Raça, civilização e cidadania na virada do século XIX e início do século XX
Regina Célia Lima Xavier
(UFRGS)
Como pensar o Brasil após a escravidão? Como avaliar o peso da composição étnica
na formação de uma “nova” sociedade que, livre do cativeiro, deveria preconizar a
igualdade? Responder esta pergunta foi um desafio importante para quem viveu no Brasil
no final do século XIX ou no início do XX. Este pequeno texto, inspirado por questões
como esta, pretende refletir sobre as disputas em torno da definição dos critérios
classificatórios de raça e seu impacto nos debates sobre os direitos sociais.
Um dos elementos importantes para a compreensão do processo no qual se elaborou
formas de classificação racial refere-se à percepção de cor. A historiografia tem, cada vez
mais, pesquisado sobre estas classificações. Cito, rapidamente, alguns autores que avançam
em suas investigações sobre o estudo deste tema. Lara (2007) referindo-se a sociedade
colonial, afirma que ela não pode ser percebida de maneira simplificada opondo-se
senhores e escravos ou pretos e brancos, pois, os critérios classificatórios flutuaram
bastante naquele período e foram utilizados de forma ambígua. Pode-se considerar, no
entanto, que cor e condição social estavam associadas embora a relação entre ambas não
deva ser considerada, na sua opinião, de forma mecânica. A sociedade colonial, afinal,
contava com diversas possibilidades de classificação e a compreensão de seus significados
remete, necessariamente, para a análise de contextos específicos. A autora chama a atenção
para o fato destes elementos classificatórios serem constitutivos da hierarquia social do
Antigo Regime diferente, portanto, do racismo vigente no período posterior, quando a cor
era associada à origem no estabelecimento de critérios hierárquicos e “científicos” sobre
raça. Para o período imperial estudos recentes tem descortinado perspectivas analíticas
semelhantes. Lima (2003), ao analisar as classificações de cor vai apontar como havia
designações móveis e abundantes que compunham uma linguagem racial que não pode ser
compreendida fora de seu contexto político. A autora refuta que se possa pensar em uma
“questão racial” que atravessaria a história, pois isso significaria essencializar a “questão”.
Propõe, então, uma análise que dê conta da história destes termos classificatórios evitando
sua naturalização, sensível a historicidade e complexidade das percepções e classificações
1
raciais. Guedes (2006), por sua vez, ao analisar a relação entre cor e condição social
percebe o quanto havia para os indivíduos possibilidades de negociação. Ele cita casos em
que se estabeleceram alianças entre afros-descendentes e a elite que resultaram, inclusive,
na própria mudança da representação e do registro da cor. Neste sentido, conclui o autor,
hierarquia e posição social expressas na cor eram circunstanciais e só podem ser percebidas
na análise de relações sociais contextualizadas. Castro (1995), pioneira e de certa forma
inspiradora de alguns dos trabalhos citados acima, ao se dedicar ao período pósemancipação, apontou como a relação entre cor e condição social viria a se modificar,
tornando-se mais complexa quando a cor deixou de sugerir a condição livre ou escrava do
indivíduo. A cor ou o silêncio sobre ela foi um signo na luta pela cidadania no período pósabolição.
Além da cor, outros elementos são importantes para a análise das classificações
raciais. Características físicas foram seguidamente relacionadas a uma busca das origens
étnicas. Karasch (2000) já havia destacado o interesse de viajantes em definir a raça dos
negros importados no Brasil. Rugendas e Debret, por exemplo, descreveram características
físicas tais como o corte dos cabelos, o uso de tatuagens como aspectos indicativos das
origens que poderiam vir, também, acompanhadas por considerações sobre seus supostos
temperamentos e “caracteres”. Cuidadosa ao analisar estes critérios classificatórios,
Karasch seria pioneira na interrogação sobre a procedência dos africanos no Rio de Janeiro.
A tarefa, no entanto, se mostrou árdua. Soares (2000) já assinalou a dificuldade de se
definir os grupos étnicos que vieram através do tráfico negreiro para o Brasil. Reis (2003)
vai considerar a dificuldade de se pressupor uma identidade étnica ou sua continuidade
entre a África e o Brasil. Isso não quer dizer que o autor despreze a importância das
referências africanas, mas que busca perceber como elas foram transformadas e
enriquecidas na construção de identidades étnicas realizadas no Brasil. Farias (2005),
seguindo este raciocínio, vai buscar perceber a diversidade dos significados relacionados à
classificação das procedências, para além dos interesses senhoriais, na investigação sobre
como os africanos teceram suas próprias alianças, construíram espaços específicos de
atuação, inventaram sua cultura e identidade.
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Cor, características físicas, origem étnica, entre outros aspectos, constituíram
elementos classificatórios importantes que informaram os conflitos em torno da definição
das hierarquias raciais. Verificar estas classificações não significa vê-las dentro de uma
continuidade homogênea e a-histórica. Sweet (1997), por exemplo, preocupado em traçar as
raízes do pensamento racista vai apontar, em sua análise, a existência de classificações
raciais, no contexto ibérico, já no século XV. A cor e a raça eram elementos essenciais às
relações de poder. Embora ele seja sensível ao uso problemático do termo racismo naquele
período, aponta para sua existência mesmo considerando a ausência de uma teoria
sistemática sobre raça. Daí afirmar que havia um racismo sem raça. As classificações
pseudo-científicas dos séculos XVIII e XIX vieram a legitimar, portanto, um racismo já
existente. O que este autor nos sugere é a necessidade de se investigar como estas
perspectivas classificatórias se formaram e se legitimaram, considerando como os
indivíduos procederam a partir destas distinções, de forma diversa, no tempo. Por outros
caminhos, Sweet dialoga com os autores citados acima. Embora esteja preocupado com as
condições de formulação do pensamento racista (dentro de uma perspectiva de longa
duração) não pretende definir um significado fixo e atemporal para raça.
A historiografia brasileira também esta atenta à historicidade dos critérios
classificatórios e sua importância para a definição de hierarquias sociais ao analisar o
período colonial e imperial. Este contexto se tornou, de certa forma, mais complexo no
processo de emancipação da escravidão. Nas décadas de 1880 a 1930 as hierarquias raciais
seriam adotadas de uma forma mais contundente pela elite letrada. É neste momento que,
em geral, se assinala a incorporação no Brasil do pensamento científico sobre raça então
vigente na Europa e nos Estados Unidos (Skidmore, 1976). A etnologia, por exemplo, só no
século XIX se torna uma disciplina científica, com sociedades de cunho acadêmico
fundadas nos Estados Unidos (1842), na Grã-Bretanha (1843), na Alemanha (1851) e na
França (1838) que teriam grande influência junto aos intelectuais brasileiros e,
principalmente, aqueles sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A França foi uma grande irradiadora destes debates em torno das idéias de raça e de
cultura, dificilmente discerníveis em meados do século XIX. Vale destacar a especificidade
do debate francês sustentado por duas academias: a Sociedade de Etnografia Oriental e
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Americana e a Sociedade de Antropologia de Paris, ambas fundadas em 1859. Se os
etnólogos condenavam a hierarquia entre as raças e faziam oposição a craniologia como
base para a análise das diferenças entre as sociedades; já os antropólogos defendiam a idéia
de que as características raciais eram preponderantes para o desenvolvimento social e, em
suas fileiras, havia autores como Broca, Le Bon, Lapouge, Quatrefages, Topinard, autores
conhecidos no Brasil. Mesmo considerando estas linhas gerais, Staum (2004) pondera que
estas fronteiras eram ambíguas. O etnógrafo Rosny, por exemplo, adepto do “igualitarismo”
entre as raças, considerava as características físicas (antropológicas) importantes porque
teriam influenciado a maneira de compreender e realizar a civilização; para outros
antropólogos, por exemplo, as características físicas eram complementares ao estudo moral
e intelectual do homem. Mesmo um autor como Broca, afirma Staum (2004), considerava a
importância da educação como forma de melhorar a capacidade cerebral.
Um autor que participou destes debates acadêmicos foi D´Omalius d`Halloy,
geólogo belga que interessado pela ciência de seu tempo publicou um “manual prático de
etnologia” ou “descrição das raças humanas” em 1845. Ele se preocuparia em definir os
próprios objetivos da etnografia: destinada a descrever o caráter natural dos povos, deveria
elaborar subdivisões do gênero humano (raças, ramos, famílias, etc). Entendia que era
conveniente combinar os caracteres naturais com os caracteres sociais, incluindo língua,
história, costumes e religião. Embora fizesse estas considerações, ressaltava que as
características naturais deveriam preponderar sobre todas as outras definições, opondo-se
àquelas classificações que tinham a história ou a língua como base. A etnografia, neste
sentido, segundo sua concepção, era uma ciência natural enquanto a estatística, por se
ocupar das relações sociais, seria uma ciência social. Quando subdivide o gênero humano
em raças (branca, amarela, vermelha, morena e negra) tem como base, pois, os chamados
caracteres naturais. Outros critérios se desdobrariam desta definição inicial tal como a
divisão entre civilizados, bárbaros e selvagens.
René Verneau, por sua vez, foi professor de antropologia no Instituto de
Paleontologia Humana e no Museu Nacional de História Natural de Paris e viria a assumir a
direção deste último em 1907 (apud Staum, 2004) e, diferentemente da perspectiva de
Quatrefages (que saiu da direção desta instituição em 1892), foi favorável a uma
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reorientação e uma abertura deste debate para perspectivas mais culturalistas, que
consideravam, nos estudos sobre as populações humanas, a importância da língua, religião
e instituições sociais, sem observar as ressalvas feitas por um autor como D´Halloy. A
oposição entre as características físicas e as culturais (e entre a etnologia e a antropologia)
estava, pois, cada vez mais, na França, imersa em um debate que continha muitas nuances e
contradições1. Verneau se mostraria preocupado em tornar os conhecimentos científicos de
sua época acessíveis a um público leigo, vindo a escrever, inclusive, um livro destinado a
discutir a evolução humana em uma linguagem simples e desmistificadora. Ali ele estudaria
a pré-história, a geologia, a paleontologia, a influência do clima sobre as organizações
sociais, a evolução do “tipo” humano (1931). Talvez devido ao fato dele e D´Halloy terem
escrito sobre ciência para um público mais abrangente, seus livros tenham tido uma certa
influência no Brasil, motivo pelo qual estão aqui destacados.
No momento em que neste debate, os europeus construíam hierarquias raciais e se
inventavam como brancos, os africanos como negros e os índios como vermelhos (Sweet,
1997), no Brasil, principalmente na virada do século XIX e nas primeiras décadas da
República, parecia ser premente distanciar-se do Império e, nesta perspectiva, não era
suficiente ter superado a escravidão, era preciso transformar os indivíduos e isto implicava
em repensar nossa formação racial. Ser civilizado e moderno, para muitos, significava
construir uma nação branca (Andrews, 1997, 2007; Penha-Lopes, 1996). As representações
raciais têm, pois, um peso importante na formação da identidade regional e nacional. E não
apenas no Rio Grande do Sul. Notável, neste sentido, é o caso de São Paulo em 1932,
quando a identidade paulista foi reivindicada também em termos raciais, demonstrando a
importância destas representações (Weinstein, 2006). A imigração e as políticas públicas
subseqüentes devem ser percebidas também dentro deste quadro (Seyferth, 1996).
É preciso destacar o quanto o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHBG),
neste período, favoreceu a troca de experiências e a circulação de idéias ao enviar seus
sócios para eventos científicos em países americanos e europeus - especialmente nas
1
No contexto francês, apenas em 1908, com o surgimento da antropologia cultural, o
método das medições físicas perdeu seu prestígio negando-se a definição das raças em
termos biológicos, rompendo-se com uma lógica que havia sustentado o racismo científico,
mesmo que ainda se aceitasse os discursos colonialistas.
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décadas de 1910 e 1920 quando vive uma certa efervescência ao superar a crise advinda
com a perda do apoio imperial. No contexto da primeira guerra renovam-se os interesses
pelas questões nacionais e sob a orientação de Afonso Celso, o IHGB redefiniria suas
funções, adquirindo uma postura mais acadêmica. Em 1914 realiza-se o I Congresso de
História Nacional, sugerido por Oliveira Lima, evento que obteve um enorme sucesso com
grande número de trabalhos apresentados, contando com nove sessões de trabalho. Ao
analisar suas características mais gerais, Guimarães (2006) destaca a influência da escola
metódica francesa e o privilégio dado à história política. Este I Congresso é especialmente
relevante devido não apenas ao papel do IHGB na formação e divulgação do pensamento
científico em voga no período, mas por ter entre suas sessões uma dedicada às “explorações
arqueológicas e etnográficas” que, segundo Guimarães (2006), eram especialidades
emergentes naquela ocasião.
Esta sessão compreendia estudos sobre a formação racial da população brasileira. A
maior parte de seus artigos versavam sobre os indígenas, tema já recorrente nas páginas da
revista do IHGB. Relevante, no entanto, é que a eles se somaram estudos sobre a imigração
da raça branca e sobre a raça dos africanos importados para o Brasil, oferecendo uma
oportunidade ímpar para se analisar a formulação das idéias de raça entre nossa elite
letrada. Caso exemplar, neste sentido, são os artigos publicados por Afonso Cláudio (1915)
e Braz do Amaral (1915) que se dedicam a discorrer sobre as tribos negras importadas e sua
distribuição regional no Brasil. A própria forma como se formula o problema já indica a
interlocução que se pretendia estabelecer com os debates científicos do período. D`Halloy,
por exemplo, explicaria em seu livro citado acima, que a subdivisão dos povos em tribos só
seria correta se fosse aplicado a “sociedades pouco civilizadas” porque tribo descreve
aquelas sociedades que tem apenas um tronco em comum. Seria, portanto, um erro citar,
por exemplo, tribos francesas2, embora fosse apropriado se falar em tribos africanas tal
como foi colocado neste Congresso do IHGB.
2
O autor vai definir de forma diferente tribos, povos e nações. Povo, por exemplo, é o
conjunto de homens que possuem as mesmas características naturais e a mesma língua. A
nação já remete para uma relação política, sendo o conjunto de pessoas que vivem sob as
mesmas leis e governo.
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No artigo de Afonso Cláudio é notável a dificuldade em se definir o conceito de
raça. Na sua opinião, a simples designação geográfica era imprópria, tendo em vista que
nem toda tribo, povo ou raça negra encontrava-se na África. A cor também não era um
critério preciso, pois, nem todos os africanos eram negros e nem todos os caucásicos eram
brancos. Largamente baseado nos argumentos de René Verneau, vai apontar a insuficiência
da etnografia e da geografia neste campo3. Como definir, então? Fixando o mento, o
prognatismo, a forma do nariz, a dolicocefalia ou a braquicefalia, os cabelos, os lábios?
Ainda não, na sua opinião. A única solução era proceder, como havia sugerido Verneau,
uma tipologia que desse conta dos “caracteres essenciais”, pensadas a partir das
características individuais ou sociais, sem descuidar da moral e da capacidade intelectual.
Sua hesitação é tamanha na definição destes “caracteres essenciais” que ao citar D´Halloy,
pondera que a informação etnográfica não deveria ser limitada às características físicas e
morais, mas deveria englobar as sociais, tais como a língua, a história, os costumes, a
cultura, a religião, etc. No entanto, quando toma a tarefa de descrever a “raça negra”
termina por enunciar detalhadamente características físicas associadas a considerações
sobre suas capacidades intelectuais. Se no contexto francês, fonte de suas inspirações, a
oposição entre características físicas e culturais estava envolta em ambigüidades, não
surpreende suas hesitações em definir a “raça negra”. Em sua leitura, não há uma hierarquia
explícita entre estes critérios classificatórios (ou ao peso relativo da natureza e da cultura
em suas elucubrações). A grande questão, no fundo, era destrinchar a relação entre uma
definição étnica e a possibilidade que lhe era supostamente correlata, de desenvolvimento
social. Ele afirmaria: “a base étnica desses povos explica o aniquilamento de suas
civilizações” e concluiria: “o estado em que encontramos os povos negros que ficam
entregues a si mesmos provam que não são aptos para transpor o nível da vida tribal. (...)
Sem a tutela de outros polidos eles não saberiam conservar quanto mais capitalizar os
benefícios da civilização”.
Vale assinalar que D´Halloy também faria uma descrição da raça e de sua localização
geográfica não restringindo os negros à África. Ele vai dividir a raça negra em dois ramos:
ocidental, compreendendo o sudeste e a parte meridional da África e oriental,
compreendendo a Oceania e o sudeste da Ásia. A cor também sofreria uma grande
variabilidade dependendo das mesclas observadas e de outros elementos.
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Frente a este quadro como responder a questão sobre a distribuição étnica dos
africanos no Brasil? Neste ponto, nosso autor abandona a tarefa de pormenorizar a origem
étnica e racial e faz alusões genéricas em relação à população negra. Ao pensar nas
diferentes regiões, vai descrever o impacto da mestiçagem, considerando além do negro, os
portugueses e os indígenas. Esta mistura é que explicará as diferentes características físicas
e morais, ou seja, vai descrever menos a distribuição das tribos africanas no Brasil do que
discorrer sobre o impacto dos negros - desta vez uma categoria homogênea - via
miscigenação na formação do tipo brasileiro.
Já Braz do Amaral, assustado com a complexidade da questão colocada no I
Congresso e ressaltando a ausência de dados, vai conjecturar sobre os portos africanos que
mais forneceram escravos para o Brasil (Serra Leoa, Angola, Guiné), ponderando a
dificuldade em discernir as tribos, tendo em vista, inclusive, os deslocamentos do tráfico no
interior da África. Vai destacar, ainda, os portos brasileiros mais importantes: Bahia, Rio de
Janeiro, Maranhão e Pará. Vai assinalar as dezesseis tribos mais traficadas para cá e que
mais concorreram para a formação do povo brasileiro. Ao descrevê-las vai citar sua
importância numérica, sua localização e importância na África, suas características físicas,
seus comportamentos, sua moral, suas aptidões, sua capacidade intelectual, sua língua,
religião, etc seguindo, de certa forma, os parâmetros presentes nos debates “científicos”.
Apesar de em alguns momentos assinalar aspectos positivos em suas descrições, no geral,
considerava que “se tratava de indivíduos em estado bárbaro, em sua totalidade”
entendendo a expressão bárbara “no sentido de selvagem”. A questão, mais uma vez, era
além de descrever estas etnias, analisar a influência delas no Brasil. Surpreendente,
inclusive, era que considerasse os africanos, em muitos pontos, superiores aos seus
descendentes, apontando a degeneração entre as gerações “por causas que ainda deviam ser
estudadas”. Conclui, por exemplo, que eram “dos Jejes e dos Angolas que derivavam os
maiores defeitos de crioulos e mestiços”. A importância destas considerações esta associada
com a forma como percebe nossa formação racial: “repare-se que a maior parte da
população do Brasil é de mestiços e que o sangue índio com branco é relativamente raro
(...) quase tudo o mais está aí demonstrado é mistura do sangue negro com índio e o
branco”.
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As hierarquias raciais são construídas, pois, sobre uma suposta inferioridade
africana, comprovada pela análise “científica” de seus “caracteres essenciais”. Incapazes de
promover a modernidade e a civilização deviam ser “tutelados” pelos “mais polidos” e,
especialmente no Brasil, devia ser analisada a transmissão desses “caracteres” aos
descendentes. A formação do “tipo brasileiro” será tema recorrente entre os intelectuais do
período4.
O único autor sulino que participa deste I Congresso é Campos Jr. (1915).
Preocupado com a formação do povo sul rio-grandense pouca importância dará para as
tribos africanas importadas, pois, consideraria que o habitante originário daquela localidade
era de origem portuguesa, restando discutir o peso dos açorianos e dos alentejanos em sua
composição, reafirmando a imagem de uma sociedade sulina branca. As classificações
raciais, nos moldes descritos acima, perdem aqui espaço para a defesa de uma
superioridade racial branca.
A classificação racial que buscava perceber a diversidade dos povos africanos,
hierarquizando suas principais características físicas e culturais, seria de certa forma
reorientada quando se enfatizou a questão da mistura entre as raças. Tratava-se de destacar
suas diferentes qualidades e a importância da miscigenação na definição de uma identidade
regional (e nacional). Merece ser citada, mesmo que brevemente, a obra de Oliveira Vianna
(1920). Ele apontaria, no caso especifico da descrição sobre a sociedade sul rio-grandense,
a pouca participação da raça negra, destacando, por outro lado, a qualidade superior das
raças que colonizaram esta localidade, tais como os paulistas (etnicamente superiores) e os
Neste aspecto, o autor está coadunado com formulações tais como as que se pode observar
em D`Halloy sobre a forma como vê a raça negra: “geralmente permanecem bárbaros ou
selvagens. Não formaram grandes estados estáveis e nem estenderam suas conquistas sobre
outras raças, mas, foram por elas conquistados”. Ao classificar as raças, deixava em aberto
a definição das fronteiras entre elas, tendo em vista os casos híbridos. Diferia, por exemplo,
os mestiços dos mulatos. Enquanto os primeiros eram resultado do cruzamento do branco
com o vermelho, os segundos eram resultado do cruzamento do branco com o negro.
Considerava que a divisão entre essas raças originais não era matemática, podendo haver
uma repartição desigual entre elas. A tendência dos híbridos, no entanto, era de voltar cada
vez mais para o primitivo. Braz do Amaral, portanto, ao fazer suas considerações sobre as
tribos africanas e seu impacto no Brasil estava tomando uma posição em debates científicos
como este aqui citado.
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açorianos (da ”mais legítima cepa ariana”). Ele será seguido por Salis Goulart (1927) que
também vai estar preocupado em descrever os primeiros povoadores do Rio Grande do Sul,
formado, desta vez, principalmente por açorianos e alemães (“elementos superiores”), com
pouca participação africana.
Interrogar-se sobre as raças e suas diversas taxonomias era um desafio importante
para esta elite letrada brasileira porque o peso dado a estas classificações repercutia na
forma como pensavam suas próprias identidades. Daí o esforço em ler e transitar entre os
debates científicos europeus e americanos, daí também as dificuldades com as descrições
das regiões brasileiras sob a luz da presença das “tribos africanas” ou da “raça negra”.
Considerar estas tensões levou-me, ainda, a uma outra interrogação: em que medida
a compreensão dos significados das hierarquias raciais deve ser buscada, primordialmente,
na análise de autores como Afonso Cláudio, Braz do Amaral, Campos Jr., Oliveira Vianna
ou Salis Goulart? Seriam elas suficientes? Holt (1995) pondera que há duas perspectivas a
serem consideradas: o ato da representação que marca a raça e a inscrição deste ato na
história. Isto remete a uma reflexão não apenas sobre os intelectuais e as relações políticas
de seu tempo, mas sobre a experiência vivida pelos sujeitos. Daí se depreende as ressalvas
feitas pelo autor em relação à história intelectual do racismo. Ele considera, por um lado,
suas contribuições tais como a capacidade de demonstrar a temporalidade das idéias e suas
raízes em processos históricos específicos, mas, por outro lado, chama a atenção para o
risco desta abordagem implicar na percepção do racismo como conseqüência de idéias más,
como produto do pensamento, ao demonstrar percursos intelectuais equivocados. Deixa a
descoberto, portanto, a relação entre as idéias e o mundo material, empírico. Para este
autor, o que os historiadores precisam é perceber como o global e o local, o social e o
individual se interconectam e se revelam nas experiências dos sujeitos, na vida cotidiana.
Siegel (2005, 2007), por outros caminhos, também ressalta a importância de se perceber os
historiadores (e por extensão, os intelectuais) como agentes ativos na construção do
conceito de raça e analisados não apenas no campo da história das idéias, mas como
sujeitos históricos.
Para investigar a relação entre as idéias destes intelectuais e o “mundo material”,
empírico, tal como assinalado por Holt, fomos buscar a interlocução destes autores com a
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comunidade afro-descendente, tal como ela se expressava em jornais como O Exemplo,
periódico porto-alegrense voltado para um público leitor negro, investido na luta contra o
preconceito e na defesa de direitos sociais. Ali chama a atenção o debate em torno do
registro da cor e de seus significados correlatos, o diálogo com as idéias “científicas” de
raça, a comparação com o caso norte-americano, para citar apenas estes aspectos.
A cor é uma representação ambígua. Em 1902, por exemplo, o jornal é questionado
quanto a seus propósitos. Os editores, então, proclamam todos os negros a defenderem o
jornal – sendo o registro da cor acionado como um elemento importante na construção de
solidariedades, de suas identidades. O mais curioso é que a crítica ao jornal é feita por um
“mulato”, “homem pardo”, assim descrito para destacar o fato de não ter o mesmo
compromisso que os “pretos” em relação a seus semelhantes (O Exemplo, 20/10 e
25/11/1902). Se aqui transparece uma crítica feita aos mulatos, em outra ocasião esta
dissensão ficaria mais explícita ao ser combinada com a competição no mundo do trabalho.
A preocupação de “raças, de cores, de nascimento, de posição social” seria questionada por
“degenerar em motivo de luta de classes”, pois, segundo o autor do artigo, queriam que as
nódoas que a roupa deles haviam adquirido no trabalho fossem aviltantes, que a cor de suas
epidermes fosse “o borrão do vício e mancha do crime”. “E contra isso o que devemos
opor?” perguntava-se. “Novos preconceitos? Selecionar aqueles que se aproximam mais da
cor branca dos outros que conservam em sua pureza a tintura de nossos avós comuns? Não.
Mil vezes não! O que precisamos (...) é de um apostolado livre de preconceito de traje, de
cor, de profissão” (O Exemplo, 05/06/1904). A importância da representação da cor vai
estar manifesta também na campanha que o jornal faria contra a distinção de cor (e de
classe) nas perseguições policiais, na vinculação entre crime e a cor dos acusados presentes
nas publicações do noticiário policial de outros periódicos. Em outra ocasião vai denunciar
uma discriminação mais difusa quando no bonde um preto e pobre poderia ter um
tratamento diferente de um indivíduo mais remediado e “incolor” (O Exemplo,
05/06/1904). Ainda no debate em torno da designação da cor, outro artigo buscaria definir a
palavra crioulo. O gramático consultado a vinculava a naturalidade, não vendo em seu uso
nenhuma discriminação. No jornal se refutava tal explicação, uma vez que “depois da
abolição”, todos eram iguais perante a lei não havendo mais “homens pretos, verdes ou
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amarelos” (O Exemplo, 31/07/1904). A liberdade era um elemento do próprio processo de
civilização brasileira. Em 1909, no entanto, esta questão volta a ser discutida com outros
significados. O mesmo jornal divulgava uma matéria onde “negro” havia sido citado como
sinônimo de africano, sentido criticado por um leitor. O articulista vai se defender dizendo
que esta era uma referência “suave”, afinal, com a mesma naturalidade que se chamava os
lusobrasileiros de galegos, se poderia chamar os africanos de negros. Afinal, a população
brasileira não tinha um tipo de raça definido e, diferentemente dos Estados Unidos, não
havia a separação entre pretos e brancos, portanto, a referência feita no jornal ao “negro” só
poderia ser ofensiva se tivesse sido usada para brasileiros porque remetia a escravidão. Só
neste caso se poderia ser contra o uso do vocábulo porque não havia sentido fazer
distinções entre brasileiros (O Exemplo,19/12/1909).
A cor, como vimos, era associada a significados diversos. Enquanto elemento
identitário poderia ser reclamado pelo jornal e seus leitores. Quando vinculado ao cativeiro
era rechaçado em nome dos direitos à cidadania garantidos por lei. Nestes casos, a
designação da cor era denunciada como preconceito e preconizava-se seu banimento. Mas
não havia apenas o debate em torno do preto e do branco, já que a questão da mestiçagem
era também criticada em nome de uma maior unidade entre os trabalhadores, a serem
considerados todos como brasileiros, mesmo que aqui e ali, ficasse, como vimos, a
descoberto a questão relativa aos direitos e lugar social dos africanos. Em 1909, aparece
ainda uma outra categoria, a dos “áfrico-brasileiros”, em artigo que repudiava a
“ignorância” que colocava em destaque “uma pseudo superioridade baseada no acidente da
cor” (O Exemplo,25/07/1909).
O jornal O Exemplo foi citado aqui de forma demasiadamente breve, apesar disso,
creio que podemos concluir que os debates em torno dos critérios classificatórios de cor e
raça não estavam ausentes de suas páginas. Como vimos acima, o peso da cor na definição
racial tendia a ser refutado e muitas vezes se evidenciava uma recusa em aceitar as idéias
preconizadas pelos textos “científicos” tais como os que citei acima. Se considerarmos que
a definição da cor (características fenotípicas), por exemplo, era um dos elementos mais
evidentes naquelas descrições “científicas” que buscavam discutir os caracteres naturais (ou
essenciais) dos povos e sua correlata barbárie, veremos que o jornal se mostrará a este
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respeito bastante combativo. Além disso, na vida cotidiana, as tensões em torno das
definições raciais entrecruzavam-se com outros elementos tais como a classe, a
nacionalidade e a luta pela cidadania. Estavam, portanto, no centro das disputas políticas e
sociais daquele período.
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