Há uma cultura genuinamente brasileira? - aproximações e afastamentos
entre Antonio Candido e Roberto Schwarz
Carlos Eduardo França de Oliveira
Bacharel e licenciado em História pela Universidade de São Paulo e pesquisador na área
de História Social.
Contato: [email protected]
O que é ser brasileiro? Quais são os elementos que especificam nossa
identidade? Quais são as singularidades que permitem a identificação de uma
cultura propriamente criada no Brasil? Qual é o lugar da cultura brasileira no
cenário mundial?
Questões como essas que, à primeira vista, podem soar generalizantes,
ultrapassadas ou inocentes, na realidade são indagações centrais dentro do
contínuo processo de formação da cultura brasileira, que por sua vez guarda nas
suas diversas manifestações artísticas uma contribuição essencial para o
enriquecimento e adensamento da discussão sobre essa extensa temática. Nesse
sentido, preocupados em estudar a cultura brasileira tendo como objeto de análise
um campo específico – a literatura –, autores como Antonio Candido e Roberto
Schwarz
oferecem
elementos
que ajudam
a compreender
não apenas
determinados aspectos da literatura brasileira, como também a entender em
traços gerais a dinâmica em que opera a cultura brasileira, atentando para o
estreito vínculo existente entre esse movimento e a singular formação do Brasil
enquanto Estado Nacional.
Deste modo, ao estabelecer um diálogo entre esses dois autores, o presente
artigo pretende examinar a maneira como se assentou o lugar das idéias no Brasil,
isto é, a forma com que o Brasil, país fortemente marcado por seu legado colonial,
lidou com complexas questões sociais, políticas e econômicas, e construiu,
mediante a isso, uma cultura própria, atrelada à constante busca pela identidade
brasileira frente ao mundo, sobretudo o europeu. Os textos básicos utilizados para
tal debate são Literatura e Cultura de 1900 a 1945, de Antonio Candido (1973), e
As idéias fora do lugar, de Roberto Schwarz (1992).
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Ao analisar a literatura brasileira de fins do XIX até meados do século XX –
intercalando arrazoados mais genéricos sobre tendências ou movimentos
literários, como o Romantismo, o Simbolismo e Modernismo, com considerações
mais específicas sobre determinados poetas, romancistas e ensaístas, como
Mário de Andrade, Jorge Amado e Sergio Milliet –, Antonio Candido defende,
como já fizera em outras oportunidades, a idéia de que as “melhores expressões
do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma
literária” (1973, p. 156). Em outras palavras, o autor concebe a literatura como a
principal forma de expressão cultural que o Brasil já criou no que se refere à
formação de uma consciência nacional e à pesquisa das questões brasileiras,
mesmo com sua perda de espaço após a Segunda Guerra Mundial, com o
advento dos novos meios de comunicação.
Antonio Candido acredita que o desenvolvimento das expressões culturais
brasileiras, sintetizadas na sua melhor forma pela literatura, condiciona-se por
meio de uma dialética do localismo e do cosmopolitismo, de forma que o primeiro
é representado por um discurso de cunho nacionalista e o segundo pela imitação
consciente dos moldes europeus. O equilíbrio ideal entre essas duas tendências
representaria aquelas obras que obtiveram os resultados mais interessantes,
como as feitas por Machado de Assis e Mário de Andrade. De maneira geral, essa
dialética estrutura-se através de uma ininterrupta relação de vivência literária e
espiritual que se articula entre o elemento local, centrado no conteúdo da
expressão artística e o padrão estético oriundo da tradição européia, focando-se
mais precisamente na forma da expressão artística.
No entender de Antonio Candido, o intelectual brasileiro se posiciona de
maneira ambígua à sociedade européia. Se por um lado busca se aproximar e se
identificar com essa civilização, encontrando nela elementos que ajudam na
compreensão e representação do Brasil, por outro, nota que muitas dessas
influências divergem da realidade brasileira, ou seja, não conseguem se
enquadrar nos padrões da vida social do país. Entretanto, recorrentemente
incorporados, esses elementos discordantes da realidade brasileira produzem
efeitos dualistas, contraditórios e anacrônicos.
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Em tom ensaístico, Schwarz, analisando sobretudo o século XIX, procura
delinear um mecanismo social exclusivo do Brasil e especificar de que forma essa
estrutura se tornou um elemento constitutivo e ativo da cultura brasileira. Se
Antonio Candido tenta caracterizar a evolução da cultura brasileira por meio de
uma incessante dialética entre o local e o cosmopolita, Schwarz é contundente em
afirmar que o processo de formação cultural do Brasil, seja ele pendente ora para
o nacionalismo ora para o cosmopolitismo, tem como ponto de partida a
apropriação e reposição de idéias européias sempre em um sentido diverso do
original, de forma que elas tomem uma forma característica para se adequar à
realidade da sociedade brasileira. Para Antonio Candido, o problema é que tais
idéias são muitas vezes conflitantes com a realidade brasileira e, quando
incorporadas, ocasionam os já mencionados dualismos, anacronismos e
estranhamentos. Já Schwarz mostra que esses contrastes não se devem tanto ao
simples fato de haver uma apropriação de idéias incompatíveis, o que por si só
configuraria uma incoerência evidente, mas sim à maneira como essa assimilação
ideológica se deu, isto é, à forma com que esses padrões e conceitos europeus
foram reconstruídos a fim de se tornarem inteligíveis e unívocos para a realidade
brasileira.
Assim, por conta dessa recomposição deformadora, Schwarz mostra que o
evidente contraste entre os incompatíveis perde sua força, sendo justificado e
camuflado por um aparato ideológico que se escora, parcial e objetivamente, em
alguns pressupostos contidos nas idéias européias. Segundo Schwarz, um
exemplo clássico dessa recomposição é a forma com que o liberalismo foi
assimilado no Brasil. Não obstante a independência ter sido pensada em nome
das idéias liberais francesas, inglesas e americanas, o Brasil tinha como força de
trabalho um elemento indiscutivelmente conflitante com liberalismo: o escravismo.
Entretanto, a despeito da escravidão ter sido a relação produtiva fundamental
no Brasil imperial, Schwarz acredita que o cerne da vida ideológica brasileira se
pautava em outra mediação: a do favor. Estabelecida entre o latifundiário e o
homem livre pobre, essa relação peculiar não era paradoxal ao extremo quanto o
escravismo, no que se referia às idéias liberais. Não podendo ser racionalizado
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integralmente, o favor impõe a dependência entre seus praticantes, criando uma
cumplicidade viciosa em que ambas as partes se utilizam do arbítrio dessa
mediação para justificar os mais diversos acordos, camuflando inclusive o próprio
escravismo. Sobre a questão do favor, encarando-o sob uma perspectiva mais
contemporânea, José de Souza Martins faz uma interessante afirmação:
(...) é aparentemente insuportável para a população brasileira estabelecer relações sociais
de qualquer natureza, políticas ou não, com base unicamente nos pressupostos racionais do
contrato social (...) os mecanismos tradicionais do favor sempre foram considerados
legítimos na sociedade brasileira. Não só o favor dos ricos aos pobres, o que em princípio já
era compreendido pela igreja católica. Mas o favor como obrigação moral entre pessoas que
não mantém entre si vínculos contratuais ou, se os mantêm, são eles subsumidos pelos
deveres envolvidos em relacionamentos que se baseiam antes de tudo na reciprocidade.
(1994, p. 35).
A partir daí, as complicações são inúmeras e demonstram que se o
liberalismo na Europa foi uma ideologia1 bem fundamentada, no Brasil ele foi
redirecionado a fim de legitimar privilégios claramente contrários ao pensamento
liberal. Com isso, no Brasil confere-se “independência à dependência, utilidade ao
capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao
privilégio etc”. (SCHWARZ, 1992, p. 18). E é justamente nesse ponto, ressalta
Schwarz, que reside a argúcia de Machado de Assis. Além de ter problematizado
as hierarquias da sociedade de sua época, Machado questionou as verdades
universais de origem européia por meio da observação e crítica desses princípios
não em sua origem, mas sim na forma que os mesmos tomaram na realidade
brasileira.
Confrontando as reflexões dos autores, é perceptível que ambos insistem no
destaque da influência européia na configuração da cultura brasileira, situando-a
como um dos pontos de partida da expressão cultural produzida no Brasil. Nesse
ponto, é pertinente retomar de certa forma o sentido da colonização proposto por
Caio Prado Jr. (1999, pp. 19-32), levando em conta que o Brasil, em sua origem,
foi uma empresa estruturada pelos portugueses no Novo Mundo que se vinculava
a um movimento de maior amplitude, o capitalismo comercial europeu, que por
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seu turno se assentou principalmente nas atividades colonizadoras a partir do
século XV. Assim, por mais que a historiografia discuta a existência ou não de um
sentimento de nacionalidade genuinamente brasileiro durante o processo de
independência, que se defenda ou não a presença de um processo revolucionário
nacionalista na construção do estado brasileiro autônomo, é evidente que o Brasil
foi, enquanto colônia de Portugal, um imenso depósito de elementos essenciais da
civilização européia, sendo, portanto, desde sua origem, parte integrante do
mundo europeu. Mesmo que reformulados pelos colonos, amalgamados com as
culturas indígenas e africanas, os preceitos europeus foram imperativos na
constituição da sociedade brasileira.
A questão é que, terminada a época de jugo colonial, o Brasil se lançou ao
mundo, ou melhor, a um mundo que girava em torno da civilização européia
capitalista. O Brasil – país novo, atrasado, mestiço, escravocrata, monárquico e
dominado pelos grandes latifundiários – via-se em contraste com um continente
antigo, em processo de industrialização, liberal, e que cada vez mais contestava
os privilégios. Dessa forma, tanto Antonio Candido como Schwarz mostram que o
brasileiro, tomado por um sentimento de inferioridade decorrente do passado
colonial e das implicações evidentes que essa herança2 impôs ao Brasil, sejam
elas políticas, sociais ou econômicas, continuou a dialogar com o mundo europeu
e fez desse contato uma constante no processo de expressão cultural brasileiro;
mas um contato em que o atraso e o deslocamento do Brasil perante a Europa se
mostraram explícitos. Em decorrência disso, a própria condição histórica do Brasil
não permitiu uma apropriação integral e uniforme da influência européia, surgindo
desse quadro a já apontada maneira tortuosa com a qual o legado europeu foi
assimilado pelos brasileiros. Portanto, situada no plano das idéias, essa comédia
ideológica, no dizer de Schwarz, é indissociável de certos mecanismos sociais que
deitam raízes na própria origem do Brasil.
Apesar de se referirem a períodos históricos específicos, as reflexões feitas
por Schwarz e Antonio Candido, se vistas de forma integrada, podem ser
utilizadas em seus traços mais gerais para a compreensão do desenvolvimento
cultural brasileiro como um todo, inclusive na atualidade. Em primeiro lugar, por
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meio dos textos, é possível desconstruir a dita “originalidade brasileira” e também
desmistificar uma noção extremamente enraizada na sociedade brasileira,
proposta sistematicamente por Von Martius e que considera a junção das culturas
indígena, africana e branca como a essência da formação da civilização brasileira.
Assim, torna-se claro que a cultura brasileira não é um simples somatório dessas
culturas, mas sim um processo contínuo que teve desde sua origem um
movimento essencial que é o da assimilação – ambígua, deslocada e
resignificadora – de determinadas idéias européias. Tome-se como exemplo os
movimentos Romântico, Barroco, Neoclássico, Naturalista e Modernista. Se por
um lado é notória a influência européia no surgimento dessas tendências
estéticas, por outro é não menos evidente a maneira desajustada como foram
assimiladas no Brasil, já que ao contrário do que ocorreu na sociedade européia, o
desenvolvimento desses movimentos não foi acompanhado por mudanças
efetivas na organização da sociedade brasileira.
Ao longo o século XX, a dialética proposta por Antonio Candido e as Idéias
fora do lugar de Schwarz podem ser utilizadas para observar a incessante busca
por uma efetiva modernização do Brasil, preocupação que também afetou o
campo da cultura. De fato, mais uma vez esse movimento de apropriação de
idéias estrangeiras – agora não mais somente européias, mas também norteamericanas, já que os E.U.A. tornam-se o centro do sistema capitalista mundial,
do qual Brasil é integrante periférico – se faz de maneira dualista e tortuosa,
assentando combinações que, segundo Schwarz, foram evidenciadas de maneira
crítica pelo próprio Modernismo, pelo Tropicalismo e pela Economia Política. Isso
porque na Europa o que ocorreu foi um fenômeno integrado: a modernização
(entenda-se como a vertente econômica, a inovação técnica), a modernidade (a
vivência subjetiva desses novos incrementos) e o modernismo (as expressões
estéticas, culturais e artísticas dessas mutações) foram esferas que se imiscuíram,
que se delinearam conjuntamente, dialogando entre si, trocando impressões,
formando assim um processo interligado. No caso dos países subdesenvolvidos,
grupo em que figura o Brasil, não existiu essa coesão já que seu atraso
econômico em relação às potências mundiais não permitiu que houvesse
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condições estruturais para que a modernização num sentido geral ocorresse no
mesmo molde da européia. A dependência econômica externa, mal que se
perpetua desde a instalação dos portugueses no Novo Mundo, fez com que o
Brasil desempenhasse ao longo de sua história um papel estrutural no capitalismo,
o da periferia, cuja economia sempre esteve constantemente buscando ajustar-se
às inovações técnicas e aos novos modelos econômicos produzidos pelos países
ricos.
Caminhando juntamente com essa constante adequação econômica, grande
parte da produção cultural brasileira do século XX – cada vez mais inserida na
manipulação mercadológica da Indústria Cultural3 e, por conseguinte, atrelada a
uma exploração sistemática e ordenada de bens considerados culturais, evitando
a formação de indivíduos críticos, independentes e conscientes – ratifica a
enfatizada assimilação tortuosa de elementos externos e também reproduz a
mediação do favor mencionada por Schwarz, atualmente encabeçada pelos meios
de comunicação, sobretudo os mais poderosos.
Notas:
(1) Schwarz entende ideologia como algo pejorativo, sobretudo ilusório, que limita
as pessoas a compreenderem a realidade em que vivem. Dessa forma, Schwarz
não defende os princípios liberais, mas mostra que, se eles faziam sentido na
sociedade européia, na brasileira, só passavam a fazê-lo caso fossem
reformuladas.
(2) Ao tocar na questão da herança colonial, nunca é demais mencionar o artigo
homônimo de Sérgio Buarque de Holanda, que pretende discutir os resquícios
coloniais que perduraram durante o Primeiro e Segundo Reinados, assim como
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sua importância para a reordenação posterior da sociedade brasileira. Nesse
texto, o autor mostra como os representantes de uma recém formada nação
tiveram que reordenar diversas instâncias da vida colonial – muitas delas
vinculadas às realidades européias, como, por exemplo, o sistema de nobilitações
– a fim de configurar uma nova ordem social. Ver HOLANDA, Sérgio Buarque de.
“A herança colonial – sua desagregação”. In: Holanda, Sérgio Buarque de (org.).
História Geral da civilização brasileira, tomo II, “O Brasil Monárquico”, vol. 1. São
Paulo: Difusão européia do livro, 1965, pp. 9-39.
(3) Para o conceito de Indústria Cultural, ver ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M.
“A Indústria Cultural: O esclarecimento como Mistificação das Massas”. In:
Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: JZE, 1985.
Bibliografia:
ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. “A Indústria Cultural: O esclarecimento como
Mistificação das Massas”. In: Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: JZE,
1985.
CANDIDO, Antonio. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”. In: Literatura e
Sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1973.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A herança colonial – sua desagregação”. In:
Holanda, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da civilização brasileira, tomo II,
“O Brasil Monárquico”, vol.1. São Paulo: Difusão européia do livro, 1965.
MARTINS, José de Souza. “O poder do atraso”. In: Ensaios de sociologia da
justiça lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.
PRADO JR. Caio Prado. “O sentido da colonização”. In: Formação do Brasil
Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas. São
Paulo: Duas Cidades, 1992.
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1 Há uma cultura genuinamente brasileira?