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois,1978.
230
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 13
POPPER E A ECONOMIA: EXISTE UM MÉTODO PRÓPRIO PARA AS
CIÊNCIAS DA SOCIEDADE?
Brena Paula Magno Fernandez
Hands (1985) defende que o “PopperS” (o
epistemologista das ciências sociais) é tão diferente do
“PopperN” (o epistemologista das ciências naturais), que a
tese fundamental do monismo metodológico – tão
veementemente defendida por Popper em The Poverty of
Historicism e em The Open Society and its Enemies – é
manifestadamente falsa. No que segue, pretendemos endossar
esta posição, explicitando os argumentos de Popper no que
concerne à metodologia das ciências sociais e, em particular, à
metodologia da economia. A fim de atingir tal objetivo, será
necessário reconstruir os argumentos de Popper em três
momentos distintos de sua defesa (a) do monismo
metodológico (através do modelo nomológico-dedutivo), (b)
do falseacionismo e (c) da lógica situacional (e do princípio da
racionalidade).
INTRODUÇÃO
A questão se as ciências sociais são realmente ciências,
no sentido forte da palavra, há muito vem provocando uma
acalorada discussão entre os filósofos que se debruçam sobre o
tema. Perguntar sobre o estatuto epistemológico dos
231
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
fenômenos sociais (em relação aos fenômenos naturais)
remete-nos inevitavelmente a outra questão: se as ciências
sociais – incluindo aqui, naturalmente, a economia – estão ou
não autorizadas a ingressar no seleto rol da “boa ciência”, que
historicamente tem como paradigma a física clássica e seus
métodos próprios de investigação. Tendo em mente os
problemas metodológicos específicos das ciências sociais, esse
trabalho se propõe discutir algumas contribuições de um dos
filósofos da ciência de maior influência do século XX – o
professor Karl Popper.
Em suas duas primeiras obras de maior repercussão
internacional (A Miséria do Historicismo e A Sociedade Aberta e
seus Inimigos), Popper coloca-se declaradamente na posição de
defensor da unicidade metodológica para todas as ciências.
Naquele momento, em que pese sua já presente preocupação
com o falseacionismo, o método científico consiste, para ele,
sobretudo no modelo nomológico-dedutivo de explicação. Sendo
assim, qualquer cientista, pertencesse ele ao âmbito natural ou
social, deveria estar fundamentalmente interessado na
explicação causal e, como consequência, na previsão de eventos
específicos em suas respectivas áreas de conhecimento, já que
explicação e previsão são, segundo essa abordagem,
logicamente equivalentes, e correspondem tão somente a “dois
lados da mesma moeda”.
Não obstante, no decorrer deste capítulo, procuramos
defender a tese de que, com o amadurecimento da reflexão
metodológica de Popper, sua de início veemente defesa de um
isomorfismo lógico entre os métodos das ciências naturais e
sociais foi paulatinamente enfraquecendo, até o ponto em que,
nos seus ensaios do final dos anos sessenta do século XX, o
amadurecimento dos conceitos de “análise situacional”,
“lógica situacional” e “compreensão objetiva” como que
aproxima-o de um certo dualismo metodológico entre essas
232
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
áreas do conhecimento, incorporando, entretanto, as
exigências do falseacionismo.
Essa leitura da obra de Popper (com relação à
flexibilização em sua concepção do método), vai na contramão
de uma visão mais difundida que se tem desse autor, qual seja,
a acusação que seus críticos [que vão de Habermas e Adorno a
Feyerabend, passando por Brian Fay e Lezlek Koolakowski (in
FARR, 1983, p. 157)] insistentemente fazem, e que ele próprio
insistentemente rejeita: a de ser um positivista.
Podemos apontar brevemente pelo menos três razões
para aquilo que Popper encarava como um “mal entendido”.
A primeira delas é óbvia: apesar de em sua Autobiografia
Intelectual (1974, p. 95-6) afirmar ter “matado o positivismo”,
Popper concentra, em seus primeiros trabalhos de grande
repercussão, como foi dito, todo seu poder de fogo na
argumentação a favor da explicação dedutivo-causal e na
defesa da unicidade da ciência, o que naturalmente sempre
funcionou e continuará funcionando como combustível para
seus críticos.
A segunda razão é de caráter histórico. O primeiro
artigo em que Popper explicita esse dualismo com todas as
letras – e que levou Farr (1983) inclusive a argumentar no
sentido da existência de uma hermenêutica popperiana
(Popper´s Hermeneutics) –, foi publicado pela primeira vez em
francês, em 1966 (POPPER, 1966), e demorou a ser traduzido
para o inglês, o que arrefeceu o impacto que certamente teria
causado caso as circunstâncias fossem outras.
Por fim, podemos ainda mencionar o fato de que os
trabalhos de Popper que se centraram na discussão
metodológica das ciências sociais, como não poderia ter sido
diferente, permaneceram ofuscados por aqueles onde a
proposta
do
falseacionismo
como
alternativa
ao
verificacionismo ocupava o centro das atenções, como bem
salienta Matzner, 1997 (in NOTTURNO, 1998, p. 401):
233
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
In spite of Popper´s forceful plea for ‘situational analysis’, its
impact, compared to the attraction of his ‘falsification
criterion’, was very modest. There are hardly more than a
dozen articles in the specialist literature.
A divisão dos temas a serem abordados foi concebida
em três blocos, além desta introdução, a saber: a parte inicial
deste trabalho (item 2) se ocupa do primeiro momento da
metodologia de Popper, na qual o autor se coloca na posição
de defensor da unicidade do método científico, mediante a
análise de suas duas primeiras obras de maior projeção: A
Miséria do Historicismo e A Sociedade Aberta e seus Inimigos.
O passo seguinte (item 3) será mostrar o início de uma
fase de transição, na qual Popper se vê obrigado a adotar uma
flexibilização em sua definição de método científico, no
sentido de não mais identificá-lo ao modelo nomológicodedutivo de explicação e, como decorrência, à explicação do
tipo causal. Serão utilizados os artigos “Previsão e Profecia nas
Ciências Sociais” – de sua obra Conjecturas e Refutações, bem
como algumas teses de A Lógica das Ciências Sociais.
A última sessão (item 4) se propõe a discutir a fase
mais madura da reflexão metodológica popperiana,
encontrada mais especificamente nos artigos: “La Rationalité et
le Statut du Principe de Rationalité”, “Models, Instruments and
Truth – The status of the rationality principle in social sciences” e
“A Pluralistic Approach to the Philosophy of History”, de 1966,
1967 e 1969, respectivamente, nos quais Popper, através de
uma melhor lapidação dos conceitos de “sociologia
compreensiva”, “lógica situacional” e “princípio da
racionalidade” passa ao reconhecimento de uma metodologia
própria e característica para as ciências sociais69 e, como
69 Uma conclusão semelhante é defendida por Hands (1985), que critica a utilização da
abordagem falseacionista como aquela mais adequada para a economia “The problem
with this strict falsificationist view of Popper is that it is inconsistent with what
234
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
decorrência dessa mudança, surge a conscientização da
impropriedade de se fazer previsões específicas no âmbito
social – inclusive na Economia – área onde de início ele as
aceitava.
1. A DEFESA DO MÉTODO UNO: O MODELO NOMOLÓGICO –
DEDUTIVO
Nos anos 1940, Popper publica duas obras de grande
repercussão na filosofia da ciência: em 1944, A Miséria do
Historicismo, que tem como uma de suas principais teses a
defesa de que a história não possui um sentido ou uma direção
particular, e A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de 1945, cujo
objetivo central é basicamente político: a defesa da sociedade
democrática. Nesse último texto, Popper rejeita dois tipos de
filosofia, segundo ele reacionárias e utópicas – o platonismo e
o marxismo –, que teriam oferecido a legitimação
intelectual/filosófica para dois regimes totalitários – o de
Hitler e o de Stalin, respectivamente (MAGEE, 1973, p. 88ss).
Nosso intuito nesse momento, entretanto, será
examinar um tema que aparece de forma secundária, porém
recorrente, nesses dois trabalhos: a discussão de qual o método
mais adequado para o tratamento das ciências sociais. Nesses
dois trabalhos, Popper apresenta uma tinta claramente
positivista em dois sentidos importantes: em primeiro lugar,
por defender um monismo metodológico no sentido
Popper and the Popperians within philosophy of science have actually written about
economics and other social sciences. In the few places where Popper directly refers to
economics, he is almost never discussing his falsificationist approach to natural
science. Instead, economics is discussed in the context of his ‘situational analysis’ or
‘situational logic’ approach to historical and social explanation” (Hands, 1985, p. 84).
Hands considera que a lógica situacional oferece de fato uma proposta diferente para
o tratamento dos fenômenos sociais e propõe que se distingua entre as duas
abordagens, o PopperN (para as ciências naturais) e o PopperS (para as ciências
sociais).
235
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
tradicional do termo, isto é, a ideia de unidade do método
científico independentemente da diversidade dos objetos
temáticos da investigação. E depois, por adotar uma visão
muito específica de explicação – a causalidade – como a única
forma capaz de satisfazer as exigências de um tratamento
genuinamente
científico
(o
que,
automaticamente,
inviabilizaria outras possibilidades de explicação, como a
intencional [ou teleológica] e a funcional).
A explicação causal consiste na subsunção de casos
individuais sob leis gerais hipotéticas. O que se tem aqui, em
suma, é uma elaboração do modelo nomológico (ou
hipotético) – dedutivo de explicação científica. Esse modelo foi
concebido de forma sistemática pela primeira vez, por Karl
Popper, em sua Lógica da Pesquisa Científica, em 1934 (posição
que depois ele viria a repetir em A Miséria do Historicismo, de
1944), e por Carl Hempel, em seu ensaio “The Function of
General Law in History”, publicado no Journal of Philosophy, em
1942. Trata-se, em última instância, de uma tentativa de se
responder à seguinte questão: “o que é uma boa explicação?”.
Segundo esse modelo, uma explicação científica é um conjunto
de enunciados científicos composto pelo Explanandum e o
Explanans.
Podemos dizer que o Explanandum (ou Explicandum) é
uma descrição do fenômeno a ser explicado. O Explanans, por
sua vez, está constituído pelas premissas, que são as condições
iniciais em conjunto com as leis universais. As condições
iniciais descrevem as causas do fenômeno cuja descrição
desejamos explicar, enquanto que a lei científica fornece-nos
uma relação (universal) entre magnitudes.
Ao defender o monismo – ou seja, a existência de um
isomorfismo lógico entre as ciências naturais e sociais – e a
necessidade de se buscar explicações causais, Popper
automaticamente inclui as previsões de eventos específicos
236
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
como parte daquilo que qualquer cientista (inclusive social)
deveria buscar.
Outro aspecto de fundamental relevância nessa
discussão, que precisa ser enfatizado, é o significado atribuído
por Popper, nessas obras, ao seu “Método de Hipóteses”. Este
consiste no elaborar conjecturas ousadas e submetê-las a teste
com o objetivo de rejeitar as falsas teorias e aceitar
momentaneamente aquelas que resistiram à refutação, ou seja,
no princípio do falseacionismo. Esta proposta já coexiste, em
caráter ainda incipiente, com a necessidade de busca por
explicações causais.
Naquele momento, Popper – assim como Hempel –
acreditam que não só os fenômenos naturais, como também a
ação humana deveriam ser explicados pelo modelo
nomológico-causal. Nesse último caso, o Explanandum se
traduziria na ação humana que se deseja explicar e o Explanans
estaria constituído pela lei geral (e trivial) da racionalidade da
ação humana (o princípio de racionalidade), e pelas condições
iniciais (expressas pelas metas do agente, bem como pela
consideração de outros fatores relevantes que definem a
situação).
Essa posição pode ser verificada com clareza no
seguinte trecho de A Sociedade Aberta e seus Inimigos:
Na realidade, a maior parte das explicações históricas utiliza
não tanto leis psicológicas e sociológicas triviais, mas [...] a
lógica da situação; isto é, além das condições iniciais que
descrevem os interesses pessoais, os objetivos e outros fatores
situacionais, tal como a informação disponível à pessoa
envolvida, tacitamente ela admite, como espécie de primeira
aproximação, a lei trivial geral de que pessoas de juízo
perfeito, em regra, agem mais ou menos racionalmente
(POPPER, 1945, p. 273).
tarde
Como se vê, temos aqui a lógica da situação (que mais
Popper reformula e chama de “princípio da
237
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
racionalidade”), funcionando como um enunciado nomológico
(inexato, é preciso que se diga), mas ao qual sempre
recorremos para explicar uma ação, talvez até mesmo por falta
de uma alternativa melhor, isto é, uma ideia não muito clara
de “lei trivial do comportamento humano” (que nos anos
subsequentes viria a ser amadurecida e apresentada em
pormenores). Ainda em A Sociedade Aberta, lemos que:
O método da ciência reside antes na procura de fatos que
possam refutar a teoria. É a isso que chamamos comprovar
uma teoria – ver se podemos ou não encontrar brechas nela
[...] Sustento, assim, que é a possibilidade de derrubá-la, ou
sua falsificabilidade, o que constitui a possibilidade de pô-la a
prova e, portanto, de comprovar o caráter científico de uma
teoria; e o fato de que todas as provas de uma teoria são
tentativas de desmentir as predições que se deduzem com sua
ajuda fornece a chave do método científico (POPPER, 1945, p.
268).
Ou seja, conforme já observamos, a concepção
falseacionista já está presente na proposta de unicidade
metodológica de Popper. Entretanto, como vimos nos
parágrafos anteriores, a ênfase, nesse momento, recai sobre o
caráter causal das explicações científicas, e não sobre a
necessidade de falseamento de teorias, uma vez que o aparato
hipotético-dedutivo funciona como um pré-requisito (via
predições de eventos) para a possibilidade do falseamento das
teorias, conforme percebemos da última citação de A Lógica da
Pesquisa Científica.
Constatamos, portanto, que a estrutura lógica da
explicação nas ciências é sempre a mesma (e constitui-se no
modelo nomológico-dedutivo em conjunto com o
procedimento de teste e falseamento de teorias).
238
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
2. A FASE DE TRANSIÇÃO
Neste momento da argumentação, concentramo-nos na
reflexão sobre alguns trabalhos do professor Popper nos quais
acreditamos encontrar indícios (de início tímidos, mas que
depois se tornam cada vez mais claros) que apontam para um
afrouxamento de sua defesa da unicidade metodológica para
as ciências, como entendido naquele primeiro momento de
meados dos anos trinta que analisamos acima; ou seja, no
sentido que equipara o método científico ao modelo
nomológico-dedutivo e, consequentemente, à explicação do
tipo causal.
Junto a essa modificação na concepção do método
científico, especialmente no que tange à concepção de uma
metodologia própria e característica para as ciências sociais,
surge em Popper a conscientização da impropriedade das
previsões específicas no âmbito social – inclusive na Economia,
área onde de início ele as aceitava.
Estes textos foram publicados nos anos 1960, como “A
Lógica das Ciências Sociais”, de 1961 – da coletânea de ensaios
homônima –, e “Sobre a Teoria da Mente Objetiva”, de 1968, do
livro Conhecimento Objetivo.
No texto de 1961, Popper propõe vinte e cinco teses
relacionadas à lógica das ciências sociais. Temos, então, uma
elaboração mais minuciosa do que denominou “compreensão
objetiva”. Nesse seu trabalho, percebe-se em Popper,
diferentemente do que ocorria em versões anteriores, quase
que uma defesa de um dualismo metodológico justamente
através do amadurecimento desse conceito. Ali, a compreensão
objetiva e o princípio da racionalidade (que Popper não distingue)
são já tratados como um tipo de operação teórica de natureza
distinta da explicação do tipo causal.
Tratar-se-ia da conscientização, por parte de Popper, de
que, em determinados domínios do conhecimento, o nexo
causal perderia importância se comparado ao nexo teleológico.
239
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Em última instância, estaríamos nos referindo a uma opção ou
decisão metodológica, a dois modos distintos de interrogar os
fenômenos que se guiam por vínculos diferentes: do tipo causa
versus efeito (no caso da explicação causal) ou solução versus
problema (no caso da explicação do tipo teleológico).
Assim, teríamos que a compreensão não deveria ser
entendida como uma classe especial (ou talvez “parcial”) de
explicação causal: compreender não significa o mesmo que
determinar as causas (ou ainda os motivos ou estímulos) que
desencadearam um comportamento. As metas, as teorias, e as
pautas axiológicas, sob cuja consideração uma ação pode ser
julgada como “adequada à situação”, não são causa eficiente
da mesma, e por isso não se requer nenhum enunciado
nomológico que as vincule de modo necessário. A
compreensão não exibe uma conexão causal, mas sim
teleológica. Como ambas as operações – explicação causal e
explicação teleológica – respondem a interesses diversos, ou a
dois modos distintos de interrogar os fenômenos, uma nunca
poderá servir para responder as perguntas que pedem pela
outra (CAPONI, 1998, p. 34-35).
Voltando ao ensaio “A Lógica das Ciências Sociais”, na
sexta tese Popper começa a elaborar uma versão mais branda
do que a anterior daquilo que então acredita ser o método
científico:
Sexta tese: a) O método das ciências sociais, como aquele das
ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções
para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se
nossas investigações e aqueles que surgem durante a
investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma
solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente,
então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas
temporariamente (POPPER, 1961, p. 16).
Note-se que esta segunda formulação de seu “Método
de Hipóteses”, embora totalmente compatível com a primeira
240
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
e de certo modo já contida naquela, desloca a ênfase da
unicidade metodológica para a concepção falseacionista do
método científico (através do contraste das hipóteses com a
realidade), enfraquecendo a importância do caráter causal das
explicações, acentuada na versão anterior.
Mais adiante, ainda no mesmo artigo de 1961, Popper
elabora com mais detalhes seus conceitos de “sociologia da
compreensão objetiva”, “método da compreensão objetiva” ou
“lógica situacional”, já sinalizando no sentido de um
amolecimento em relação à sua postura anterior (de defesa
veemente do isomorfismo lógico entre as ciências naturais e
sociais). Sua vigésima quinta tese chama a atenção para o que
seria um método característico das ciências sociais. Popper,
além disso, enfatiza uma vez mais a independência da
sociologia (e das ciências sociais de maneira genérica) de todo
e qualquer subjetivismo ou psicologismo. Em sua opinião, por
exemplo, a Economia não pode ser reduzida à psicologia do
Homo-Oeconomicus70, como percebemos na citação talvez mais
representativa do texto, que por este motivo optamos por
reproduzir por inteiro:
Vigésima-quinta tese: A investigação lógica da Economia
culmina com um resultado que pode ser aplicado a todas as
ciências sociais. Este resultado mostra que existe um método
puramente objetivo nas ciências sociais, que bem pode ser
chamado de método de compreensão objetiva, ou de lógica
situacional. Uma ciência orientada para a compreensão
objetiva ou lógica situacional pode ser desenvolvida
independentemente de todas as ideias subjetivas ou
psicológicas. Este método consiste em analisar suficientemente
a situação social dos homens ativos para explicar a ação com a
ajuda da situação, sem outra ajuda maior da psicologia. A
compreensão objetiva consiste em considerar que a ação foi
objetivamente apropriada à situação. Em outras palavras, a
70 Talvez essa seja sua maior diferença com John Stuart Mill, que acreditava poder
justamente fazê-lo.
241
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
situação é analisada o bastante para que os elementos que
parecem, inicialmente, ser psicológicos (como desejos,
motivos, lembranças e associações), sejam transformados em
elementos da situação. O homem com determinados desejos,
portanto, torna-se um homem cuja situação pode ser
caracterizada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos;
e um homem com determinadas lembranças ou associações
torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo
fato de que é equipado, objetivamente, com outras teorias ou
com certas informações. Isso nos permite compreender, então,
ações em um sentido objetivo, a ponto de podermos dizer:
reconhecidamente, possuo diferentes alvos e sustento
diferentes teorias (de, por exemplo, Carlos Magno), mas se
tivesse sido colocado nessa situação, logo, analisado – então
eu, presumidamente vocês também, teria agido de uma forma
semelhante à dele. O método da análise situacional é,
certamente, um método individualista e, contudo, não é,
certamente, um método psicológico, pois exclui, em princípio,
todos os elementos psicológicos e os substitui por elementos
objetivos situacionais. Eu chamo isso, usualmente, de “lógica
situacional” ou “lógica da situação (POPPER, 1961, p. 31,
grifos nossos).
Assim, o fato dos indivíduos agirem racionalmente
significa que a ação está de acordo com a situação que se lhes
apresenta, levando em consideração as informações de que
dispõem no momento, suas crenças, e toda sorte de outros
fatores que ajudam a compor a situação, bem como seus
objetivos pessoais.
Aqui, o princípio da racionalidade, do qual a análise
situacional se utiliza, já não é mais tratado como um
enunciado nomológico como o foi em A Miséria do Historicismo
e mesmo em outros segmentos da própria Sociedade Aberta,
mas sim começaria a receber o tratamento de “máxima
regulativa da investigação social” (FARR, 1983). O método da
análise situacional é exposto de forma bastante clara na
seguinte passagem:
242
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
By situational analysis I mean a certain kind of tentative or
conjectural explanation of some human action which appeals
to the situation in which the agent finds himself. It may be a
historical: we may perhaps wish to explain how and why a
certain structure of ideas was created. Admittedly, no creative
action can ever be fully explained. Nevertheless, we can try,
conjecturally, to give an idealized reconstruction of the
problem situation in which the agent found himself, and to that
extend make the action ‘understandable’ (or rationally
understandable’), that is to say, adequate to his situation as he
saw it. This method of situational analysis may be described as
an application of the rationality principle (POPPER, 1968, p.
179).
3. A POSIÇÃO DEFINITIVA
O propósito deste último item é a apresentação de
alguns desenvolvimentos da fase mais madura de Popper, que
adquirem um caráter que difere em muito daqueles que
apresentava nos anos 40 do século XX. Em seu ensaio “A
Pluralistic Approach to the Philosophy of History”, por exemplo,
Popper reafirma seu esquema do método de ensaio e erro
(apresentado pela primeira vez em sua Lógica), e o apresenta
em pormenores. Um esquema simplificado da metodologia
nas ciências seria o seguinte (POPPER, 1969, p. 140):
P1 → TT → DC → P2, onde:
P1: problema inicial (prático, teórico ou histórico);
TT: teoria tentativa;
DC: discussão crítica e
P2: novo(s) problema(s).
Importante é observar que a investigação científica tem
início e fim com algum problema, o que é apenas uma outra
forma de dizer que, em última instância, ela não termina
243
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
nunca (NOTTURNO, 1998, p. 419). Uma vez que Popper
acredita firmemente não existir observação pura ou totalmente
descomprometida, toda investigação surge da constatação de
que há alguma incoerência entre nossos mitos e preconceitos
(ou aquilo que julgávamos conhecer) e aquilo que nos
apresentam os fatos (P1).
A partir da consciência do problema, partiríamos para
uma tentativa de resolução, através da elaboração de uma
série de conjecturas ou soluções tentativas para o problema
(TT). Essas múltiplas teorias seriam então submetidas à
discussão crítica (DC), o que teria como principal objetivo a
eliminação de erros. No final do processo, chegaríamos a
novos problemas (P2) e o ciclo se reiniciaria.
O esquema de ensaio e erro acima esboçado seria,
portanto, uma descrição do método compartilhado pelas
ciências teóricas, sejam elas naturais ou sociais, e também pela
História. Aqueles que negassem essa uniformidade estariam
movidos por uma total incompreensão acerca daquilo que de
fato consistiria o método das ciências naturais. Isso porque
ainda prevalecia a crença errônea e amplamente difundida de
que, nas ciências naturais, a investigação teria seu início na
observação dos fenômenos e, por meio de um processo de
indução, se chegaria à elaboração de teorias que explicassem
as regularidades observadas e que fossem capazes de prever
novas ocorrências do fenômeno. Entretanto, Popper não
acredita na possibilidade da observação pura e simples como
propulsora do processo de investigação, nem no âmbito das
ciências naturais nem no das ciências sociais.
Em outro artigo, em que continua abordando os
mesmos temas (“La Rationalité et le Statut du Principe de
Rationalité”, de 1966), Popper também analisa o status ou o
estatuto epistemológico desse princípio, investigando sua não
refutabilidade. Ele discute então duas alternativas: se
244
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
deveríamos considerá-lo como hipótese empírica ou como
princípio metodológico.
No primeiro caso, se uma teoria fosse submetida a
testes e malograsse, não haveria motivos para se excluir a
possibilidade de que o próprio princípio fosse considerado
responsável pelo fracasso, uma vez que uma hipótese empírica
participa do corpo do modelo, devendo, portanto, ser
submetida a teste junto com todo o resto da teoria.
Ocorre que, na prática, não é isto que se verifica. Se
uma teoria malogra nos testes, o que se costuma fazer, via de
regra, (ou o que a “boa prática metodológica” sugere que se
faça), não é rejeitar o princípio da racionalidade, mas, ao
contrário, no caso de dificuldades empíricas, mantemos o
princípio e revemos a teoria (no caso, o modelo situacional).
Assim, Popper chega à conclusão de que esse princípio é
irrefutável uma vez que se encontra no plano lógico, mas sim
no plano metodológico; isto significa que o usamos de um modo
que exclui a possibilidade de refutação, talvez mesmo para
salvaguardar a refutabilidade de todo o sistema.
Com relação à questão da possibilidade de predição de
eventos específicos, ainda nesse mesmo artigo de 1966, a
posição de Popper com relação aos fenômenos sociais já é a de
que o cientista deveria abrir mão da previsão de
acontecimentos específicos em prol de uma previsão de
“padrões de ocorrência” desses fenômenos. Sua análise tem
início com uma distinção entre o que seriam as duas principais
categorias de problemas de explicação e predição: a primeira
teria como objetivo a explicação e predição de um pequeno
número de eventos singulares. Um exemplo específico do
âmbito econômico-social seria, por exemplo, a questão
“quando ocorrerá a próxima onda de desemprego em
Midlands?”. E outro exemplo, do âmbito da natureza, seria
“quando ocorrerá o próximo eclipse lunar?”. A segunda
categoria de problemas estaria relacionada com a explicação
245
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ou predição de um determinado tipo ou padrão de eventos.
(Como, por exemplo, ainda na esfera social: por que ocorrem
acréscimos e decréscimos sazonais da taxa de desemprego na
construção civil? E uma questão equivalente na astrofísica: por
que os eclipses ocorrem periodicamente e apenas quando a
Lua está cheia?) (POPPER, 1966, p. 142).
A diferença fundamental entre essas duas espécies de
problemas seria que, enquanto os da primeira categoria
(explicação e predição de eventos singulares) poderiam ser
resolvidos apenas com a análise das leis universais envolvidas
e das condições iniciais relevantes em cada caso, os da
segunda categoria (explicação e previsão de eventos típicos)
obteriam melhores resultados mediante a construção de
modelos, que representam algo como “condições iniciais
típicas”, além de também se utilizarem de leis “de animação”
(animating laws), sem as quais seria impossível movimentar o
modelo.
Neste ponto, Popper diz-se convencido de que, nas
ciências sociais teóricas, nunca seria possível responder a
perguntas da primeira categoria que, como vimos, dizem
também respeito à predição de eventos particulares. Isto
porque, “as ciências sociais teóricas servem-se quase sempre
do método de construção de modelos.” Dito de outro modo, a
primeira classe de problemas acima apresentada deveria ser
analisada mediante a elaboração de teorias, enquanto que os
problemas da segunda categoria, por seu turno, deveriam ser
investigados via construção de modelos.
A importância que Popper passou a atribuir à
construção de modelos nas ciências sociais está, sem sombra
de dúvidas, relacionada à sua mudança de concepção com
relação à unicidade metodológica (entendida naquele primeiro
sentido de necessidade do aparato hipotético-dedutivo como
salvaguarda do caráter científico de um segmento do
conhecimento). Isto porque, segundo esse modelo, devemos
246
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
deduzir asserções, ou seja, predizer ou retrodizer
acontecimentos que serão utilizados para testar nossas teorias.
Essas predições só são possíveis quando temos a nosso dispor
uma ou mais leis gerais e um número suficiente de condições
iniciais (confiáveis). Ora, se a possibilidade de predizer
eventos individuais aparece, para Popper, inviável nesse
momento, significa reconhecer que, no âmbito das ciências da
sociedade, essas condições não podem ser satisfeitas, como ele
acreditava anteriormente
Deste modo, verificamos que, com a elaboração mais
cuidadosa do princípio da racionalidade e do método da
análise situacional, Popper identifica-os não mais com o
modelo nomológico-dedutivo de explicação (aplicado desta
vez para o âmbito social), como o fizera em 1944 e 1945, mas
aqui inequivocamente relaciona-os com a segunda versão de
seu “Método de Hipóteses”, ou seja, seu método de ensaio e
erro, ou, se preferirmos, de Conjecturas e Refutações.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo, nesse capítulo, foi o de tentar mostrar
uma transformação da proposta inicial de Popper, ou seja: a
modificação de sua defesa inicial de que haveria um
isomorfismo lógico em termos metodológicos entre todas as
ciências em direção a uma postura de maior precaução no que
tange ao caso específico das ciências sociais.
Propusemos o seguinte esquema de desenvolvimento
da concepção metodológica popperiana para os três momentos
analisados:
(1) 1944/45: Monismo Metodológico
Ênfase no caráter causal das explicações, seguindo o
esquema do modelo hipotético-dedutivo:
247
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
- Lei Universal
- Condições Iniciais
_________________________
-
Predições Específicas
(2) 1961: Concepção Falseacionista do Método Científico
P1 → TT → DC → P2
(3) 1966/69: Lógica Situacional: Compreensão Objetiva
Aponta na direção de um método típico para as
ciências sociais, seguindo o seguinte esquema:
- Princípio da Racionalidade
- Condições Iniciais
_________________________________________
-
Previsão de Padrões de Ocorrência dos Eventos
Estamos defendendo, em última instância, que no final
dos anos sessenta do século XX, Popper abandona a
possibilidade de predição de eventos específicos para o âmbito
social. Essa posição decorre diretamente da adoção da
proposta do falseacionismo no lugar da necessidade do
modelo nomológico-dedutivo como garantia unificadora do
método científico.
248
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Como bem coloca Farr (1983), com uma mais adequada
elaboração do conceito de “compreensão objetiva”, ou seja, no
sentido de uma reconstrução conjectural da situação-problema
com o auxílio do princípio da racionalidade, houve, em última
instância, uma reordenação na posição metodológica
popperiana (que o afasta da proposta positivista), uma vez
que a análise situacional em si não é uma forma de explicação
dedutiva.
Ora, se a defesa da unicidade metodológica de Popper
não se baseia mais na necessidade do modelo nomológicodedutivo, e sim na concepção falseacionista, então tornar-se-ia
a defesa de uma unicidade para a ciência tão tênue que teria
que englobar não apenas as ciências naturais e as sociais, mas
também um amplo leque de outras esferas do conhecimento
humano (que o positivismo sempre rejeitou).
Esperamos, desta forma, ter contribuído com a defesa
da tese de que Popper, com a elaboração mais minuciosa
daquilo que denominou “análise situacional” e do “princípio
da racionalidade”, do qual o modelo situacional se utiliza, se
afasta (de início titubeante e timidamente, mas depois de
maneira definitiva) do modelo nomológico-dedutivo e adota,
em seu lugar, uma a proposta que funciona quase como a
concessão de um certo dualismo metodológico entre essas
áreas do conhecimento, incorporando, entretanto, as
exigências do falseacionismo.
REFERÊNCIAS
APEL, K. “Comments on Farr’s Paper (II): Some Critical Remarks on Karl
Popper’s Contribution to Hermeneutics”. Philosophy of the Social
Sciences, v.13, n.2, 1983, p. 183-193.
CAPONI, G. “Aproximatión Metodológica a la Teleologia”. Manuscrito, n.
21, 1998, p. 11-45.
249
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
FARR, J. “Popper’s Hermeneutics”. Philosophy of the Social Sciences,
vol.13, n. 2, 1983, p. 157-176.
HANDS, D. W. “Karl Popper and Economic Methodology: A New Look”,
Economics and Philosophy, 1985, vol. 1, p. 83-99.
HEMPEL, C. G. “The Function of General Laws in History”. The Journal of
Philosophy, v. 39, n. 2, 1942, p. 35-48.
_______. Filosofia da Ciência Natural. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
MAGEE, B. As Ideias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1973.
NADEAU, R. (1986): “Popper, Hayek et la Question du Scientisme”.
Manuscrito, v. 9, n. 2, 1986, p.125-156.
NOTTURNO, M. A. “Truth, Rationality and the Situation”. Philosophy of
the Social Sciences, v.28, n. 3, 1998, p. 400-421.
POPPER, K. Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1975.
_______. The Poverty of Historicism. London and New York: Routledge,
1997.
_______. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo, 1987.
_______. “Previsão e Profecia nas Ciências Sociais”. In: POPPER, K.
Conjectures and Refutations. London: Routledge e Kegan Paul, 1989.
_______. “Science: Conjectures and Refutations”. In: POPPER,
Conjectures and Refutations. London: Routledge e Kegan Paul, 1989.
K.
_______. “Lógica das Ciências Sociais”. In: POPPER, K. Lógica das Ciências
Sociais. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978.
_______. “La Rationalité et le Statut du Principe de Rationalité”. In:
CLASSEN; EMIL M. (ed.) Les Fondements Philosophiques des Systemes
Economiques. Paris: Payot, 1966.
250
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. “Models, Instruments and Truth – The status of the rationality
principle in social sciences”. In: POPPER, K. The Myth of the Framework –
In defence of science and rationality. London and New York: Routledge,
1994.
_______. “A Pluralistic Approach to the Philosophy of History”. In: POPPER,
K. The Myth of the Framework – In defence of science and rationality.
London and New York: Routledge, 1994.
_______. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.
WATKINS, J. “Racionalidad Imperfecta”. In: BERGER, R./CIEFFI, F. (ed.) La
Explicación en las Ciencias de la Conducta. Madrid: Alianza, 1974.
_______. “Ideal Types and Historical Explanation”. In: RYAN, A. (ed.) The
Philosophy of Social Explanation. Oxford: Oxford University Press, 1973.
WISDOM, J.O. “Some Overlooked Aspects of Popper´s Contributions to
Philosophy, Logic, and Scientific Method”. In: BUNGE, M. (ed.) The Critical
Approach to Science, and Philosophy. London: The Free Press of Glencoe,
1964.
WRIGHT, G. H. “El Determinismo y el Estudio del Hombre”. In: BALIBAR,
E. et all. Teoria de la Historia. Mexico: Terra Nova, 1981.
251
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 14
INTERVENÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO
EM KARL POPPER
Solange Regina Marin
The piecemeal engineer will, accordingly, adopt the method of
searching for, and fighting against, the greatest and most
urgent evils of society, rather than searching for, and fighting
for, its greatest ultimate good (POPPER, 1957, p. 158).
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento humano deve ser pensado,
segundo Karl Raimund Popper (1902-1904), a partir da
intervenção social mediante a tecnologia social gradual (em
contraponto à tecnologia social holista, conduzida pelo
pensamento totalitário), intervenção essa possível mediante a
aceitação de que o nosso conhecimento é limitado e falível.
Popper, assim, relaciona a sua proposta de intervenção social
com a epistemologia fundada no debate crítico, que considera
teorias e planos sociais simples como tentativas de soluções
aos problemas mais proeminentes das ciências e das
sociedades.
O TOTALITARISMO COMO PONTO DE PARTIDA
Popper é contrário às formas de pensamento que ele
considera obstáculos à liberdade de pensamento individual.
252
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Segundo ele (POPPER, 1992, p. 115), os livros A Miséria do
Historicismo e A Sociedade Aberta e seus Inimigos, escritos nos
anos 1940, representam seu esforço de guerra, defendendo a
liberdade de pensamento, ao invés de ideias totalitárias
(dogmáticas). Além disso, eles estão vinculados à sua teoria do
conhecimento e seus problemas centrais: “o que podemos
saber” ou “quão certo é o nosso conhecimento”. Em suma, a
teoria institucional do progresso humano de Popper contrasta
a liberdade de pensamento com o totalitarismo e o
autoritarismo. Essa teoria institucional substitui as teorias
psicológicas, como as posições adotadas por J. S. Mill (18061873) e A. Comte (1798-1857), que assumem uma conexão
entre a lei da natureza humana e o progresso (POPPER, 1945,
seção 32, p. 86-8; 1966, p. 87-8)71.
Para Popper, as pessoas precisam ser cuidadosas em
fazer a distinção entre os fins últimos e os fins intermediários,
já que os intermediários são os meios usados para atingir os
primeiros. Essa distinção é importante: permite suspeitar dos
planejadores políticos holistas que estabelecem um fim político
último – o Estado Ideal – antes de tomar qualquer ação prática.
Somente depois que a pessoa, na posição de planejador,
possuir um planejamento para a sociedade, ela começa “to
consider the best ways and means for its realization, and to
draw up a plan for practical action” (POPPER, 1957, p. 157).
Todavia, a tentativa utópica de construir um estado ideal por
meio de um plano para toda a sociedade pode conduzir à
ditadura (POPPER, 1957, p. 159-60). Além disso, esse plano
será valorado somente se o planejador assumir que ele servirá
de base até o fim de todo o trabalho. Esse requerimento
Harris (1956) apresenta a teoria do progresso de John Stuart Mill, afirmando que, na
concepção de Mill, progresso significa desenvolvimento da capacidade para
autodireção, a socialização dos atributos humanos e uma melhora quantitativa dos
objetos de desejos dos homens. “Progresso não consiste primariamente em melhoria
material, mas em moral-aesthetic culivation”(p. 173).
71
253
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
utopista, Popper (1957, p. 160) insiste, é um engano; os
objetivos podem mudar ao longo do processo e os planos são
difíceis de serem implementados de acordo com o que foram
concebidos. E, ainda, é complicado admitir que qualquer
intervenção social produzirá todos os resultados esperados
(POPPER, 1957, p. 161).
Popper não assume que um ideal nunca poderia ser
realizado; somente não acredita na reconstrução de uma
sociedade de acordo com uma única mente humana.
Argumenta, também, que qualquer proposta para a sociedade
como um todo, lembrando a construção de uma sociedade
como se ela fosse uma única planta de engenharia, pode criar
tirania e gerar a privação de liberdade individual e de
pensamento, uma vez que a planta pode desconsiderar
aspectos específicos da vida das pessoas, de suas instituições e
tradições. Tal reconstrução da sociedade, além de não abordar
as instituições e tradições existentes, leva-nos à ditadura ao
invés da liberdade de pensamento e autonomia das pessoas.
A recomendação utopista requer “esteticismo” – isto é,
um desejo do artista de construir um “admirável mundo
novo”. Para Popper (1957, p. 165), o esteticismo pode ter valor
somente se acompanhado pela razão, por um sentimento de
responsabilidade e por um impulso humanitário de ajudar: ao
contrário
disto,
é
uma
atitude
incompreensível.
Diferentemente de Platão (428-347 a.C), que propôs um
modelo ideal, Popper acredita que as vidas humanas não
podem ser meios para satisfazer o desejo do artista expresso
nessa idealidade. Ele defende que toda pessoa teria, se assim
desejasse, o direito de modelar sua própria vida, desde que
isso não interferisse na vida das outras pessoas.
Popper enfatiza, então, que uma natureza humana fixa
não pode ser o aspecto mais importante relacionado ao
progresso. Diferentes estruturas de pensamento, bem como
diferentes culturas, permitem confrontos nos quais florescem o
254
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
pensamento crítico e a liberdade de pensamento, que
influenciam a nós mesmos e as nossas próprias atitudes72. Os
confrontos de culturas tiveram um papel essencial no iniciar
da Ciência Grega: “our ideas of freedom, of democracy, of
toleration, and the ideas of knowledge, of science, of
rationality, can all be traced back to these early Greek
experience” (POPPER, 1994, p. 38). Para Popper, cultura,
tradição e instituições sociais são elementos para o
desenvolvimento de uma teoria institucional do progresso.
Porém, esse desenvolvimento requer (i) o descobrimento de
quais são as condições necessárias para o progresso, tentando
imaginar ao mesmo tempo aquelas condições nas quais ele
poderia não ser atingido, e (ii) a substituição da propensão ao
psicologismo por uma análise institucional (POPPER, 1945, p.
86-7). O progresso científico e industrial pode ser atingido por
meio de instituições sociais – dentre elas, a linguagem, a
escrita e o método científico – considerando-se que a ciência e
o progresso científico são resultado “da competição livre do
pensamento”73. Esse contato social, Popper insiste, é uma
maneira de alcançar, através da intersubjetividade, a
objetividade da ciência, e o progresso “depends on political
factors; on political institutions that safeguard the freedom of
thought: on democracy” (POPPER, 1945, p. 87).
A impossibilidade de discussão crítica nas práticas
holistas e utopistas poderia ser enfrentada por instituições
sociais, tais como os sistemas educacionais, interessadas em
promover a diversidade, e não a uniformidade de mentes
humanas. Todavia, Popper argumenta que a melhor das
instituições não pode atingir esse objetivo sem ser
devidamente administrada. Além de instituições sociais, é
preciso pessoas com mente aberta, isto é, que adotem uma
postura de crítica e incentivem a liberdade de pensamento. O
72
73
Ver também Popper (1992, Cap. VIII).
Ver também Popper (1968, nota II, seção 85, p.279).
255
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
fator pessoal, Popper defende, deve ser o elemento
necessariamente irracional presente nas teorias institucionais e
sociais que questionam as visões caracterizadas por reduzirem
as teorias sociais ao psicologismo ou por acreditarem numa
natureza humana fixa. Ao invés de reduzir as considerações
sociais à psicologia (ou à natureza humana), como ocorre nos
métodos de Comte e Mill, Popper sugere que o fator humano
seja o elemento incerto na teoria, sendo incontrolável pelas
instituições. Toda tentativa de controle pode levar-nos à
tirania e ao totalitarismo: “holistic control, that is the
equalization not of human rights but human minds, would
mean the end of progress” (POPPER, 1945, p. 88).
Uma sociedade aberta, como defende Popper,
desenvolve a liberdade individual e as instituições políticas
participativas e não autoritárias, ou seja, as pessoas podem
participar livremente nas diversas decisões sociais como
agentes críticos e responsáveis. Isso é possível porque tal
sociedade confia na democracia e nas tradições, valoriza o debate
crítico e o racionalismo crítico. Uma democracia constitucional é
melhor do que uma democracia tirânica, na política ou na
ciência, na qual as pessoas com ‘mentes livres’ podem discutir
as diferentes teorias que nada mais são do que tentativas de
solução para os males da sociedade. Essa recomendação moral
para a filosofia política atinge, também, a filosofia da ciência,
isto é, a epistemologia, as instituições e as tradições científicas.
Popper foi contrário à forma totalitária e dogmática de
se arquitetar uma intervenção social – o planejamento total
para a sociedade. Um plano total para a sociedade não permite
que ocorram modificações ao longo do processo, bem como
não considera as instituições e as tradições existentes. Por
caracterizar-se numa prática dogmática, esse plano também
não possibilita o aprendizado com os erros via a aplicação do
método científico social, isto é, não vislumbra um crescimento
do conhecimento, uma vez que parte de um conhecimento
256
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
tido como certo e único. Além disso, Popper defende que a
liberdade de pensamento individual está entre os fatores de
maior importância no que se refere à intervenção social e à
evolução do conhecimento. As pessoas devem ser
consideradas como agentes ativos e responsáveis, capazes de
participar das decisões sociais. Mais ainda, as pessoas devem
ter condições de modelar suas próprias vidas, e não serem
consideradas meio para a satisfação do desejo de um artista
(planejador). Com esta visão, Popper elabora um método para
a intervenção social – a tecnologia social gradual.
A TECNOLOGIA SOCIAL GRADUAL
Para Popper (1944, p. 130-1; 1985, p. 313), é difícil
estabelecer uma relação entre um planejamento holista, que
tem um ponto de partida certo e único, e o método científico
embasado na falibilidade de nosso conhecimento e na
possibilidade de um debate crítico-social. Para entender o
significado desta dificuldade relacionada com a epistemologia
e a prática social é necessário compreender que Popper
acredita na realização contínua de reformas sociais ou de
engenharia social. Para evitar a comparação com o plano total
baseado num conhecimento certo e único, Popper sugere que a
engenharia social pode ser executada via tecnologia social.
Essa tecnologia pode ser entendida como uma forma
modificada de conhecimento mais modesta do que o
conhecimento certo. Ainda para prevenir uma possível
comparação com o planejamento coletivista social, Popper
adiciona o termo “gradual” ao conceito de tecnologia social.
Popper recomenda a tecnologia gradual tendo como base um
argumento epistemológico, com vistas ao crescimento do
conhecimento, e um argumento prático, visando uma forma
de intervenção social com possibilidade de correção de rota ao
257
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
longo do tempo, respeitando sua proposta de método
científico – o debate crítico.
Os holistas sugerem uma tecnologia social que (i)
negligencia a importância de experimentos passo-a-passo para
a prática social e (ii) contribui pouco para o método
experimental, não permitindo adquirir conhecimento através
da comparação entre os resultados atingidos e previstos.
Popper critica essa tecnologia social holista e estabelece um
argumento epistêmico, afirmando uma prática social baseada
na tecnologia social que não segue um plano total, e uma
conotação negativa, enfatizando a previsão das consequências
inesperadas de qualquer ação prática desenvolvida. Além
disso, Popper sugere que a tecnologia social gradual não
exclui os problemas teóricos que podem aparecer junto com os
problemas práticos. Pelo contrário, ela nos auxilia na seleção
dos problemas, impondo disciplina em nossa inclinação
especulativa, e forçando-nos a submeter nossas teorias a
padrões definitivos como a clareza e a testabilidade prática
(POPPER, 1944, p. 120).
A tecnologia social gradual que Popper (1957, p. 158)
sugere está fundada em instituições simples, tais como o
cuidado com a saúde, o seguro desemprego e a reforma
educacional, e adota um plano mais modesto para a sociedade.
Para ele (POPPER, 1944, p. 122-3), a principal tarefa dos
engenheiros sociais graduais é desenhar as instituições sociais.
Tais engenheiros consideram as instituições de um ponto de
vista funcional, quer dizer, as instituições são meios para
conseguir determinados fins, avaliadas de acordo com a sua
adequação, eficiência e simplicidade. Porém, essas instituições
não podem ser consideradas apenas como instrumentos
mecânicos (meios). Elas se modificam de forma similar ao
crescimento dos organismos, isto é, apresentam resultados não
previstos em sua origem, resultados de seleção e adaptação ao
ambiente (POPPER, 1957, p. 24).
258
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Os engenheiros sociais graduais planejam para toda a
sociedade, mas esse planejamento não implica a reconstrução
da sociedade como um todo; eles tentam atingir os fins através
de pequenos ajustes que podem ser continuamente
aperfeiçoados. Como ensina Sócrates (470 ou 469 a.C), eles
podem aprender com os próprios erros, comparando os
resultados atingidos com os esperados, e olhando para as
consequências inesperadas e evitáveis de qualquer reforma
(POPPER, 1944, p. 123). Em vista disso, Popper enfatiza que, se
queremos introduzir o método científico no estudo da
sociedade, da política e da intervenção social, precisamos
adotar uma atitude de crítica, e entender que o método de
tentativa e eliminação dos erros é relevante como posição
metodológica.
We try, i.e., we are not merely registering our observations,
but we are actively engaged in the solution of some more or
less practical and definite problem. And we are making
progress because, and only if, we are prepared to learn from
our mistakes, that is to say, to recognize our errors and to
utilize them critically instead of persevering in them
dogmatically. Thought this analysis may sound trivial, it
describes, I believe, the method of all empirical science. […]
Scientific method in politics means that the great art of
convincing ourselves that we have not made mistakes, of
ignoring them, of hiding them, and of blaming others for
them, is replaced by the greater art of accepting the
responsibility for them of trying to learn from them, and of
applying this knowledge so that we may avoid them in the
future (POPPER, 1944, p. 131).
Popper trata, então, de questões éticas quando defende
a possibilidade de reformas sociais através da tecnologia social
gradual. Ele assume que uma luta sistemática contra o
sofrimento, a miséria e a injustiça econômica e social é mais
fácil de ser compreendida por um grande número de pessoas
do que uma luta para estabelecer alguma sociedade ideal.
259
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Além disso, ele elabora a tecnologia social gradual como uma
forma de intervenção social para combater os problemas mais
urgentes da sociedade, tais como a pobreza e o desemprego.
Popper, diferentemente de Frederick A. Von Hayek (1899–
1992), não entendia a intervenção do Estado como
indefensável em razão da falta de conhecimento. Pelo
contrário, ele acreditava na possibilidade de uma intervenção
através da tecnologia social gradual que permitisse a
observação dos acontecimentos inesperados – conotação
negativa – e sua correção. Ou seja, que fosse adotado o método
científico na intervenção social de forma que favorecesse o
crescimento do conhecimento com a aceitação de que o nosso
conhecimento é limitado e incerto. Ele escreve: “Who suffer
can judge for themselves, and others can hardly deny that they
would not like to change places. A few persons could judge a
large-scale change” (POPPER, 1957, p. 159). E ainda: “Success
or failure is more easily appraised though incremental
changes, and there is no inherent reason why this method
should lead to an accumulation of power, and to the
suppression of criticism” (POPPER, 1944, p. 132).
Os planos graduais mais simples permitem
reajustamentos e condições realistas para a condução de
experimentos
que
podem
ser
repetidos
“without
revolutionizing the whole society” (POPPER, 1957, p. 162).
Além disso, a tecnologia social gradual pode fazer com que os
políticos observem e aprendam com seus próprios erros.
Politicians begin to look out for their own mistakes instead of
trying to explain them away and to prove that they have
always been right. […] This – and not Utopian planning or
historical prophecy – would mean the introduction of
scientific method into politics, since the whole secret of
scientific method is a readiness to learn from mistakes. […]
Politics, I demand, must uphold equalitarian and
individualistic principles; dreams of beauty have to submit to
the necessity of helping men in distress, and men who suffer
260
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
injustice; and to the necessity of constructing institutions to
serve such purposes (POPPER, 1957, p. 163-5).
Popper vincula seu pensamento político ao seu método
científico, uma vez que a engenharia social gradual significa
uma abordagem racional e crítica para a conduta política e a
intervenção social. Sua filosofia unifica, então, as ações
individuais com o desenvolvimento social, as questões éticas
com o planejamento político, e o debate crítico com a liberdade
humana. As ações individuais estão vinculadas ao
desenvolvimento social na defesa da participação das pessoas
nas diversas decisões sociais. As questões éticas estão ligadas
com o planejamento político, porque as intervenções sociais
estão baseadas em planos modestos dirigidos para reformas
sociais simples tais como melhoria na educação e nas
condições de emprego, ou seja, estão voltados para os
problemas mais recorrentes da sociedade. E, finalmente, a
filosofia de Popper liga o debate crítico, fundamento do seu
método científico, com a liberdade humana, uma vez que as
pessoas são entendidas como agentes capazes de modelar suas
próprias vidas e de participarem da vida social.
A POSSIBILIDADE DA INTERVENÇÃO SOCIAL?
Popper não é inimigo da intervenção do Estado na vida
social: “Why do we prefer living in a well-ordered state to
living without a state, i. e., in anarchy?” (POPPER, 1957, p.
109). Essa questão, ele argumenta, é típica para um técnico
social responder antes de moldar, de uma forma racional, as
instituições sociais. O técnico popperiano responderia: “What I
demand from the state is protection; not only for myself, but
for others too. I demand protection for my own freedom and
for other people. I wish to be protected against aggression
from other men” (POPPER, 1957, p. 109-110).
261
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper (1992a, p. 156-7) insiste na possibilidade de
reformas institucionais. Em decorrência, ele (1966, p. 238)
estabelece um vínculo entre o racionalismo crítico e a
demanda de intervenção social através da proposta da
tecnologia social gradual. Essa tecnologia se assenta em planos
simples que permitem a previsão e a correção dos
acontecimentos inesperados. Popper (1966, p. 238) sugere
reformas institucionais passo-a-passo em um ambiente com
instituições e tradições já existentes, reconhecendo assim o
papel das instituições sociais na proteção da liberdade de
pensamento e do ser humano.
Além de insistir na possibilidade de reformas
institucionais baseadas em planos simples, Popper acreditava
que a política seria o caminho para resolver alguns problemas
da sociedade, como a injustiça distributiva. Discordava de
Hayek, que defendeu intransigentemente o sistema capitalista
de free market e censurou a atividade do Estado na esfera
econômica: “there is no freedom if it is not secured by the
state; and conversely, only a state which is controlled by free
citizens can offer them any reasonable security at all”
(POPPER, 1957, p. 111). O conhecimento limitado era citado
por Hayek como um empecilho à intervenção social, ou seja,
ele não tinha uma visão muito otimista sobre a relação entre
intervenção social e desígnio da sociedade. Em consequência,
enquanto que para Hayek a intervenção poderia ser obra de
algum tirano que tomasse para si o poder do conhecimento
(limitado), para Popper essa deficiência no conhecimento
poderia ser dirimida através da política, com democracia
institucional e atitude crítica.
Segundo Kerstenetsky (2004, p. 452), Popper aceita a
pressuposição de Hayek de que o conhecimento limitado
imporia uma restrição à intervenção social, mas em uma
intervenção do tipo holista, como aquelas contidas no plano
total dos engenheiros utopistas, nas quais não se poderiam
262
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
corrigir as consequências não intencionadas. Popper quer
assegurar-se de que, mesmo diante de um conhecimento
limitado, as reformas pretendidas tenham sucesso, através das
ações passo-a-passo recomendadas pela proposta de
engenharia social gradual. Em vista disso, Kerstenetsky
enfatiza que as reformas graduais seriam necessárias como um
método que permite aos “ignorantes racionais” aprender com
os próprios erros.
Kerstenetsky ainda afirma que Popper confia na
possibilidade de substituição de uma técnica política – um
conjunto de instruções articuláveis para se atingir propósitos
abrangentes no mundo social – por uma tecnologia social,
derivada de exercício de imaginação crítica. Mesmo não sendo
previamente conhecido o propósito comum que uma
sociedade deve perseguir, a deliberação democrática sobre fins
sempre é possível, e mesmo necessária. “Por conta, portanto,
da ignorância de meios e fins, a política, longe de ser uma
dimensão superficial da vida social enquanto tal, torna-se o
terreno crucial” (KERSTENETSKY, 2004, p. 447-8).
Popper acreditava que, além das forças de mercado, as
reformas sociais poderiam ser realizadas por meio da
tecnologia social gradual conduzida por governos ou por
ações públicas não governamentais. Mas, para não ser
comparada aos planos totais dos engenheiros holistas, que
podem gerar tirania e improvisação, e evitar críticas como as
de Hayek acerca da influência do problema de conhecimento
limitado, Popper alega que a engenharia social é possível
graças a uma forma modificada de conhecimento, mais
modesta do que a do conhecimento certo. “A tecnologia social
é uma hipótese de conhecimento que equivale a uma autoconsciência da limitação do conhecimento: é um conjunto de
leis condicionais que pode ser instrumentalizado para intervir
no mundo social” (KERSTENETSKY, 2004, p. 452).
263
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Para fazer a conciliação entre essa proposta de prática
social e seu argumento epistêmico, Popper enfatiza a
importância de um estado democrático. Ele destaca que
quanto “more tolerant, less authoritative systems; which
(within the limits of mutual toleration) leave more freedom
and initiative to the individual, and curb the power of tyrants,
and of state officials” (POPPER, 1974, p. 1162). Os princípios
mais importantes dessa ética igualitária e humanitária são (i)
ser tolerante com outras decisões morais, (ii) lutar contra a
tirania e (iii) minimizar o sofrimento (POPPER, 1957, p. 235,
284 e 285). É possível usar esses princípios para arguir uma
analogia entre a intervenção social e o método científico. Os
dois primeiros princípios são compatíveis com o racionalismo
crítico, e o terceiro é análogo ao falsificacionismo ou negação
das leis universais. Isto significa que, ao invés de desejar o
melhor dos mundos, tais como a felicidade na vida prática e a
verdade na ciência, Popper defende a urgente eliminação do
sofrimento ou das teorias falsas.
Ainda no que se refere à importância da democracia
para as suas propostas científicas e sociais, Popper afirma que
as tradições vinculam as instituições com as intenções e
avaliações do indivíduo (POPPER, 1992a, p. 156; 1957, nota 4,
p. 265-6). Mais ainda, que essa vinculação pode ser entendida
como estando na base de um estado democrático. Nesse
estado, a regra da maioria poderia não ser aceitável, porque a
decisão da maioria estaria representando “quem coordenará”,
ou seja, a decisão da maioria poderia ser expressão do
comando de um tirano. Alternativamente, uma democracia
pode ser constituída por um governo regulado por instituições
e pela participação pública dos indivíduos. Porém, o voto
individual também poderia não garantir o sucesso de um
estado democrático. Em vista disso, Popper defende um
estado democrático constitucional, composto por tradições e
instituições que toleram a objetividade e o debate crítico e
264
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
social. Ou, como Kerstenetsky (2004, p. 455) enfatiza, a
democracia para Popper não seria o arranjo político
desenhado para implementar o politicamente certo, “a
vontade do povo”, mas seria concebida como o arranjo
destinado a evitar o pior: a perseverança no erro por parte dos
poderosos.
[...] em acréscimo ao reformismo limitado: a democracia seria
a forma de governar mais apropriada à condição de
conhecimento limitado, uma vez que, frente às alternativas,
ela oferece o maior grau de imunização contra o dogmatismo
no poder (KERSTENETSKY, 2004, p. 455).
Ao invés de levar em consideração a crítica de Hayek,
que defendeu a indesejabilidade da intervenção social, a não
ser que seja para garantir a não intervenção – uma intervenção
anti-intervencionista (KERSTENETSKY, 2004, p. 446) –, dado
que possuímos um conhecimento limitado da realidade,
Popper conjectura que é justamente sobre essa base limitada
de conhecimento que se estrutura a intervenção social. Mais
ainda, afirma que a política seria crucial em termos de um
espaço onde são decididos os meios e os fins uma vez que eles
não seriam pré-determinados dentro um plano total. Portanto,
a partir da noção de um conhecimento limitado ou falível,
Popper sugere as intervenções planejadas sobre a ordem
econômica e social. Essa forma de intervenção estaria baseada
em mecanismos metodológicos como o racionalismo crítico, a
tecnologia social e um estado democrático. Ou seja, Popper
defende a tecnologia social com reformas representando
tentativas para solucionar os problemas mais imediatos da
sociedade, e não reformas holistas que intencionam levar a
felicidade geral.
Uma censura aos argumentos de Popper é a
dificuldade de se praticar a atitude crítica e, com isso, a
intervenção social propugnada. Thomas Kuhn (1922–1996) foi
265
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
eloquente ao destacar a influência das tradições sobre os
cientistas de modo que o falsificacionismo de teorias seria algo
quase impossível de ocorrer, sendo o normal seguir as
tradições. Popper responde que o cientista deve ser ousado, e
não normal no sentido kuhniano. Popper também reconhece a
influência das tradições que produzem nossos valores, mas
afirma que somos capazes de criá-los e, principalmente, de
criticá-los. Para convencer o cientista normal de Kuhn, Popper
destaca que somente quem está preparado para agir
seriamente e aprender com a tentativa e o erro será também
impressionado pelos argumentos críticos. Popper recomenda
uma atitude crítica até diante das tradições, mas, entendo,
permanece válido o alerta de Kuhn, notadamente se as
tradições não estão submetidas ao debate crítico.
Popper acreditava na possibilidade de uso da atitude
crítica, não apenas na prática científica, mas também na área
de intervenção social. Ele sugere que o método da tecnologia
social gradual, baseado em planos simples adotados passo-apasso, a falibilidade de nosso conhecimento e a possibilidade
de aprendermos com os erros, seria a forma de realizar as
reformas sociais ou institucionais. Diferentemente de Hayek,
Popper acreditava na possibilidade de intervenção social
diante de um conhecimento limitado. Popper é enfático ao
relatar a relação positiva entre a ação planejada de forma
simples e as reformas sociais. Mais ainda, ele acreditava que a
intervenção via tecnologia social gradual possibilitava não
apenas o cuidado com as consequências inesperadas, mas,
sobretudo, o aprendizado com elas e com sua tentativa de
correção. Ou seja, Popper tinha plena confiança na política
como um meio de evitar a injustiça distributiva, e sugeria que
a tecnologia social gradual seria a forma mais adequada de
intervir na ordem econômica e social, uma forma compatível
para enfrentar as dificuldades decorrentes da limitação natural
do conhecimento humano.
266
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A forma de intervenção social de Popper é
instrumental para a análise de atividades de desenvolvimento,
uma vez que permite avaliar como os projetos destinados aos
problemas mais imediatos da sociedade estão sendo
desenvolvidos. Ou seja, é possível verificar se as várias
tentativas de solução para os problemas sociais estão seguindo
uma tecnologia gradual, que parte de planos simples e tem
como pressuposto o aprendizado com os erros, ou de uma
tecnologia total, que tem como ponto de partida os planos
totais e um conhecimento certo e dogmático.
A IMPORTÂNCIA DO RACIONALISMO CRÍTICO
Como visto, a proposta da tecnologia social gradual
está associada à atitude crítica dos cientistas. Contudo, a
ênfase de Popper no racionalismo crítico – atitude crítica frente
aos problemas e suas tentativas de solução – reflete um
entendimento que se situa entre um princípio metodológico e
uma definição de racionalidade humana.
W. W. Bartley (citado por ARTIGAS, 1999, p. 19),
questiona o racionalismo crítico de Popper, enfatizando que
esse tipo de racionalismo deve, também, ser criticado. Ele
requer uma “teoria da racionalidade” para ultrapassar a
simples “fé na razão” manifestada por Popper. Porém, o
racionalismo crítico de Popper não é uma tese, nem uma
teoria, nem um dogma; é uma atitude de um indivíduo que
quer conhecer (ARTIGAS, 1999, p. 30).
As to the rationality of science, this is simply the rationality of
critical discussion. Indeed, there is nothing, I think, which can
better explain the somewhat abstract idea of rationality than
the example of a well-conducted critical discussion. And a
critical discussion is well-conducted if it is entirely devoted to
one aim: to find a flaw in the claim that a certain theory
presents a solution to a certain problem. The scientists
participating in the critical discussion constantly try to refute
267
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
the theory, or at least its claim that it can solve its problem
(POPPER, 1994, p. 160).
Paul Bernays (1974, p. 604) afirma que a atitude crítica
pode ser restritiva, sugerindo a criatividade como outro
importante componente da racionalidade. Popper (1974, p.
1085) não considera isso um problema sério; ele menciona a
simplicidade e a ousadia na formulação de problemas e de
suas tentativas de solução como outros componentes da
racionalidade. Contudo, Popper defende que a atitude crítica é
o ponto decisivo da racionalidade; é a capacidade de maior
importância. Popper é anti-essencialista e não conjectura o que
é ‘racionalidade’; prefere, à la Sócrates, associá-la à capacidade
de adotar uma atitude racional de prontidão para escutar os
argumentos críticos e para aprender com a experiência
(POPPER, 1966, p. 224-5). Para Popper, se estamos aprendendo
com a experiência, isso significa apenas que algumas de nossas
teorias podem ser falsas. A teoria do conhecimento de Popper
tem esse fundo socrático na atitude do racionalista crítico, uma
vez que a ciência pode ser “a learning enterprise whose sole
objective is to find errors in our understanding” (BOLAND,
1998, p. 167).
CONSIDERAÇÕES
FINAIS:
INTERVENÇÃO
DESENVOLVIMENTO HUMANO
SOCIAL
E
A proposta metodológica de Popper não fica restrita à
prática científica, mas tem reflexos na realização de
intervenções sociais e seus múltiplos propósitos, dentre os
quais o combate à pobreza, ao desemprego e a todas as formas
de miséria social e econômica que impossibilitam as pessoas
de desempenharem sua autonomia como seres humanos.
Entendo ação social como qualquer forma de intervenção
sobre a ordem social e econômica com diferentes propósitos,
desde os constitucionais até os distributivos, e
268
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
desenvolvimento humano, como um processo de expandir as
capacitações humanas, dentre as quais a autonomia.
Seguindo as orientações de Karl Popper, as reformas
sociais são realizadas com o emprego da tecnologia social
gradual, baseada em planos simples e com o reconhecimento
da falibilidade de nosso conhecimento acerca da realidade.
Esse método de intervenção social está relacionado com o
método científico-social de tornar públicas as propostas das
diferentes atividades de desenvolvimento (como se fossem
teorias). Isso incentiva o debate público e crítico, estruturado
sobre o racionalismo crítico, na busca dos possíveis efeitos não
esperados, na sua comparação com os esperados, e na
tentativa de propor soluções para mitigar esses efeitos
adversos. A comparação permite ajustamentos das propostas
de intervenção social para melhor atingir o objetivo de
desenvolvimento humano, bem como propiciar o crescimento
do conhecimento acerca da realidade das pessoas envolvidas.
Popper demonstra que a atividade de conhecer,
própria da razão humana, não fica restrita ao que então se
conhecia como ciência, ou seja, apenas aos fatos que possuem
comprovação empírica. Estamos cercados de tantos outros
elementos de nossa realidade, além da nossa capacidade de
percebê-los, que faz com que o nosso conhecimento seja
falível. Mas isso não impede que estejamos sempre às voltas
com conjecturas ousadas acerca da realidade, ou sobre o que é
possível conhecer dela, conjecturas essas que dizem respeito a
nossa participação, como seres ativos e reformadores das
situações práticas individuais, e nossas ações sociais, que
implicam mudanças institucionais e até revoluções na
sociedade semelhantes às revoluções científicas. Portanto, não
apenas os fatos sociais que observamos orientam nossos
procedimentos
sobre
como
devemos
viver,
mas,
principalmente, somos seres capazes de usar nossa
racionalidade para modificar e implementar novos
269
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
procedimentos em busca do que conjecturamos ser o
desenvolvimento humano.
Nesse sentido, Popper enaltece a democracia
institucional e sugere a adoção da tecnologia social gradual. A
perspectiva metodológica-social de Popper mostra um método
que permite a intervenção sobre a sociedade via suas
instituições e, com isso, permite também empreender
mudanças sociais com diversos propósitos tais como o
distributivo e o de minimizar o sofrimento. A preocupação
epistemológica de Popper influencia sua proposta de
intervenção social. As mudanças sociais – engenharia social –
são possíveis de serem implementadas desde que sigam o
método da tecnologia social gradual a partir de planos simples
e do reconhecimento de que o nosso conhecimento é limitado
e incerto. O conhecimento incerto e falível propicia a
deliberação dos efeitos inesperados – as consequências não
intencionadas – da política. E é na comparação dos resultados
esperados com os inesperados que podemos modificar nosso
conhecimento prévio e pensar em como modificar a proposta
de política para resolver os efeitos adversos e promover o
desenvolvimento humano. É esse processo de descoberta dos
erros (consequências não intencionadas) e suas correções (com
propostas alternativas) que possibilita o crescimento do
conhecimento e o desenvolvimento da sociedade. A estrutura
do pensamento de Popper arquiteta a intervenção social para
agir sobre a sociedade, mudando instituições com o propósito
principal de combater a injustiça econômica e social.
No entanto, permanecem problemas que não foram
aprofundados por Popper. Faltam, ainda, explicações sobre
como poderíamos avaliar os impactos das intervenções sociais
sobre o bem-estar individual e social, tendo como pressuposto
o entendimento de desenvolvimento como um processo de
criar as condições para as pessoas terem autonomia nas suas
próprias vidas. Ou seja, como deveria ser avaliado, por
270
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
exemplo, o impacto de uma concessão de microcrédito para a
fabricação de doces e compotas para mulheres pobres vivendo
em determinada região rural. Como avaliar o desenvolvimento
humano dessas mulheres em decorrência da intervenção social?
Quais seriam as informações necessárias para fazer uma
avaliação da intervenção social que tem como objetivo mudar
a vida das mulheres vivendo em condição de pobreza?
Faltam, também, estudos sobre os ambientes propícios
ao debate crítico, em vista da censura de Kuhn. Ainda que seja
indicada por Popper uma sociedade do tipo participativo e
democrático, não se pode olvidar a situação das pessoas em
extrema pobreza, incapazes de participação social ativa, sendo
necessário pensar em intervenção social que observe essas
condições participativas atuais e que promova a plena
integração das pessoas situadas à margem da sociedade ideal
fundada no racionalismo crítico.
Contudo, aqui destaco o fio condutor recomendado por
Popper: a necessidade de se dedicar aos problemas sociais
mais urgentes, tais como o combate à fome, à miséria e ao
desemprego, bem como todas as formas de injustiça social e
econômica, problemas estes que merecem uma intervenção
mais decisiva e rápida por parte dos técnicos sociais. Trata-se
de temas sobre os quais há consenso que deveriam ser
imediatamente atacados, prescindindo de debates anteriores
acerca da necessidade de inclusão no plano de intervenção
social.
O desafio é analisar o impacto dessas necessidades
urgentes e outras ações sociais sobre o bem-estar das pessoas.
Entretanto, a intervenção deveria ser realizada sem que se
perca a autonomia das pessoas de guiarem suas próprias
vidas, ou seja, sem se excluir a liberdade individual como
direito prático da democracia. Em vista disso, ressalto o papel
da discussão pública como a prática social mais valorizada
271
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
quando se pretende planejar, empreender e avaliar atividades
de desenvolvimento humano.
REFERÊNCIAS
ARTIGAS, Mariano. The Ethical Nature of Karl Popper’s Theory of
Knowledge. Bern, Berlin, Bruxelas, New York: Peter Lang, 1999.
BERNAYS, Paul. “Concerning Rationality”. In: Schilpp, Arthur Paul (ed.)
(1974) The Philosophy of Karl Popper. Books I and II, La Salle, Illinois:
Northwestern University and Sourthern Illinois University, 1974, p. 597-605.
BOLAND, Lawrence. The Foundations of Economic Method. Canada:
Simon Fraser University, 1998.
HARRIS, Abram L. (1956). “John Stuart Mill’s Theory of Progress”. Ethics.
66 (3), 1956, p. 157-175.
HAYEK, Frederick A. Von. “Scientism and the Study of Society”.
Economica. New Series, 10 (37), 1943, p. 34-63.
KERSTENETZKY, Célia. Ignorância e Intervenção em Popper e Hayek.
Revista de Economia Política, 24 (3), 2004, p. 442-457.
KUHN, Thomas S. “Logic of Discovery or Psychology or Research ?”. In:
SCHILPP, Arthur Paul (ed.) The Philosophy of Karl Popper. Books I and II,
La Salle, Illinois: Northwestern University and Sourthern Illinois University,
1974, p. 798-819.
POPPER, Karl. “The Poverty of Historicism, II. A Criticism of Historicist
Methods”. Economica, 11 (43), 1944, p. 119-137.
_______. “The Poverty of Historicism, II”. Economica, 12 (46), 1945, p. 69-89.
_______. The Open Society and Its Enemies. Vol. I. London: Routledge e
Kegan Paul LTD, 1957.
_______. The Open Society and Its Enemies. Vol. II. Princeton and New
Jersey: Princeton University Press, 1966.
272
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. The Logic of Scientific Discovery. New York: Harper, 1968.
_______. “Reply to my Critics”. In: SCHILPP, Arthur Paul (Ed.) (1974) The
Philosophy of Karl Popper. Books I and II, La Salle, Illinois: Northwestern
University and Sourthern Illinois University, 1974.
_______. Search of a Better World. Lectures and essays from thirty years.
London and New Your: Routledge, 1992a.
_______. Unended Quest. An Intellectual Autobiography. Routledge:
London, 1992b.
_______. e NOTTURNO M. A. (Ed.) The Myth of the Framework. In
defence of science and rationality. London and New York: Routledge, 1994.
273
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 15
NOTAS EM TORNO DO DEBATE POPPER–ADORNO
Túlio Velho Barreto
Em seu Congresso de 1961, a Sociedade Alemã de
Sociologia promoveu um debate em torno do positivismo e da
dialética como modelos explicativos nas ciências sociais. Sob a
mediação de Ralf Dahrendorf e outros, Karl Popper,
considerado, às vezes, não sem controvérsias, influenciado
pelos membros do Círculo de Viena – mas, certamente, um
pensador bastante lido e discutido por eles –, expôs suas teses
acerca da lógica das ciências sociais. Na ocasião, coube a
Theodor Adorno, representante da Escola de Frankfurt e, ao
lado de Max Horkheimer, um dos formuladores da Teoria
Crítica, oferecer uma réplica àquelas teses, tendo como ponto
de partida a dialética.
Em seguida, surgiu uma série de comentários sobre o
tema, além dos que foram feitos durante o evento e publicados
na forma de livro, o que bem demonstra a sua relevância. Tal
fato, aliás, está ressaltado, entre nós, por exemplo, em
Marcondes (1998, p. 265), quando este lembra a importância
da “polêmica dos frankfurtianos com Karl Popper, nos anos
60, em torno da caracterização da racionalidade científica”, e
em Freitag (1986, p. 43-52), que destaca as contribuições que se
seguiram ao debate, em particular as de Herbert Marcuse, de
Jürgen Habermas e do próprio Adorno.
274
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
É do conteúdo de tal debate que trata este capítulo.
Aqui é abordado o pensamento de Popper, contido naquelas
teses, e o de Adorno, consubstanciado na teoria crítica, como
disse, e em suas próprias formulações da “dialética do
esclarecimento”, de 1947, e da “dialética negativa”, de 1965 –
esta última desenvolvida após o debate. Não se trata de
discutir amplamente os dois autores, dada a vasta obra
produzida por cada um deles, mas de trazer à tona aspectos
pontuais expostos durante a polêmica provocada por seus
trabalhos e dos comentadores74.
Para tanto, além de tratar da exposição de Popper
(1978a, p. 13-34) e da réplica de Adorno (1986, p. 46-61),
utilizam-se, aqui, os comentários complementares feitos a
posteriori por ambos (ADORNO, 1983, p. 209-257; POPPER,
1978b, p. 35-49)75. Ainda nesse sentido, faz-se necessário uma
referência a Freitag (1986), que dedica uma seção de seu livro
sobre a Escola de Frankfurt a tratar especificamente daquele
debate, bem como ao comentário de Habermas sobre o mesmo
(1983, p. 277-312). No final, pode-se verificar a bibliografia
complementar utilizada.
Finalmente, o presente texto está organizado da
seguinte forma: a primeira e a segunda seções tratam,
respectivamente, das teses de Popper e da réplica de Adorno,
mas também um pouco das ideias originais desses autores e
O presente texto é uma versão resumida de artigo publicado pela revista
Perspectivas Filosóficas (BARRETO, 2001). Ressalte-se que a principal diferença do
original em relação ao texto que o leitor agora tem em mãos foi a supressão de duas
subseções: uma, que tratava do diálogo entre os chamados ‘positivistas ou empiristas
lógicos’ do Círculo de Viena e Popper; e outra, que abordava o contexto em que
Adorno e Horkheimer formularam as principais ideias em torno da Teoria Crítica. Tal
fato, no entanto, em nada prejudica a compreensão do debate aqui tratado.
75 Os dois primeiros textos, a conferência de Popper e os comentários de Adorno,
foram publicados, originalmente, em 1962, no ano seguinte à realização do debate. Já o
segundo de Adorno é de 1969, enquanto o de Popper é de 1970. Finalmente, o texto de
Habermas é de 1969. Tais datas correspondem às primeiras edições em alemão. Aqui,
como se indica acima e na bibliografia, foram utilizadas as edições brasileiras,
devidamente identificadas.
74
275
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
das escolas que eles representam ou às quais são associados;
na terceira e última são expostos e discutidos os comentários
posteriores de ambos acerca do tema.
POPPER E SUAS TESES SOBRE “A LÓGICA DAS CIÊNCIAS
SOCIAIS”
Sob o título acima, Popper elaborou, a pedido da
organização do Congresso de Sociólogos Alemães, um paper
onde expôs e defendeu suas principais ideias relacionadas,
sobretudo, à epistemologia das ciências sociais na forma de
teses enumeradas, visando facilitar a discussão. Esta seção
trata de tais teses. Aqui, o objetivo é, antes de tudo, dar uma
ideia de seu conteúdo geral e destacar aqueles pontos mais
relevantes para o debate que se seguiu entre Popper e Adorno.
Popper propõe, logo no início de sua exposição, partir
de duas teses, onde ele opõe o conhecimento e o nãoconhecimento (a ignorância). Com efeito, afirma ele,
“conhecemos muito” (primeira tese), mas “nossa ignorância é
sóbria e ilimitada” (segunda), inclusive “no campo das
próprias ciências naturais”. No entanto, segue Popper, apenas
aparentemente há contradição entre essas duas teses, pois é do
desencontro entre tais situações que surge a tensão que
impulsiona o conhecimento. Cabe então à lógica do
conhecimento discutir tal tensão (terceira e quarta teses)
Assim, pode-se dizer que
o conhecimento não começa de percepções ou observações ou
de coleção de fatos ou números, porém, começa, mais
propriamente, de problemas. Poder-se-ia dizer: não há
nenhum conhecimento sem problemas; mas, também, não há
nenhum problema sem conhecimento. Mas isto significa que o
conhecimento começa da tensão entre conhecimento e
ignorância (POPPER, 1978a, p. 14).
276
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Na tese seguinte, Popper desenvolve a relação entre a
importância do problema a ser investigado e a forma (o
método) como isso deve ser feito. Assim, para ele, “é o caráter
e a qualidade do problema e também, é claro, a audácia e a
originalidade da solução sugerida, que determinam o valor ou
a ausência do valor de uma empresa científica” (POPPER,
1978, p. 15). Dito isso, e antes de apresentar sua sexta e
“principal tese”, Popper redimensiona o papel da observação
para a produção e aquisição do conhecimento científico
(quinta tese). Afirma Popper:
[Em todas as ciências] o ponto de partida é sempre um
problema [teórico ou prático] e a observação torna-se algo
como um ponto de partida somente se revelar um problema.
[Mas] o ponto de partida de nosso trabalho científico é não
tanto a pura e simples observação, porém, mais
adequadamente, uma observação que desempenha um papel
particular, isto é, uma observação que cria um problema [de
pesquisa] (POPPER, 1978a, p. 15).
Ao se referir à sexta tese como a principal, Popper, é
evidente, tinha uma razão maior. Nela, como veremos a
seguir, Popper praticamente resume a lógica que defende não
só para a investigação no campo das ciências sociais mas
também para as ciências naturais. Trata-se, sem dúvida, de
uma clara síntese de seu princípio da refutabilidade, por um
lado, e do que ele denominava de “racionalismo crítico”, por
outro. Por esta razão, abaixo a reproduzo na íntegra.
a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências
naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para
certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se
nossas investigações e aqueles que surgem durante a
investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma
solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente,
então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas
temporariamente.
277
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então
tentamos refutá-la; pois toda a crítica consiste em tentativas de
refutação.
c) Se uma solução tentada é refutada, através do nosso
criticismo, fazemos outra tentativa.
d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamente; e a
aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida e
criticada mais além.
e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas
experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas
que são controladas por severas críticas. É um
desenvolvimento crítico consistente do método de ‘ensaio e
erro’.
f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na
objetividade do método crítico. Isto significa, acima de tudo,
que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e mais
ainda, que o instrumento principal da crítica lógica – a
contradição lógica – é objetivo (POPPER, 1978a, p. 15-16).
Como consequência da tese anterior, mas, sobretudo, a
partir das demais que se seguem, apreende-se que o critério
para definir o caráter científico de uma teoria está na
possibilidade de validá-la, refutá-la e testá-la. Deve-se aceitar,
ainda, que todo conhecimento é provisório no sentido em que
é uma verdade momentaneamente aceita até que seja operado
novo teste, nova tentativa de refutação. Em tal processo, é
necessário,
entretanto,
rejeitar
o
dogmatismo
–
consubstanciado, para Popper, principalmente no marxismo e
na psicanálise – e o indutivismo.
Contra o indutivismo, particularmente, Popper dedica
várias de suas teses para refutá-lo, enquanto faz a defesa da
adoção do método hipotético-dedutivo. Antes, porém, ele
aborda, também em diversas teses, a questão da objetividade e
da neutralidade valorativa do conhecimento científico. Em
ambos os casos, tais temas estão submetidos à crítica lógica.
Quanto à objetividade científica, Popper, além do que afirma
em sua sexta tese – particularmente no último tópico –, nega
278
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
que ela dependa da objetividade do cientista, quer ele se
dedique às ciências naturais ou às sociais. Ademais,
o que pode ser descrito como objetividade científica é baseado
unicamente sobre uma tradição crítica que, a despeito da
resistência, frequentemente torna possível criticar um dogma
dominante. [Assim,] a objetividade da ciência não é uma
matéria dos cientistas individuais, porém, mais propriamente,
o resultado social de sua crítica recíproca, da divisão hostilamistosa de trabalho entre cientistas, ou sua cooperação e
também sua competição (POPPER, 1978a, p. 23).
Quanto à questão da valoração, segundo Popper,
existem os valores e desvalores puramente científicos e os
extra-científicos. Cabe, portanto, ao cientista crítico demarcar
claramente quais os valores e desvalores situados em um e em
outro campo, impedindo, sobremodo, que aspectos extracientíficos se confundam com as questões de verdade.
No que diz respeito ao indutivismo, é relevante
ressaltar que, para Popper, “a função mais importante da pura
lógica dedutiva é a de um sistema de crítica” incompatível
com o indutivismo. Mas o que Popper quer dizer ao usar a
expressão “lógica dedutiva”? Em suas palavras:
A lógica dedutiva é a teoria da validade das deduções lógicas
ou da relação de consequência lógica. Uma condição
necessária e decisiva para a validade de uma consequência
lógica é a seguinte: se as premissas de uma dedução válida são
verdadeiras, então a conclusão deve também ser verdadeira.
[Portanto] a lógica dedutiva é a teoria da transmissão de
verdade, das premissas à conclusão (POPPER, 1978a, p. 26;
grifos no original).
Consequentemente, conclui Popper (1978a, p. 27),
a lógica dedutiva torna-se a teoria da crítica racional, pois todo
criticismo racional toma a forma de uma tentativa de
demonstrar que conclusões inaceitáveis podem se derivar da
279
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
afirmação que estivemos tentando criticar. Se tivermos
sucesso em deduzir, logicamente, conclusões inaceitáveis de
uma afirmação, então, a afirmação pode ser colocada como
digna de ser recusada.
Já em suas teses finais, Popper, por um lado, mantém o
foco sobre o “conceito de verdade”, que considera
indispensável à sua abordagem crítica, e acerca da ideia de
explicação causal, que lhe é tão cara, já que “a solução tentada
de um problema, isto é, a explicação, consiste sempre numa
teoria, em um sistema dedutivo que nos permite explicar o
‘explicandum’ [aquilo que se quer explicar] relacionando-o a
outros fatos (as assim chamadas condições iniciais)” (POPPER,
1978a, p. 28). Assim, com tais conceitos lógicos, busca-se,
sobretudo, a “aproximação da verdade” e o “poder explicativo
de uma teoria”. Por outro lado, Popper acrescenta à lógica
formal um método, que considera necessário às ciências
sociais, denominado de “lógica da situação” ou “situacional”.
Tal método “consiste em analisar suficientemente a situação
social dos homens ativos para explicar a ação com ajuda da
situação, sem outra ajuda maior da psicologia”. Para ele, tratase de “um método puramente objetivo nas ciências sociais, que
bem pode ser chamado de método de compreensão objetiva, ou
de lógica situacional” (POPPER, 1978a, p. 31-32; grifos no
original). É o próprio Popper que explica:
A compreensão objetiva consiste em considerar que a ação foi
objetivamente apropriada à situação. Em outras palavras, a
situação é analisada o bastante para que os elementos que
parecem, inicialmente, ser psicológicos (como desejos,
motivos, lembranças e associações), sejam transformados em
elementos da situação. Um homem com determinados desejos,
portanto, torna-se um homem cuja situação pode ser
caracterizada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos;
e um homem com determinadas lembranças ou associações
torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo
280
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
fato de que é equipado, objetivamente, com outras teorias ou
com certas informações (1978a, p. 31-32; grifos no original).
Daí, Popper chama a atenção, o método da lógica
situacional é individualista mas não psicológico, e que as
explicações que o método propicia são “reconstruções
racionais e teóricas” onde o mundo físico, que nos cerca e no
qual agimos, é considerado.
Por fim, devo ressaltar que outras questões foram
abordadas por Popper em suas teses, mas, no meu
entendimento, são as que tratei aqui aquelas que mais
chamaram a atenção de Adorno e foram discutidas por ele.
Dessa forma, passo, a seguir, a expor a réplica oferecida por
Adorno a partir da dialética apregoada pela Escola de
Frankfurt.
A RÉPLICA DE ADORNO A POPPER
Inicialmente, é importante ressaltar que Adorno não
seguiu a mesma estrutura do texto de Popper para apresentar
a teoria crítica e o método dialético, segundo os frankfurtianos,
conforme havia sido solicitado pela organização do evento.
Isso, parece-me, lança uma espécie de névoa sobre o próprio
debate, tanto quanto, possivelmente, dificulta uma síntese
mais detalhada e precisa daquela réplica. Com efeito, Adorno
foi bastante seletivo e, como bem aponta Freitag (1986, p. 4647), concentrou-se em alguns conceitos para criticar ou
contestar as teses originais. Por essa razão, e visando facilitar
esta exposição, procurei ler o texto original de Adorno levando
em consideração algumas das observações já oferecidas por
Freitag, mas, principalmente, cotejar o que foi dito pelo autor
frankfurtiano com as teses de Popper.
Adorno (1986, p. 46-61), logo no início de sua
exposição, procura demarcar a diferença entre sua
281
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
compreensão e a de Popper acerca do termo lógica, contido no
título do trabalho debatido. Para ele, aquele termo tem “uma
conotação mais ampla [que para Popper]; evoca mais os
procedimentos concretos da sociologia do que regras genéricas
de pensamento, a disciplina dedutiva” (ADORNO, 1986, p.
46). A partir daí, referindo-se às principais teses de Popper,
Adorno começa a desenvolver seus argumentos em defesa da
teoria crítica e da dialética, contrapondo-as ao racionalismo
crítico e à lógica formal de seu antecessor.
Adorno parte, então, das duas primeiras teses de
Popper, que tratam, como expus, do conhecimento abundante
e do ilimitável não-conhecimento, com as quais Adorno
concorda, embora as considere insuficientes. Para ele, a
superação do “não-conhecimento passageiro”, a que se refere
Popper, ou sua incorporação à esfera do conhecimento não
ocorre, “no progresso da ciência e da metodologia, [...] por
aquilo que, com um termo fatal e impróprio, denomina-se
síntese. O objeto contrapõe-se à unidade simplista e
sistemática das frases interligadas” (ADORNO, 1986, p. 47).
Assim, ele critica a rejeição da contradição, um das
características da dialética, no método da explicação
sociológica, inclusive porque a sociedade, seu objeto, é
contraditório, apesar de determinável. Dessa forma, para
Adorno,
o ideal de conhecimento de uma explicação unívoca,
simplificada ao máximo, matematicamente elegante, fracassa
quando o próprio objeto, a sociedade, não é unívoca nem
simples, nem tampouco se sujeita de modo neutro ao arbítrio
da formação categorial, pois difere daquilo que o sistema de
categorias da lógica discursiva antecipadamente espera
(ADORNO, 1986, p. 47).
Por isso, os procedimentos da sociologia devem curvase ante o caráter contraditório da sociedade, caso contrário, “o
282
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
empreendimento das ciências sociais corre permanentemente
o risco de, por amor à clareza e à exatidão, passar ao largo
daquilo que quer conhecer” (ADORNO, 1986, p. 47).
Relativamente à “primazia de problemas como tensão
entre o saber e o não-saber”, Adorno, embora, a princípio,
também concorde com Popper, manifesta a necessidade de ir
mais longe. Para ele, por não ser unívoca, mas contraditória,
“a sociedade é um problema enfático”, que nos leva a uma
“insuficiência de julgamento” insuperável apesar da constante
incorporação de conhecimento sobre ela. Da mesma forma, a
contradição não deixa de existir porque conhecemos mais ou
porque formulamos o problema de maneira mais clara ou,
ainda, porque uma solução proposta foi verificada ou
refutada. Na verdade, a diferença reside no fato de que, para
Popper, “o problema é algo de caráter meramente
epistemológico”, enquanto para Adorno, “é também algo
prático”. Por isso, Adorno considera que separar os problemas
reais dos imanentes seria fetichizar a ciência (ADORNO, 1986,
p. 48-49).
Adorno faz igualmente algumas ponderações acerca
das teses de Popper onde este defende a prioridade do
problema sobre as percepções e a observação. Trata-se de
discutir acerca do significado ou interesse que têm os
problemas identificados pelo cientista e para os quais devemse buscar soluções. Para Popper, observa Adorno,
a qualidade do desempenho científico-social está na exata
proporção da significação ou do interesse que tenham os seus
problemas. Desse modo, por trás disso tudo está,
indubitavelmente, a consciência daquela irrelevância, à qual
inúmeras investigações sociológicas são condenadas por
obedecerem ao primado do método e não ao primado do
objeto (ADORNO, 1986, p. 50).
283
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
É certo, continua Adorno, que Popper não se recusa a
dar peso ao objeto. Entretanto, novamente há que se
“ponderar que sobre a relevância dos assuntos nem sempre se
pode emitir um julgamento a priori” (ADORNO, 1986, p. 50).
Da mesma forma, “a exigência de relevância do problema não
poderá ser dogmatizada”, isto é, Adorno considera que
a escolha do tema de pesquisa legitima-se amplamente pelo
que o sociólogo consegue depreender do objeto por ele
escolhido, sem que isso sirva, de resto, de pretexto para todos
os inúmeros projetos simplesmente desenvolvidos para a
carreira acadêmica, nos quais a irrelevância do objeto combina
perfeitamente com a obtusidade das técnicas de pesquisa
(ADORNO, 1986, p. 50).
Ainda neste tópico, Adorno aborda as características
que, para Popper, devem ser observadas na definição, se os
problemas de pesquisa são relevantes ou significativos e se as
investigações entabuladas resultam em trabalho científico.
Quanto à honestidade, Adorno ressalta que, na vida real,
normalmente, se identifica tal qualidade no trabalho daquele
que pensa o que todos pensam, mas dificilmente daquele que
dá primazia ao objeto. Da mesma forma, trata da linearidade e
da simplicidade, objetivos a serem perseguidos pelos
investigadores sociais. Adorno os considera questionáveis na
medida em que a própria sociedade é tão complexa e
contraditória. Além do mais, para ele, é necessário
desvencilhar-se das barreiras criadas pelo senso comum.
Assim, diferentemente de Popper, Adorno entende que o
arrojo e a peculiaridade das soluções propostas, características
já apontadas pelo primeiro, são mais importantes.
Em seguida, Adorno defende que não só as soluções
devem ser criticadas, mas, igualmente, os problemas, pois,
“enquanto categoria, também não deve ser hipostasiado”, isto
é, substantivado. Na prática, Adorno chama a atenção, “não
284
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
raro têm-se soluções; ocorre-nos algo e posteriormente
formula-se o problema. Mas isso não é mera coincidência”.
Pois, continua,
as teorias do conhecimento [...] foram concebidas, mesmo
pelos empiristas, de cima para baixo. Com frequência não
conseguiram fazer justiça ao conhecimento adquirido
efetivamente. Segundo um projeto de ciência que lhe é
externo, ele foi ajustado como contínuo indutivo e dedutivo
(ADORNO, 1986, p. 51).
Adorno procura mostrar, então, como a teoria do
conhecimento deve enfrentar tal questão:
entre as novas tarefas da teoria do conhecimento [...] está a
reflexão a respeito de como se processa o conhecimento, ao
invés de se descrever de antemão o desempenho de
conhecimento segundo um modelo lógico ou científico, o qual,
na realidade, não corresponde ao conhecimento produtivo
(ADORNO, 1986, p. 51).
Assim sendo, como destaca igualmente Freitag (1986,
p. 46-47), Adorno contesta que o método – que, no caso de
Popper, significaria as regras da lógica formal e situacional –
tenha papel predominante no processo de aquisição de
conhecimento. E vai mais longe ao observar que não é a
adoção de tal método que garante objetividade e neutralidade
à empreitada do cientista em busca da verdade científica. No
mesmo sentido, embora concorde com Popper sobre o papel
da crítica, a ideia de Adorno acerca desse conceito não é
formal, assim como o é para o racionalismo crítico, mas
material, e mesmo existencial. De fato, concorda Adorno, o
“conhecimento sociológico é crítica” (ADORNO, 1986, p. 51).
É Freitag que nos ajuda a especificar melhor esta
assertiva de Adorno:
285
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
a sociologia concebida como dialética e crítica não pode deixar
de guiar-se pela perspectiva do todo, ainda quando estuda um
objeto particular, vendo esse todo não como sistema
estabelecido, mas como produto histórico do passado e como
aspiração de realização no futuro. A sociologia crítica não se
reduz a uma autocrítica interna da disciplina, ela estende a
sua crítica ao próprio objeto de análise: à sociedade
contemporânea e também às hipóteses, conceitos e teorias
desenvolvidas para representá-la, analisá-la. A crítica passa a
ser o elemento que permeia todo o processo de conhecimento
(FREITAG, 1986, p. 47).
Por último, cabe ressaltar ainda, Adorno não concorda
com a aproximação – ou mesmo equiparação – que Popper faz
entre crítica e o princípio da refutação. Para ele, “a refutação é
fértil apenas como crítica imanente”, pois, se é verdade, por
um lado, que “a crítica de forma alguma pode ser separada da
solução”, por outro lado, “as críticas são, via de regra,
primárias, imediatas e apenas suscitam a crítica, pela qual são
transmitidas a continuidade do processo de conhecimento;
sobretudo, a figura da crítica pode, inversamente, implicar a
solução, caso tenha logrado a boa forma; quase nunca ela
surge de fora” (ADORNO, 1986, p. 52-53). Por isso, para
Adorno, o próprio pensamento especulativo faz parte do
processo de conhecimento e, portanto, não significaria nãosaber social.
FINALIZANDO, AS TRÉPLICAS DE POPPER E ADORNO
Popper e seu racionalismo crítico suscitaram muitos
debates. E continuam suscitando. Aquele, travado com os
frankfurtianos, foi apenas um deles. Carvalho (1994), por
exemplo, analisa a polêmica entre Popper e Thomas Kuhn.
Esse mesmo debate é retomado por Worral (1995, p. 91-123).
Há que se lembrar também aqueles travados com os
286
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
empiristas lógicos de Viena, que Popper (1978b) tanto faz
questão de ressaltar.
Aqui, tendo escolhido abordar o debate entre Popper e
Adorno, pude, assim, retomar uma perspectiva teórica e
metodológica bastante discutida na primeira metade do século
XX e abordar uma outra bem distinta, que tanto marcou o pósSegunda Guerra Mundial, de tal forma a possibilitar um
contraponto. Contudo, como já havia antecipado, o debate
entre tais perspectivas apenas começou em 1961, como se
observa nas tréplicas oferecidas por Adorno e Popper e nos
comentários de outros autores.
É interessante observar que Popper e Adorno, nas suas
respectivas tréplicas, referem-se a um comentário de Raph
Dahrendorf, que teria ficado surpreso com a relativa
concordância entre aqueles autores, e ambos buscam contestálo. Por um lado, Popper justifica-se afirmando que não tinha
razão para atacar a Escola de Frankfurt já que deveria falar
acerca da lógica das ciências sociais. No entanto, isso não o
impede de concluir, na ocasião dessa tréplica, que podia ter
utilizado os argumentos expostos em obras anteriores, em
particular contra os hegelianos e os marxistas, para demarcar
suas divergências com a Escola de Frankfurt. Popper
considera, ainda, que Dahrendorf nutria esperanças de que as
diferenças políticas e ideológicas, inclusive em torno das
concepções sociológicas, viessem à tona. Daí, sua frustração
(POPPER, 1978b, p. 35-39).
Por outro lado, Adorno entende que ambos
procuraram “tornar teoricamente comensuráveis as posições”,
mas também que a discussão ficou no campo da ciência em
geral e houve pouca articulação dessa com a sociologia.
Contudo, Adorno considera que o que mais concorreu para a
“aparente” concordância entre os dois pode ser resumido na
“tese da prioridade” da lógica formal sobre qualquer outra,
recurso, segundo Adorno, decerto positivista: “para ser
287
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
possível, ela [a discussão] precisa proceder conforme a lógica
formal”. Assim, para ele,
se um debate, impreterível como o presente, fosse conduzido a
respeito de visões de mundo, partindo de pontos de vista
extremamente opostos, seria infrutífero a priori; mas, passando
à argumentação, sofre a ameaça de serem reconhecidas sem
discussão as regras do jogo de uma das posições, que não
perfazem por último o objeto de discussão (ADORNO, 1983,
p. 209-210).
Ainda acerca da participação dos frankfurtianos no
debate, Adorno reclama que
os positivistas precisam fazer o sacrifício de abandonar a
posição denominada por Habermas de ‘não-estouentendendo’;
não
desqualificar simplesmente
como
ininteligível tudo o que não é concorde com categorias como
os seus ‘critérios de sentido’ (ADORNO, 1983, p. 211).
Embora Adorno pareça ter razão, lembro que um
comentarista de sua obra, mais virulento, disse a respeito de
um de seus livros que os trechos mais claros, ali contidos, são
as citações que Adorno faz de Hegel, quando este, como se
sabe, é considerado um autor quase impenetrável (cf. COHN,
1983, p. 7-8). De minha parte, devo confessar que, dos textos
aqui utilizados, a tréplica de Adorno é, sem dúvida –
chamemos assim –, o mais “pesado”. Mas, de fato, é nele que
Adorno procura reafirmar seus pontos de vista, opondo-se,
principalmente, aos argumentos de Hans Albert, debatedor
que se posicionou a favor de Popper, também para contestar o
que ele chama de “positivismo popperiano” – “mais ágil que o
positivismo atual” – e defender a validade do debate acerca da
controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, então
questionada. Para Adorno, portanto, a despeito do que dizem
aqueles que não veem progresso ou sentido na continuidade
288
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
do debate, “um prosseguimento da controvérsia teria por
tarefa tornar [claros] aqueles antagonismos básicos, de
maneira alguma já inteiramente articulados”, pois tais
antagonismos
não constituem divergências de visão de mundo. Têm seu
lugar nas questões da lógica e da teoria do conhecimento,
concernentes à concepção de contradição e não-contradição,
essência e fenômeno, observação e interpretação. [Assim
sendo,] a dialética se comporta de modo intransigente durante
a disputa, porque acredita continuar pensando ali onde seus
opositores se detêm, frente à não questionada autoridade do
empreendimento científico (ADORNO, 1983, p. 257).
Por sua vez, Popper se queixa principalmente quanto
ao fato de os frankfurtianos qualificá-lo de positivista. E
embora ele credite a Habermas a associação de seu nome ao
positivismo (cf. HABERMAS, 1983), penso que, desde o início
do debate, ainda na réplica de Adorno, era evidente tal
intenção. Não só porque a associação já fora feita antes, como
ele mesmo reconhece, mas também porque, para os
frankfurtianos, o debate significava atacar o racionalismo
crítico de Popper como herdeiro das tradições positivistas e,
em particular, dos vienenses, apesar das propaladas diferenças
entre ambos. Segundo Popper, todo o esforço dos
frankfurtianos resultou apenas na associação de seu nome ao
positivismo. Porém, suas teses não foram (sequer uma)
contestadas por eles. Além disso, acrescenta Popper,
a principal consequência do livro [publicado com o conteúdo
do debate] ficou sendo a acusação de Adorno e Habermas de
que um ‘positivista’ do tipo de Popper está obrigado por sua
metodologia a defender o ‘status quo’ político (POPPER,
1978b, p. 38).
Para se livrar de tal “acusação”, Popper, expõe, então,
sua ideia em torno dos papéis da teoria e da epistemologia nas
289
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ciências sociais do ponto de vista do racionalismo crítico,
muitas vezes denominada de incrementalismo (político), que
contribuiu para desenhar seu perfil ideológico, isto é, o de um
liberal.
E é fato que minha ‘teoria social’ (que preconiza uma reforma
gradual e setorial, controlada por uma comparação crítica
entre os resultados esperados e os obtidos) contrasta
fortemente com a minha ‘teoria do método’, que procura ser
uma teoria das revoluções científicas e intelectuais (POPPER,
1978b, p. 39).
Ou seja:
Faz parte da minha epistemologia que, no homem, através da
evolução de uma linguagem descritiva e argumentativa, tudo
isto [as mutações errôneas, segundo a evolução darwiniana]
modificou-se radicalmente. [...] Desta forma, [...] nós
chegamos a uma nova possibilidade fundamental: nossas
escolhas, nossas hipóteses experimentais, podem ser
eliminadas criticamente pela discussão racional, sem
eliminação a nós mesmos. Este é, de fato, o propósito da
discussão racional crítica. O ‘suporte’ de uma hipótese exerce
uma importante função nestas discussões; ele tem de defender
a hipótese contra críticas erradas, pode talvez tentar modificála, se sua forma original não puder ser sustentada com êxito
(POPPER, 1978b, p. 39).
Popper conclui tais argumentos defendendo que a
adoção do racionalismo crítico é a única forma de tornar a
violência obsoleta, sendo, portanto, o papel dos cientistas o de
fazer com que isso ocorra. Para tanto, é necessário usar “uma
linguagem clara e simples” (POPPER, 1978b, p. 39), sobretudo
porque “os padrões de verdade e do racionalismo crítico [...]
dependem de clareza” (POPPER, 1978b, p. 41). Aqui, creio,
reside uma crítica não explícita à maneira, por assim dizer,
descritiva do método dialético da teoria crítica.
290
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Em seguida, Popper discute novamente a questão da
objetividade nas ciências para (re)afirmar que a objetividade
não se encontra no cientista, mas “no caráter público e
competitivo da empresa científica e, isso, em certos aspectos
sociais dela”, em outras palavras, “num ‘criticismo racional
mútuo’, numa abordagem crítica, numa tradição crítica”
(POPPER, 1978b, p. 40). Tal posição não deixa de ser
semelhante à dos frankfurtianos. No entanto, há, parece-me –
e assim desconfia Popper – enormes diferenças quanto ao
significado que Popper e a Escola de Frankfurt atribuem ao
termo crítica, como já pude, aliás, ressaltar na seção anterior.
A essa altura, e antes de concluir, Popper passa a
referir-se à contribuição de Habermas ao debate, esclarecendo
que “a maior parte do que ele diz parece-me trivial; o resto
parece-me errado” (POPPER, 1978b, p. 46). Como Popper
identifica, a discussão gira em torno do “princípio da
identidade entre teoria e prática” (cf. HABERMAS, 1983), onde
ele (Popper) usa os termos experiências, práxis, história,
relacionando-os à ciência e à teoria. Penso, no entanto, que o
desejo de Habermas, no referido texto, é questionar a
capacidade do método do racionalismo crítico, em particular, e
o positivismo, em geral, de teorizar acerca da sociedade por
não a compreenderem “como totalidade, integrada no espírito
dialético” (HABERMAS, 1983, p. 277). Evidentemente, Popper
contesta a tese da primazia da teoria crítica frankfurtiana, em
especial a dialética e suas implicações práticas e
revolucionárias, sobre o racionalismo e o seu incrementalismo
ou gradualismo reformador. Tal contestação tem, é claro,
implicações de ordem prática e política, mas também, assim
penso, de natureza epistemológica, pois, o que Popper parece
querer dizer, enfim, é que não há superioridade de uma sobre
a outra no sentido de interpretar, compreender e explicar a
sociedade.
291
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Enfim, volto a um aspecto já mencionado, o fato de que
Popper declara não ser positivista. De fato, para Popper, ser
chamado de positivista “é um equívoco antigo, criado e
perpetuado por aqueles que conhecem a minha obra somente
de segunda mão” (1978b, p. 47). Tal “equívoco” foi criado,
segundo Popper (1978b), pela tolerância de alguns membros
do Círculo de Viena que chegaram a publicar suas críticas ao
positivismo lógico. Como o próprio Popper afirma, é
necessário
uma última palavra a propósito do termo ‘positivismo’. Eu
não nego, decerto, a possibilidade de estender o termo
‘positivista’ até que ele abranja todos os que tenham algum
interesse pelas ciências naturais, de forma que venha a ser
aplicado até aos adversários do positivismo, como eu próprio.
Sustento apenas que tal procedimento não é nem honesto nem
apto a esclarecer o assunto. [...] Eu sempre lutei contra a
estreiteza das teorias ‘cientificistas’ do conhecimento e,
especialmente, contra todas as formas de empirismo
sensualista. Eu lutei contra a imitação das ciências naturais
pelas ciências sociais e pelo ponto de vista de que a
epistemologia positivista é inadequada até mesmo em sua
análise das ciências naturais as quais, de fato, não são
‘generalizações cuidadosas da observação’, como se crê
usualmente, mas são essencialmente especulativas e ousadas
(POPPER, 1978b, p. 47-48).
O debate em torno dos argumentos de Popper e de
Adorno já faz parte da história da filosofia da ciência do século
XX. Mas, certamente, as tradições que eles representam
continuam se confrontando, embora não tenham mais as cores
originais, em função da morte prematura de Adorno, em 1969
– apesar do papel cumprido por Habermas depois disso e até a
morte de Popper, em 1994. Com o passar dos anos, o que
parece ter mudado são os artífices do debate, que têm se
esmerado em formular novas versões da lógica formal
cartesiana e da dialética hegeliana ou marxiana, pontos de
292
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
partida de dois caminhos que, embora eventualmente se
aproximem, não se tocam.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Introdução Sobre o Positivismo na Sociologia
Alemã. In: W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas.
Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 209-257 (Coleção Os
Pensadores).
_______. Sobre a Lógica das Ciências Sociais. In: Theodor W. Adorno. São
Paulo: Editora Ática, 1986, p. 46-61 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
BARRETO, Túlio Velho. Positivismo versus Teoria Crítica: em torno do
debate entre Karl Popper e Theodor Adorno acerca do método das Ciências
Sociais. Perspectivas Filosóficas, vol. VIII, nº 15, 2001, p. 141-178.
CARVALHO, Maria Cecília M. de. A Construção do Saber Científico:
algumas posições. In: CARVALHO, Maria Cecília M. de (org.). Construindo
o saber. Metodologia científica. Fundamentos e técnicas. Campinas:
Papirus, 1994, p. 63-86.
COHN, Gabriel. Adorno e a Teoria Crítica da Sociedade. In: Theodor W.
Adorno. São Paulo: Editora Ática, 1986, p. 46-61 (Coleção os Grandes
Cientistas Sociais).
FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: ontem e hoje. São Paulo: Editora
Brasiliens, 1986.
HABERMAS, Jürgen. Teoria Analítica da Ciência Dialética. In: W. Benjamin,
M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 277-299 (Coleção Os Pensadores).
HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: W. Benjamin,
M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo:
Abril Cultural, 1983a, p. 117-154 (Coleção Os Pensadores).
_______. Filosofia e Teoria Crítica. In: W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W.
Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983b,
p. 155-161 (Coleção Os Pensadores).
293
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos
a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
POPPER, Karl. A Lógica das Ciências Sociais. In: POPPER, Karl. Lógica das
Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/Brasília: Universidade de
Brasília, 1978a, p. 13-34.
_______. Razão ou Revolução? In: POPPER, Karl. Lógica das Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/Brasília: Universidade de Brasília,
1978b, p. 35-49.
WORRALL, John. ‘Revolução Permanente’: Popper e a mudança de teorias
na Ciência. In: O’HEAR, Anthony (org). Karl Popper: filosofia e problemas.
São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 91-123.
294
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 16
LINGUAGEM E CONHECIMENTO: KARL POPPER
E A QUESTÃO DA COMUNICAÇÃO
Marcia Maria Rodrigues Semenov
Ler entre linhas é expressão própria do filósofo; todavia,
Popper mostra-nos o próprio “entre linhas” a ser lido e ainda
nos diz como lê-lo. Dele recebemos o legado do filósofo que
acorda o discípulo para a dedução. Ele indica objetivamente o
método de pesquisa; não discute o que seja o mal-estar de
deparar-se com o desconhecido; mas, ao contrário, investiga o
aparente mistério, pela lógica do conhecimento científico, pela
propensão e por instâncias em realidades ou Mundos, – eis seu
formidável procedimento teórico-filosófico.
Popper conduz-nos ao reconhecimento do Mundo da
Linguagem, tão distinto que, apesar de ser M3, está presente
nos três mundos. Em O Eu e seu Cérebro, mostra-nos a
ocorrência de estágios evolutivos cósmicos (POPPER e
ECCLES, 1991, p. 35) ou mundos possíveis de reconhecimento,
tais como: o M1, M2, M3 e outros, - dando-nos abertura à
ontologia ou metafísica, como diria Queraltó (1996), - pois
novas descobertas advirão à medida que mais e melhor nos
conhecermos. Popper mostra-nos a metafísica da natureza,
refletida hodiernamente pelos que debatem teorias astrofísicas
e a teoria quântica. Tal realização iniciou-se com a façanha de
Popper ao livrar a ciência e a filosofia do método indutivo.
295
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
O FETICHISMO DA INDUÇÃO E A OPÇÃO PELO SABER
CONJETURAL
I do not believe in Beliefs (M. Forster).
Popper critica a definição por só resolver problemas
verbais, sendo pois, dispensável em ciência e filosofia.
Definição equivale à significação. O conceito está definido se
dele já foram obtidas a significação e a explicação precisas.
Popper combate Wittgenstein que, no aforismo 6.53 do
Tractatus, diz: “O método correto da Filosofia seria: só dizer o
que pode ser dito, isto é, as proposições das ciências naturais, e, portanto, sem nada a ver com a Filosofia”. Wittgenstein
reprova quem não define os conceitos fundamentais,
advertindo-o que não dá sentido ao que diz: “e quando
alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que em
suas proposições há sinais aos quais não foi dada denotação”
(WITTGENSTEIN, 1987, p. 141-142), mostrando que o
interlocutor não sabe o quê e do quê fala. Para Wittgenstein,
quem não define o que quer falar, não sabe do que fala.
Popper opõe-se a Wittgenstein. Por isso, nós chamamos,
popperianamente, o método de dar sentido ao que se diz pelo
uso da definição, de “fetichismo da definição” (SEMENOV,
2002, p. 32).
Tal fetichismo incide na definição por tentar incorporar
“fetichistamente” o objeto a que se refere. Para Popper, em
Sociedade Aberta, Universo Aberto, ela “teria que ser vista como
ultrapassada pela ciência, pois a ciência traz novos problemas
que levam para bem longe da linguagem preparada,
construída” (POPPER, 1987b, p. 34).
Popper critica Carnap que defende a definição:
“Carnap não vê que através de definições só são resolvidos
problemas verbais” (POPPER, 1987b, p. 34). Ademais, para
não retroceder ad infinitum, as definições, por indução, apelam
296
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
para conceitos indefinidos. Logo, por meio delas, não se chega
à “significação unívoca” (POPPER, 1987b, p. 35).
Popper reconhece que, de modo eficaz, mas não
intencional, matou o neopositivismo. A indução “encobre” o
percepto e simula haver um ponto final onde não há. “Os
testes não podem ser levados “ad infinitum”: cedo ou tarde
temos que parar”, diz Popper, na Lógica da Pesquisa Científica
(POPPER, 1975a, p. 280); porém, Popper exige que “todos
esses enunciados sejam suscetíveis de ser testados.”
Na Autobiografia Intelectual, Popper mostra a Logik der
Forschung (1934) como crítica ao positivismo. As ideias de
Popper eram discutidas no Círculo de Viena e foram editadas
por Frank e Schlick junto às ideias dos positivistas. Filósofos
ingleses e norte-americanos pensavam Popper como “um
membro dissidente do positivismo lógico” que pretendia a
“substituição do critério de verificabilidade pelo critério de
falseabilidade” (POPPER, 1986, p. 95).
Na Seção 2, A lenda de Popper, e na 3, O pano de fundo da
lenda: Critério de Demarcação versus Critério de Sentido, em
Replies to my Critics (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963964), Popper expõe a lenda sobre pertencer ao Círculo de
Viena.
Em Reply to my Critics, Seção 1, Popper impressionouse com o brilhantismo de Schilpp ao dizer que cada filósofo
“deveria ter uma plataforma a partir da qual ele possa
responder ao menos a alguns de seus críticos” (POPPER in
SCHILPP, 1974, vol. II, p. 961 e 963). “Contudo a lenda
cresceu, e continua crescendo” (POPPER in SCHILPP, 1974,
vol. II, p. 963), diz Sir Karl.
Popper afirma haver metafísicos e anti-metafísicos
dizendo absurdos, mas apesar da “ausência de sentido de
certas ideias metafísicas (como o atomismo, no passado), elas
colaboram com o progresso das teorias científicas” (POPPER
in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963, parêntesis nossos). Assim,
297
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
“absurdos” metafísicos do passado, hoje compõem a ciência,
pois metafísica não é pseudo-discurso. “Opus-me às tentativas
do Círculo de Viena de desprezar a metafísica outorgando-lhe
o critério de ‘falta de sentido’ ou de significado” (POPPER in
SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963).
Combatendo a lenda, Popper alerta: “Meu critério de
falseabilidade – que não é de significado, mas de demarcação, é frutífero: prepara para o caminho da teoria de testabilidade e
conteúdo, e para o fim do problema da indução” (POPPER in
SCHILPP, 1974, vol. II, p. 964).
A “lenda de Popper” afirma fatos inexistentes. Popper
nunca admitiu ser positivista e membro do Círculo de Viena.
Todavia, Alice Ambrose (in SCHILPP, 1974, vol. 2, p. 964)
defende o lendário “empirismo lógico de Popper”: “A
dificuldade apresentada pelo princípio de [...] verificabilidade,
[...] o Professor Karl Popper tentou evitá-la por um novo
critério: uma demonstração é significante se ela for falseável”.
Os positivistas lógicos preferiram Popper mais como
aliado que como crítico. John Laird, em Recent Philosophy, o
descreve como “’crítico, mas também aliado’ do Círculo de
Viena” (in POPPER, 1986, p. 220, nota 113a). Os
neopositivistas esquivaram-se da crítica popperiana por
concessões verbais, “autopersuadindo-se de que eu
concordaria em substituir verificação por falseamento como
critério de significatividade” (POPPER, 1986, p. 95), diz Popper;
que resolveu não fazer concessões e nem voltar à carga e, antes
da Segunda Guerra Mundial, o positivismo lógico estava
morto.
Para Popper, o conhecimento científico é feito de
hipóteses e conjeturas. Ele afirma: “Não acredito em
definições, e nem que elas aumentem a exatidão; e detesto
termos pretensiosos e a pseudo-exatidão que lhes é
correspondente” (POPPER, 1983, p. 41).
298
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper se percebe (POPPER, 1983, p. 41), muitas vezes,
como o soldado que constata que, salvo ele próprio, todos os
outros estão com o passo trocado. Por sorte, uns membros do
grupo acertam o passo com o seu: “Isto aumenta a confusão; e,
não sendo um admirador da disciplina filosófica, satisfaço-me
por suficientes membros do batalhão estarem com o passo
trocado entre si” (POPPER, 1983, p. 41).
Hipóteses denotam mutações; e, aderindo ao
evolucionismo darwiniano, a crítica racional de Popper leva
nossas hipóteses a morrerem em nossos lugares. Advirão pois,
ideias novas, superiores às convencionais. A pluralidade de
conjeturas competidoras surge com a metodologia dedutiva de
testes popperiana.
Popper afirma: “o que é indução para muitos, não
passa de má compreensão do que é a dedução e a seleção.
Testar é, obviamente, um procedimento dedutivo-seletivo.
Inventamos uma coisa e a testamos. Quer dizer: abandonamola à seleção” (POPPER, 1987b, p. 54). Logo, o “indutivo, é nãocriativo” (POPPER, 1987b, p. 56). Popper afirma que “a teoria
da indução é a que tenta negar a criatividade do espírito e diz
que tudo vem apenas do exterior” (POPPER, 1987b, p. 56). Ele
nos norteia: “viver é resolver problemas” (POPPER, 1987b, p.
68).
A LINGUAGEM E
CONHECIMENTO
OS
ENIGMAS
DO
MUNDO
E
DO
Interesso-me por ciência e filosofia para saber sobre o enigma
do mundo em que vivemos e o enigma do conhecimento que
temos do mundo. Só o reavivamento no interesse desses enigmas
salvará as ciências e a filosofia das estreitas especializações e
da fé obscurantista nas habilidades dos especialistas e em seu
conhecimento e autoridade pessoais (Sir Karl Raimund
Popper).
299
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Popper crê, como Darwin, na evolução do
conhecimento e, como Bergson, que o “novo” surge da
“alegria criadora”. “Novas ideias” aumentam o conhecimento,
e “toda descoberta tem ‘um elemento irracional’ ou uma
‘intuição criadora’, no sentido de Bergson” (POPPER, 1975, p.
267), afirma Sir Karl.
Einstein fala da ‘busca das leis sumamente universais [...] a
partir das quais se obtem uma imagem do mundo por
dedução pura. Não há um caminho lógico’- diz Einstein, - ‘que
leve a essas [...] leis. Só se pode alcançá-las por intuição,
baseada em algo parecido com um amor intelectual
(Einfühlung) dos objetos da experiência’ (POPPER, 1975, p.
267).
O realismo indeterminista subjaz à filosofia popperiana
baseada no Princípio da Incerteza de Heisenberg, pai da “nova
teoria quântica” (POPPER, 1986, p. 98 e 99), como diziam na
época. Deste Princípio, diz Hawking (2001, p. 111), “não se tem
certeza da posição e da velocidade de uma partícula, ao mesmo
tempo. Se mais precisamente se conhece uma, menos
precisamente é possível conhecer a outra”.
Popper visitou Einstein em Princeton em 1950, ao fazer
a “conferência (que Einstein assistiu), o ensaio Indeterminism in
Quantum Physics and in Classical Physics [...] que seria a base
deste volume do Pós-Escrito” (POPPER, 1988, p. 24 e 25, nota
2). Popper relata que conversaram sobre o indeterminismo, e
que tentou fazer Einstein sair do determinismo, “que equivalia
à ideia do mundo como um universo-bloco parmenidiano
tetradimensional no qual a mudança era ilusão humana, ou
perto disso.” Einstein concordou que esta era sua perspectiva,
“e enquanto a discutíamos, chamei Einstein de ‘Parmênides’”.
Popper disse “que se os homens e outros organismos têm
experiência [...] no tempo, então isso era real”. Não se afasta a
experiência do tempo; e não se pode pensá-lo, como uma
300
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
coordenada espacial (anisotrópica). Na mesma nota de rodapé,
Popper diz que, quatro anos após, em 1954, Pauli escreve a
Born que Einstein já mudara, e que seu ponto de vista passara
a ser “realista e não determinista”. Popper acresce: “a realidade
do tempo e da mudança pareciam-me ser a crux do realismo.” E
diz:
Apresentei a Einstein-Parmênides [...] minha convicção [...]
contra qualquer visão idealista do tempo. E que, ainda que a
visão idealista fosse compatível tanto com o determinismo
como com o indeterminismo, se devia tomar uma posição
clara a favor de um universo “aberto” – um universo no qual
o futuro não estivesse em sentido nenhum contido no passado
ou no presente, se bem que estes lhe impusessem severas
restrições. Argumentei que não nos deveríamos deixar
dominar pelas nossas teorias e ser levados a abandonar o
senso comum com demasiada facilidade (POPPER, 1988, p. 25,
nota 2).
O cisma se dá na Mecânica Quântica se o físico achar
que todos os problemas só têm origem e resolução na Física.
Popper não aceitou o determinismo-instrumentalista, e atingiu
os seus saberes do conhecimento e da epistemologia,
desapegando-se de teorias inaptas à resolução de problemas.
Aceitando mudanças, ele se autocriticou e corrigiu seu erro na
Lógica, seção 77, indicando outra solução (POPPER, 1985, p.
118) mais verossimilhante, logo que percebeu falha em sua
argumentação anterior, devido a um experimento imaginário
que fizera anteriormente, mas que, após seus estudos sobre
Born, notou sua não validade. Mas Popper optou por sustentar
a tese de que o problema de interpretar a teoria quântica une-se ao
de interpretar a teoria da probabilidade, pois defende que a teoria
quântica seja vista como uma teoria estatística em relação a
conjuntos. Popper diz que “a luz se fez ao notar a
interpretação estatística da teoria quântica devida a Born”. Ele
diz:
301
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
de início, eu nem sempre distinguia o espalhamento de um
conjunto de partículas de outro; mesmo eu contornando a
dificuldade nos enunciados ‘formalmente singulares’ de
probabilidades, a questão só se aclarou com a ajuda da noção
de propensão (POPPER, 1986, p. 99-100).
Popper aceita a interpretação de Everett: “Interpretação
de Muitos Mundos”, da Mecânica Quântica, que é “devida
essencialmente a Hugh Everett, III, e (foi) exposta de forma
interessante por Wheeler e outros,” e continua:
As contribuições de Everett são excelentes [...] é uma
discussão objetiva da Mecânica Quântica. No enfoque de
Everett (contrário à interpretação de Copenhagen), não há
necessidade nem ocasião para distinguir entre sistemas físicos
“clássicos” [...] e os sistemas mecânico-quânticos. Por outro
lado, todos os sistemas físicos são sistemas mecânicoquânticos, [...] mormente o usado nas medições; e, certamente,
o universo (POPPER, 1985, p. 108).
Tal interpretação de Everett vem a ser uma
interpretação metafísica (POPPER, 1985, p. 109-110, nota 95).
E, para entender a postura quântica de Popper, reportemo-nos
ao êxito de Wheeler em colocações experimentais, em que
“físico e fóton estão envolvidos num diálogo criativo que
sempre transmuta uma das inúmeras possibilidades quânticas
numa realidade definida, corriqueira”, diz Zohar (1990, p. 49 e
50).
Em experiências, Wheeler mostra que o cientista no
mundo físico ou M1 espera a reação ou “opção” de um fóton,
ao estímulo. O cientista e o fóton interagem; e o fóton tem suas
possibilidades. Do universo participativo de Wheeler surgem
questões: “Além das partículas, dos campos de força, da
geometria, do espaço e do tempo, será o componente
fundamental, o ato ainda mais etéreo do observador
participante?” (in ZOHAR, 1990, p. 50) – o que equivale a
302
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
perguntar: o fóton se decide assim, por haver alguma
interferência do pensamento do observador?
“Como a realidade acontece” depende de nós que a
desejamos do nosso modo preferido. Há as influências que
emanamos e as que captamos no mundo em que vivemos. A
consciência do observador é o agente metafísico da realidade, e por
processos mentais e cerebrais, ele interage com o M1,
resolvendo problemas. Para Wheeler, a consciência humana é
o elo entre o mundo dos elétrons e a realidade cotidiana. Na
vida diária, se alguém decide cantar, dirigir o carro, construir
um prédio e de fato o faz, a consciência produz efeitos na
realidade física. O ato de interferir na natureza exige que
mudemos o modo de ver-nos e o nosso lugar no mundo
natural.
As descobertas da Física Moderna talvez iluminem a
natureza
de
nossa
consciência
ou
mente,
para
compreendermos a interação participativa num diálogo criativo
entre matéria e consciência, em nível quântico. A suposição de
que a mente consciente do observador influi no surgimento de
reações atômicas, numa experiência, - tal como na de Wheeler,
- coincide com as preocupações do realismo indeterminista e
da metafísica da natureza, de Sir Karl Popper.
Popper também se refere a ineficazes potências que se
atualizam mesmo mostrando a evidência de desgaste e de fim
natural. O revigoramento e a continuidade vital da matéria
merecem
atenção
científica,
apesar
da
aparente
incompreensibilidade do caráter das coisas naturais. Diz
Popper que a “matéria morta parece ter mais potencialidades
que meramente produzir matéria morta” (POPPER e ECCLES,
1991b, p. 28). Para ele, a consciência é um fenômeno
emergente, uma propriedade de sistemas complexos
superiores, mas não de átomos:
Parece que, num universo material, algo de novo pode
emergir. Matéria morta parece ter mais potencialidades [...],
303
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
produziu mentes em etapas demoradas, e, por fim, o cérebro e
a mente humana, a consciência humana do “eu”, e a
compreensão humana do universo. Na hipótese evolucionária:
“a evolução produz as mentes e a linguagem humanas. [...] a
mente humana cria histórias, mitos, utensílios, obras de arte e
ciência (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 28 e 29).
A evolução humana não viola leis da Física, e a
Química segue critérios da natureza. Mas, com a vida, diz
Popper (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 29), - o universo passa a
resolver dificuldades; e, com as formas mais complexas,
objetivos são almejados.
Resta admirarmo-nos pelo fato da matéria transcender-se,
produzindo mente, vontade, e todo um mundo de produtos
da mente humana [...] Um dos primeiros produtos da mente
humana é a Linguagem humana. Suponho-a como o primeiro
dos produtos, e que o cérebro e a mente evoluíram em
interação com a linguagem (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 29).
A Linguagem, primeira construção teórica do M3,
aprimorou a onomatopeia e foi desenvolvendo sua
normatização. A comunicação humana, por onomatopeia, fala
e gestos, modulava-se por emissões sonoras de controle
fonético, imitando sons da natureza (KEESING, 1961, p. 549ss).
Referindo-se à realidade por signos, o homem objetivou-se ao
seu interlocutor. Dedicando-se ao M3, na ânsia de dominar o
mundo, a raça humana sobreviveu elaborando pari passu
teorias relativas à linguagem, à confecção de artefatos e às
estratégias de convívio tribal.
A Revolução Verde ou Agro-Pastoril, do Período
Neolítico, foi possibilitada pela Linguagem do Homo Sapiens
Sapiens. Nesta etapa antropológica, o homem criou o mito,
impossível de existir sem a Linguagem.
Para Popper, a evolução humana não é somente o
resultado da interação do acaso cego entre as forças do interior
304
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
do organismo gerando mutação genotípica e as forças externas
sobre o organismo criando mudança fenotípica.
Preferências e objetivos do organismo são produtos da
seleção natural. Popper fala da “evolução orgânica” que é a
nova interpretação científica de dois darwinistas, Baldwin e
Lloyd Morgan, e que consta “no importante livro de Sir Alister
Hardy, The Living Stream (in POPPER e ECCLES, 1991b, p. 29).
Nela, os organismos têm repertório variado de
comportamentos à sua disposição. Um novo comportamento
adotado pode mudar o ambiente; por exemplo, a mudança
consciente do animal para um novo tipo de alimentação, causa
mudança biológica e ecológica. Assim, preferências
individuais e habilidades novas podem levar à seleção e, daí, à
construção de novo nicho ecológico. “Escolhendo” o seu
ambiente, o organismo se exporá, como também aos seus
descendentes, a um novo conjunto de pressões seletivas do
novo habitat.
Darwin não se preocupou com influências ambientais
em defesa das hereditárias, tal como os darwinistas modernos.
Em Popper, encontramos tais ideias de Darwin, de seu The
Origin of Species: “Seria fácil para a seleção natural adaptar a
estrutura do animal aos seus novos hábitos”. “É [...] difícil
decidir, e indiferente para nós, se os hábitos geralmente
mudam primeiro, e as estruturas depois; ou se ligeiras
modificações da estrutura conduzem à mudança de hábitos;
provavelmente,
ambos
ocorrem,
quase
sempre,
simultaneamente”- às quais Popper reage posicionando-se
criticamente:
Concordo em que ambos ocorram, e em que neles é a seleção
natural que age sobre a estrutura genética. [...] penso que em
muitos casos, [...], os hábitos mudam primeiro. São estes os
casos chamados de “evolução orgânica”. [...] discordo de
Darwin ao dizer que a questão é “indiferente para nós”. Acho
que ela nos interessa muitíssimo. Mudanças evolutivas que
305
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
começam com novos padrões de comportamento – com novas
preferências, novos propósitos do animal – não somente
tornam mais compreensíveis muitas adaptações, mas também
revestem as metas subjetivas e propósitos do animal de um
significado evolutivo. [Assim destaca-se] o valor seletivo de
uma certa liberdade inata de comportamento, em oposição à
rigidez comportamental que torna mais difícil para a seleção
natural a produção de novas adaptações. E pode tornar mais
compreensível o modo como surgiu a mente humana
(POPPER e ECCLES, 1991b, p. 31).
Para Sir Alister Hardy, tal “reestruturação” da teoria
darwiniana ajudará na elucidação de “sua relação com o
espírito do homem”; e Popper destaca na escolha do homem,
por falar e em seu interesse pelo discurso, a opção humana
pela evolução de seu cérebro e de sua mente. A linguagem,
assim que criada, exerceu sua pressão própria sobre a seleção,
da qual emergiu o cérebro humano e a consciência do “eu”.
O interesse filosófico-científico popperiano está no
desenvolvimento epistemológico e no progresso científico.
Popper ressalta:
Na auto-observação, podemos verificar-nos, com frequência,
na fronteira, nos limites da não-consciência [...] Nós, quase
normalmente, sofremos durante o sono uma quase completa
perda de consciência, perda grave, no sono muito profundo.
[...] este tipo de evidência é [...] o que temos [...] sobre a
possível emergência da consciência. [No caso do recémnascido] embora ele, com toda a probabilidade, não tenha
nada que se possa chamar de memória, ele, é natural, tem
alguma espécie de conhecimento, informações ou
expectativas, e tem de separar o consciente do que é,
certamente, não-consciente. Embora a recriação da consciência
aconteça a cada dia, eu penso que ela é possivelmente tão
miraculosa quanto a primeira ocorrência da consciência [no
recém-nascido] e que é quase tão difícil de entender (POPPER
e ECCLES, 1992, p. 28 e 29).
306
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A consciência e sua evolução dependem da Linguagem
e seu desenvolvimento, – o que corresponde à produção
criativa constante e aprimorada do que chamamos M3. Popper
assevera: “A consciência total depende de se ter uma teoria
abstrata que deve ser formulada de modo linguístico”
(POPPER e ECCLES, 1992, p. 30). E corrobora: “não há nada
tão importante como a linguagem: minha teoria é que é pela
linguagem que nos tornamos humanos e que a consciência
humana – a consciência do eu – é uma consequência da
linguagem” (POPPER, 1994, p. 71).
Outrossim, Popper afirma que
gostaria de descrever o problema da consciência dos animais
como uma espécie de problema metafísico, no sentido de que
qualquer hipótese, qualquer conjetura sobre ele não é falseável
de nenhum modo, pelo menos no momento atual. E por não
ser falseável ou testável, ele é metafísico (POPPER e ECCLES,
1992, p. 32).
Resumindo: a ocorrência epistemológica “como se
processa o conhecimento, no homem, acerca do universo” só
ocorre pela linguagem.
O M3 é autônomo. Nele se dão descobertas e invenções
que eram insondáveis até emergirem no M3. Ele é aberto e
avança por conta própria. A Linguagem é exigência
primordial para a elaboração do conhecimento no M3;
conhecimento este correspondente às teorias, “essas redes que
lançamos para capturar o que chamamos ‘o mundo’”– como
diz Popper na Lógica da Pesquisa Científica, capítulo III.
Vivendo no M1, ao usarmos uma folha de papel (M1), e
nela marcarmos estudos de teorias popperianas (M3), nós o
fizemos por deixarmos o M3 (mundo de teorias) agir sobre
nossas mentes (M2). Também nossa consciência (ou mente) ou
M2 atua sobre o M1 que está nos livros e experiências, ao
passo que o M2 pode abrir-se receptivamente ao M3. De forma
307
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
distinta, “o Mundo 3 é intrinsecamente aberto” (POPPER, 1988,
p. 128). Dele advêm as teorias.
Ademais, interessante é a argumentação de Queraltó
(1996, p. 169): “na cosmologia do universo aberto se ‘recupera’
o caráter do tempo como fluência de fenômenos e como
direção da evolução própria do mundo.”
O weltanschauung de Popper, em Universo Aberto, é
indeterminista devido à novidade; daí sua coerência com o
propensivismo e o indeterminismo.
Popper pensa o universo como um mundo de propensões,
compatibilizando-se com as ideias de Born, por ver na questão
probabilística a forma correta de interpretação do mundo.
Nela, conforme Born, o mundo corresponde à movimentação
das bolas de um jogo de bilhar romano.
Por conseguinte, foram estados virtuais, representados
por probabilidades ou propensividades que fizeram parte da
realização de múltipla escolha, ocorrida no momento da decisão
sobre o meio (que se deveria escolher), pelo qual um processo
físico indeterminado poderia se resolver.
Popper teve longevidade que, unida à sua genial
racionalidade crítica, propiciou-lhe muitos posicionamentos
filosóficos. “Sou quase tão velho como o automóvel”, disse ele,
lembrando-se desta invenção de 1886 (POPPER, 1995, p. 218).
Apesar de ter escrito tantas páginas sobre a Metafísica da
Natureza, só foi reconhecido como metafísico ao ser publicada
a frase que ele escreveu ao pronunciar-se às críticas recebidas
no artigo de Hilary Putnam: “I am a tottering old metaphysician”
(in SCHILPP, 1974, vol. 2, p. 993).
Sir Karl fornece-nos melhores explicações deste
conhecimento certeiro que se pode ter da natureza, em Um
Mundo de Propensões, segunda parte, no texto “Para uma Teoria
Evolutiva do Conhecimento”, onde ele afirma que: “O nosso
conhecimento tem muitas vezes o caráter de expectativas
inconscientes, e por vezes podemos tornar-nos conscientes de
308
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ter tido uma expectativa deste tipo quando se verifica que ela
não se realizou” (POPPER, 1991a, p. 46).
Vale lembrar Russell (1974, p. 176), ilustrando o
problema epistemológico pela história de Chuang-Tze dos
dois filósofos na ponte. Diz o primeiro: “vejam como os
pequenos peixes se movimentam rapidamente. Nisso consiste
o prazer dos peixes”. Replica o segundo: “como sabes, não
sendo peixe, no que consiste o prazer dos peixes?” A isto, o
primeiro retorque: “como sabes, não sendo eu, que eu não sei
no que consiste o prazer dos peixes?”.
“Minha posição é a do segundo filósofo. Se outros
filósofos sabem ‘o que seja o prazer dos peixes’, felicito-os;
mas não tenho tal dádiva”, diz Russell.
Por que será que Popper parecer-nos-ia dar uma
chance ao primeiro filósofo? Tal questão permanece em nós.
Em Três Concepções Acerca do Conhecimento Humano (POPPER,
1975b, p. 385), Popper mostra Galileu e Kepler fazendo
descobertas que hoje, podendo o homem olhar a Terra, de
fora, do espaço, são primárias e básicas. Todavia, como eles
sabiam que Copérnico estava certo? A resposta está em terem
estudado o sistema solar por intuição criativa, interpretação
matemática e pela visão evolucionária em relação aos fatos.
Lembremos que Popper exalta a tradição racionalista da
civilização ocidental, ativada por Galileu na discussão crítica na
busca da verdade. “Avalia-se a ciência por sua influência
liberalizadora – como uma das forças máximas que se dirigem
para a liberdade humana” (POPPER, 1975b, p. 386).
Voltando à ilustração epistemológica de Russell da
história de Chuang-Tze, entendemos que Popper aceitaria o
primeiro filósofo da ponte provisoriamente, dando-lhe a
chance de explicar sua ideia nova teoricamente e de abri-la à
refutação. De fato, Popper defende a flexibilidade necessária
do epistemólogo para dar à teoria a chance de corroborar sua
têmpera.
309
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Nossa época é de cuidados ecológicos e não de morrer
e nem querer que ninguém morra por ideias. Galileu, já em
sua época, era possuidor de mente moderna, e achou que não
valia a pena morrer por uma teoria que, mais cedo ou mais
tarde, seria vista como verdadeira; e assim, continuou vivo e
pesquisando.
A Linguagem será a patrocinadora do pacifismo,
porque é pela Linguagem desenvolvida que as teorias são
lançadas fora de nós. Popper afirma: “Na minha filosofia se
alberga um elemento a que poderíamos chamar de
darwinístico-combativo” (POPPER, 1987b, p. 19). Nenhum
progresso seria possível sem a linguagem:
O progresso maior e mais importante que foi atingido no
desenvolvimento do homem, que fez do homem homem, é,
creio eu, o desenvolvimento da linguagem. É o
desenvolvimento da linguagem que permite que coloquemos
as hipóteses fora de nós (POPPER, 1987b, p. 19).
Finalmente, observemos que se o M1 e o M3 atuam um
sobre o outro, interagindo por meio do M2, torna-se coerente
que repensemos profundamente o homem, à medida que ele
se vai abrindo ao M3, - sobre o desenvolvimento e a evolução
da sua autoconscientização.
SOBRE VALORES E METAS POPPERIANAS
A crítica racional é, na verdade, um meio através do qual
aprendemos,
crescemos
em
conhecimento
e
nos
transcendemos (Sir Karl Raimund Popper).
Popper assim se autodesigna: “Eu sou um dos últimos
paladinos do Iluminismo” (POPPER, 1987b, p. 22). Ele defende
o progresso da ciência, como também o progresso social na
linha democrática que advém da Antiga Grécia. Seu
310
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
fundamento filosófico é a Verdade, e sua norma principal:
“não devemos temer a verdade” (POPPER, 1987b, p. 22),
constitui fundamento do Iluminismo, do qual também faz
parte a tolerância.
A conferência Tolerância e Responsabilidade Intelectual, de
Popper, tem seu título corroborado pelo argumento de
Voltaire (POPPER, 1987b, p. 97), - o Pai do Iluminismo,
segundo Popper: “A tolerância é consequência do
conhecimento de que somos falíveis: errar é humano e todos
nós cometemos erros. Logo, devemos desculpar uns aos outros
as nossas tolices. É esse o fundamento do direito natural”.
Finalizando, reiteramos com Sir Karl Popper:
Concluindo, só há um caminho para a ciência – ou para a
filosofia: encontrar um problema, ver sua beleza e
apaixonarmo-nos por ele; casarmo-nos com ele, até que a
morte nos separe – a não ser que obtenhamos uma solução.
Mas mesmo encontrando uma solução, poderemos descobrir,
para nossa satisfação, a existência de toda uma família de
encantadores, se bem que talvez difíceis, problemas-filhos,
para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com uma finalidade
em vista, até o fim dos nossos dias (POPPER, 1983, p. 42).
REFERÊNCIAS
HAWKING, Stephen. O Universo numa Casca de Noz. São Paulo:
Mandarim, 2001.
KEESING, Felix M. Antropologia Cultural. Belo Horizonte: Editora Fundo
de Cultura, 1961, 2v.
KOESTLER, A. Os Sonâmbulos: História das Ideias do Homem sobre o
Universo. São Paulo: IBRASA, 1961.
O’HEAR, A.(org.). Karl Popper: Filosofia e Problemas. São Paulo:
UNESP/Cambridge, 1997.
311
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
POPPER, Karl R.A Lógica da Investigação Científica. São Paulo: Abril, Os
Pensadores, v. 44, 1975a.
_______. Três Concepções acerca do Conhecimento Humano. 1ª ed. São
Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores, v. 44, 1975b.
_______. Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária. São
Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1975c.
_______. Realism and the Aim of Science. Postscript I, to the Logic of
Scientific Discovery. Editedby W.W. Bartley III, Preface 1956. London:
Hutchinson, 1983.
_______. Post Scriptum a La lógica de la investigación científica – V. III –
Teoria Cuántica y el Cisma en Física. Edición preparada por W. W. Bartley
III. Madrid: Tecnos, 1985.
_______. Autobiografia Intelectual. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 1986.
_______. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. São Paulo/Belo Horizonte:
EDUSP/Itatiaia, 2 v. 1987a.
_______. Sociedade Aberta, Universo Aberto. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1987b.
_______. Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica – V. II – O Universo
Aberto – Argumentos a favor do Indeterminismo. Organização de W. W.
Bartley III, Opus nº 6, Biblioteca de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1988.
_______. A World of Propensities. Bristol: Thoemmes, 1990.
_______. Um Mundo de Propensões.Lisboa: Editorial Fragmentos, 1991a.
_______. e ECCLES, J. O Eu e seu Cérebro. Campinas/Brasília:
Papirus/UnB, 1991b.
_______. e ECCLES, J. O Cérebro e o Pensamento. Campinas/Brasília:
Papirus/UnB, 1992.
_______. O Racionalismo Crítico na Política. 2ª ed. Brasília: UnB, 1994.
312
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
_______. La Responsabilidad de Vivir – Escritos sobre Política, Historia y
Conocimiento. 1ª ed. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1995.
_______. Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, Prefácio 1956 - V. I
– O Realismo e o Objectivo da Ciência. Organização de W. W. Bartley III,
Opus nº 5, Biblioteca de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997.
QUERALTÓ, Ramón. Karl Popper, de la Epistemologia a la Metafísica.
Sevilla: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, Col. de
Bolsillo, nº146, 1996.
RUSSELL, B. A Análise da Matéria. 1ªed. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os
Pensadores, v.42, 1974.
SCHILPP, Paul Arthur. The Philosophy of Karl Popper. The Library of
Living Philosophers, Books I and II. Edited by P. A. Schilpp. La Salle:
Illinois, Open Court, 1974.
SEMENOV, Marcia Maria Rodrigues. Linguagem e Conhecimento – Karl
Popper e a Questão da Comunicação. Tese apresentada à banca
examinadora da PUC-SP, Brasil, como exigência parcial para a obtenção do
título de Doutor em Comunicação e Semiótica, em 2002.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1987.
ZOHAR, Danah. O Ser Quântico – Uma Visão Revolucionária da Natureza
Humana e da Consciência, baseada na Nova Física. 7ª ed. São Paulo: Best
Seller, 1990.
313
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
CAPÍTULO 17
ÉTICA E TOTALITARISMO: A CRÍTICA DE POPPER AO
HISTORICISMO E À DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO
Paulo Eduardo de Oliveira
A compreensão da posição crítica de Popper em
relação às teorias historicistas exige a colocação de, pelo
menos, dois pressupostos. Primeiro: sua crítica ao historicismo
está fortemente marcada por um elemento de caráter religioso.
Com efeito, a controvérsia popperiana com as tendências e
manifestações historicistas está diretamente ligada à sua
compreensão da natureza historicista da doutrina judaica do
povo eleito. Portanto, não é possível compreender a posição
anti-historicista de Popper, em toda sua amplitude, sem
referência ao que o filósofo analisou a respeito de tal doutrina.
Segundo pressuposto: sua crítica ao historicismo assenta-se,
do ponto de vista filosófico, conceitual e metodológico, nos
elementos constituintes de sua epistemologia e, mais
precisamente, na sua posição pessoal em relação ao
Racionalismo Crítico. De fato, as consequências teóricopráticas de sua concepção de conhecimento e de ciência
aplicam-se, necessariamente, à sua compreensão da filosofia
social e política. Esses dois pressupostos nortearão as reflexões
aqui apresentadas.
314
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
A INFLUÊNCIA DA EPISTEMOLOGIA DE POPPER EM SUA
FILOSOFIA POLÍTICO-SOCIAL
A filosofia político-social de Popper funda-se a partir
de sua vigorosa crítica ao historicismo, explicitada
inicialmente em The Poverty of Historicism (1944-1945 [2002]) e
ampliada significativamente em The Open Society and Its
Enemies (1945 [1987]). Como analisa o próprio Popper, trata-se
de “dois trabalhos mais ou menos complementares” (1977, p.
121). Entendidas pelo autor como seu “esforço de guerra”,
estas duas obras tinham um duplo objetivo: de um lado,
“pretendiam ser uma defesa da liberdade contra as ideias
totalitárias e autoritárias”; de outro, colocavam-se como “uma
advertência contra o perigo das superstições historicistas”
(1977, p. 123).
Embora Popper tenha feito sua aparição no cenário
filosófico como um filósofo da ciência, ao publicar, em 1934,
sua Logik der Forschung [A Lógica da Pesquisa Científica (1972)],
seus escritos de natureza sócio-política não destoam das linhas
inicias de sua filosofia. Pelo contrário, são decorrentes de suas
posições epistemológicas e de sua proposta original quanto à
lógica da pesquisa científica. Neste sentido, no que diz
respeito a The Poverty e The Open Society, Popper afirma que
brotaram ambos da teoria do conhecimento exposta em Logik
der Forschung e de minha convicção de que nossas concepções,
frequentes vezes inconscientes, acerca da teoria do
conhecimento e de seus problemas centrais (‘Que podemos
saber?’, ‘Até que ponto é certo nosso conhecimento?’) são
decisivas para orientar nossa atitude em relação a nós mesmos
e à política (1977, p. 123).
Note-se que Popper se refere a uma atitude, e não
apenas a uma posição teórica ou concepção filosófica.
Portanto, mais do que simplesmente manter uma mesma linha
de orientação teórico-metodológica, em relação à sua
315
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
concepção de ciência e de conhecimento, a filosofia social de
Popper aparece como decorrência natural da atitude que
aquela concepção implica. É neste sentido que se pode
compreender que seu Racionalismo Crítico não é uma teoria,
mas uma “atitude prática ou comportamento” (1987, v. II, p.
232). Pode-se então dizer, continua Popper, que
o racionalismo é uma atitude de disposição a ouvir
argumentos críticos e a aprender da experiência. É
fundamentalmente uma atitude de admitir que ‘eu posso estar
errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, poderemos
aproximar-nos da verdade’. É uma atitude que não abandona
facilmente a esperança de que por meios tais como a
argumentação e a observação cuidadosa se possa alcançar
alguma espécie de acordo sobre muitos problemas de
importância, e que, mesmo onde as exigências e os interesses
se chocam, é muitas vezes possível discutir a respeito das
diversas exigências e propostas a alcançar – talvez por
arbitramento – um entendimento que, em consequência de
sua equidade, seja aceitável para a maioria, senão para todos.
Em suma, a atitude racionalista, ou, como talvez possa rotulála, ‘a atitude da razoabilidade’, é muito semelhante à atitude
científica, à crença de que na busca da verdade precisamos de
cooperação e de que, com a ajuda da argumentação,
poderemos a tempo atingir algo como a objetividade (1987, v.
II, p. 232).
Termos como ‘esperança’, ‘crença’ e, sobretudo,
‘atitude’ (note-se que este último figura repetidas vezes)
exprimem o caráter metalógico do Racionalismo Crítico, que
ultrapassa os contornos puramente epistemológicos dos
problemas discutidos. Como atitude intelectual, dessa forma, o
Racionalismo Crítico é um modo próprio de se posicionar
frente à vida, à sociedade, à ciência e à filosofia. O próprio
Popper parece ter aplicado a si esta atitude, fato que fica claro
nesta passagem da Logik:
316
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Admito, com sinceridade que, ao formular minhas propostas,
fui guiado por juízos de valor e por algumas predileções de ordem
pessoal. Mas espero que as propostas se tornem aceitáveis para
os que apreciam não só o rigor lógico, mas também a ausência
de dogmatismos; para os que se importam com as aplicações
práticas, mas se interessam ainda mais pelas aventuras da
ciência, pelas descobertas que, uma após outra, nos acareiam
com novas e inesperadas perguntas, obrigando-nos a tentar
encontrar respostas novas e insuspeitadas (1972, p. 39, grifos
nossos).
Depreende-se daí uma concepção do conhecimento e
da ciência como uma constante aventura, uma busca
permanente, uma aproximação da verdade, e jamais uma
conquista definitiva. Se esta concepção-atitude vale para as
ciências naturais, Popper acredita que também valha para as
ciências sociais, apesar das peculiaridades desta. É neste
sentido de oposição a todo dogmatismo, portanto, que Popper
rejeita qualquer pretensão de alguém se autonomear “profeta”
em termos de compreensão dos processos históricos. E afirma:
“Em vez de nos estadearmos como profetas, devemos tornarnos os autores de nosso destino” (1987, v. II, p. 289). A base de
sua crítica ao historicismo reside precisamente aí.
Para compreender melhor a posição de Popper, em sua
filosofia político-social, é preciso, portanto, ter em mente sua
concepção epistemológica e, assim, vislumbrar as atitudes dela
decorrentes. Em breves passadas, pode-se dizer que a tese
central da Logik é de que o conhecimento, mesmo no nível
daquilo que se denomina ciência, é sempre falível e suscetível a
erro. As melhores teorias não passam de aproximações ou
verossimilhanças daquilo que o mundo é. Portanto, a atitude
básica de todo cientista (ou intelectual) deve ser a modéstia
(como rejeição de todo dogmatismo), a partir da qual o
compromisso pessoal do pesquisador se volta para a
permanente busca da verdade e não para a defesa das próprias
teorias ou concepções. Esta busca permanente da verdade
317
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
caracteriza-se pelo empenho do cientista em constantemente
tentar, por meio de testes empíricos, falsear ou refutar suas
posições (formuladas sempre como hipóteses ou conjecturas) ao
invés de buscar verificá-las. Mesmo quando uma conjectura
sobrevive aos testes empíricos, a teoria é aceita
“provisoriamente” ou tida como “corroborada” (1972, p. 34),
mas jamais como definitivamente verdadeira. Com efeito,
afirma Popper, “nunca suponho que, por força de conclusões
‘verificadas’, seja possível ter por ‘verdadeiras’ ou mesmo
meramente ‘prováveis’ quaisquer teorias” (1972, p. 34).
Ao propor que a lógica da pesquisa científica faz o
caminho das hipóteses para o teste empírico [por meio do
método dedutivo (1972, p. 33ss)], Popper abandona a lógica
indutiva (1972, p. 27ss), que caracteriza a posição positivista,
da qual o filósofo se distancia. Desse modo, ele sublinha a
assimetria existente entre verificabilidade e falseabilidade
(1972, p. 43), que se pode entender da seguinte forma:
enquanto as sucessivas verificações (indutivas) não são
suficientes para provar a verdade definitiva de uma hipótese,
a falseabilidade (dedutivamente) é capaz de provar sua
falsidade. Um exemplo: enquanto sucessivos testes bem
sucedidos não conseguem provar a verdade definitiva da teoria
“todos os cisnes são brancos”, um só teste contrário consegue
provar, definitivamente, sua falsidade.
Aspecto central na Logik é o “problema da demarcação”
(1972, p. 34), ou seja, a distinção entre teorias ou posições que
podem ou não ser consideradas científicas. Popper sustenta
que a linha de demarcação entre as teorias científicas e as não
científicas (ou pseudo-científicas) é traçada a partir do critério
de falseabilidade (1972, p. 41ss): toda teoria que não for capaz de
dizer o modo ou as condições em que pode ser falseada (ou
seja, toda teoria não falseável) não deve ser admitida como
científica. Por outro lado, as teorias que se expõem à refutação
318
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
são, na opinião de Popper, aquelas que estão no âmbito do que
se denomina conhecimento científico.
A CRÍTICA DE POPPER AO HISTORICISMO
Popper considera que “o historicismo fora a inspiração
tanto do marxismo quanto do fascismo” (1977, p. 122), na
medida em que suas propostas de mudança social eram
apresentadas como forma inexorável de dar prosseguimento
ao processo histórico. O aparente sucesso de tais propostas
pode ser explicado como resultado de que o historicismo
exerce sobre as pessoas uma espécie de “atrativo emocional”,
enquanto desperta “uma sensação de estar sendo arrastado
para o futuro por forças irresistíveis” (2002, p. 178).
Popper entende que “as ideias historicistas facilmente
se salientam em tempos de grande mudança social”, como
quando “se rompe a vida tribal dos Gregos, assim como a dos
Judeus é destroçada pelo impacto da conquista babilônica”
(1987, v. I, p. 31; o mesmo tema aparece também em v. II, p.
29). Portanto, o historicismo, em suas diferentes facetas, pode
ser compreendido como um movimento de reação social, que
fortalece ainda mais a ideia de tribo, como Popper indica na
seguinte passagem:
Um dos traços que têm em comum as doutrinas do povo
eleito, da raça eleita e da classe eleita é o de que as três se
originaram e adquiriam importância como reações contra
certo tipo de opressão. A doutrina do povo eleito adquiriu
relevo na época da fundação da igreja judaica, isto é, durante
o cativeiro babilônico; a teoria da raça ariana dominante do
Conte Gobineau foi uma reação do emigrado aristocrático ante
a afirmação de que a Revolução Francesa havia expulsado
com êxito os senhores teutônicos. A profecia marxista da
vitória do proletariado é a resposta a um dos mais sinistros
períodos de opressão e exploração da história moderna (1987,
v. I, p. 221, nota 3 ao capítulo 1).
319
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Em sua análise, Popper distingue duas abordagens de
doutrinas historicistas: a antinaturalista (2002, p. 19) e a
pronaturalista (2002, p. 49). Em sua vertente antinaturalista, “o
historicismo afirma que a relatividade histórica das leis sociais
faz com que a maioria dos métodos da física sejam inaplicáveis
à sociologia” (2002, p. 20). Para justificar esta posição, os
historicistas recorrem a argumentos que envolvem questões
como a generalização, o método experimental, a complexidade
dos fenômenos sociais, a dificuldade de uma predição exata e
a importância do essencialismo metodológico. Quanto à
abordagem pronaturalista, os historicistas adotam um ponto
de vista de que “a sociologia, como a física, é um ramo de
conhecimento que pretende ser, ao mesmo tempo, teórico e
empírico” (2002, p. 49, grifos no original). Na sua dimensão
teorética, cabe-lhe explicar e predizer acontecimentos,
enquanto que empiricamente lhe é reservada a tarefa de
corroborar suas teorias pela experiência (2002, p. 49). Então,
“certos métodos – predição por meio de leis e o pôr à prova as
leis por meio da observação – devem ser comuns à física e à
sociologia” (2002, p. 50). Quanto ao ponto de vista
pronaturalista, afirma Popper, “estou totalmente de acordo [...]
apesar de que o considere um dos pressupostos básicos do
historicismo” (2002, p. 50). Porém, continua Popper, “não
estou de acordo com o desenvolvimento detalhado deste
ponto de vista”, que implica “as doutrinas antinaturalistas do
historicismo e mais especificamente a doutrina das leis ou
tendências históricas (2002, p. 50, grifos no original).
O historicismo, segundo Popper, “empenha-se em
encontrar o Caminho pelo qual a humanidade está fadada a
marchar, empenha-se em descobrir a Chave da História”
(1987, v. II, p. 277). Mas, Popper o considera “um método
falho, que produz resultados sem valor” (1987, v. I, p. 22). Isso
porque “a história não tem qualquer significação” (1987, v. II, p.
320
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
278, grifos no original). Isso poderia soar, à primeira vista,
como uma forma de ceticismo histórico ou derrotismo, o que
pareceria destoar com a atitude crítica do racionalismo.
Contudo, continua Popper, afirmar que a história não tem
significação “não quer dizer que tudo quanto possamos fazer a
tal respeito seja olhar atônitos para o poder político, ou que
devamos encará-la como uma cruel zombaria” (1987, v. II, p.
286). Pelo contrário,
podemos interpretá-la com vistas àqueles problemas do poder
político cuja solução escolhemos tentar em nossa época.
Podemos interpretar a história do poder político do ponto de
vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da
razão, pela justiça, igualdade, liberdade e pelo controle do
crime internacional. Embora a história não tenha fins,
podemos impor-lhe esses fins nossos: e embora a história não
tenha significação, podemos dar-lhe uma significação (1987, v. II, p.
286-7, grifos no original).
Portanto, conclui o filósofo, “nem a natureza nem a
história podem dizer-nos o que devemos fazer [...] Nós é que
introduzimos propósito e significação na natureza e na
história” (1987, v. II, p. 287).
O HISTORICISMO E A DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO
A visão historicista, tal como é analisada e criticada por
Popper, abriga, entre outras concepções de fundo, a crença na
doutrina religiosa do povo eleito ou do povo escolhido, que é uma
das mais simples e antigas formas de historicismo (1987, v. I,
p. 22). Sua especial atenção a esta concepção se explica no fato
de que, “antes de Heráclito, não encontramos na Grécia teorias
que possam ser comparadas, em seu caráter historicista, à
doutrina do povo eleito” (1987, v. I, p. 24).
A ideia de povo eleito é uma doutrina típica das assim
chamadas “religiões proféticas” (1987, v. I, p. 329), as quais
321
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
consideram, em sua crença historicista, o destino, a
degeneração e a salvação como elementos do itinerário
humano. De acordo com esta crença, “a lei do
desenvolvimento histórico é submetida à vontade de Deus”
(1987, v. I, p. 22) e o historicismo aparece, assim (erroneamente
na opinião de Popper), como “um elemento necessário da
religião” (1987, v. II, p. 279).
Tal como Popper a compreende, “a doutrina do povo
escolhido considera que Deus escolheu determinado povo
para funcionar como o instrumento predileto de Sua vontade,
e que tal povo herdará a terra” (1987, v. I, p. 22). Essa
promessa de herança concede às pessoas eleitas um
sentimento antecipado de sucesso histórico, diante do qual
todos os sofrimentos e adversidades da vida não passam de
contingências momentâneas. Mas, para Popper, “a religião, em
especial, não deveria ser um substituto de sonhos e de anelos,
não deveria assemelhar-se nem à posse de um bilhete de
loteria nem à de uma apólice de companhia de seguros” (1987,
v. II, p. 288).
Para se compreender melhor a posição de Popper
frente a esta questão, deve-se considerar, em primeiro lugar, o
modo como o filósofo se relaciona com a tradição judaica, da
qual descende. Considere-se, sobretudo, a situação de sua
família, de origem semita, que se converteu ao Cristianismo
protestante. Este fato deve ter suscitado no jovem Popper uma
série de questionamentos que o levaram, aos poucos, a rejeitar
pessoalmente o Judaísmo e a ter em alta conta o Cristianismo,
como se poderá verificar mais à frente. O ponto nefrálgico da
rejeição popperiana ao Judaísmo parece estar na crença judaica
na doutrina do povo escolhido, que implica uma forma de
nacionalismo. Com efeito, afirma decididamente Popper em
sua Autobiografia Intelectual, “é mau todo nacionalismo e todo
racismo, e o nacionalismo judeu não constitui exceção” (1977,
p. 113). Na doutrina do povo escolhido, portanto, Popper
322
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
identifica traços explícitos das tendências totalitárias, e é esta a
principal razão de sua crítica.
A doutrina do povo escolhido “é uma das tentativas de
tornar a história compreensível através de uma interpretação
teística, isto é, pelo reconhecimento de Deus como o autor da
peça desempenhada no Palco Histórico” (1987, v. I, p. 22).
Afirma Popper que o componente historicista, na religião, “é
um elemento de superstição e de idolatria” (1987, v. II, p. 288)
e, por isso, constitui prejuízo para a própria religião. Com
efeito, sendo o historicismo algo estranho à natureza da
religião, é possível encontrar expressões religiosas que não
sejam por ele contaminadas. Decorre daí o fato de Popper, ao
mesmo tempo em que critica o historicismo judaico,
considerar com especial valor a posição sugerida pelo
Cristianismo. Assim, ele reafirma, a visão historicista “é pura
idolatria e superstição, não só do ponto de vista de um
racionalista ou um humanista, mas do próprio ponto de vista
cristão” (1987, v. II, p. 279-80). Popper insiste no fato de que
“alguns dos maiores pensadores cristãos repudiaram essa
doutrina como idólatra” (1987, v. I, p. 23) e cita o grande
teólogo protestante Karl Barth, por exemplo, que “caracteriza
a doutrina neo-protestante da revelação de Deus na história
como inadmissível e como uma usurpação da função de
realeza de Cristo” (1987, v. II, p. 281). Para Popper, a
incompatibilidade entre o historicismo e o Cristianismo não é
apenas uma posição pessoal sua, mas já “pode ser encontrada
na crítica de Kierkegaard a Hegel” (1987, v. II, p. 283), a qual,
de certo modo, Popper dá continuidade.
É importante fazer notar, desde já, que a contraposição
entre Judaísmo e Cristianismo vai permear a The Open Society.
Enquanto Popper rejeita o historicismo judaico, ele reconhece
na doutrina cristã algo como uma proposta que não apenas
nega o historicismo, mas que também corresponde à sua
concepção de atitude racional. Com efeito, afirma ele, “a única
323
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
atitude racional, assim como a única cristã, em relação à
história, da liberdade, é a de que somos responsáveis por ela,
no mesmo sentido em que somos responsáveis pelo que
fazemos de nossas vidas” (1987, v. II, p. 280).
Outro elemento característico da doutrina do povo
escolhido “é a longinquidade do que apresenta como o fim da
história” (1987, v. I, p. 23). Este ponto, segundo Popper, é
particularmente problemático, porque
embora, de fato, possa descrever este fim com certo grau de
definitividade, longo caminho teremos de percorrer antes de
alcançá-lo. E o caminho não só é longo, como coleante,
subindo e descendo, para a direita e para a esquerda. Em
consequência, será possível enquadrar bem, no esquema da
interpretação, qualquer acontecimento histórico concebível.
Nenhuma experiência concebível poderá refutá-lo. E os que
nisso acreditam extraem daí certeza com referência ao
resultado final da história humana (1987, v. I, p. 23, grifo no
original).
A EXPRESSÃO DA DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO NOS
ESCRITOS BÍBLICOS
A doutrina do povo escolhido está presente em
praticamente todos os principais textos do Antigo Testamento,
a parte da Bíblia que corresponde ao livro sagrado dos judeus
(Torá). É surpreendente notar que os principais livros da Bíblia
contêm passagens que se referem à doutrina do povo
escolhido. Levando-se em conta que estes textos não foram
escritos de uma só vez e nem por uma única pessoa ou
comunidade, compreende-se o quanto esta doutrina
impregnou o pensamento e a tradição religiosa judaica por um
longo período.
Eis algumas das principais passagens em que aparece,
literalmente, a ideia de eleição divina do povo e outros
conceitos a ela relacionados: “o seu povo escolhido” (Daniel
324
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
11:15); “meu povo, [...] meu eleito” (Isaías 43:20); “Judá foi seu
santuário, e Israel seu domínio” (Salmos 114:2); “meus eleitos”
(Isaías 65:15).
A ideia de herança e de propriedade (como um
tesouro, a melhor parte) aparece como uma variação da ideia
de povo escolhido. Algumas passagens que refletem esta
doutrina são: “[Israel] tornou-se a minha herança” (Jeremias
12:8); “Israel, minha herança” (Isaías 19:25); “sereis a minha
propriedade peculiar dentre todos os povos” (Êxodo 19:5);
“são eles o teu povo e a tua herança” (Deuteronômio 9:29); “o
Senhor te escolheu, de todos os povos que há sobre a face da
terra, para lhe seres o seu próprio povo” (Deuteronômio 14:2);
“Israel, meu eleito” (Isaías 45:4). Em decorrência desse
sentimento de posse, que se atribui a Deus, acredita-se
também que a libertação do povo, pela ação divina, é motivo
de contentamento para o próprio Deus: “E tirou dali o seu
povo com alegria, e os seus escolhidos com regozijo” (Salmos
105:43). E o próprio Deus se confronta com as outras nações,
em defesa de seu povo escolhido: “Congregarei todas as
nações, e as farei descer ao vale de Jeosafá; e ali com elas
entrarei em juízo, por causa do meu povo, e da minha herança,
Israel, a quem elas espalharam entre as nações e repartiram a
minha terra” (Joel 3:2). Compreende-se, daí, que, como
sustenta Popper, a doutrina do povo escolhido implica uma
“interpretação da divindade como um deus tribal” (1987, v. II,
p. 29). Por essa razão, segundo Popper, até mesmo a
concepção de monoteísmo dos judeus é “tribal e exclusivista”
(1987, v. I, p. 305).
Subjaz, na doutrina do povo escolhido, a ideia de
distinção, de honra especial: “o Senhor teu Deus te escolheu,
para que lhe fosses o seu povo especial, de todos os povos que
há sobre a terra” (Deuteronômio 7:6). Disso decorre a ideia de
poder e grandeza, acima de todos os outros povos: “teu povo
que elegeste; povo grande, que nem se pode contar, nem
325
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
numerar, pela sua multidão” (1 Reis 3:8). E é com base nesta
ideia de grandeza que se pode compreender, também, a
convicção de que, no futuro, estes eleitos “herdarão a terra”
(Isaías 65:9).
A doutrina do povo escolhido também estabelece
níveis de distinção moral. Todos os outros povos, “estranhos
às alianças da promessa” (Efésios 2:12), ficam em situação de
desvantagem moral. A tal ponto que, o contato com outros
povos torna impuro o povo escolhido, como se depreende
desta passagem: “porque tomaram das suas filhas para si e
para seus filhos, e assim se misturou a linhagem santa com os
povos dessas terras” (Esdras 9:2). Aquilo que torna impuro o
povo escolhido pode, contudo, ser servido aos outros povos:
“Não comereis nenhum animal morto; ao estrangeiro, que está
dentro das tuas portas, o darás a comer, ou o venderás ao
estranho, porquanto és povo santo ao Senhor teu Deus”
(Deuteronômio 14:21).
Também no Novo Testamento, cujo cenário é o do
nascimento do Cristianismo, também aparecem, nas
entrelinhas, as marcas da concepção judaica de “povo
escolhido”. Isso revela que a forte tradição do historicismo
judaico não foi facilmente rompida pela novidade da
mensagem cristã. É sobretudo nos escritos de Paulo que
aparecem as antigas marcas historicistas. Com efeito, Paulo
havia sido fariseu, formado na escola do grande rabino
Gamaliel. O farisaísmo era uma seita judaica, de caráter
fundamentalista e fanático. Assim se compreende porque é
difícil ocultar o caráter judaizante da doutrina de Paulo.
Algumas passagens que confirmam esta tese são: “Deus não
rejeitou o seu povo” (Romanos 11:2); para ele, os cristãos
continuam a ser os “eleitos de Deus” (Hebreus 5:1), os seus
“escolhidos” (2 Timóteo 2:10). Ainda prevalece a separação
entre os não crentes (gentios) e os escolhidos de Deus:
“Alegrai-vos, gentios, com o seu povo” (Romanos 15:10). Ele
326
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
ainda acredita que dos israelitas é que são as promessas
(Romanos 9:4), pois são eles os “eleitos de Deus” (Colossenses
3:12). Os outros povos são “estranhos às alianças da
promessa” (Efésios 2:12).
Tudo isto parece estar em contradição com as ideias
cristãs. Não é de estranhar que Popper conceda ao
Cristianismo muito mais simpatia do que ao Judaísmo,
questão que será melhor analisada na próxima seção. Com
efeito, a expressão de Jesus “destas pedras Deus pode suscitar
filhos de Abraão” (Mateus 3:9 e Lucas 3:8) é um importante
divisor de águas. Elas foram pronunciadas num contexto em
que os judeus se envaideciam e se orgulhavam por serem
“filhos de Abraão” e, portanto, herdeiros da promessa que
Deus tinha feito de lhe dar uma grande posteridade,
incontável como as areias do mar. No entanto, para Jesus, o
fato de pertencer ou não ao povo escolhido, pela descendência
de Abraão, parece totalmente secundário: são as obras boas, as
atitudes, e não a descendência israelita que constituem a nova
filiação divina, a nova eleição por parte de Deus. A mensagem
de Jesus, portanto, não é concedida exclusivamente ao “povo
escolhido”, mas a todos os homens e mulheres, a toda a raça
humana. Se a vinda de Jesus, como o Messias, é a grande
realização das profecias bíblicas, esta realização rompe,
definitivamente, com a doutrina de “povo escolhido”, a quem
pertenciam tais promessas. Eles esperavam (e ainda esperam)
um Rei-Messias que restabelecesse o Reino de Israel, tantas
vezes destruído pela dominação de outras nações e, no
contexto histórico de Jesus, dominado pelo Império Romano.
Neste sentido pode-se compreender a postura de Jesus que
come com os pecadores (Lucas 15:2), que conversa com a
mulher samaritana (João 4:9), que apresenta um samaritano
como exemplo de virtude (Lucas 10:33), atende às
necessidades dos próprios pagãos (Mateus 8:5), que afirma ter
vindo trazer vida a todos e não apenas aos escolhidos (João
327
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
10:10). É neste sentido, também, que se pode compreender a
expressão de Jesus de que “os últimos serão os primeiros, e os
primeiros serão os últimos” (Mateus 19:30), como também a
afirmação de “os mansos herdarão a terra” (Mateus 5:5) e não
os escolhidos. A condenação de Jesus à morte, como um
malfeitor e blasfemo, por acusação dos judeus, é o evento que
marca decisivamente a distinção profunda entre a crença
judaica na doutrina do povo escolhido e a crença cristã na
fraternidade universal, expressa no “Pai Nosso” e no
mandamento “Amai-vos uns aos outros”.
A POSIÇÃO DE POPPER EM RELAÇÃO AO CRISTIANISMO
A crítica de Popper ao historicismo não é uma crítica
cristã ou confessional, quer dizer, ele não a faz em nome do
Cristianismo nem de qualquer outra confissão religiosa
específica. Ele tem em vista qualquer expressão religiosa que,
ao seguir princípios racionais, também descarte a doutrina
historicista. Com efeito, escreve Popper, “afirmo que o
historicismo não só é racionalmente insustentável, como
também entra em conflito com qualquer religião que ensine a
importância da consciência, pois tal religião deverá concordar
com a atitude racionalista em relação à história, na ênfase que
põe em nossa suprema responsabilidade pelas nossas ações e
por suas repercussões no curso da história” (1987, v. II, p. 288).
Contudo, apesar dessa universalidade religiosa aqui
explicitada, Popper não deixa de manifestar sua preferência
explícita pelo Cristianismo, obviamente sob a perspectiva
político-social, que é foco que lhe interessa. Neste sentido, ele
assinala o “quanto devemos à influência do Cristianismo por
nossos alvos e fins ocidentais, pelo humanitarismo, a
liberdade, a igualdade” (1987, v. II, p. 280). Para ele, os
principais objetivos políticos do ocidente encontram eco na
mensagem cristã.
328
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Sobretudo quanto à perspectiva histórica, Popper
percebe uma mudança radical no centro das atenções que,
normalmente, marcam o registro oficial da história: “o que
importa ao Cristianismo – afirma – não são os feitos históricos
dos poderosos conquistadores romanos mas, para usar uma
frase de Kierkegaard, o que alguns poucos pescadores deram
ao mundo” (1987, v. II, p. 281). O que está em jogo, aqui, é a
noção de sucesso histórico, a ideia do domínio de um povo
sobre outro, como evidência da vitória final na história. “Tal
chave da história implica a adoração do sucesso; implica que
os mansos serão justificados porque estarão do lado do
vencedor” (1987, v. II, p. 283). Esta ideia é um dos
fundamentos mais perigosos da doutrina do povo escolhido e,
por isso, é amplamente criticada por Popper. Apoiando-se no
teólogo protestante Karl Barth, o filósofo mostra sua própria
opinião de que o Cristianismo não se conforma com a
perspectiva de um sucesso histórico: “Minha intenção, ao citar
Barth, é mostrar que não é só meu o ponto de vista
‘racionalista’ ou ‘humanista’ de que a adoração do sucesso
histórico parece incompatível com o espírito do Cristianismo”
(1987, v. II, p. 281). Ao contrário do que propõe o Cristianismo,
“toda interpretação teística da história tenta ver, na história tal
como é registrada, isto é, na história do poder, a manifestação
da vontade de Deus” (1987, v. II, p. 281).
Popper critica a doutrina de que Deus se revela, pois
ela justificaria a atitude historicista dos judeus e “alguns
cristãos [que] ousam ver a mão de Deus [e] ousam
compreender e saber o que ele quer” (1987, v. II, p. 281).
Porém, continua Popper, “não é só a arrogância que jaz sob
essas tentativas; é, mais especificamente, uma atitude anticristã. Pois, entre o que diz, o Cristianismo ensina que o
sucesso mundano não é decisivo” (1987, v. II, p. 281). Neste
sentido, compreende-se que sua crítica tenaz ao sucesso
histórico, que é uma crítica de raiz cristã, atinge também a
329
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
crença no sucesso histórico da própria Igreja, como se tal
sucesso fosse a manifestação da vontade de Deus:
Os que sustentam que a história do sucesso do ensinamento
cristão revela a vontade de Deus deveriam perguntar a si
mesmos se esse sucesso foi realmente um sucesso do espírito
do Cristianismo; e se esse espírito não triunfou antes do tempo
em que a Igreja era perseguida do que no tempo em que a
Igreja foi triunfante. Que igreja encarnou mais puramente esse
espírito: a dos mártires ou a igreja vitoriosa da inquisição?
(1987, v. II, p. 282).
As recaídas historicistas por parte da Igreja Cristã não
podem deixar de ser alvo da crítica de Popper, pois, como ele
afirma, existe uma profunda “incompatibilidade entre o
historicismo e o Cristianismo” (1987, v. II, p. 283) e é isso que
parece ser o elemento fundamental de sua simpatia pelo
Cristianismo.
A DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO, O TRIBALISMO E O
COLETIVISMO
A doutrina do povo escolhido está diretamente ligada a
dois conceitos inter-relacionados, aos quais Popper se refere
repetidas vezes: o tribalismo e o coletivismo. Para o filósofo,
“não há dúvida de que a doutrina do povo escolhido nasceu
da forma tribal da vida social” (1987, v. I, p. 23). O tribalismo é
“a ênfase na suprema importância da tribo, sem a qual o
indivíduo nada é em absoluto” (1987, v. I, p. 23). E, embora o
tribalismo, do ponto de vista historiográfico, antropológico ou
sociológico, tenha ficado para trás, nas primeiras linhas da
pré-história, ele ainda permaneceu vivo na filosofia política de
toda a cultura ocidental, até nossos dias. De fato, afirma
Popper, a supremacia da tribo sobre o indivíduo “é a
mensagem de Platão, do prussianismo de Frederico Guilherme
e de Hegel” (1987, v. II, p. 38).
330
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Nota peculiar do tribalismo é “atitude mágica para o
costume social”, que leva à “falta de distinção entre as
regularidades costumeiras ou convencionais da vida social e
as encontradas na natureza”, o que faz crer que “ambas são
impostas por uma vontade divina” (1987, v. I, p. 187). A
tendência à identificação entre os elementos convencionais e
os naturais é tão fortemente arraigada na consciência das
pessoas que, como afirma Popper, “nem mesmo um Heráclito
distingue claramente entre as leis institucionais da vida tribal e
as leis da natureza” (1987, v. I, p. 188).
Em manifestações históricas mais recentes, o tribalismo
evolui para o coletivismo, cuja tendência é “acentuar a
significação de certo grupo ou coletividade [...] sem a qual o
indivíduo nada significa” (1987, v. I, p. 23; ver também p. 221).
Expressões tribalistas ou coletivistas atuais são o Estado, a
nação ou a classe (no sentido marxista do termo). Desse modo,
esclarece Popper, pode-se encontrar “analogia entre o povo
escolhido e a classe escolhida” (1987, v. II, p. 260). E, por essa
razão, continua o filósofo, “o movimento marxista na Europa
Central [...] foi de muitos modos um movimento coletivista e
mesmo tribalista” (1987, v. II, p. 353).
Popper analisa a importância decisiva da linha de
continuidade do historicismo que se estende de Platão a
Hegel. Para ele, “a significação histórica de Hegel pode ser
vista no fato de representar ele o ‘elo perdido’, por assim
dizer, entre Platão e a forma moderna de totalitarismo” (1987,
v. II, p, 37).
Como mostra detalhadamente a obra The Open Society,
“na maioria, os modernos totalitários não se aperceberam de
que suas ideias podem ser rastreadas até Platão” (1987, v. II, p.
37) e não perceberam também que “o programa político de
Platão é puramente totalitário” (1987, v. I, p. 184) e que se
pode verificar “a identidade entre o platonismo e o
totalitarismo” (1987, v. I, p. 185). Em Platão, tem-se “a
331
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
culminância das várias ideias historicistas apresentadas pelos
primitivos filósofos gregos” (1987, v. I, p. 25). Porém, antes
dele “nunca houve homem mais empenhado em sua
hostilidade para com o indivíduo” (1987, v. I, p. 118) e,
portanto, também mais empenhado na defesa e na
propaganda do tribalismo e do coletivismo. “Platão ansiava
pela unidade perdida da vida tribal” (1987, v. I, p. 94). Para
Platão, o “sonho de unidade, beleza, perfeição, esse
esteticismo e holismo e coletivismo, é tanto produto quanto
sintoma do perdido espírito de grupo do tribalismo” (1987, v.
I, p. 215), tão fortemente conservado na doutrina do povo
eleito.
A filosofia de Hegel, por sua vez, é uma expressão
clara do “renascimento do tribalismo” (1987, v. II, p. 37). Por
isso, Popper está convencido de que aqueles que são
simpáticos às doutrinas totalitárias “sabem de sua dívida para
com Hegel” e sabem também que, de certo modo, “todos eles
foram criados na atmosfera fechada do hegelianismo” e,
assim, “foram ensinados a adorar o estado, a história e a
nação” (1987, v. II, p. 37). No espírito do “coletivismo radical
de Hegel” (1987, v. II, p. 37), que admite que o estado é tudo, e
nada é o indivíduo, a doutrina do povo escolhido permanece
viva enquanto é mantida a crença historicista de que “o Estado
é a marcha de Deus pelo mundo” (Hegel in 1987, v. II, p. 38).
CONCLUSÃO
A crítica de Popper à doutrina do povo escolhido é um
componente de sua crítica global ao totalitarismo e ao
historicismo, raiz de sua compreensão do racionalismo crítico
como atitude ética (OLIVEIRA, 2011). Uma vez que “a
interpretação historicista pode ser comparada a um holofote
que focalizamos sobre nós mesmos” (1987, v. II, p. 277), tanto
do ponto de vista epistemológico quanto político social, o
332
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
historicismo é uma concepção errônea, nascido de um ato de
desespero:
O historicismo nasceu de nosso desespero com a racionalidade
e a responsabilidade de nossas ações. É uma esperança
degradada, uma degradada fé, uma tentativa para substituir a
fé e a esperança que nascem de nosso entusiasmo moral e do
desprezo pelo sucesso por uma certeza que provém de uma
pseudo-ciência: uma pseudo-ciência das estrelas, ou da
‘natureza humana’, do destino histórico (1987, v. II, p. 288).
Assim, podemos concluir, a postura crítica de Popper
em relação ao historicismo e à sua consequente doutrina do
povo eleito nasce da convicção pessoal de que, tanto no âmbito
das ciências quanto no da política, nós “necessitamos de
esperança [...] não necessitamos de certeza” (1987, v. II, p. 288).
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Paulo Eduardo de. Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl
Popper. São Paulo: Paulus, 2011.
POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
_______. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.
_______. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
_______. La miseria del historicismo. Madrid: Alianza, 2002.
333
ENSAIOS SOBRE O PENSAMENTO DE KARL POPPER
Copyright © 2012
Todos os direitos desta edição reservados ao
CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES
Afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Rua XV de Novembro, 1050 - Curitiba – Paraná
Fone: (41) 3222-5193
http://www.pucpr.br/circuloestudos/
334
Download

Ensaios sobre o pensamento de Karl Popper - CEB - 2012