DO DEVER DE COOPERAR
Sandro Brescovit Trotta1
Luciano Vaz Ferreira2
1. Introdução
O direito surgiu como uma ordem coercitiva, que reage contra condutas humanas
socialmente indesejáveis com um ato de coerção. Essa sanção é um mal aplicado ao agente
transgressor contra a sua vontade, podendo ser utilizada, se necessária, a força física 3. No
direito de uma sociedade primitiva, o indivíduo que tinha seus interesses violados estava
autorizado, pelo ordenamento jurídico, a tomar as medidas coercitivas previstas (autotutela).
À medida que a sociedade foi se tornando organizada, os particulares abdicaram dessa
prerrogativa, concedendo ao Estado, uma estrutura política centralizada dotada de soberania, a
incumbência de aplicação da sanção, em nome da coletividade. Por exemplo, caso um
particular realize uma conduta tipificada como crime, cabe ao Estado, por meio da persecução
penal, aplicar-lhe uma punição.
Nesse passo, as relações sociais não se dão somente entre indivíduos, mas também
entre Estados. No entanto, enquanto no âmbito interno existe um órgão responsável pela
regulação das condutas, não há estrutura equivalente de cunho internacional. Cada Estado é
soberano, podendo negociar livremente com outros, sem interferência. Pressupõe-se que não
há relações de subordinação, sendo todos considerados de igual importância para a
comunidade internacional4. Thomas Hobbes, na sua época, chegou a afirmar que as relações
internacionais se encontravam em um estado de natureza, pois “os Estados não dependem um
1
Especialista em Direito Internacional Público, Privado e da Integração (UFRGS), Mestre em Ciências
Criminais (PUCRS) e Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Universidade de Coimbra). Em março de
2010, durante a confecção da Tese de Doutoramento na Universidade de Coimbra/Portugal, este co-autor teve a
oportunidade de passar três semanas em Montevideo, sob a supervisão acadêmica do Prof. Agregado Dr. Raúl
Cervini, que proporcionou realizar investigações junto à Universidad de la República (UDELAR), com
autorização do Instituto Uruguayo de Derecho Penal (INUDEP), e o conhecimento da Decana e do Conselho da
Faculdade, freqüentando a sala de aula e, diariamente, pesquisando no escritório do Dr. Raúl Cervini, sob sua
valiosa orientação.
2
Mestre em Direito (UNISINOS) e Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS). Professor de
Direito Internacional.
3
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 35.
4
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada, Malheiros, São Paulo, 1999, p. 17.
dos outros, cada Estado (não cada indivíduo) tem absoluta liberdade de fazer tudo o que
considerar [...] mais favorável aos seus interesses”5.
De modo a superar essa situação caótica, desenvolveu-se um Direito Internacional,
apto a regular as relações interestatais. Nesse sistema, as normas jurídicas são criadas,
predominantemente, mediante tratados internacionais, manifestações de vontades bilaterais ou
multilaterais em que os Estados aderem livremente, no exercício de sua soberania. Esse
mecanismo positivo é complementado por normas costumeiras que também estabelecem
obrigações. A própria obrigatoriedade dos tratados está baseada no preceito costumeiro do
pact sunt servanda (“os contratos devem ser cumpridos”) 6, que serve como uma espécie de
grundnorm (norma fundamental) para o sistema pactício internacional.
Assim, encontra-se um pressuposto lógico que as nações só irão firmar tratados com
objetivo de cumpri-los. Desde as primeiras noções acadêmicas condizentes ao universo dos
contratos, aprende-se que o acordo firmado faz lei entre as partes, sendo exigível seu
cumprimento com previsão de sanção em caso de desobediência ou não-atendimento. No
entanto, assim como no direito interno, particulares descumprem contratos, indo de encontro à
própria manifestação de vontade formalizada, o mesmo pode ocorrer no plano internacional.
É aqui que o Direito Internacional revela sua similaridade com o direito aplicado em uma
sociedade primitiva7, uma vez que a comunidade internacional é responsável tanto pela
criação de suas normas quanto pela execução das sanções previstas, por meio de autotutela,
sem a atuação interposta de um órgão externo centralizado 8. E se todas as nações são iguais,
como legitimar a possibilidade de uma aplicar sanção em outra? Isso leva à perplexa
conclusão que apesar de obrigatório (pois os “tratados devem ser cumpridos”), o Direito
Internacional carece de força executiva.
Kelsen acreditava que a evolução do Direito Internacional se daria com uma
centralização parcial, até um determinado nível, de suas estruturas. Esse processo aconteceria
com o “estabelecimento de organizações internacionais que instituem tribunais internacionais
e organismos internacionais executivos”9.
Ao longo do Século XX, o desejo do jurista tentou, muito timidamente, tomar forma.
A fracassada Sociedade das Nações (de 1919) serviu como embrião para a instituição da
5
HOBBES, Thomas. O Leviatã, Nova Cultural, São Paulo, 2000, p. 174.
ROUSSEAU, Charles. Derecho Internacional Publico, Editiones Ariel, Barcelona, 1966, p. 50.
7
KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales, Fondo de Cultura Económica, México, 1986,
p. 72.
8
LEBEN, Charles. Hans Kelsen and the advancement of International Law, In European Journal of International
Law, n. 09, 1998, p. 289.
9
KELSEN, Hans. Principios de derecho internacional publico, El Ateneo, Buenos Aires, 1965, p. 345.
6
2
Organização das Nações Unidas (de 1945). Ferrajoli acredita que a Carta de São Francisco
(que criou a ONU), materializou um verdadeiro contrato social internacional (trançando um
paralelo à alegoria de Jean-Jacques Rousseau para fundação do Estado), instituindo um “pacto
de sujeição” das nações frente a essa nova instituição 10. Seguindo esse parâmetro de
centralização parcial, outras tantas organizações surgiram, com especial destaque para aquelas
de natureza regional, como a União Européia e o Mercosul. É a constituição de um verdadeiro
ordenamento jurídico internacional, capaz de criar normas, por meio do consenso, e
solucionar as controvérsias atinentes à matéria, por meios pacíficos.
Feitas tais considerações, o presente texto propõe-se a analisar, com esteio em alguns
tratados internacionais que enfrentam as questões referentes à criminalidade de natureza
transnacional, quais as possibilidades de solução de controvérsias na hipótese de
desobediência a um pedido de cooperação jurídica penal internacional lastreado em acordo
previamente fixado entre Estados soberanos. Ou, em outras palavras, “e se o Estado a quem se
pediu a cooperação não atender ao requerimento? Ou o fazê-lo de modo incompleto? Há um
organismo internacional competente para exigir seu cumprimento?”.
Parte-se, como ponto de observação, dos principais tratados regionais concernentes ao
Mercosul, a saber: o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais para o
Mercosul (Protocolo de São Luis) e a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em
Matéria Penal (Convenção da OEA) e dos mais relevantes acordos internacionais que
contemplam as hipóteses de delitos transnacionais: a Convenção das Nações Unidas sobre o
Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena); a
Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (Convenção
de Palermo) e; a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida).
Também serão referidos, ao longo do texto, os mecanismos de solução de controvérsias que
servem como salvaguardas para o cumprimento desses tratados, no âmbito regional
(Protocolo de Olivos) e Internacional (Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte
Internacional de Justiça).
Registre-se que os componentes do Mercosul são assinantes de todos os tratados
referidos, cabendo uma única exceção que é o fato de o Uruguai não ser assinante da
Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal (Convenção da OEA).
Como sói acontecer nos tratados11, a previsão de mecanismos de solução de controvérsias não
10
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do estado nacional, Martins Fontes,
São Paulo, 2002, p. 40.
11
Não obstante os méritos da Convenção da OEA, fato é que não há previsão expressa acerca de mecanismos
para a solução de controvérsias, sendo competente para dirimir eventuais questões, em princípio, a Corte
Internacional de Justiça sediada na Haia.
3
tem outro condão que, preventivamente, fixar um ente com competência para pôr fim a um
eventual impasse entre as nações. A controvérsia, entre outros fatores, pode ocorrer por um
atendimento profano ao que lá está previsto, assim como, até, pelo simples descumprimento
do que foi previamente acordado.
2. As Soluções de Controvérsias e Mercosul
2.1. Cooperação Internacional no Mercosul
Adotando o padrão ocorrido na Europa a partir de 1950 (que desencadeou a União
Européia), também na América do Sul, desde o início de 1990, houve uma interessante
associação de países, em um grupo conhecido como Mercosul, composta, basicamente, por
Argentina, Brasil, Paraguai12 e Uruguai, que, até agora, desenvolveu uma denominada “União
Aduaneira Imperfeita13”, mas cuja finalidade é formar um Mercado Comum (consoante os
objetivos estabelecidos no Tratado de Assunção, em seu art. 1º, por meio do qual o bloco foi
fundado em 1991).
Em que pesem as fulcrais distinções entre ambos os entes referidos (União Européia
e Mercosul), sem esquecer toda uma sistemática distinta que define a União Européia como
um ente supranacional ao passo que ao Mercosul é conferida a natureza jurídica
intergovernamental14, alguns elementos são semelhantes, entre os quais o respeito aos acordos
e tratados firmados entre os Estados Partes e a idéia de laborar-se em regime de cooperação
no afã de coibir a criminalidade transnacional.
Foi nesse sentido que foi criado o Protocolo de São Luís, que regula a assistência
jurídica mútua em assuntos penais para o Mercosul, aprovado pelo Conselho de Mercado
Comum (Decisão 02/96), em 25.06.1996.
12
Nesse momento, o Mercosul vivencia uma importante crise política à medida que o Paraguai foi “suspenso
temporariamente do bloco”, diante de um discutível impeachment de seu ex-Presidente (Fernando Lugo) e a
tomada de poder pelo seu antigo Vice (Frederico Franco), e a Venezuela, que figurava entre os países
associados, foi incorporada ao Mercosul como membro pleno. Informação colhida em 30.06.2012 no sítio
http://economia.terra.com.br/noticias/noticia.aspx?idNoticia=201206300359_EFE_81360015.
13
BARRAL, Welber. O novo sistema de solução de controvérsias no Mercosul, in Estudos em arbitragem,
mediação e negociação, vol. 2, Brasília, 2003, p. 36.
14
Os mecanismos de integração internacional permitem a criação de dois tipos de organizações:
intergovernamentais e supranacionais. As intergovernamentais, atreladas a um direito internacional clássico, são
estruturadas em torno da prevalência dos interesses nacionais dos Estados-Membros. O órgão internacional
acaba tornando-se um instrumento de harmonização de interesses nacionais. De maneira oposta, são as
organizações supranacionais, mais modernas, onde existe uma supressão dos interesses pessoais dos membros
em favor da coletividade.
4
Esse documento é a tentativa de eliminar as barreiras burocráticas impostas pelas
prerrogativas soberanas, de modo a constituir um mecanismo de cooperação penal direta,
“RECONHECENDO que muitas atividades delituosas representam uma grave ameaça e se
manifestam através de modalidades criminais transnacionais nas quais freqüentemente as
provas se situam em diferentes Estados”15.
Salientada a existência do protocolo, pode-se afirmar que, na hipótese de requerimento
de cooperação judicial penal, “a prestação de assistência penal internacional é um dever do
Estado rogado16”. Ou seja, não há uma faculdade dos Estados membros cooperarem ou não,
mas uma obrigação.
Apesar da evidente legalidade do Protocolo de São Luís, uma clara manifestação de
vontade estatal por meio de um tratado, corre-se o risco de sê-lo descumprido, como qualquer
norma de âmbito interno. Nesse caso, frente a uma negação do pressuposto “dever de
cooperar”, instituído pelo citado documento, apresenta-se uma série de recursos que visam
assegurar o cumprimento do que foi acordado.
Não obstante seja indiscutível que, nos tempos de hoje, a cooperação figura como um
imperativo internacional de fonte normativa interna, emanada de múltiplos acordos bilaterais
e multilaterais, também é certo que não se pode cooperar de qualquer maneira nem a qualquer
custo. Trata-se, indiscutivelmente, de uma assistência regulada, uma vez que deve ater-se ao
previsto nos tratados. Eles legitimam sua existência, impondo o cumprimento de acordo com
os compromissos firmados.
2.2. Mecanismos de Soluções de Controvérsias no Direito Internacional Contemporâneo
Antes de tudo, é importante apresentar alguns aspectos atinentes aos mecanismos de
solução de controvérsias no Direito Internacional contemporâneo para, depois, analisar os
previstos no âmbito do Mercosul.
O Direito Internacional prevê três maneiras de solução de controvérsias originadas da
aplicação de um tratado: os meios diplomáticos, políticos ou judiciais. No primeiro, busca-se
a solução das diferenças através de negociações diplomáticas. Elas podem se dar por meio de
negociação direta, em que os representantes dos Estados divergentes comunicam-se até
15
Preâmbulo do Protocolo de São Luis.
BERGMAN, Eduardo Tellechea. La cooperación jurídica internacional em matéria penal en el âmbito
regional, un instrumento para assegurar la realización de la Justicia más allá de las fronteras , in Currículo
Permanente – Caderno de Direito Penal: módulo 4, TRF – 4ª Região, Porto Alegre, 2008, p. 13.
16
5
chegar a uma conclusão favorável para ambos. Outra possibilidade está na eleição de um
terceiro Estado para auxiliar a chegada de um consenso. Esse procedimento pode ser por
“bons ofícios” (de pouca ingerência do terceiro Estado), “mediação” (maior intervenção),
“conciliação” (parecida com a mediação, mas com vários Estados formando uma comissão)
ou “investigação” (também por comissão, no entanto, limita-se a apurar a materialidade dos
fatos alegados)17.
No segundo, a manifestação é feita por um órgão colegiado de uma respectiva
organização internacional competente para apreciar a questão. Aqui, aciona-se um corpo de
representantes nacionais atuantes nessas instituições, que provavelmente agirão conforme os
interesses pátrios e pessoais. O ponto de equilíbrio reside no fato que esta instituição deve ser
democrática de modo que uma decisão só será tomada se atingir certo nível de consenso.
No terceiro, a conclusão é tomada por um tribunal, sendo essa a única modalidade
comprometida com a necessidade de fundamentar juridicamente suas decisões. Pode ser pelo
meio arbitral, em que se selecionam árbitros ad hoc para dirimir o conflito em questão, ou
pelo meio judicial propriamente dito, em que se submete a lide a um tribunal pré-constituído,
de funcionamento permanente e com juízes de carreira.
No que tange às controvérsias relacionadas ao Protocolo de São Luís, conforme o
artigo 27, essas serão resolvidas de acordo com “o Sistema de Solução de Controvérsias
vigente entre os Estados Partes do Tratado de Assunção.”, previsto no Mercosul.
O Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul, criado juntamente com o marco
constitutivo do bloco econômico (Tratado de Assunção de 1991), sofreu quatro significativas
alterações a contar do Tratado de Assunção até sua configuração atual: com anexo III do
Tratado de Assunção; com o Protocolo de Brasília; com o Protocolo de Ouro Preto (1994) e, o
atual, com Protocolo de Olivos (2002).
O Protocolo de Olivos estabelece, em seu texto, sua utilização nas hipóteses de
interpretação, aplicação ou não cumprimento das normas no Mercosul 18. Tal disposição tornao perfeitamente aplicável em uma situação em que um Estado Parte se nega a respeitar, ou
não o atende em sua totalidade, o disposto no Protocolo de São Luís.
As três modalidades de solução de controvérsias são referidas pelo Protocolo de
Olivos. Estão previstos os meios diplomáticos (negociações diretas entre os Estados Partes);
17
ROUSSEAU, Charles. Derecho Internacional Publico, Editiones Ariel, Barcelona, 1966, pp. 485-495.
Art. 1º do Protocolo de Olivos (de 18 de fevereiro de 2002): “As controvérsias que surjam entre os EstadosPartes sobre a interpretação, a aplicação ou o não cumprimento do Tratado de Assunção, do Protocolo de Ouro
Preto, dos protocolos e acordos celebrados no marco do Tratado de Assunção, das Decisões do Conselho do
mercado Comum, das Resoluções do Grupo Mercado Comum e das Diretrizes da Comissão de Comércio do
Mercosul serão submetidas aos procedimentos estabelecidos no presente Protocolo.”
18
6
os meios políticos (intervenção do Grupo Mercado Comum – GMC); e os meios judiciais
(representados pela arbitragem de Tribunais Ad Hoc e o Tribunal Arbitral Permanente de
Revisão).
As negociações diretas são tidas como imprescindíveis (art. 4° do Protocolo de
Olivos), devendo ser buscadas antes da utilização de qualquer outro recurso.
Caso não seja possível solucionar a questão pelas vias diplomáticas, os Estados
poderão escolher em remeter a questão, em comum acordo, ao Grupo Mercado Comum
(GMC) ou passar diretamente para o procedimento arbitral (art. 6°, §1°). O GMC corresponde
ao método político de solução de controvérsias, é ele “o órgão executivo do MERCOSUL,
integrado por quatro membros titulares e quatro alternos por Estado Parte, designados pelos
respectivos governos nacionais e coordenados pelos Ministérios das Relações Exteriores 19”.
Conforme Martins, “a intervenção do GMC é procedimento facultativo, opcional, dependendo
do acordo entre as partes, visando agilizar os procedimentos de solução de litígios”20.
Conforme bem salientou Welber Barral, inexiste, no âmbito do Mercosul, uma
instância judicial supranacional, aos moldes de uma Corte Internacional de Justiça ou um
Tribunal de Justiça Europeu. O autor observa 21, no entanto, que este sistema é provisório, pois
“deverá ser novamente modificado quando ocorrer o processo de convergência da tarifa
externa comum.”
No procedimento arbitral, será constituído, a requerimento de qualquer uma das partes
da lide, um Tribunal Arbitral Ad Hoc, composto por três árbitros (art. 10, § 1°). Os árbitros
são juristas especialistas em direito do Mercosul, devendo agir com imparcialidade e
independência funcional do país que os indicou (art. 35, § 1° e 2).
Poderão ser solicitadas medidas provisórias, desde que haja “presunções
fundamentadas de que a manutenção da situação poderá ocasionar danos graves e irreparáveis
a uma das partes na controvérsia” (art. 15, § 1°).
Qualquer uma das partes poderá apresentar um recurso de revisão do laudo do
Tribunal Permanente de Revisão (art. 17, §1° ). Esse é integrado por cinco árbitros (art. 18, §
1° ). Todos detêm imparcialidade e independência funcional.
19
PIMENTEL, Luiz Otávio. Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), In BARRAL, Welber. Tribunais
Internacionais: Mecanismos contemporâneos de solução de controvérsias, Fundação Boiteux, Florianópolis,
2004, p. 178.
20
MARTINS, Eliane M. Octaviano. Sistemática de Solução de Controvérsias do Mercosul: o Protocolo de
Brasília e o Protocolo de Olivos, In Cadernos PROLAM/USP, ano 5, vol. 1, 2006, p. 88.
21
BARRAL, Welber. O novo sistema de solução de controvérsias do Mercosul, in Caderno de Temas Jurídicos
– Revista da OAB/SC, n. 107, 2002, p. 04.
7
Quando a questão envolver dois Estados Partes, como é o caso de contendas
envolvendo o pedido de cooperação internacional, o Tribunal é integrado por três árbitros.
Dois serão nacionais de cada Estado litigante, sendo que o terceiro é escolhido por sorteio,
entre os árbitros que não possuam a nacionalidade dos países em controvérsia (art. 20, § 1°).
Em lides com mais de dois Estados, o Tribunal será integrado com os cinco árbitros (art. 20,
§2° ).
Uma vez interposto o recurso de revisão, a outra parte tem o direito de contestá-lo
(Art. 21, §1 ).
É importante salientar que, além da competência recursal, é possível que os litigantes
acessem diretamente o Tribunal Permanente de Revisão, desde que o façam em comum
acordo depois de esgotadas as negociações diretas. Ultrapassa-se, assim, a etapa referente ao
Tribunal Ad Hoc (art. 23, § 1° e 2° ).
Também está prevista a utilização de medidas de urgência (art. 24).
Tanto os laudos do Tribunal Ad Hoc como do Tribunal de Revisão são tidos como de
cumprimento obrigatório pelos membros do Mercosul, formando coisa julgada (art. 26, § 1° e
art. 27). É cabível, como exceção, um “recurso de esclarecimento”, que é uma espécie de
“embargos declaratórios” do direito interno brasileiro (art. 28, §1° e 2° ).
Os próprios laudos costumam estabelecer um prazo para seu cumprimento, que no
silêncio será de 30 dias (art. 29, § 1°). Caso o Estado beneficiado pelo laudo entenda que as
medidas adotadas pelo derrotado para cumprir a sentença não forem suficientes, pode levar a
questão ao Tribunal respectivo para que se pronuncie sobre a questão (art. 30, § 1°).
Se dentro de um ano não for cumprido o disposto, a parte prejudicada poderá iniciar a
aplicação de medidas compensatórias temporárias, tais como suspensão de concessões ou
outras obrigações equivalentes (art. 31, § 1° e 2°). A outra parte, por sua vez, pode contestar
essas medidas, se achar indevidas ou excessivas, perante o respectivo Tribunal Arbitral (art.
32, 1° e 2°).
3. As Soluções de Controvérsias na Organização das Nações Unidas
Considerando que, dentre os tratados internacionais arrolados, três deles são
denominados “Convenções das Nações Unidas” (“Sobre o Tráfico Ilícito de Entorpecentes”,
“Contra o Crime Organizado Transnacional” e “Contra a Corrupção”), além de que em todos
consta a previsão de que, ultrapassadas outras vias de solução de controvérsias, a última
8
instância a ser buscada é a Corte Internacional de Justiça (órgão jurisdicional vinculado à
ONU), são cabíveis os esclarecimentos a seguir.
3.1. O Dever de Cooperar no Plano Internacional
As redes de cooperação policial e judiciária exigem um funcionamento harmônico e
coeso, sem a possibilidade de recurso à vontade individual e nacionalista, algo prejudicial ao
sistema. Nesse cenário, cumpre discutir se o cumprimento débil, ou mesmo a negativa ao ato
de cooperar, com nações integrantes do mesmo bloco econômico, não poderia ser algo
classificado em uma situação que ultrapassa o âmbito regional. A verdade é que a ausência de
barreiras no exercício da atividade criminosa fez com que a persecução penal de certos
agentes seja um interesse partilhado por toda a comunidade internacional.
Hoje, já se encontra estabelecido que existe um dever internacional na prestação de
assistência penal. Dita afirmativa, manifesta-se, especialmente, em recentes tratados firmados
no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) que abordam a problemática dos delitos
transnacionais, como ocorre nas Convenções de Palermo 22 e Mérida23 . Referidos instrumentos
contemplam como obrigatórios, a todos os Estados signatários, os mecanismos de cooperação
judicial e auxílio recíproco. Todos os países do Mercosul são signatários dessas Convenções,
o que abre margem para novas possibilidades no cumprimento do dever de cooperar.
Em se tratando de assuntos mundiais, a ONU é o órgão mais importante. À primeira
vista, pode até parecer inusitado recorrer à ONU para Estados cooperarem, mas uma análise
mais apurada da instituição assinala tal possibilidade. É imperativo referir-se que a
organização internacional consigna a necessidade de um desenvolvimento de relações
amistosas entre as nações (art. 1°, § 1°), e a solução de controvérsias de situações que possam
levar a uma “perturbação da paz” (art. 1°, § 2°). Ora, se a instituição ONU existe com o fim
de manter a paz entre os Estados Membros, elaborando uma série de protocolos (como os
antes examinados), o não-atendimento a um pedido de cooperação representa uma verdadeira
agressão a tal finalidade.
É claro que a ONU está longe de desempenhar o papel de um Estado Mundial, o que a
diferencia do modelo de coerção interno. Na realidade, ela reproduz as características e
22
Art. 4º da Convenção firmada em Palermo: “Os Estados partes deverão cumprir as obrigações decorrentes da
presente Convenção”.
23
“Art. 1º - A finalidade da presente Convenção é: [...] b) promover, facilitar e apoiar a cooperação internacional
e a assistência técnica na prevenção e na luta contra a corrupção, incluída a recuperação de ativos”.
9
imperfeições do Direito Internacional já referidas. O artigo 2°, § 1° da Carta da ONU,
estabelece “a igualdade soberana de todos os seus membros”, um de seus princípios basilares,
demonstrando que a noção de soberania ainda encontra-se em vigor. O mesmo artigo, no §7°,
afirma que “nenhuma disposição da Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em assuntos
que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, ou obrigará os
membros a submeterem tais assuntos a uma solução [...]", o que de certa forma, reduz a sua
eficiência.
3.2. O Papel da Assembléia Geral e do Conselho de Segurança
Realizadas as considerações sobre o sistema vigente, entende-se que o país que se
sentir prejudicado por uma violação de Direito Internacional, como a negação do dever de
cooperar, pode recorrer aos meios pacíficos de controvérsias apresentados pela ONU. No
âmbito da instituição, existem duas possibilidades: a solução pelo meio político ou a solução
pelo meio judiciário.
Nesse passo, tanto a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança poderão atuar como
instâncias políticas. A Assembléia é composta por todos os membros das Nações Unidas (art.
9º,§ 1º da Carta das Nações Unidas), que votam em pé de igualdade (art. 18, § 1º) sobre os
mais variados temas que interessam a comunidade internacional (art. 10). Os resultados finais
das deliberações concretizam-se em meras recomendações, ausentes de qualquer componente
de constrangimento24.
Apesar de ser uma opção, a Assembléia Geral dificilmente seria eficaz para compelir
um membro da ONU a cooperar na persecução penal. Inicialmente, existe uma grande
possibilidade de o órgão declinar em deliberar sobre o assunto, por envolver questões de
jurisdição nacional, sendo-lhe vedada à interferência conforme o artigo 2°, § 7° da Carta da
ONU. A Assembléia também poderia deixar que o Conselho de Segurança se manifestasse em
seu lugar, devido à temática relacionada à segurança internacional. Por fim, caso nenhuma
dessas situações citadas ocorressem, permaneceria o entrave do caráter meramente
recomendatório da Assembléia.
A utilização do Conselho de Segurança, por sua vez, revela-se uma solução mais
interessante. O órgão é composto por quinze membros, divididos em temporários e
24
SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1997,
p. 121.
10
permanentes. Os temporários, na quantidade de dez, são eleitos pela Assembléia Geral para o
exercício de um mandato de dois anos, não sendo possível a reeleição para o período
imediato. Os cinco membros permanentes são os Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, China
e França. Como é necessário o voto afirmativo de todos os cinco membros permanentes, caso
qualquer um deles vote contra, estará exercendo prerrogativa do veto.
O Conselho tem várias vantagens em relação à Assembléia Geral para resolver uma
contenda envolvendo o dever de cooperar interestatal. Não se pode olvidar que o Conselho é
um órgão permanente, que pode ser acessado em qualquer época do ano, enquanto a
Assembléia reúne-se só em determinados períodos. Também se pode afirmar que, apesar de
não existirem óbices para a Assembléia deliberar sobre o assunto 25, o Conselho é
especializado em matérias que envolvam a manutenção da paz e seguranças internacionais.
Ainda, ao contrário da Assembléia, não se encontra limitado pelo dever de não intervenção
em assuntos domésticos do art. 2°, § 7° da Carta. Por fim, é autorizado a decretar medidas
coercitivas para concretizar a suas decisões, podendo, inclusive, utilizar a força armada.
Como medidas de coerção, o artigo 41 prevê a possibilidade de impor a interrupção
completa ou parcial das relações econômicas; bloquear meios de comunicação ferroviários,
marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radioelétricos, ou de qualquer outra espécie; e romper
relações diplomáticas com o Estado agressor. Essa lista é apenas exemplificativa. Caso o ato
seja de natureza grave, ou se a aplicação de medidas mais brandas tenha se revelado
insuficiente, o Conselho de Segurança pode autorizar uma operação militar como método de
coerção (art. 42).
Apesar do exposto até aqui, existe uma pergunta que ainda ecoa: o simples fato de um
país não cooperar com o outro, permitiria uma reação tão drástica?
Deve-se desmistificar que o Conselho só age em caso de “guerra”. A Carta da ONU é
bem clara em atribuir ao órgão a competência de detectar “ameaças e rupturas da paz” e “atos
de agressão” (art. 39). Consoante Dinstein, a tentativa de chegar a um consenso sobre o
significado desses termos é inútil 26, devido à indiscutível autoridade do Conselho. A realidade
é que a Carta confere um âmbito de atuação bem amplo, bastando-se provar a gravidade e a
internacionalidade da questão, de modo constituir um ato atentatório à paz mundial.
25
A Corte Internacional de Justiça emitiu parecer, em 1962, que a competência do Conselho é “primária, não
exclusiva”. A única proibição estaria no caso da Assembléia decidir sobre a mesma questão enquanto o Conselho
estivesse deliberando (art. 12, § 1°) da Carta das Nações Unidas. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE.
Certain Expenses of the United Nations (Advisory Proceedings). Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/
index.php?p1=3&p2=4>. Acesso em 28 nov. 2008, p. 163.
26
DINSTEIN, Yoram. Guerra, Agressão e Legítima Defesa, Manole, Baueri, 2004, p. 390.
11
Levando-se em consideração que o sistema de cooperação internacional forma uma
espécie de “rede”, na qual todos os países são beneficiados, a quebra de um elo pode
constituir uma verdadeira perturbação da ordem internacional. A atuação do Conselho pode
ser relevante, principalmente, na aplicação de sanções que não envolvam a força armada. Se
existe autorização para que o gestor da segurança global aplique medidas contra nações em
guerra civis, em conflitos desenvolvidos em uma única nação 27, por que não decretar embargo
econômico contra um notório abrigo para a criminalidade organizada e transnacional, que é
uma ameaça à comunidade internacional como um todo? Existem precedentes nesse sentido.
Em 1988, o vôo n° 103 da Pan American, que fazia o trajeto Londres - Nova Iorque
sofreu em atentado terrorista, vindo a cair em Lockerbie, na Escócia. Após três anos de
minuciosa investigação, descobriu-se que os supostos autores do atentado eram oficiais de
inteligência da Líbia. O subseqüente pedido de extradição ao governo da Líbia acabou sendo
negado, visto que o país não permite o procedimento contra nacionais. Em contrapartida,
garantiu o processamento das acusações no judiciário pátrio, concedendo amplo acesso das
autoridades americanas e britânicas para acompanhar o processo.
Contrariados, representantes do Reino Unido, EUA e França acionaram o Conselho de
Segurança. Em janeiro e março de 1992, adotou duas resoluções sobre o caso. A primeira
(Resolução n° 731) obrigava a Líbia a acatar os pedidos de extradição realizados, enquanto a
segunda (Resolução n° 748) impôs sanções econômicas, como limitação ao tráfego aéreo,
proibições a outras nações de vender equipamento industrial aos líbios e congelamento de
contas bancárias28.
Após anos de negociações, as nações ocidentais citadas ofereceram a proposta de
realizar um julgamento, por um júri escocês, mas em solo neutro, na Holanda. Essa proposta
foi endossada pela Resolução n° 1.192 de 1998 do Conselho de Segurança. Em 1999, a Líbia
entregou os acusados para o julgamento na Holanda, fazendo com que as Nações Unidas
retirassem todas as restrições ao governo líbio.
Um exemplo mais recente aconteceu na resposta aos atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001. Dias após o ataque, o Conselho de Segurança, por meio das Resoluções n°
1.368 e 1.373, obrigou todos os Estados-Membros a colaborarem na captura de terroristas e
27
Kirgis Junior traz o exemplo do embargo realizado à Somália, em 1992, que se encontrava em guerra civil, por
meio da Resolução n° 733 do Conselho de Segurança. Apesar da magnitude do conflito, o autor afirma que
houve poucas evidências “de que o embate entre clãs na Somália, embora devastador naquele país, eram
realmente uma ameaça às nações vizinhas”. KIRGIS JUNIOR, Frederic L. The Security Council First Fifty
Years, in American Journal of International Law, v. 89, n. 03, Washington, 1995, p. 513.
28
PLATCHA, Michael. The Lockerbie Case: The Role of Security Council in Enforcing the Principle Aut Dedere
Aut Judicare, In European Jornal of Internaional Law, v. 12, n. 1, jul. 2001.
12
congelar fundos do Al Qaeda e dos Talibãs. Estima-se que mais de 112 milhões de dólares
foram bloqueados, em um período de aproximadamente três meses29.
Pode-se afirmar, no entanto, que o Conselho de Segurança não representa uma solução
efetiva dos problemas. Na verdade, a ONU não possui forças armadas permanentes próprias,
capazes de produzir a coerção. A execução das medidas é realizada pelos próprios Estados
Membros, sob o comando do Conselho de Segurança, que age no interesse de toda a
instituição (art. 48, § 1º ).
Ainda, conforme afirmou o Juiz Schwebel, da Corte Internacional de Justiça, não se
pode esquecer que o Conselho é um “órgão político que age por razões políticas”, que não
precisa motivar as suas decisões30. Sendo assim, nem sempre um argumento com forte
embasamento jurídico irá prevalecer.
3.3. A Corte Internacional de Justiça
A Carta da ONU prevê, ainda, a existência de uma Corte Internacional de Justiça
(CIJ), que corresponde à solução de controvérsias na modalidade judiciária. É um órgão
integrante da ONU que possui a função de julgar litígios entre Estados soberanos, não sendo
possível o acesso por organizações internacionais ou particulares.
A CIJ é um tribunal permanente de Direito Internacional, com sede na Haia, na
Holanda, dotado de autonomia, imparcialidade e conhecimento técnico avançado. Compõe-se
de quinze juizes (art. 3°, § 1° do Estatuto da Corte) não podendo haver dois da mesma
nacionalidade, indicados pelos países de origem e eleitos pela Assembléia Geral e pelo
Conselho de Segurança, em maioria absoluta, (art. 10, § 1°) para exercer um mandato de nove
anos (art. 13, § 1°), podendo ser reeleitos. Entre as exigências, está a de que os componentes
da CIJ tenham condições de exercer as mais altas funções judiciárias nos seus países de
origem, além de apresentarem reconhecida competência em matérias pertinentes ao Direito
Internacional.
A Corte possui duas espécies de procedimentos, o contencioso (contentious case) e o
consultivo (advisory proceedings). O primeiro envolve uma disputa entre duas partes que será
levada a CIJ para decisão. Nessa modalidade, apenas Estados poderão demandar e serem
29
UNITED NATIONS. A More Secure World: Report of the Secretary-General's High-Level Painel On Threats,
Challenges and Change (2004). Disponível em: <http://www.un.org/secureworld/>. Acesso em: 28 nov. 2008.
30
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua,
separate opinion of Judge Schwebel. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/index.php?
p1=3&p2=3&k=66&case=70&code=nus&p3=4>. Acesso em 28 nov. 2008, p. 290.
13
demandados judicialmente (art. 34, § 1°). Já o procedimento consultivo não tem caráter
litigioso, pois visa apenas declarar a interpretação de certa questão jurídica por meio de um
parecer. Nesse caso, é provocada pela Assembléia Geral ou Conselho de Segurança (art. 96, §
1° da Carta da ONU).
Observa-se que as organizações internacionais sem ligação com a ONU, como os
blocos regionais (União Européia e Mercosul, por exemplo), não se enquadram como partes
em ambos os procedimentos.
Existe um grave problema em relação aos exercícios das funções jurisdicionais da CIJ.
Devido ao caráter descentralizado da ordem internacional, a Corte apenas decide sobre lides
submetidas livremente pelos Estados. Todos os países do Mercosul fazem parte da ONU,
situação que os obriga a reconhecer a autoridade da CIJ (art. 93, § 1º da Carta da ONU). No
entanto, isso não significa que eles admitem o envio automático e obrigatório de suas lides ao
órgão jurisdicional: a voluntariedade na submissão da questão permanece intacta.
Uma das maneiras de levar uma questão à CIJ é inserir no corpo de qualquer tratado
que os litígios referentes aquele documento serão apresentados à instituição para julgamento.
Dessa maneira, todos que forem membros do tratado estarão aceitando, compulsoriamente, a
jurisdição da Corte para esses casos. É parecido com a conhecida “cláusula de eleição de
foro”, presente nos contratos entre particulares.
As Convenções de Palermo31, Viena32 e Mérida33 legitimam a utilização da Corte
Internacional de Justiça para solução de controvérsias atinentes aos documentos. Assim, caso
um país signatário se recuse a cooperar, pode ser demandado judicialmente, frente à CIJ, para
que cumpra os acordos.
O procedimento, no âmbito da Corte, é similar àqueles adotados pelos judiciários
nacionais. Ingressa-se com uma “petição inicial” (art. 40, § 1°, 2° e 3°), assinada por
representante diplomático, que irá atuar em defesa dos interesses do Estado.
A partir daí, o procedimento divide-se em duas fases: uma escrita e outra oral (art. 43,
1 do Estatuto da Corte). Na escrita, o demandante apresenta memorais e o demandado
defende-se, por meio de contra-memoriais (43, § 2°), podendo apresentar provas de suas
alegações. Após, parte-se para réplica, se for necessário. É possível a intervenção, no
processo, de terceiros interessados à lide (art. 62, § 1°, e 2°). Na fase oral, ouvem-se
testemunhos, peritos e representantes das partes (art. 43, § 5°).
31
Art. 35, § 2° da Convenção de Palermo.
Art. 32, § 2º da Convenção de Viena.
33
Art. 66, § 2º da Convenção de Mérida.
32
14
Durante o processo, também é possível que as partes requeiram medidas cautelares
para resguardar os direitos das partes.
As sentenças, decididas por maioria de votos dos magistrados (art. 55, § 1°) deve ser
motivada (art. 56, § 1°). Nota-se, aqui, uma diferença fundamental com os mecanismos
políticos de resolução de controvérsias, que não possuem a obrigatoriedade jurídica de
expressar os seus motivos.
Não há previsão para apelação (art. 60). É permitido, contudo, um pedido de revisão
fundamentado na descoberta de fato novo que era do desconhecimento da Corte na época da
decisão (art. 61).
Como as partes aceitaram a jurisdição da Corte pelo tratado (Convenções de Palermo,
Viena ou Mérida), considera-se que a sentença é de caráter obrigatório. No entanto, a
principal falha da CIJ, como de resto das demais organizações judiciárias de competência
supranacional, fica por conta do seu poder de exeqüibilidade, de suas decisões, tendo em vista
a natureza descentralizada do Direito Internacional. Diante disso, o que resta é aguardar a
boa-fé dos Estados, como disciplina o art. 94, § 1°, da Carta das Nações Unidas: “Cada
Membro das Nações Unidas se compromete a conformar-se com a decisão da Corte
Internacional de Justiça em qualquer caso em que for parte.”.
No caso, contudo, de uma das partes deixar de cumprir os ditames da sentença
proferida pela CIJ, a outra parte poderá recorrer ao Conselho de Segurança para que utilize
medidas coercitivas (art. 94, § 2° da Carta da ONU ).
4. O Problema da Multiplicidade de Mecanismos de Solução de Controvérsias – O Caso
das Papeleiras (Argentina v. Uruguai)
Já analisadas as questões pertinentes aos tratados internacionais e os mecanismos
diplomáticos, políticos e jurisdicionais de solução das contendas, apresenta-se um precedente
jurídico-diplomático bastante rico, não obstante ser lamentável, ocorrido entre Argentina e
Uruguai, que se tornou conhecido como a “crise das papeleras”.
Mais que o relato do caso concreto, o que se busca, com o exemplo a seguir, é
demonstrar, uma vez mais, o quanto o Direito Internacional vem crescendo e, porque não
15
reconhecer, alterando sua natureza diante das realidades apresentadas pelo mundo
contemporâneo.
Nesse norte, se é verdade que está ultrapassada a fase de imposição de vontades, por
meio do conflito bélico, também é necessário admitir que a grande queixa, destinada ao
Direito Internacional, vinha sendo a ausência de poder coercitivo. A proliferação de tratados
internacionais e as consequentes vias de solução de controvérsias buscam diminuir essa
deficiência histórica.
No caso a seguir relatado, a particularidade encontra-se na irônica possibilidade de
utilização simultânea de mais de um órgão com competência decisória sobre o conflito.
Em apertada síntese34, a quaestio pode ser resumida com o projeto de uma empresa
espanhola (ENCE) interessada em investir, no ramo de processamento de madeira e
fabricação de celulose no Uruguai, em um empreendimento que representaria o maior
investimento estrangeiro naquele país, na cidade de Fray Bentos, na margem esquerda do Rio
Uruguai, em frente à cidade argentina de Gualeguaychú, na província de Entre Rios.
Contrariadas, alegando receio de dano ambiental e prejuízo ao ecossistema no Rio Uruguai, as
autoridades argentinas invocaram o Estatuto do Rio Uruguai, firmado pelos dois países, em
1975, que previa o gerenciamento conjunto das águas do rio.
Após uma série de atos de ambos os estados litigantes, dentre os quais reclamações
perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos
Estados Americanos (OEA), bloqueios em rodovias e pontes de acesso aos dois países, com
alegações de afronta ao art. 1º do Tratado de Assunção (que prevê a livre circulação de
pessoas e mercadorias) ocorreu a curiosa situação: a Argentina buscou a tutela da Corte
Internacional de Justiça (alegando ofensa ao Estatuto do Rio Uruguai) ao passo que o Uruguai
buscou o mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul, por meio de arbitragem, por
conta dos obstáculos ao livre trânsito causados pela população argentina. Como se pode
perceber, houve a procura por dois institutos jurisdicionais diversos no afã de buscar a solução
de uma mesma contenda35.
34
MAGALHÃES, Bruno. O papel do Mercosul: a crise das papeleras e o processo de integração regional sulamericano. Observador On-Line . Disponível em: <http://observatorio.iuperj.br> . Acesso em: 15 nov. 2008.
35
Imperativo esclarecer que a contenda teve decisão definitiva na Corte de Haia, em 20 de abril de 2010, por 13
votos a três, no sentido de que não foram identificados riscos ambientais gerados pela papeleira, e que o Uruguai
não descumpriu suas obrigações de proteção ao meio ambiente com a construção da fábrica de papel e celulose,
não obstante também tenha sido reconhecido que o Uruguai autorizou unilateralmente sua construção, sem ouvir
a Argentina, em desobediência ao previsto no Estatuto do Rio Uruguai. Após a decisão, os representantes dos
países demonstraram interesse em estabelecer “caminhos de entendimento, diálogo e desenvolvimento
conjunto”. Informação colhida no sítio (http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,corte-de-haia-da-razao-aouruguai-em-disputa-de-papeleiras-com-argentina,540781,0.htm). Acesso em 4 de março de 2011.
16
Apesar de a lide não tratar diretamente de cooperação internacional, ela pode ser
utilizada como paradigma para suscitar algumas questões. Em primeiro lugar, o Protocolo de
São Luís, que estabelece o dever de cooperar é um documento normativo que deve ser
respeitado. No entanto, o seu desrespeito não é motivo para estagnar todo um procedimento
dinâmico de cumprimento das normas internacionais em relação aos crimes transnacionais: há
a possibilidade de acesso aos mecanismos de solução de controvérsias no Mercosul (com base
no Protocolo de Olivos) e das Nações Unidas (com base nas Convenções de Viena, Mérida e
Palermo, bem como a Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça).
No exemplo em tela, cujas partes são assinantes de um bloco econômico específico, a
solução dos conflitos pelo mecanismo desenvolvido naquela seara não tem outro condão que
não o de facilitar uma resposta jurisdicional prestativa e célere, mas, jamais, única. Assim,
não se deve interpretar a pluralidade de organismos jurisdicionais como algo negativo, muito
pelo contrário. O que se apresentam são opções válidas, que conferem maior força ao Direito
Internacional que, obrigatoriamente, também se viu compelido a evoluir tal como aconteceu
em todos os ramos do mundo contemporâneo (aí incluindo o da prestação jurisdicional em um
mundo globalizado).
Cumpre referir, entretanto, que a hipótese de não atendimento de um dos protocolos
referentes à cooperação, ou seu atendimento incompleto, não deixa a humanidade refém de
uma solução efetiva, porquanto é a Corte Internacional de Justiça o organismo jurisdicional
internacional máximo, devendo, suas decisões, serem atendidas por todos os países do mundo,
com o objetivo de manutenção do equilíbrio entre as nações e de paz mundial.
5. Conclusão
Nessa inesgotável capacidade humana de conceber e efetivar atos lesivos, a lei sempre
perderá para o potencial criativo do homem de perpetrar condutas ainda não previstas em lei.
E, quando não é o caso de lacunas do direito material em si, é na parte processual que podem
se esconder aqueles que desafiam a lei.
Entende-se que a humanidade obteve relevantes avanços na criação e elaboração de
novos sistemas jurídicos à altura das novidades trazidas pelo mundo contemporâneo.
Não há dúvidas de que houve diligência e presteza no processo de criação de órgãos
(judiciais ou não) e sistemas normativos com o escopo de pôr fim à costumeira escusa de que
17
falhas graves ocorriam por “falta de previsão legal”. Essa não é mais a justificativa cabível em
questões cujos interesses concerniam a Estados soberanos distintos como, de modo especial,
as referentes à cooperação internacional.
Como visto, de modo especial em relações aos tratados alusivos aos crimes de
natureza transnacional, registram eles previsão expressa de mecanismos de solução de
eventuais controvérsias, ou do mero não-atendimento a um preceito firmado, in casu, um
pedido de cooperação.
Também se salienta os recursos cabíveis, que se iniciam pela via diplomática, passam
pela via política e encontram a ultima ratio em colegiados jurisdicionais previamente
constituídos exatamente para essa espécie de necessidade.
Seja na seara de um bloco econômico ainda em formação (no caso, o Mercosul), com
seu singular mecanismo de solução de controvérsias por meio de arbitramento, ou, em uma
análise mais ampla, em relação a tratados firmados perante a ONU, com alusão à utilização da
Corte Internacional de Justiça, o fato é que tais instituições asseguram maior efetividade aos
acordos internacionais e à prestação jurisdicional de caráter internacional, sendo forçoso
reconhecer que, em casos nos quais questões basilares como soberania e territorialidade
podem ser postas em questão como justificativas para o descumprimento contratual, a
existência de tais organismos merece ser saudado, pois relativamente nova no contexto
mundial, sem olvidar que representam uma enorme evolução na humanidade, acostumada, até
então, à solução dos conflitos mediante o uso da força.
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