ÁFRICA E BRASIL: ASPECTOS INTERCULTURAIS NA
FORMAÇÃO DE UMA NOVA SOCIEDADE
Maria de Lurdes Zanoli (USP) *
Era uma vez um país habitado só por vários povos que ficaram conhecidos
como índios. Até que, certo dia, vieram pelo mar os homens brancos, que
trouxeram outros homens brancos e, depois, para trabalhar aqui, os negros da
África. Esse país é o Brasil. E, junto com os negros trazidos para cá como
escravos, vieram suas músicas, religiões, danças e muitos outros costumes.
Durante anos, eles se misturaram às tradições portuguesas e indígenas e
ajudaram a formar o que a gente conhece como cultura brasileira. (LUSTOSA,
1998, p. 01)
Resumo
Este artigo tem por finalidade abordar as Leis Federais 10.639 e 11.645/2008 que
estabeleceram a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afro-brasileira, africana e
indígena nas escolas brasileiras, visto que indígenas e africanos constituem as principais
fontes que contribuíram diretamente para a formação da cultura brasileira. Juntamente com os
escravos que desembarcaram no Brasil durante o tráfico, vieram também as línguas e culturas
diversas, que se misturando ao português do Brasil, às línguas indígenas e às culturas dos
povos que aqui viviam, formaram o que hoje conhecemos como identidade brasileira.
Palavras-chave: África. Brasil. Educação intercultural. Identidade.
Abstract
This article aims to address the Federal Laws 10,639 and 11.645/2008 that established the
compulsory teaching of History and Culture African-Brazilian, African and Native Brazilian
schools, since Indians and Africans are the main sources that contributed directly to the
formation Brazilian culture. Along with the slaves who arrived in Brazil during trafficking,
came also the languages and cultures, which mingling with the Portuguese in Brazil,
*
Formada em Linguística pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente faz mestrado pela mesma
instituição na área de Filologia e Língua Portuguesa em língua crioula de Cabo Verde – África.
[email protected]
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junho de 2013. www.faceq.edu.br/regs
Indigenous languages and cultures of the people who lived here, formed what we know today
as Brazilian identity.
Keywords: Africa. Brazil. Intercultural Education. Identity.
Introdução
Em nove de janeiro de 2003 foi sancionada a Lei Federal 10.639 que estabeleceu a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Em 10 de março
de 2008, foi criada a lei 11.645/2008, que acrescentou à grade curricular o ensino da Cultura
Indígena.
A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do
Ministério da Educação (MEC), criou estas leis visando, principalmente, o combate ao
preconceito e discriminação raciais nas relações pedagógicas e educacionais nas escolas, bem
como na sociedade em geral.
Assim sendo, é de extrema importância um projeto educacional que possibilite a
inserção social de um modo igualitário e não preconceituoso, valorizando, e mais ainda,
trazendo à luz, todo o potencial intelectual e cultural de todos os brasileiros, independente de
cor, raça, sexo ou classe social, que durante séculos foi embotado pela discriminação
negativa.
Afinal, somente com o desenvolvimento de um pensamento antirracista e
desvinculado da ideia de superioridade/inferioridade de indivíduos ou mesmo de grupos
raciais e étnicos, é que poderemos caminhar rumo a uma sociedade que valoriza o sujeito de
maneira integral, respeitando a diversidade e as diferenças culturais.
Nesse contexto, é importante ressaltar que as leis supracitadas surgiram como frutos
das lutas antirracistas que há muito acontecem no país. O fato é que a abolição da escravatura
assinada em 13 de maio de 1888 não bastou para livrar os ex-escravos e afrodescendentes,
abandonados à própria sorte e à mercê da discriminação racial, da exclusão social e da
miséria.
Excluídos socialmente, não tardou para que os ex-escravos percebessem que a
abolição fora apenas o primeiro passo para a verdadeira liberdade que tanto almejaram.
Estavam livres, mas a igualdade social e racial ainda era um sonho distante, pois o racismo
imperava e orientava a sociedade pós-abolição.
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Assim, os negros começaram a enxergar uma oportunidade na escola. A educação e a
aprendizagem passaram a ser definidas, naquele contexto, como um veículo de ascensão
social, de acordo com pesquisa realizada em 1951, pelo sociólogo Florestan Fernandes
(1978).
Historicamente o sistema de ensino do Brasil pregou (e ainda prega) uma educação de
“embranquecimento” cultural em sentido amplo (NASCIMENTO, 1978; MUNANGA, 1996;
SILVA, 1988 e 1996), levando às salas de aula uma educação formal que inferiorizava os
negros e afrodescendentes.
1 Legados da cultura afro-indígena na formação do povo brasileiro
Entende-se por ciência e tecnologia os campos do conhecimento utilizados na
compreensão e manejo do ambiente que nos cerca. Desse modo, cada povo, em determinado
momento histórico, foi dotado de conhecimento científico e tecnológico a fim de atender as
necessidades de suas sociedades.
Porém, ao contrário do que se pensa, tais conhecimentos não estão relacionados ao
grau de inteligência dos grupos humanos. Desse modo, é de fundamental importância
enfatizar essa questão para que se dissipem teorias racistas e errôneas sobre a suposta
inferioridade ou superioridade de certos grupos em relação a outros.
Tal ideia tomou grande impulso em 1758, quando o botânico sueco Carolus Linnaeus
(responsável pelo atual sistema de classificação dos seres vivos) denominou a humanidade de
Homo sapiens e a classificou em espécies (LINNAEUS, 1758 apud SANTOS et al., 2010,
p.122):

Os vermelhos americanos, “geniosos, despreocupados e livres”;

os amarelos asiáticos, “severos e ambiciosos”;

os negros africanos, “ardilosos e irrefletidos”;

os brancos europeus, evidentemente, “ativos, inteligentes e engenhosos.
Seguindo o mesmo raciocínio, em 1855, Arthur Gobineau escreveu o Ensaio Sobre a
Desigualdade da Raça Humana, considerado a bíblia do racismo moderno, e que considera a
miscigenação a principal causa da decadência das nações. No Brasil, o médico Raimundo
Nina Rodrigues, discípulo de Gobineau, considerava, por exemplo, que os rituais de
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candomblé eram uma patologia dos negros. Desse modo, estes estudos, contribuíram para
disseminar a teoria racista pelo mundo.
Estas teorias aliadas ao eurocentrismo predominante foram responsáveis pelas grandes
distorções históricas a respeito do legado cultural e científico dos povos africanos e
afrodescendentes. O eurocentrismo se impôs, enquanto referencial, através de muita violência,
fato que ajudou a afirmar a suposta superioridade física, econômica, religiosa e social dos
europeus. Desse modo, a negação do passado científico, cultural e tecnológico dos povos
africanos foi uma das principais façanhas do eurocentrismo, fato que ainda hoje abala
fortemente a autoestima dos africanos, e que deixa de lado muitas conquistas e façanhas que
os africanos trouxeram ao mundo, e ao nosso país.
De acordo com Cunha (2010, p. 6), os “papiros médicos”, encontrados em sítios
arqueológicos no Egito descreveram muitas técnicas médicas consideradas impressionantes
para a época à qual se referem. Esses documentos descreviam em detalhes procedimentos
médicos, como, por exemplo, “O batimento cardíaco deve ser medido no pulso ou na
garganta” (texto extraído de papiro datado de 1550 a. C.). Além disso, recentes descobertas
mostraram que os egípcios realizavam cirurgias complexas como as cerebrais, de catarata ou
o engessamento de membros com ossos quebrados, conheciam substâncias cicatrizantes e
anestésicas, além de dominarem a sofisticada técnica de mumificação, que consistia em um
conjunto de procedimentos químicos e físicos que visavam à preservação dos corpos,
permitindo o acesso ao interior do corpo humano, dando aos egípcios um conhecimento
prévio do sistema circulatório e do funcionamento do corpo humano.
No Brasil, a escravidão com todo seu rigor e desumanidade, não destruiu totalmente a
cultura que chegou junto com os milhares de escravos das mais diversas etnias que aqui
desembarcaram. Embora ela tenha sido abalada, visto que todo o continente africano foi
desestruturado pelo comércio escravocrata, aqui, ela foi reelaborada com o objetivo de
continuar orientando os seus descendentes e manter o mínimo da identidade que lhes fora
roubada.
Quando chegaram ao Brasil, os africanos foram inseridos como se fossem destituídos
de passado, tendo a sua condição humana negada. Porém, o “determinismo histórico” não se
confirmou e em meio à sociedade escravocrata e pós-abolicionista, emergem personagens
afro-brasileiros que deram importantes contribuições para o desenvolvimento da ciência e
tecnologia no Brasil. Os engenheiros André Rebouças e Teodoro Sampaio e o Médico Juliano
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Moreira representam bem a superação desses afro-brasileiros. O primeiro, juntamente com o
irmão e também engenheiro, Antônio Rebouças, implantou o sistema de abastecimento de
água do Rio de Janeiro bem como a construção pioneira de docas também no Rio de Janeiro.
Juliano Moreira foi uma referência na medicina brasileira, pois além de contribuir
imensamente com pesquisas em doenças endêmicas crônicas, como o botão endêmico ou
botão de Biska, conseguiu a aprovação de uma lei de assistência aos doentes mentais. Já
Teodoro Sampaio filho de uma escrava com um senhor de engenho (pai que nunca o
legitimou), formou-se em engenharia civil e fez importantes obras, como a reconstrução do
velho prédio da faculdade de Medicina em Salvador (CUNHA, 2010).
Outra presença africana marcante é na música popular brasileira. O samba, por
exemplo, segundo a explicação mais tradicional, teria surgido de uma dança chamada semba,
original de Angola. Era uma dança em que as pessoas mexiam bastante os quadris. O samba
como gênero musical nasceu no Rio de Janeiro, perto da Praça Onze, onde moravam muitos
negros vindos da Bahia e, apesar da pobreza, era um lugar alegre e festivo, no qual músicos e
artistas se encontravam. O batuque virava a madrugada. Era ali que se reuniam os primeiros
sambistas – Sinhô, Donga, Pixinguinha e muitos outros. Foi lá também que surgiu o samba
"Pelo Telefone", o primeiro gravado em disco, e que fez um sucesso enorme no Carnaval de
1917. Depois disso, todo mundo caiu no samba e ele acabou se tornando um dos ritmos mais
populares do país (LOPES, 2005, p. 2).
De acordo com Isaia e Scherer (2003), na gastronomia também encontramos a
influência africana. Da viagem da África até o Brasil, a alimentação dos cativos provinha do
milho fresco ou assado, aipim, feijão, farinha de mandioca ou de milho, e às vezes, peixe
salgado. Do milho, aprenderam a fazer o angu, um preparado com água e fubá. Alguns
alimentos vieram do continente africano para o Brasil, como: quiabo, inhame, erva-doce,
gengibre, açafrão, gergelim, que utilizavam nas farofas e amendoim.
Pratos famosos da culinária brasileira são de origem africana, como a moqueca de
peixe, o pirão, o bobó de camarão, o xinxim de galinha, o acarajé, a pamonha, além do mais
tradicional prato do país: a feijoada, que nasceu nas senzalas, pois, enquanto as melhores
carnes iam para a mesa dos senhores, os escravos ficavam com as sobras, ou seja, os pés e as
orelhas do porco principalmente, que eram misturados com feijão preto ou mulatinho e
cozidos num grande caldeirão (ISAIA; SCHERER, 2003).
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A capoeira, hoje tão conhecida no Brasil, também é uma rica herança africana. De
início, tratava-se de uma diversão, trazida de Angola, para os cativos. Reunidos em círculo, ao
ar livre, os escravos praticavam essa espécie de dança, com passos que exigiam movimentos
muito ágeis com as pernas e os braços. Os brancos logo desconfiaram do jogo que mais
parecia uma luta. E, de fato, os negros, usaram a capoeira para se defender das agressões dos
algozes. Apesar de proibida, por muito tempo, a capoeira nunca deixou de ser praticada,
tornando-se símbolo da resistência da cultura negra (LUSTOSA, 1998).
2 Interferências das línguas africanas no português brasileiro
a. Situação linguística do Brasil na chegada dos portugueses
De acordo com Yeda Pessoa de Castro (2004) quando os primeiros portugueses
desembarcaram no Brasil, no início do séc. XVI, entraram, quase que imediatamente, em
contato com as tribos indígenas que aqui viviam. Esses indígenas, por falarem línguas
aparentadas do tronco tupi, se comunicavam entre si através de uma língua geral (koiné),
derivada do tupinambá. Os portugueses, devido à necessidade de uma comunicação
emergencial, também acabaram por adotar a língua geral. Inclusive os jesuítas, que chegaram
a escrevê-la, usando o modelo da gramática portuguesa da época, para utiliza-la no processo
de catequização.
Ainda de acordo com a autora (CASTRO, 2004) posteriormente, diante da
impossibilidade de submeter os indígenas ao trabalho escravo, o tráfico negreiro ganhou força
no Brasil. No final do séc. XVI, a base da sociedade colonial brasileira era composta,
majoritariamente, por africanos. Desse modo, passaram a conviver: a língua portuguesa, que
avançava a partir da Bahia e de Pernambuco (os principais centros mercantilistas ligados ao
projeto colonial brasileiro); a língua geral, que predominava em São Paulo, Maranhão e no
interior (ou seja, zonas periféricas da colônia) e as línguas francas africanas, utilizadas pelos
escravos para se comunicarem entre si.
3 Considerações sobre a participação das línguas africanas na formação do
português do Brasil
Segundo Castro (2004), a relação entre o português falado no Brasil e as línguas
africanas que aqui chegaram, juntamente com os escravos, é objeto de estudos desde pelo
menos o início do século XIX. O fato é que do século XVI ao século XIX, o tráfico negreiro
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trouxe para o Brasil quatro a cinco milhões de falantes africanos originários, principalmente,
de duas regiões da África subsaariana: a região banto, situada ao longo da extensão sul da
linha do equador (região que compreende um grupo de 300 línguas faladas em 21 países); e a
região oeste- africana ou “sudanesa”, que abrange territórios que vão do Senegal à Nigéria.
Argumentam Angenot e Amaral (2009) que quanto às línguas bantas, as de maior
número no Brasil foram o quicongo (encontradas na República Popular e Democrática do
Congo e norte de Angola), quimbundo (região central de Angola) e o umbundo (sul de
Angola e na Zambia). Quanto às línguas oeste-africanas (“sudanesas”), as mais importantes
foram as línguas da família kwa, (Golfo do Benim). Seus principais representantes no Brasil
foram os iorubás e os povos de línguas do grupo ewe-fon que foram apelidados pelo tráfico,
de minas ou jejes.
Angenot e Amaral (2009) fazem a “Classificação das Línguas do Oeste Africano” em:
(i) Atlântica: fulfulde (fula), wolof, manjaco, balanta;
(ii) Mandê (mandinga, sobretudo): bambara, maninca, diula;
(iii) Gur: subfamília Gurunsi;
(iv) Kwa (do subgrupo gbe): eve, fon, gen, aja (conhecidas por jeje no Brasil);
(v) Benuê-Congo:
Defóide: iorubá (falares) designados no Brasil pelo termo “nagô-queto”
Edóide: edo
Nupóide: nupe (tapa)
Igbóide: igbo
Cross River: efik, ibibio
(vi) Afro-Asiático: chádico: haussá
(vii) Nilo-Saariano: Saariano: canúri

Línguas Bantas:
(i) Congo (quicongo): quissolongo, quissicongo (quissansala), quizombo, quisuundi
(falada pelos bacongos, numa zona correspodente ao antigo Reino do Congo) e quiviili,
iwoyo (fiote), quiyombe (faladas em Cabinda e em Loango);
(ii) Quimbundo (falada pelos ambundos, na região central de Angola, correspondente ao
antigo reino de Ndongo): quissama, quindongo;
(iii) Yaka-Holo: yaka, mbangala, shinji;
(iv) Chokwe: ucokwe, ocingangela, cilukazi, lwena (luvale);
(v) Luba: ciluba-kasai (lulua);
(vi) Lunda: cilunda, uruunda;
(vii) Macua: omacua;
(viii) Umbundu (falada pelos ovimbundos, na região de Benguela em Angola): umbundu,
olunyaneka;
(ix) quanyama, Ndonga: ocikwanyama, kwambi;
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(x) Herero: ocihelelo.
Assim, com tantas línguas presentes em um mesmo território, já na primeira metade
do século XVI observou-se a confluência de línguas africanas com o português europeu
antigo falado no Brasil. A consequência mais direta desse contato linguístico e cultural foi a
alteração da língua portuguesa na colônia brasileira, favorecido por quatro séculos de contato
e interferência das línguas africanas no português falado no Brasil. Tal mudança se fez sentir
em todos os setores: léxico, semântico, prosódico, sintático e, de maneira rápida e profunda,
na língua falada.
Alguns fatores foram determinantes para a mudança na língua portuguesa. Um deles é
a grande densidade populacional (estimada entre quatro a cinco milhões) de africanos
transplantados para o trabalho escravo no Brasil, originou um contingente de negros e
afrodescendentes superior ao número de europeus. Tal vantagem numérica teria contribuído
para a constituição da língua geral usada no Brasil até meados do século XVIII por
bandeirantes e catequistas. Ao mesmo tempo, se formavam os falares afro-brasileiros das
senzalas, plantações, quilombos e minas.
A seguir abordaremos brevemente algumas interferências no vocabulário do português
brasileiro. Os exemplos abaixo foram referidos por Castro (2004).
4 Interferências na língua portuguesa
a. Interferências no vocabulário

Aportes lexicais: são palavras africanas que foram apropriadas pela língua portuguesa
em diversas áreas culturais, conservando a forma e o significado originais, por
exemplo:
a) Simples: samba, xingar, muamba, tanga, sunga, jiló, maxixe, candomblé, umbanda,
berimbau, maracutaia, forró, capanga, banguela, mangar, cachaça, cachimbo, fubá,
gogó, agogô, mocotó, cuíca.
b) Compostos: lenga-lenga.

Aportes por decalque: palavras do português que tomaram um sentido especial:
a) por tradução direta de uma palavra africana: mãe-de-santo (ialorixá), dois-dois
(ibêji), despacho (ebó), terreiro (casa de candomblé);
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b) em substituição a uma palavra africana considerada como tabu: por exemplo, “O
Velho”, por Omulu, e “flor do Velho”, por pipoca.

Aportes híbridos - palavras compostas de um elemento africano e um ou mais
elementos do português: bunda-mole, espada-de-ogum, limo-da-costa,
pó-de-
pemba, Cemitério da Cacuia, cafundó de Judas.
Nessa categoria estão os derivados nominais em português, a exemplo de molecote,
molecagem, xodozento, cachimbada, descachimbada, forrozeiro, sambista, encafifado,
capangada, caçulinha, dengoso, bagunceiro.
b. Interferência na morfologia e na sintaxe
Há quem diga que algumas tendências do português brasileiro se devam à
coincidência ou à deriva interna da própria língua portuguesa. Como exemplo dessas
tendências, podemos apontar a marcação do plural dos substantivos apenas pelos artigos que
os antecedem: as menina, os gato, os livro. Tal tendência segue o padrão do plural nos nomes,
feito por meio de prefixos nas línguas bantos (CASTRO, 2004).
As línguas africanas também desconhecem a marca de gênero, como a existente no
português padrão - a menina/o menino - fato que pode contribuir para explicar melhor a
instabilidade de gênero dos nomes (minha senhor) que muitas vezes é observada no
cancioneiro português antigo e também na linguagem popular do “preto-velho”, entidade
muito popular na umbanda, tida como negros muito idosos que viveram o tempo da
escravidão no Brasil.
c. Interferência na fonologia e pronúncia
No que diz respeito a este tópico, algumas considerações importantes devem ser feitas:

Ao falante brasileiro é comum a tendência de omitir as consoantes finais das palavras:
falá, dizê, Brasiu. Tal tendência parece coincidir com a estrutura silábica das palavras
em banto e em iorubá, que nunca terminam em consoante. Ainda no tocante à
estrutura silábica dessas línguas, podemos observar a inexistência de encontros
consonantais. Na linguagem popular brasileira, também observamos a tendência de
desfazer esse tipo de encontro, seja na mesma sílaba ou em sílabas contíguas, pela
intromissão de uma vogal entre elas, que termina por produzir outra sílaba, a exemplo
de saravá para salvar, fulô para flor.
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5 O português afro-brasileiro
O português afro-brasileiro vem sendo classificado como uma variedade distinta do
português popular rural, como se vê em (LUCCHESI et al., 2009, p. 32):
[...] designa aqui uma variedade constituída pelos padrões de comportamento
linguístico de comunidades rurais compostas em sua maioria por
descendentes diretos de escravos africanos que se fixaram em localidades
remotas do interior do país, praticando até os dias de hoje a agricultura de
subsistência. Muitas dessas comunidades têm a sua origem em antigos
quilombos de escravos foragidos e ainda se conservam em um grau
relativamente alto de isolamento. Dessa forma, o português afro- brasileiro
guardaria uma especificidade no universo mais amplo do português popular
rural brasileiro (ou, mais precisamente, norma popular rural do português
brasileiro), não apenas pelas características sócio- históricas próprias às
comunidades em que ele é falado, mas, sobretudo, pelas características
linguísticas que o distinguiriam das demais variedades do português popular
do Brasil (ou melhor, da norma popular brasileira).
Chamamos a atenção para a noção de “norma do português afro-brasileiro”,
referendado em Lucchesi (et al., 2009), em que o autor aponta para a importância de se
distinguir, no Brasil, dois tipos de norma linguística em oposição: uma culta e uma vernácula.
Tais normas compõem o que hoje se conhece por “português brasileiro” (PB). Logo, quando
falamos de português afro-brasileiro, nos referimos a comunidades de fala com seus juízos,
valores e norma próprios. Em outras palavras, os falantes dessas comunidades não julgam
suas falas como certas ou erradas como geralmente fazemos nas comunidades urbanas.
a. Algumas comunidades afro-brasileiras
Entende-se por comunidades afro-brasileiras ou comunidades quilombolas (remanescentes
de quilombos), comunidades que se autoidentificam como um grupo étnico distinto do
restante da sociedade (OLIVEIRA, 2011, p. 233).

Comunidade de Helvécia
Localizada no extremo Sul do Estado da Bahia. Podemos verificar ocorrências como:
(i) uso variável do artigo definido Ex.: “quando abri janela”;
(ii) variação na concordância de gênero: Ex.: “io nõ póde rumá o casa” “ela é muito saído”
(iii) simplificação da morfologia flexional do verbo: Ex.: “io sabe”; “io esqueceu”, uso da
forma do presente pela forma do pretérito do indicativo: Ex.: “io nõ póde rumá o casa” (‘eu
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não podia arrumar a casa’), uso da forma do infinitivo em contextos de formas finitas: Ex.: “io
conhecê” por ‘eu conheço’; “ele morê” por ‘ele morreu’; e “quando io andá na Ponta de
Areia, nõ tinha nada” (‘quando eu andava em Ponta de Areia, não havia nada lá’)
(OLIVEIRA et al., 2011).

A comunidade de Cinzento
Estima-se que a vinda dos primeiros negros para Cinzento tenha ocorrido na primeira
metade do século XIX. Segundo relatos dos antigos moradores, os fundadores de Cinzento
são da região da Chapada Diamantina, mais precisamente do antigo Arraial dos Crioulos, e o
sobrenome Pereira Nunes, predominante em Cinzento, é o mesmo de um antigo proprietário
de escravos da região de Rio de Contas. Ana Isidora, o membro mais velho da comunidade,
com aproximadamente 107 anos de vida, afirma que os primeiros moradores vieram
“currido”, ou seja, fugidos de fazendas de escravos (OLIVEIRA et al., 2011).

Os arraiais de Rio de Contas (comunidades de Barra e Bananal)
A ocupação da região de Rio de Contas – BA se inicia na última década do século
XVII, através do estabelecimento de uma rota de viagem entre Goiás e o norte de Minas e a
cidade do Salvador, capital da então Província da Bahia. Com o intuito de estabelecer um
“ponto de pouso”, nessa rota de viagem, foi fundado um pequeno povoado com o sugestivo
nome de Creoulos (OLIVEIRA et al., 2011).

A comunidade de Sapé
Sapé tem seu acesso por uma estrada de terra cujo percurso de 25 quilômetros se inicia
em direção inversa à que leva à cidade de Valença, no entroncamento da BR-101.
De acordo com o Sr. João Barreto, foram cinco negras de uma família de oito que
deram origem à comunidade, entre elas, D. Isabel, mãe do Sr. Liordino, que diz ter espalhado
pela região mais de 30 filhos. Atualmente, a comunidade é formada por, aproximadamente,
100 habitantes (OLIVEIRA et al., 2011).

Jurussaca
A comunidade de Jurussaca é – de acordo com NAEA (Núcleo de Altos Estudos da
Amazônia, 2010) um dos 253 povoados quilombolas distribuídos em oito áreas do Estado do
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Pará. As áreas quilombolas do Pará foram delimitadas pelo NAEA a partir de macro-regiões
do Estado. Situa-se na região bragantina, Costa Atlântica/Nordeste. Segundo os moradores, a
comunidade se iniciou a partir de quatro fundadores que, fugidos do Maranhão, se instalaram
na região. Diz-se que um dos fundadores era oriundo de Minas Gerais (OLIVEIRA et al.,
2011).
De acordo com os autores (op.cit.), todas são comunidades surgidas na época da
escravidão, isoladas, portanto, com pouco contato com pessoas de fora. Assim, as línguas
faladas nessas comunidades possuem características bem parecidas com línguas crioulas.
Vocabulário afrodescendente (TRINDADE et al., 2008):
Acarajé (kwa) – Bolinho frito feito de massa de feijão-fradinho.
Angu (kwa) – Massa de farinha de milho, de mandioca ou de arroz, com água e sal, e
escaldada ao fogo.
Assento (kwa) – altar das divindades, dentro ou fora do terreiro.
Axé (kwa) – força divina. Babá (banto) – tratamento que era dado às amas pretas e velhas.
Bagunça (banto) – desordem, confusão (bagunçado, bagunceiro).
Banguela (banto) – desdentado ou quem tem a arcada dentária falha na frente.
Batucar (banto) – repetir a mesma coisa insistentemente.
Beleléu (banto) – ir ou ir-se para o beleléu – morrer, sumir, desaparecer.
Berimbau (banto) – instrumento de capoeira.
Biboca (banto) – casa, lugar sujo. Bololô (banto/kwa) – confusão, barulho.
Borocoxô (banto/kwa) – pessoa envelhecida, fraca, sem coragem.
Brucutu (banto) – homem forte e rude.
Bumbum (banto) – bunda. Bunda (banto) – nádegas, traseiro.
Cachaça (banto) – aguardente de cana.
Caçula (banto) – o mais novo dos filhos ou irmãos.
Cafofo (banto) – quarto, recinto privado, lugar reservado com coisas velhas ou usadas.
Cafundó (banto) – lugar distante e atrasado, na expressão popular “onde Judas perdeu as
botas”.
Cafuné (banto) – ato de coçar, de leve, a cabeça de alguém, dando estalidos com as unhas
para provocar sono.
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Calango (banto) – lagarto maior que a lagartixa. Calombo (banto) – inchaço, protuberância.
Canga (banto) – tecido usado como saída-de-praia.
Canjica (banto) – papa de milho verde ralado a que se junta leite de coco, açúcar, cravo e
canela.
Capanga (banto) – guarda-costas, jagunço.
Capenga (banto) – manco, coxo, torto, desajeitado, andar manquejando.
Catinga (banto) – cheiro fétido e desagradável do corpo humano, de certos animais e de
comidas deterioradas.
Considerações Finais
Vimos neste artigo o quanto o tráfico de escravos influenciou a formação da sociedade
brasileira como a conhecemos atualmente. Os remanescentes estão em todas as partes: no
léxico, na cultura, nas músicas e até nas ciências como podemos verificar. E tal importância
foi mantida no escuro, durante anos, devido ao ainda existente preconceito de raças. Assim, as
leis 10.639 e 11.645/2008 foram criadas no intuito de trazer de volta nossa rica herança
africana, redescobri-la e, acima de tudo, valorizá-la.
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