Maria Rita C. Jobim Silveira
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510594/CA
A Revista Civilização Brasileira:
Um Veículo de Resistência Intelectual
Dissertação de mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Literatura Brasileira. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Orientadora: Prof. Dra. Pina Maria Arnoldi Coco
Rio de Janeiro, março de 2007
Maria Rita C. Jobim Silveira
A Revista Civilização Brasileira:
Um Veículo de Resistência Intelectual
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510594/CA
Dissertação de mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Literatura Brasileira. Aprovada pela comissão
examinadora abaixo assinada.
Prof. Dra. Pina Maria Arnoldi Coco
Orientadora
Departamento de Letras, PUC-Rio
Prof. Dra. Rosana Kohl Bines
Departamento de Letras, PUC-Rio
Prof. Dra. Maura Ribeiro Sardinha
Escola de Comunicação, UFRJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do
Centro de Teologia e Ciências Humanas, PUC-Rio
Rio de Janeiro, 29 de março de 2007
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da
universidade.
Maria Rita Collor Jobim Silveira
Graduou-se em Comunicação Social com habilitação em Produção Editorial na
Escola de Comunicação da UFRJ e em Letras, com habilitação em Licenciatura
Português e Literaturas de Língua Portuguesa na PUC-Rio, em 2004. Trabalha
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desde 2004 no departamento editorial na Jorge Zahar Editor.
Ficha Catalográfica
Silveira, Maria Rita C. Jobim
A Revista Civilização Brasileira : um veículo
de resistência intelectual / Maria Rita C. Jobim
Silveira ; orientadora: Pina Maria Arnoldi Coco.
– 2007.
134 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Letras – Teses. 2. Revista Civilização
Brasileira. 3. Editora Civilização Brasileira. 4.
Silveira, Enio. 5. Ditadura. 6. Resistência
intelectual. I. Coco, Pina Maria Arnoldi. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
CDD: 800
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Ao meu pai, presença cada vez mais viva dentro
de mim, sem o qual nada disto seria possível;
À minha mãe, que foi muitas vezes mais decidida
e confiante nos meus projetos do que eu mesma,
minha principal incentivadora no mestrado;
Ao Herlon, meu companheiro de todas as horas,
que sempre me deu a força e o impulso para
seguir em frente.
Agradecimentos
Colaboraram muito para este trabalho, de maneiras diferentes mas igualmente
importantes, pessoas muito queridas. Agradeço imensamente o carinho e a paciência
que tiveram. Em especial, agradeço à minha madrinha Maysa, que me incentivou e
apoiou de todas as maneiras possíveis, e a Maura Sardinha, que me orientou durante a
graduação na ECO-UFRJ e continua me apoiando desde então. Esta dissertação e
todo o meu curso de mestrado não poderiam ter sido realizados não fosse o incentivo
de toda a equipe da Jorge Zahar Editor, especialmente Cristina e Mariana, que
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toleraram minhas ausências e permitiram que eu me dividisse entre o trabalho e as
aulas. Do mesmo modo, minha orientadora Pina Coco foi especialmente
compreensiva e me deu todo o apoio e a liberdade de que eu precisava para conciliar
essas duas ocupações.
Agradeço também imensamente a Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder,
Moacir Werneck de Castro, Ferreira Gullar e Eunice Duarte, que me deram um pouco
de seu tempo e partilharam comigo as experiências de uma época que não vivi. Por
fim, um agradecimento especial ao poeta Moacyr Felix, que sempre contribuiu para
guardar e engrandecer a memória de Ênio Silveira, de quem foi amigo e companheiro
por toda a vida, e que mesmo sem o saber foi fundamental para a realização deste
trabalho.
Resumo
A Revista Civilização Brasileira: um veículo de resistência intelectual
A Revista Civilização Brasileira, publicada de 1965 a 1968, foi um dos mais
importantes veículos de resistência intelectual contra a ditadura militar. A análise de
suas características gerais e de alguns de seus principais artigos literários demonstra a
ousadia na livre manifestação de idéias contrárias ao governo. Um breve histórico dos
eventos que levaram ao Golpe de 1964 e dos primeiros anos do regime oferece o
quadro para que se possa avaliar o destaque e a relevância da Revista naquele
contexto político, social e ideológico. Um resumo da atuação da Editora Civilização
Brasileira permite que se compreenda sua linha editorial e como pensava o homem
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que a dirigia, o editor Ênio Silveira. Com essa pesquisa, destaca-se a importância da
Revista, ressaltando seu papel na resistência intelectual e na abertura para novos
valores literários.
Palavras-chave
Revista Civilização Brasileira; Editora Civilização Brasileira; Ênio Silveira;
ditadura; resistência intelectual.
Abstract
The Revista Civilização Brasileira: a periodical of intellectual resistance
Published between 1965 and 1968, the Revista Civilização Brasileira was one
of the most important publications that offered intellectual resistance to the
dictatorship installed in Brazil. The analysis of its main features and of some of its
literary articles shows the boldness of the editors in exposing ideas contrary to those
imposed by the military government. The main events of the period, which led to the
military coup of 1964 and defined the new regime’s course, are briefly exposed, in
order to consider the relevance of the publication within that historical and political
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context. In addition, the history of the publishing house responsible for the periodical
is also considered, allowing one to understand its editorial line and the ideological
position of its publisher, Ênio Silveira. This research brings into light the importance
of the publication, stressing its role in the intellectual resistance against political
oppression and in presenting new literary values.
Key words
Revista Civilização Brasileira; Editora Civilização Brasileira; Ênio Silveira;
dictatorial regime; intellectual resistance.
Sumário
1. Introdução
12
2. O País
16
2.1. Antes do país, o mundo
16
2.2. Antes do Golpe
20
2.3. O Golpe
26
2.4. Depois do Golpe
29
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3. A Editora
42
3.1. A fundação e a Companhia Editora Nacional
42
3.2. Ênio Silveira
43
3.3. Vulgarizando o livro
45
3.4. Arejamento de idéias
47
3.5. O feijão e o sonho
51
3.6. A repressão
52
3.7. O albatroz
57
4. A Revista
61
4.1. O objeto
61
4.2. Direção e Conselho de Redação
66
4.3. Editoriais
68
4.4. Cadernos Especiais
75
4.5. Matérias não-assinadas
77
4.6. História da História Nova
82
4.7. Arte e cultura
88
4.8. Assuntos internacionais
90
4.9. A amplitude temática
92
4.10. A importância da RCB
92
5. Literatura e crítica literária
97
5.1. Panoramas de 1964: estabelecendo princípios
98
5.2. O momento literário
103
5.3. Artigos e ensaios
110
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5.4. Poesia
113
5.5. Notas de leitura
116
6. Conclusão
119
7. Referências
122
8. Anexos
124
Lista de anexos
1. Bilhete do presidente Castello Branco sobre a prisão do editor Ênio
Silveira
2. A primeira página do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1968: o AI-5
3. Notas sobre a RCB no Correio da Manhã
4. Poema de Thiago de Mello para Joel Rufino dos Santos
5. Exemplos de publicidade na RCB
6. Questionário “Poetas falam de poesia”
7. Capa da RCB n.01: o primeiro modelo
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8. Capa da RCB n.13: modernização dos elementos gráficos
9. Exemplos das charges de Jaguar na RCB
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Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.
Frederico García Lorca
1
Introdução
Escrever esta dissertação não foi tarefa fácil. Ela é a retomada de um
trabalho iniciado durante a graduação em Comunicação Social/ Produção editorial
na ECO-UFRJ e concluído em 2004. Agora, aprofundando e ampliando o estudo
realizado, é necessário reconhecer que ainda há muito a ser explorado: o assunto é
tão rico que permite múltiplas abordagens, sem se esgotar. O tema pelo qual me
decidi naquela época, e que decidi manter como foco durante o mestrado, a
Revista Civilização Brasileira, é absolutamente fascinante, mas a pesquisa sobre
ele envolveu inúmeras dificuldades. A maior delas, certamente, foi o contato com
uma história que me é particularmente tocante, pois envolve a figura de meu pai,
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falecido há onze anos. Sim, porque quem estava à frente da Revista Civilização
Brasileira era o editor Ênio Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira,
empresa que adotou uma linha especialmente combativa e atuante no período da
ditadura militar.
Houve momentos em que me senti assustada pela figura paterna,
amedrontada por uma aparição espectral que, paradoxalmente, era também o que
me movia a seguir em frente. Essa mesma imagem, porém, indicava o trabalho a
ser feito na tentativa de registrar uma parte do passado político e cultural deste
país, recolhendo dados, fatos e impressões que não deixassem cair no
esquecimento uma atividade editorial extremamente séria e comprometida com os
ideais de um homem.
Esse homem, que conheci bem no convívio doméstico, não se me havia
revelado, senão pelo que me chegava através de terceiros, em sua complexa e
apaixonante atividade profissional. Minha pesquisa para este trabalho foi,
portanto, uma maneira de me aproximar, de certa forma, de um lado de meu pai
que eu não conhecia. Com isso, inevitavelmente, o sentimento de sua perda volta
de modo cruel e pungente. Foi impossível evitar os insistentes pensamentos em
que se manifestava o desejo de tê-lo ao meu lado e de contar com sua ajuda e sua
orientação. Lendo os vários números da Revista, foram muitos os momentos em
que tive de interromper o trabalho porque meus olhos se enchiam de lágrimas ao
ver ali, revelando-se nas páginas amareladas que se esfarelavam sob o contato dos
13
meus dedos, traços do pai com quem gostaria de ter convivido mais e do brasileiro
que admiro por sua atividade editorial e sua postura política. E havia também,
naquelas páginas, traços de um Brasil passado, de características conjunturais e
estruturais tão determinantes na formação do que somos hoje como povo, como
sociedade. Ali estavam, portanto, traços do que me forma como indivíduo, num
plano pessoal e familiar, e do que me forma como cidadã, num plano cultural e
coletivo.
A Revista Civilização Brasileira foi possivelmente a publicação periódica
mais significativa no período que vai de 1965 a 1968. O Brasil vivia, após o
primeiro ano do Golpe, uma atmosfera política de incerteza e de repressão
crescentes. Notícias de torturas começavam a aparecer nos jornais, ainda não
totalmente calados pela censura. No embate de forças dentro da estrutura militar, a
linha dura ganhava cada vez mais espaço. A Editora Civilização Brasileira
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caracterizou-se então como “ponto de encontro” de intelectuais de esquerda – de
todos os matizes de esquerda. Era uma espécie de quartel-general da resistência,
ao lado do jornal Correio da Manhã. Sua produção fervilhava, e chegou a lançar
mais de um livro por dia útil. (FERREIRA, 1992, p.54)
A importância da Revista pode ser atestada pela análise de seu conteúdo,
pelo depoimento de intelectuais que a acompanharam de perto, pela repercussão
na imprensa e mesmo pela repressão que o governo militar julgou necessário
impor sobre ela. Com a promulgação do Ato Institucional número 5, o AI-5, os
editores foram obrigados a encerrar a publicação da Revista. Dez anos depois,
porém, sob o nome de Encontros com a Civilização Brasileira, a publicação é
retomada, indo até o início da abertura, na década de 80.
Este trabalho trata exclusivamente da Revista Civilização Brasileira, não
abordando sua retomada em Encontros. Essa concentração foi imposta por
limitações de tempo e de espaço. A dissertação tem, portanto, um foco específico
e um caráter eminentemente descritivo. Isso se justifica pela necessidade de
resgatar e trazer de volta à memória os traços físicos e de conteúdo que
configuram o periódico, antes de proceder a uma análise mais aprofundada.
Portanto, o que se faz aqui é iniciar um caminho, apontando possibilidades e
abrindo espaço para futuros estudos.
Para se compreender a importância da Revista, porém, é fundamental
compreender a situação política, social e econômica do Brasil nos anos de 1965 a
14
1968. Em função isso, o trabalho se inicia com um resumo das circunstâncias
nacionais e internacionais que tornaram possível o Golpe de 64 e das suas
conseqüências mais imediatas.
Em seguida, e também com intuito de situar o leitor, há uma síntese da
história da Editora Civilização Brasileira – como surgiu, como se desenvolveu, o
que marca sua linha editorial. São traços que ajudam a compreender a ideologia
por trás da Revista e que contribuem para que se tenha uma noção da coragem e
da coerência de Ênio Silveira e das pessoas que trabalhavam a seu lado.
O terceiro capítulo, dedicado à Revista propriamente dita, faz uma síntese de
suas características físicas e uma breve análise de seu conteúdo, considerando as
diversas seções em que se dividia o periódico e os vários temas por ele abordados.
Fica patente a constante preocupação em manter uma linha aberta a vozes
discordantes do governo e críticas à situação que o país vivia então, mas sem
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sectarismos partidários ou ideológicos. A polifonia resultante mostra o vigor do
pensamento de esquerda da década de 1960 no Brasil e no mundo, bem como a
mobilização dos intelectuais em defesa da liberdade de pensamento e de
expressão.
O último capítulo aborda especificamente a seção de literatura e crítica
literária da RCB, com o intuito de avaliar como a produção literária do país, tão
significativa naquele momento, se espelhava nas páginas do veículo em questão.
A grande discussão que dominava o meio artístico era a polêmica do engajamento
versus alienação. Isso fica bastante evidente no modo como os colaboradores da
Revista manifestavam-se sobre obras ficcionais, ensaísticas ou poéticas, fossem
nacionais ou estrangeiras. O espaço dedicado a assuntos do mundo editorial e
literário era considerável, o que é coerente com a posição do Conselho de
Redação e especialmente do editor Ênio Silveira em relação ao livro, visto como
instrumento de arejamento e enriquecimento das idéias e, portanto, como forma de
conscientização e libertação.
O resgate histórico feito nos dois primeiros capítulos não é só um modo de
introduzir o tema principal. Mais do que isso, revela a preocupação de renovar na
memória de hoje as marcas de um passado que não devemos esquecer. Na
introdução de A era dos extremos, Eric Hobsbawn chama a atenção para essa
estratégia do esquecimento que caracteriza a nossa época:
15
“A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que
vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos
fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase
todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem
qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.”
(HOBSBAWN, 1995, p.13)
É com a esperança de poder fazer uma pausa nesse “presente contínuo” e
restabelecer um vínculo com a experiência de gerações passadas que escrevi esta
dissertação. Que possamos nos reconhecer hoje em função do que fomos ontem.
A história pública de nosso país faz parte, inevitavelmente, da história particular
de cada um de nós. Conhecê-la em seus diferentes aspectos é, portanto, uma
maneira de conhecer melhor a nós mesmos. Não é, porém, um simples exercício
de auto-análise. Mais profundo do que isso, é um mergulho mesmo nas fundações
de nossa sociedade atual, ou, por que não, nas bases desta civilização brasileira
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em que vivemos.
2
O País
“O grande drama do Brasil é que ele não conhece a si mesmo.”
Glauber Rocha
Há quarenta anos, o Brasil ingressava em um período de ditadura militar
que marcaria sua história para sempre. O Golpe de 64 – que muitos insistiam em
chamar de “Revolução” – instaurou no país um governo militar que escondia
inúmeros conflitos e contradições profundas por trás da fachada de ordem e
hierarquia das Forças Armadas. Alternando momentos de endurecimento e de
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abrandamento da repressão civil, o novo regime terminou no início da década de
1980, com um saldo assustador de pessoas cassadas, presas, torturadas,
desaparecidas ou exiladas.
2.1.
Antes do país, o mundo
Para se compreender os acontecimentos que culminaram no Golpe de 1964
no Brasil, e a situação que daí decorreu, é preciso considerar como se configurava
o mundo na década de 1960. Em linhas gerais, pode-se dizer que o globo se
dividia em dois grandes blocos: o de países simpáticos ao comunismo, alinhados
sob a bandeira soviética, e o de países contrários a ele, tendo os Estados Unidos
no papel principal.
O confronto entre essas duas superpotências – Estados Unidos e União
Soviética – tornou-se, imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, uma
espécie de Terceira Guerra: a Guerra Fria. Baseados no medo mútuo e na firme
crença de que o inimigo poderia atacar a qualquer momento, os dois lados
embarcaram em uma sanha armamentista. Durante cerca de quarenta anos, a
possibilidade de um ataque destruidor pareceu diária e concreta.
17
Por que fazer uma volta tão grande no tempo para se falar do Brasil da
década de 60? Por uma razão muito simples. A Guerra Fria definiu os novos
contornos do mundo, dividindo-o em dois grandes blocos. Nesse precário
equilíbrio de forças, cada pólo tentava conseguir mais adeptos para o seu lado. O
resto do mundo tornou-se então uma grande zona de influência disputada pelas
duas superpotências. A Doutrina Truman, adotada pelos Estados Unidos em
março de 1947, deixava essa intenção bem clara: “(...) a política dos Estados
Unidos deve ser a de apoiar os povos livres que resistem a tentativas de
subjugação por minorias armadas ou por pressões de fora”. (HOBSBAWN, 1995,
p.226) Nesse jogo, o inimigo era pintado com as cores mais feias possíveis. Todas
as estratégias de dominação eram postas em prática para garantir mais “aliados”.
E o Brasil, sem dúvida, foi um dos países envolvidos nessa disputa. O “monstro
vermelho” do comunismo, que comia criancinhas e queria ver o fim de toda
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liberdade e de tudo o que se considerava bom e justo, era uma imagem
constantemente usada para garantir a influência norte-americana no cenário
político e econômico brasileiro. Em 1964: Golpe ou Contragolpe?, o historiador
Hélio Silva aponta a conexão entre o Golpe dos militares brasileiros e a Guerra
Fria:
“Depois da Segunda Guerra Mundial e da bipolarização do poder, marcada
pela divergência fundamental entre duas potências, não era mais admissível,
no mundo capitalista, um sistema de segurança que não tivesse como último
elemento de apoio o poder militar dos Estados Unidos. (...) A hegemonia de
uma superpotência exige esferas de influência que são também sistemas de
dominação econômica, porque segurança e desenvolvimento constituem
teses inseparáveis. (...) Março de 64 é um episódio da guerra fria”. (SILVA,
1975, pp.33-34)
A interferência norte-americana nos rumos sociais e políticos do Brasil é
inegável. Sua participação no Golpe de 64 foi bastante ativa. Há registros
indicando que o presidente Lyndon Johnson manteve-se constantemente
informado pela embaixada americana a respeito dos acontecimentos que levaram
à deposição de João Goulart. Todos os esforços para manter o novo regime dentro
dos limites mínimos da aparência de legalidade foram coordenados por agentes
norte-americanos, a fim de que os EUA pudessem reconhecer o novo governo
como legítimo tão logo fosse possível.
18
A política de Goulart feria frontalmente os interesses americanos, como se
verá mais adiante. As vantagens de instaurar no poder forças de direita que se
alinhassem política e economicamente aos Estados Unidos eram enormes. O
Departamento de Estado dos EUA chegou a programar o envio de auxílio para as
tropas revolucionárias. O porta-aviões Forrestal aportaria perto de Santos e
disponibilizaria armas e combustível no caso de haver resistência. O plano ficou
conhecido como Operação Brother Sam.
No livro A ditadura envergonhada, o jornalista Elio Gaspari relata em
detalhes a participação americana no processo de instauração da ditadura militar
no Brasil: “O governo americano estava pronto para se meter abertamente na crise
brasileira caso estalasse uma guerra civil.” (GASPARI, 2002, p.101) O presidente
Johnson, em uma conversa telefônica com o subsecretário de Estado George Ball,
chegou a afirmar: “Acho que devemos tomar todas as medidas que pudermos e
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estar preparados para fazer tudo que for preciso, exatamente como faríamos no
Panamá – desde que seja viável. [...] Eu seria a favor de que a gente se arrisque
um pouco”. (Id., ibid.)
Muito antes de Gaspari apresentar essa farta documentação ao público,
porém, o historiador Hélio Silva já denunciava, com base em informações “de
fonte reservada”, a extensão da participação norte-americana nos preparativos
pré-Golpe:
“No trabalho pessoal de pesquisa, obtive a informação, de fonte reservada,
de que elementos destacados do movimento haviam sido procurados por um
estranho personagem, que se dizia grego e representante de um organismo
internacional de combate ao comunismo, logo identificado como a CIA.
Oferecia armas e tudo o que fosse necessário. Em prosseguimento, teria
havido novos contatos, já com o adido militar norte-americano, o então
coronel Vernon Walters e, finalmente, com o próprio Embaixador Lincoln
Gordon. Às vésperas da revolução, uma esquadra americana estava em
condições de alcançar a costa brasileira para eventual auxílio dos
revolucionários, sob a motivação de prestar assistência aos súditos norteamericanos e aos interesses americanos, como foi feito, mais tarde, em São
Domingos. Tais entendimentos foram feitos sob a declaração de que não se
tratava de intromissão em nossa política interna, mas de apoio ao combate
ao comunismo”. (SILVA, 1975, p.27)
Tratando do papel dos Estados Unidos na instalação das ditaduras latinoamericanas, o escritor Otto Maria Carpeaux não economizava no tom crítico e
19
irônico em suas crônicas no Correio da Manhã, reunidas, em 1965, no livro A
batalha da América Latina, publicado pela Civilização Brasileira. Em uma delas,
“Inferno, XXIII”, comenta a notícia de que os representantes dos EUA, na
Conferência Interamericana no Rio de Janeiro, proporiam “uma resolução contra
os golpes militares e outros”. Afirma então Carpeaux:
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“É do domínio público que alguns dêsses golpes – só falamos de tempos
recentes – foram diretamente instigados pelo govêrno dos Estados Unidos
(...). Também é do domínio público que nenhum dos govêrnos oriundos de
golpes poderia manter-se no poder durante 24 horas, se os Estados Unidos
lhe retirassem seu apoio. Os golpes militares – e outros, como diz a notícia
– e a existência de govêrnos golpistas na América Latina são, portanto, de
responsabilidade do govêrno norte-americano. Provas suplementares são os
abundantes favores econômicos concedidos pelos govêrnos golpistas a
firmas particulares norte-americanas, espécie de pagamento às custas do
país golpeado”. (CARPEAUX, 1965, p.61)
Em outras crônicas, Carpeaux mencionava a frase do Subsecretário de
Estado para Assuntos Interamericanos, sr. Thomas C. Mann, que afirmava: “A
estabilidade é mais importante que a democracia.” (Id., p.98) Corajoso, Carpeaux
iniciou assim outro de seus textos: “O intervencionismo dos Estados Unidos é,
sem favor, a maior tolice político-diplomática dos últimos tempos.” E terminava:
“Chega de tolices. Aviso para o presidente Lyndon Johnson e não sòmente para o
presidente Lyndon Johnson: não se governa nações com a mentalidade de um
delegado de polícia política.” (Id., pp.152-153)
O embaixador americano no Brasil, sr. Lincoln Gordon, foi outra peçachave nas manobras que levaram à deposição de Goulart. Em O golpe começou
em Washington, também publicado pela Civilização Brasileira em 1965, Edmar
Morel afirma que Gordon, “o mais ativo de todos os embaixadores ianques que já
passaram pelo Brasil”, “embarcou, nessa ocasião [quando se discutia a compra da
empresa americana Bond and Share, que já havia sido encampada pelo Rio
Grande do Sul], para os Estados Unidos e, dentro de um plano previamente
estabelecido, declarou que o nosso governo era dominado por comunistas (...)”.
(MOREL, 1965)
A compra da Bond and Share, empresa do grupo American Foreign Power,
por um preço que se revelou depois excessivo (US$135 milhões, quando o valor
estimado por uma comissão técnica brasileira era de US$57 milhões) é mais uma
20
prova da subserviência brasileira à pressão e aos interesses dos Estados Unidos, e
exemplifica os “favores econômicos” mencionados por Carpeaux.
A participação americana no Golpe foi importantíssima, mas é fundamental
que fique bem claro que não foi por sua causa que se deu o levante. Os Estados
Unidos apenas se aproveitaram de uma situação que lhes era favorável. Foram
coadjuvantes, deixando os papéis principais para militares brasileiros de altas
patentes. A motivação para o Golpe vem de fatores diversos, e é fruto da
complexidade de um país de dimensões continentais dividido entre o agrário e o
urbano, o moderno e o arcaico. É isso que se verá a seguir.
2.2.
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Antes do Golpe
O presidente deposto, João Goulart, assumira o cargo em 1961, após a
renúncia do presidente Jânio Quadros, que governara por apenas sete meses.
Nessa época, o Brasil viveria o primeiro ensaio de Golpe. Jango, como era
conhecido o vice-presidente eleito após o fim do mandato de Juscelino
Kubitschek, estava em visita oficial à China na ocasião da renúncia. Seu regresso
foi ameaçado pelo que ficou conhecido como “Operação Mosquito”, que setores
radicais da Aeronáutica estariam organizando com vistas a derrubar o avião em
que o vice-presidente viajava para tomar posse em Brasília. Os ministros militares
recusavam-se a deixá-lo assumir. O país inteiro viveu dias de angústia diante do
impasse, que foi solucionado com a alteração da Constituição para permitir a
implantação do parlamentarismo. João Goulart assumiria como um fantoche. O
poder ficaria nas mãos do primeiro-ministro, o mineiro Tancredo Neves, e do
Congresso.
É preciso esclarecer que nesse período as eleições para presidente e para
vice eram independentes, ou seja, não havia uma chapa unificada. Por isso foi
possível haver, na história do Brasil, um presidente e um vice tão diferentes
quanto Jânio Quadros e João Goulart. Jânio era um demagogo, que seguiu a onda
de moralização populista usando a vassoura como símbolo de campanha. Seu
lema era “varrer a corrupção” e o “lixo” ideológico do país. Jango fazia parte do
que os eleitores de Jânio consideravam “lixo”.
21
Eleito com mais de cinco milhões e meio de votos, o maior índice de
aprovação conseguido até então por um presidente brasileiro, Jânio teve uma
atuação breve e pitoresca à frente da nação. Algumas de suas medidas que
mereceram destaque nos jornais da época foram a proibição das brigas de galos, o
veto aos maiôs nos concursos de beleza e a exigência de que as corridas de
cavalos se realizassem apenas aos domingos. Além de causar surpresa com essas
medidas, Jânio conseguiu desagradar a direita que o apoiava ao reatar as relações
diplomáticas com a União Soviética e ao conceder a Ordem do Cruzeiro do Sul a
Ernesto “Che” Guevara. Os motivos de sua renúncia nunca foram suficientemente
esclarecidos. Há a tese de que fazia parte de uma trama para retornar ao cargo
com poderes absolutos. Evidentemente, isso não se confirmou. De qualquer
forma, Jânio se dizia incapaz de governar sem ter o apoio do Congresso. Chegou a
afirmar: “Não posso governar este País com um Congresso de imorais.” (Jornal
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do Brasil, 27 ago. 1961, p.1)
O fato é que sua renúncia levou o país à iminência de uma guerra civil. Se
uma parcela de radicais de direita tentava impedir o regresso e a posse de Jango,
as forças legalistas, especialmente as concentradas no Rio Grande do Sul e
representadas pelo governador daquele estado, Leonel Brizola, prometiam lutar
para que o vice-presidente assumisse como previa a lei. Como já se disse, a
solução do embate pela legalidade foi a adoção do sistema parlamentarista, que
acalmava um pouco os ânimos exaltados dos que temiam a figura de João Goulart
por sua identificação com a esquerda e com o que indistintamente se chamava de
“o perigo comunista”.
Goulart fora ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, mas um
manifesto de coronéis o tirara do cargo em 1954. Suas realizações como ministro
incluíam o aumento de cem por cento do salário mínimo e a reorganização dos
sindicatos para aumentar a influência do governo sobre a classe operária. Nas
eleições presidenciais de 1960, candidatou-se a vice na chapa do marechal
Henrique Teixeira Lott, pela coligação PTB-PSD (Partido Trabalhista Brasileiro e
Partido Social Democrata). Lott perdeu por uma enorme diferença de votos, mas
seu vice foi eleito. Surgia então a dupla Jan-Jan (Jânio-Jango). Se ambos eram
populistas, Jango era mais consistentemente de esquerda e isso assustava a elite. O
golpe parlamentarista imposto a Jango durou pouco. Ele se aliou às esquerdas e
conseguiu realizar, em janeiro de 1963, um plebiscito sobre a volta do
22
presidencialismo. Ganhou com 9,5 milhões de votos contra 2 milhões dados ao
parlamentarismo.
Tendo os poderes presidenciais nas mãos, Goulart deu início a um governo
de certa forma contraditório. Se por um lado procurava aliar-se ao movimento
sindical e aos setores reformistas, por outro tentava impor uma política de
contenção salarial para estabilizar a economia, segundo a orientação do FMI. Seus
projetos de reformas de base, porém, custaram-lhe o aumento das forças de
oposição. Goulart perdeu o apoio da burguesia quando começou a lançar as bases
para realizar a reforma agrária e implementou uma lei regulando a remessa de
lucros para o exterior. Limitou o capital estrangeiro, nacionalizou empresas de
comunicação e reviu concessões para a exploração de minério. Com isso, atraiu a
ira das forças estrangeiras, principalmente as norte-americanas, que cortaram
crédito para o Brasil e interromperam as negociações da dívida externa.
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A agitação política era crescente, com greves e outras manifestações
públicas. A sociedade polarizava-se e dividia-se em siglas: à esquerda, apoiando o
presidente, a UNE (União Nacional dos Estudantes), a CGT (Comando Geral dos
Trabalhadores) e as Ligas Camponesas; à direita, o IPES (Instituto de Pesquisa e
Estudos Sociais), o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e a TFP
(Tradição, Família e Propriedade), organizações criadas entre 1950 e 1960 para
defender os valores “liberais”, “modernizadores” e “democráticos” no país. Eram
órgãos que representavam os interesses dos setores industriais e financeiros e que
se colocavam frontalmente contra a política econômica e social de Jango. O
Congresso, de maioria conservadora, bloqueava as iniciativas reformistas do
presidente. Goulart, porém, parecia cultivar o choque, o que permitia supor que
desejava atropelar o processo de sucessão e alterar a Constituição para permitir
que concorresse à reeleição. (GASPARI, 2002, p.49)
“A agitação manifestada nas greves, nas reivindicações de direitos, de
salários que tumultuaram a gestão Jango Goulart denunciava o conflito
profundo que existia entre as massas urbanas, sem estruturação definida e
com lideranças populistas, e a estrutura de poder que ainda controlava o
Estado. Enquanto os líderes populistas reivindicavam rápida modernização
do País, (...) a classe dominante tradicional usou a pressão populista como
espantalho para submeter ao seu controle os novos grupos patrimoniais,
surgidos com a industrialização. É este conflito de poder que ocupa o centro
da luta política e torna impraticável a execução de qualquer programa por
parte dos dirigentes. A existência desse conflito fundamental ameaça, por
23
fim, o próprio funcionamento das instituições básicas em que se apóia o
poder. Assim, a intervenção militar teria de ocorrer, mais cedo ou mais
tarde, dependendo das condições mais ou menos favoráveis ao golpe”.
(SILVA, 1975, pp.26-27)
A crise agravava-se. No dia 13 de março de 1964, Goulart provocou a
oposição realizando um grande comício no Rio de Janeiro, em frente à Central do
Brasil, ao lado do Ministério da Guerra. No palanque, em companhia de sua bela
esposa, a Sra. Maria Teresa Goulart, e diante de cerca de 130 mil pessoas, Jango
anunciou a desapropriação de terras ociosas às margens de rodovias e açudes
federais e a encampação das refinarias particulares de petróleo.
A resposta das forças conservadoras foi rápida. No dia 19 de março, em São
Paulo, realizou-se a famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
reunindo cerca de 200 mil pessoas. Organizado por grupos de direita e pelos
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setores conservadores da Igreja Católica, esse tipo de Marcha depois se repetiu em
outras cidades brasileiras. Defendendo as “instituições democráticas” e
repudiando o avanço do comunismo em solo nacional, os manifestantes
carregavam faixas ameaçadoras e irônicas como “Tá chegando a hora de Jango ir
embora” e “Vermelho bom, só batom”. (GASPARI, 2002, p.49)
Sobre as condições sociais que preparam o terreno para o golpe da direita, o
historiador Hélio Silva, em sua perspicaz análise do Golpe, afirma:
“Março de 64 não se esgota na ação militar. Há toda a mobilização de uma
sociedade, de suas forças progressistas e conservadoras, na conquista de
novos horizontes ou na defesa de seus direitos e privilégios. Antes do
levante de 31 de março, há estruturação de forças econômicas e sociais, nas
campanhas do IBAD, do IBES [sic] e do GAP, para a constituição de um
Congresso que votasse as suas leis, e a formação de uma mentalidade,
conformada em suas doutrinas. A essa preparação, que custou trabalho,
inteligência e dinheiro, seguiu-se larga preparação da opinião pública,
através da utilização dos meios de comunicação de massas, imprensa, rádio,
televisão, culminando nas maciças demonstrações das Marchas da Família”.
(SILVA, 1975, p.34)
Algumas crises militares, ainda que de pequeno porte, haviam contribuído
para levar a situação a esses termos. Em maio de 1963, o governador do Rio
Grande do Sul, Leonel Brizola, ofendera o general Antonio Carlos Murici,
comandante da Infantaria Divisionária da 7ª. Divisão de Infantaria de Natal, em
um discurso extremamente violento proferido no Rio Grande do Norte. No dia
24
seguinte, oficiais de todo o país enviaram telegramas ao ministro da Guerra,
general Amauri Kruel, expressando sua solidariedade a Murici. Era um ótimo
incremento à conspiração antigovernista que começava a se fortalecer.
Em setembro do mesmo ano ocorreu, em Brasília, a Revolta dos Sargentos.
Controlado em poucas horas, o movimento de cerca de quinhentos sargentos que
protestavam contra uma decisão do Superior Tribunal Federal serviu apenas para
reforçar, junto à alta oficialidade, o sentimento de repúdio ao que consideravam
uma baderna promovida pelos centros sindicais. Afinal, a insurreição dos
sargentos representava uma ameaça à rígida ordem hierárquica mantida pela
instituição militar como um de seus principais pilares. Mesmo militares aliados ao
governo viam com maus olhos esse tipo de agitação.
A chamada Revolta dos Marinheiros, já em março de 1964, foi talvez,
dessas pequenas “crises militares”, a mais significativa. Teve início durante a
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Semana Santa, quando o presidente descansava em sua fazenda em São Borja, no
Rio Grande do Sul. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, mandara prender doze
graduados que haviam transformado a Associação de Marinheiros e Fuzileiros
Navais em uma organização monitorada pelo PCB. Reunidos no Sindicato dos
Metalúrgicos do Rio de Janeiro, os marinheiros exigiam a suspensão da punição.
Por quatro dias recusaram-se a abandonar o lugar, e chegaram a receber o reforço
de uma tropa de fuzileiros que, enviada para desalojá-los, acabou por se unir aos
rebelados. O líder da rebelião era o marinheiro José Anselmo dos Santos,
nacionalmente conhecido como Cabo Anselmo. (Tudo indica que o Cabo
Anselmo fosse um agente infiltrado da CIA, inclusive o tratamento privilegiado
que recebeu quando foi preso, logo após o Golpe. No entanto, o cabo afirma que
só mudou de lado depois de 1971.) A solução dada pelo governo à crise provocou
a hostilidade dos oficiais de todas as armas, indignados pela afronta à disciplina
militar: os rebelados foram anistiados e o ministro Sílvio Mota foi substituído pelo
almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues, um oficial da reserva próximo do
Partido Comunista.
A oficialidade, a essa altura, era contida por apenas um tênue fio de
legalidade. Esse fio foi rompido quando João Goulart compareceu, na noite de 30
de março de 1964, a uma cerimônia que comemorava o aniversário da associação
de subtenentes e sargentos da Polícia Militar, no Automóvel Clube do Rio de
Janeiro. Os oficiais esperavam que Goulart repreendesse os subalternos. O que
25
aconteceu foi exatamente o contrário. Num discurso inflamado, Jango criticou os
que insistiam em estimular a crise entre o governo e as Forças Armadas:
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“(...) Quem fala em disciplina, senhores sargentos, quem a alardeia, quem
procura intrigar o presidente da república com as Forças Armadas em nome
da disciplina, são os mesmos que, em 61, em nome da disciplina e da
pretensa ordem e legalidade que eles diziam defender, prenderam milhares
de sargentos. (...) Se os sargentos me perguntassem – estas são as minhas
últimas palavras – donde surgiram tantos recursos para campanha tão
poderosa, para mobilização tão violenta contra o governo, eu diria,
simplesmente, sargentos brasileiros, que tudo isto vem do dinheiro dos
profissionais da remessa ilícita de lucros que recentemente regulamentei
através de uma lei. É do dinheiro maculado pelo interesse enorme do
petróleo internacional.” E terminava de modo quase panfletário: “Não
admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe das
reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos o Congresso
fechado. Ao contrário, queremos o Congresso aberto. Queremos apenas que
os congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares. (...)”
(GASPARI, 2002, pp.63-65)
A ida do presidente ao Automóvel Clube e o tom de seu discurso
constituíram uma provocação de tal ordem às altas patentes militares que é quase
impossível imaginar que Jango não intencionasse o agravamento da crise. Na
agenda presidencial, uma série de manifestos estava já programada para os
próximos dias, em outras cidades importantes do país. O que Jango planejava era
uma espécie de “contra-golpe”. Contando com o apoio de seu dispositivo militar e
das forças sindicais, pretendia pressionar o Congresso para aprovar um pacote de
reformas e a mudança nas regras da sucessão presidencial. Àquela altura, estava
claro que haveria um golpe, só não se sabia de que lado viria. (Id., p.51)
O grande problema foi que o dispositivo militar com que Goulart contava
estava se esfacelando aos poucos. Diante da pressão de nomes influentes da alta
oficialidade, pouco a pouco os militares simpáticos ao governo foram mudando de
lado. A situação era extremamente tensa; qualquer posição era bastante arriscada,
uma vez que, às vésperas do Golpe, ainda não se podia prever as conseqüências
que este teria. Manter-se aliado ao governo poderia significar a sujeição a penas
diversas quando este fosse derrotado. Por outro lado, se o governo vencesse e as
forças conspiratórias fossem reprimidas, o papel de traidor também não seria nada
agradável. Muitos esperaram em cima do muro o quanto puderam. Por total
inércia do presidente, as forças legalistas não conseguiram se organizar a tempo, e
26
quando viram, já era quase impossível reunir apoio suficiente para combater as
manobras “revolucionárias”.
Laurence Hallewell, em seu extenso trabalho sobre o livro no Brasil, faz um
excelente resumo da situação:
“Quer devido a pressões externas – os Estados Unidos estavam inquietos,
não apenas com a política externa independente do Brasil, mas ainda mais
com a perspectiva iminente de um atraso de pagamento de sua dívida
externa –, quer à inépcia do governo, quer ainda porque Goulart
considerasse que o estabelecimento do caos fosse uma preliminar necessária
a um golpe que ele próprio estava planejando, o fato é que o país atingira no
início de 1964 um tal estado de desespero que tornava inevitável a
ocorrência de mudanças políticas radicais.” (HALLEWELL, 1985, p.462)
2.3.
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O Golpe
Um dos principais articulistas do Golpe de Abril foi o chefe do Estado
Maior do Exército, general Humberto de Alencar Castello Branco, ao lado dos
generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Castello Branco assinava a
Circular Reservada enviada no dia 20 de março de 1964 a todos os oficiais do
Exército, alertando para o perigo que as novas medidas presidenciais
representavam. Essa circular fazia parte da intensa campanha para desmoralizar o
presidente e preparar os espíritos para a “revolução”.
O primeiro passo concreto no sentido da derrubada de Jango, porém, foi
dado em Minas Gerais. Naquele estado, o poder civil, nas mãos do governador e
banqueiro José de Magalhães Pinto, estava em estreita harmonia e articulação com
os generais que planejavam a insurreição. Eles eram Carlos Luiz Guedes,
comandante da Infantaria Divisionária/4, e Olympio Mourão Filho, da 4a. Região
Militar e da 4a. Divisão de Infantaria. Ambos já estavam a ponto de serem
removidos de seus cargos e relegados a atividades menos expressivas.
Precisavam, portanto, agir rapidamente. E foi o que Mourão fez: na madrugada de
30 para 31 de março, pôs suas tropas em marcha na direção do Rio de Janeiro e de
Brasília. Sua precipitação chegou a assustar o general Castello Branco, que, por
telefone, ainda tentou conter o movimento. Mas já era tarde. Mourão já conseguira
27
o apoio do general Antonio Carlos Muricy. As tropas mineiras se concentrariam
na divisa de Rio e Juiz de Fora esperando o levante fluminense.
A precipitação de Mourão, de fato, possibilitou uma tentativa de
resistência por parte de dispositivo militar fiel ao governo. Tropas foram enviadas
do Rio de Janeiro e de Petrópolis para enfrentar as tropas rebeldes na divisa com
Juiz de Fora. Por um momento, os conspiradores pareciam recuar. O general
Guedes demorava em mostrar alguma ação efetiva em Belo Horizonte, de modo
que Mourão decidiu continuar a agir sem esperar por ele.
Os oficiais ainda ligados a Jango pressionavam-no a lançar um manifesto
expressando seu repúdio à ameaça “comuno-sindical” de modo a reconquistar a
confiança das Forças Armadas. (GASPARI, 2002, p.76) Em suma, queriam uma
declaração do presidente garantindo que se afastaria da esquerda e daria uma
decisiva guinada à direita. A alternativa de Jango seria ele mesmo realizar seu
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golpe, fechando o Congresso e aliando-se às forças sindicais e às tropas não
graduadas, expurgando uma parte da oficialidade. Jango vacilou e as forças
esquerdistas não se manifestaram. Em uma última tentativa, na noite do dia 31 de
março, o general Amauri Kruel, então comandante do II Exército, em São Paulo,
telefonou para o presidente pedindo-lhe que rompesse com a esquerda. Goulart
afirmou que ceder às exigências feitas equivaleria a capitular e a tornar-se um
mero “presidente decorativo”. Encerrou a conversa num tom dramático:
“General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições,
eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique
com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente”. (Id.,
p.88)
Kruel relutava em trair o presidente, e declarava-se “fiel à Constituição”,
mas queria livrar a pátria do “jugo vermelho” pressionando Goulart a se afastar da
esquerda. (Id., p.90) Não conseguiu, e pouco a pouco toda a base militar do
governo foi mudando de posição. As tropas enviadas para combater os rebeldes
em Juiz de Fora haviam mudado de lado e se associado aos que deviam reprimir.
Assustado, Jango decidiu deixar o Rio de Janeiro e voar para Brasília. Lá,
percebeu que contava com ainda menos apoio, e foi então para Porto Alegre. Dali
seguiria para sua fazenda, em São Borja, e desta para o exílio no Uruguai.
28
Antes mesmo de Goulart deixar o solo nacional, o presidente do Congresso,
senador Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República.
Como presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli foi empossado em
caráter provisório. Enquanto isso, a vanguarda da rebelião debatia para decidir
quem assumiria o cargo. O general Arthur da Costa e Silva expediu um
comunicado em que se auto-intitulava “Comandante do Exército Nacional”.
Evidentemente, desejava também assumir o comando do país, mas teve de ceder à
indicação dos líderes civis e militares do movimento, que optaram pelo general
Castello Branco. Costa e Silva acabou por assumir a pasta de ministro da Guerra.
Como se pode perceber, o movimento revolucionário não tinha linhas bem
definidas de governo, não tinha um planejamento coerente, unificado. Isso fica
claro na breve mas esclarecedora análise que o historiador Celso Castro faz do
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movimento e de sua falta de organização:
“A falta de resistência ao golpe não deve ser vista como resultado da derrota
diante de uma bem-articulada conspiração militar. Foi clara a falta de
organização e coordenação entre os militares golpistas. Mais do que uma
conspiração única, centralizada e estruturada, a imagem mais fidedigna é a
de “ilhas de conspiração”, com grupos unidos ideologicamente pela rejeição
da política pré-1964, mas com baixo grau de articulação entre si. Não havia
um projeto de governo bem definido, além da necessidade de se fazer uma
“limpeza” nas instituições e recuperar a economia.” (CASTRO, in
http://www.cpdoc.fgv.br, em 30 jul. 2004)
Nas páginas do Correio da Manhã começava a aparecer o esboço de alguma
resistência. Eram, por exemplo, as crônicas de Carlos Heitor Cony, depois
reunidas no livro O ato e o fato, publicado pela editora Civilização Brasileira
ainda em 1964. No dia 2 de abril, relatava ele a movimentação nas ruas e o apoio
da população de classe média aos rebeldes:
“Nessa altura, há confusão na Avenida nossa Senhora de Copacabana, pois
ninguém sabe ao certo o que significa ‘aderir aos rebeldes’. A confusão é
rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural
tendência da humana espécie é aderir. (...) Das janelas, cai papel picado.
Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória.
Um cadillac conversível pára perto do ‘Six’ e surge uma bandeira nacional.
Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva.
(...) Recolho-me ao sossego e sinto na bôca um gôsto azêdo de covardia”.
(CONY, 1964, pp.2-3)
29
2.4.
Depois do Golpe
Uma das primeiras providências tomadas pelo novo governo militar foi
fazer o expurgo dos que se colocavam contra ele. Esse era um dos poucos pontos
em que os novos líderes concordavam. De resto, reinavam inúmeras divergências,
e a proclamada unidade militar ainda estava longe de ser atingida (se é que em
algum momento o foi).
Depois da reunião dos civis e militares que constituíam a cúpula do novo
regime, em que se vetou o nome de Costa e Silva para a presidência, Castello
Branco foi eleito para o cargo pelo Congresso. Sua promessa foi de “entregar, ao
iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo em
eleições livres, uma nação coesa”. (apud GASPARI, 2002, p.125) O que entregou,
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e apenas em 1967, foi “uma nação dividida a um sucessor eleito por 295 pessoas”.
(Id., ibid.)
O Ato Institucional publicado então não foi numerado, pois se supunha que
seria o único. Como se sabe, não o foi. Com onze artigos, o Ato limitava os
poderes do Congresso e do Judiciário, expandindo os do Executivo. Garantia
ainda ao novo presidente um prazo de sessenta dias para cassar mandatos e
cancelar direitos políticos por dez anos e de seis meses para demitir funcionários
públicos civis ou militares.
Comentando o Ato Institucional, Cony escreveu e publicou no Correio da
Manhã a crônica “O Ato e o Fato”. Dizia:
“E assim é que o Alto Comando Revolucionário, sentindo que suas raízes
não são profundas, impotente para realizar alguma coisa de útil à Nação –
pois tirante a deposição do sr. João Goulart não há conteúdo nem forma no
movimento militar – optou pela tirania. Lendo o preâmbulo do Ato tive
repugnância pelos seus redatores. (...) Foi simples e tiranicamente imposto a
uma Nação perplexa, sem armas e sem líderes para a reação. Foi
desprezivelmente imposto a um Congresso emasculado”. (CONY, 1964,
pp.15-16)
E concluía, comparando a situação brasileira com a da Argentina:
30
“(...) os militares da Argentina não escondem seus apetites. Não usam o
terço ou a bandeira do anticomunismo para justificarem a tirania. Lembro de
passagem o óbvio. Depois de Mussolini, depois de Hitler, invocar o
anticomunismo para impor uma ditadura é tolice. A história é por demais
recente, e nem vale a pena repeti-la aqui”. (Id., p.16)
Cerca de cinco mil pessoas foram presas nas semanas seguintes à deposição
de Goulart. Um dos primeiros a serem detidos foi o governador de Pernambuco,
Miguel Arraes. Centenas passaram pelas embaixadas latino-americanas em busca
de asilo político. Dentre os primeiros a se exilarem, evidentemente, estavam
Jango e Leonel Brizola. Quase quatrocentas pessoas tiveram seus mandatos
cassados ou seus direitos políticos suspensos. Dentre elas, o editor Ênio Silveira.
O número de mortes não foi muito alto, mas os sinais de violência eram
inequívocos. No dia 2 de abril, o líder comunista Gregório Bezerra, aos 64 anos,
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foi amarrado seminu à traseira de um jipe e foi arrastado pelas ruas dos bairros
pobres do Recife. Em seguida foi espancado e jogado na prisão. O vice-almirante
Cândido da Costa Aragão, um dos líderes da Revolta dos Marinheiros, foi preso e
brutalmente torturado, como revela uma carta de sua filha Dilma Aragão,
publicada na coluna de Cony no Correio da Manhã:
“Grita dentro de mim a repugnância pelos homens, ao ver como a maldade,
o ódio e a ferocidade fizeram de meu pai um trapo humano. (...) Vale
lembrar que meu pai é um vice-almirante que perdeu a batalha. Encontrei-o
relegado a uma condição tão deprimente que só um verme cheio de peçonha
mereceria ter. (...) Senhores que mandam no momento em minha terra,
peço-lhes de joelhos, não clemência, mas justiça. (...) Libertem meu pobre
pai da deplorável condição física. Martirizem-no menos, para que ele possa
readquirir a saúde mental. O espectro de homem que vi chora e ri
desordenadamente e não consegue articular duas frases sequer, no mesmo
assunto. O desespero me faz pedir, por esmola, que cobrem o crime
(político) de um ser humano, mas na condição de seres humanos (...)”.
(ARAGÃO in CONY, 1964, p.99)
Se as citações são longas e muitas, é porque a angústia e o desespero de
quem viveu aquela época também o foram. Os relatos feitos imediatamente após o
Golpe, no período de medo e incerteza que a ele se seguiu, dão conta, de modo
muito vívido e claro, da opressão que se abateu sobre a população.
Foi também no prefácio ao livro O ato e o fato de Cony que o editor Ênio
Silveira expressou sua visão sobre o governo instaurado pela “Revolução”. Em
31
uma breve análise da conjuntura nacional e internacional que levou ao Golpe,
Ênio fazia questão de frisar:
“Em primeiro lugar, não nos esqueçamos de que se acaba de escrever, em
nossas costas, um novo capítulo da Guerra Fria. Os setores mais decididos
do imperialismo americano (...) entenderam que no Brasil se poderia estar
jogando uma cartada decisiva contra seus interesses em todo o Continente.
(...) Era indispensável, portanto, que se acabasse logo com essa brincadeira
de emancipação nacional, tão perigosa e pouco pedagógica quanto uma
granada em mãos de criança”. (SILVEIRA in CONY, 1964, p.XII.)
Fossem quais fossem as motivações que levaram ao Golpe, o resultado era
já visível e indiscutível. O Ato Institucional dava amplos poderes para que o Alto
Comando Revolucionário agisse como bem entendesse. A violência que se
espalhou pelo país não foi, ao contrário do que alguns líderes militares da época
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queriam fazer acreditar, um surto provocado pelo calor do momento, justificado
pelo fato de que não se “faz uma omelete sem quebrar os ovos”, como disse o
general Golbery do Couto e Silva vinte anos depois, ao analisar os eventos desses
primeiros dias. (apud GASPARI, 2002, p.133) Os ovos continuaram sendo
quebrados durante longas décadas. Com maior ou menor grau de intensidade, a
violência oficial (ou extra-oficial, mas garantida pela inércia do governo em
reprimi-la) sempre agiu no sentido de coibir e reprimir qualquer manifestação que
se opusesse ao novo regime ou que parecesse defender valores “subversivos”.
A tortura passou a ser um método comum de investigação. As funções
militares confundiam-se com as policiais. Os inúmeros Inquéritos Policiais
Militares (IPMs) abertos em todo o país contribuíam para a grandiosa tarefa de
“acabar com a corrupção e a subversão”. Evidentemente, a luta contra a corrupção
durou bem menos do que a outra...
O presidente Castello Branco, porém, desejava conter os excessos e
normalizar a vida política. Segundo ele, as cassações levavam a um clima “pior
do que a Inquisição”, e cada ação fora da lei significava um retrocesso na
aprovação da opinião pública e do exterior. E completava, desabafando: “Não sou
somente presidente de expurgos e prisões”. (Id., p.136)
E não era mesmo. Em maio de 1965, o editor Ênio Silveira, que cometera o
grave crime de ter recebido o ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, para
um almoço em sua casa, foi preso e envolvido no que ficou conhecido como o
32
“IPM da Feijoada”. Um manifesto de repúdio à prisão do editor foi assinado por
cerca de mil pessoas ligadas à área cultural. Sobre a questão, o presidente Castello
enviou ao general Ernesto Geisel, então chefe do Gabinete Militar, um bilhete
manuscrito. Nele, perguntava:
“Por que a prisão do Ênio? Só para depor? A repercussão é contrária a nós,
em grande escala. O resultado está sendo absolutamente negativo. (...) Há
como que uma preocupação em mostrar ‘que se pode prender’. Isso nos
rebaixa. (...) Apreensão de livros. Nunca se fez isso no Brasil. (...) Os
resultados são os piores possíveis contra nós. É mesmo um terror cultural”.1
(apud GASPARI, 2002, p.231)
Na área cultural, existia ainda certa liberdade para manifestações
oposicionistas, o que seria totalmente reprimido após 1968. Os jornais ainda
podiam publicar crônicas como as de Carlos Heitor Cony, que criticavam
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abertamente o novo regime e ridicularizavam os líderes militares, ou como as de
Otto Maria Carpeaux, que faziam uma dura análise da política externa brasileira e
da interferência norte-americana nas decisões políticas e econômicas de toda a
América Latina. Sobre a atuação dos intelectuais e da cultura de modo geral no
período imediatamente após o Golpe, diz Heloísa Buarque de Hollanda:
“O efeito principal do golpe militar em relação ao processo cultural não se
localizou, num primeiro momento, no impedimento da circulação das
produções teóricas e culturais de esquerda. Ao contrário, como mostra
[Roberto] Schwarz, no período imediatamente posterior aos acontecimentos
de 64, ‘apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da
esquerda no país’. (...) Mas se a circulação do ideário e das manifestações
culturais patrocinadas pela esquerda não é impedida, ela será, todavia,
bloqueada em seu acesso às classes populares (...)”. (HOLLANDA, 1980,
p.30)
Castello desejava limitar os poderes excepcionais que o Ato Institucional
lhe conferia. Encontrava, porém, a resistência de um setor das Forças Armadas
que exigia o endurecimento. Eram os ultrarevolucionários, que ficaram
conhecidos como “linha dura”. O medo de perder sua base militar impedia o
presidente de agir de modo mais eficaz para a liberalização do país. Instauraram-
1
Ver ANEXO.
33
se aí as bases da desordem que faria o país passar por dez anos da ditadura mais
radical, a que foi imposta pelo AI-5. Embora Castello Branco fosse razoavelmente
liberal e desejasse a abertura, sua incapacidade de agir contra a pressão da
extrema-direita e contra a anarquia que tomava conta dos quartéis foi decisiva
para conduzir o Brasil aos rumos que tomou. Ao não reagir diante das denúncias
de torturas por todo o país, o governo endossava esse tipo de procedimento.
Um dos mecanismos surgidos no governo de Castello que contribuíram
mais efetivamente para o clima de terror e de caça às bruxas em que o país se viu
mergulhado foi o Serviço Nacional de Informações, o SNI. Fundado pelo general
Golbery, era um serviço de inteligência destinado a garantir a segurança nacional.
Nas palavras do próprio Golbery, seria “uma CIA voltada para dentro”. (apud
GASPARI, 2002, p.154) Nas palavras do Correio da Manhã, era “um ministério
de polícia política, instituição típica do Estado policial e incompatível com o
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regime democrático”. (Id., p.157) De fato, o Serviço contava com agentes
infiltrados em grupos de esquerda, grampeava ligações telefônicas e recolhia em
seus arquivos todo tipo de informação considerado útil no combate à subversão.
Exerceu um papel decisivo em muitas das manobras políticas realizadas pelo
governo durante o longo período ditatorial, mas sempre na sombra, no silêncio.
Se os Estados Unidos emprestaram seus serviços aos dirigentes da nova
ordem e à direita de modo geral, os países comunistas também decidiram
participar do cenário nacional brasileiro ajudando as forças de resistência. Há
registro de vários planos de reação engendrados por especialistas de Cuba. O
governo de Fidel Castro forneceu dinheiro, armas e treinamento para os líderes de
movimentos “anti-revolucionários”, que se rebelavam contra o novo regime. A
União Soviética e a China também tiveram participações semelhantes.
O Partido Comunista Brasileiro, na ilegalidade desde 1947, viveu nesses
anos um racha radical: de um lado, os que defendiam a guerrilha e a resistência
armada; de outro, os “moderados”, que ainda acreditavam na mobilização das
massas como a melhor forma de preparar a insurreição. Os diferentes matizes de
vermelho começavam a aparecer, e a esquerda brasileira foi se dividindo, de tal
maneira que todas as tentativas de reação fracassaram por falta de um
planejamento articulado e de uma organização mais eficaz.
Entre ataques terroristas de grupos de direita e de esquerda, sob pressão das
forças mais conservadoras dos círculos militares, o presidente Castello Branco
34
teve de ceder e apresentar à Nação um novo Ato Institucional. O AI-2,
promulgado em outubro de 1965, garantia a posição de Castello diante dos
radicais, mas extinguia os partidos políticos, tornava todas as eleições indiretas e
restringia ainda mais a liberdade civil. Era a consolidação da “Revolução” em
termos ditatoriais.
Seis meses depois, em março de 1967, Castello passava o país para as mãos
de seu sucessor, o general Arthur da Costa e Silva, eleito indiretamente pelo
Congresso. Tudo indica que Castello se tornaria um dos fortes opositores da
caminhada em direção a uma ditadura cada vez mais escancarada, para usar o
termo escolhido pelo jornalista Elio Gaspari como título do segundo livro de sua
série sobre os anos militares no Brasil. Castello havia iniciado a articulação de um
movimento contra o poder excessivo do governo quando o avião em que viajava
pelo interior do Ceará sofreu um acidente. O ex-presidente morreu na hora, e com
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ele qualquer chance expressiva de impedir o crescente ditatorialismo em que
mergulhava o país.
A indicação de Costa e Silva para a Presidência era um avanço da linha
dura. Dono de uma figura caricatural e de uma fama de inculto e de despreparado,
o novo presidente aproveitara-se das exigências das alas radicais para minar a
autoridade de seu antecessor. Prometia aos militares a continuidade do regime, e
aos políticos a abertura. Logo no início de seu governo, porém, os choques entre
civis e militares se radicalizaram. A linha de frente desses embates era constituída
pelos estudantes.
Em 28 de março de 1968, quando Costa e Silva acabara de completar um
ano na Presidência, o confronto entre uma tropa da Polícia Militar e estudantes
que pediam reformas no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, resultou na
morte do jovem Edson Luís de Lima Souto, de dezessete anos. Foi o estopim para
a guerra. Com medo de que os militares sumissem com o corpo, os estudantes
carregaram-no até a Assembléia Legislativa. O tumulto era enorme. Durante a
noite, a notícia se espalhou. Os teatros suspenderam suas apresentações e
convidaram os espectadores a acompanharem os artistas ao velório. A Cinelândia
foi-se enchendo. O velório transformou-se em comício, com uma longa seqüência
de discursos dos líderes estudantis.
No dia seguinte, os cinemas da praça anunciavam filmes cujos títulos eram
significativos: “A noite dos generais”, “À queima-roupa” e “Coração de luto”.
35
(VENTURA, 1988, p.97) As faixas e cartazes exibidos pela multidão eram
também provocadores: “Bala mata fome?”, “Os velhos no poder, os jovens no
caixão”, “Mataram um estudante. E se fosse um filho seu?”. (Id., p.102) De fato, a
morte de Edson Luís foi um acontecimento que provocou a revolta de muitos que
antes haviam apoiado o regime. A classe média começava a se voltar contra os
que tinha ajudado a instalar no poder.
Pouco depois das quatro da tarde, o caixão com o corpo de Edson Luís
descia as escadas da Assembléia. Iniciava-se o cortejo que o levaria até o
Cemitério São João Batista. No caminho, flores eram jogadas dos edifícios, lenços
brancos acenados das janelas. A escritora Ana Maria Machado relembra a cena:
“A cidade inteira se comovia e reclamava pela vida de um menino. O céu
escurecia, estava anoitecendo; logo, as luzes iam-se acender. Mas não se
acenderam.” (MACHADO in VENTURA, 1988, p.102) As luzes não se
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acenderam naquele dia, nem se acenderiam nos dez anos seguintes. O povo
improvisou tochas com jornais, os moradores desceram com velas, os carros
acendiam os faróis. Com essa iluminação, ao som do Hino Nacional entoado pela
multidão, Edson Luís foi sepultado.
Nos dias seguintes, os estudantes e a polícia se enfrentariam várias vezes
nas ruas do Rio de Janeiro, apesar das articulações feitas pelos líderes estudantis,
representantes dos religiosos e políticos para garantir a segurança antes e depois
das missas em homenagem a Edson. A maior delas foi realizada na Igreja da
Candelária, na quinta-feira, dia 04 de abril. Foi celebrada pelo bispo-auxiliar do
Rio, D. José de Castro Pinto, e mais quinze padres. A igreja estava
completamente tomada por pessoas de todos os matizes políticos e religiosos. Ao
final da liturgia, pouco após a comunhão, começaram a se ouvir os ruídos dos
cascos de cavalos do lado de fora. As ordens militares, os motores das viaturas e o
avião que sobrevoava o local produziam em conjunto uma sonoplastia de guerra.
Os padres tentaram acalmar a assistência inquieta. A ordem era que ninguém
saísse: os padres sairiam primeiro. Enfrentando a fúria dos militares que haviam
tomado a praça e que encurralavam e ameaçavam os que deixavam a igreja, os
padres deram-se as mãos e fizeram uma corrente para proteger a multidão que
saía da missa. Ainda assim, pouco depois de todos se dispersarem, alguns grupos
menores foram perseguidos, espancados e presos.
36
Soube-se muito depois que o ódio dos policiais fora acrescido pelo de um
grupo à paisana que recebera ordens para seqüestrar, espancar e instaurar o caos e
o pânico: era o caso Para-Sar, ou “Operação Mata-Estudante”, como denunciava o
Correio da Manhã. Comandada pelo brigadeiro João Paulo Burnier, a tropa de
pára-quedistas havia sido encarregada de executar quem se atrevesse a jogar, do
alto dos prédios, objetos na polícia. E mais: havia um plano para seqüestrar e
atirar em alto-mar dezenas de personalidades da vida política nacional, dentre elas
o ex-governador Carlos Lacerda, os ex-presidentes Jânio Quadros e Juscelino
Kubitschek, D. Hélder Câmara e o editor Ênio Silveira.2 A intenção ofensiva do
Para-Sar incluía também a explosão de um gasômetro na Avenida Brasil em plena
hora do rush e a destruição da represa de Ribeirão das Lajes. Morreriam cerca de
100 mil pessoas. A responsabilidade pelos atentados seria atribuída aos
comunistas, e ao destacamento do Para-Sar, que já estaria a postos para o
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salvamento, caberia o papel de herói.
Esse sinistro plano terrorista só não foi levado a cabo porque a coragem de
um homem o impediu: o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido
como Sérgio Macaco, recusou-se a cumprir as ordens e denunciou o brigadeiro
Burnier aos seus superiores, inclusive ao ministro da Aeronáutica. Foi aberta uma
sindicância para investigar a frustrada operação. Todas as denúncias feitas pelo
capitão Sérgio foram comprovadas pelos outros participantes da reunião em que o
brigadeiro expusera seu plano. No entanto, não houve nenhuma medida punitiva
contra ele. Quem pagou o preço mais alto foi o capitão Sérgio. Transferido para o
Recife, julgado e absolvido pelo Superior Tribunal Militar, poderia ter sido
anistiado, mas recusou-se: “Eu não posso ser anistiado pelo crime que evitei”.
(apud VENTURA, 1988, p.217) Viveu sempre perseguido, ameaçado e
discriminado, sendo chamado de louco por seus inimigos. Em um mundo
hipócrita e hierarquizado como aquele, a palavra do brigadeiro valeu mais que a
do capitão.
A inclusão de Lacerda, Juscelino e Ênio na lista dos que deveriam ser
jogados em alto-mar pelos agentes do Para-Sar tem sua razão na Frente Ampla.
Criada em 1966 como uma forma de oposição política unificada, incluía pessoas
dos mais diferentes estilos e das mais díspares ideologias, unidas apenas por seu
2
Para os primeiros nomes, VENTURA, 1988, pp.215-216. Para a inclusão do editor Ênio Silveira
na lista, HALLEWELL, 1985, p.490.
37
repúdio à ditadura. Suas mais expressivas figuras políticas eram Lacerda, que
passara de correligionário do Golpe a seu forte opositor, e os ex-presidentes
Juscelino Kubitschek e João Goulart, dois inimigos históricos do ex-governador
carioca. Em uma entrevista para a “Memória da imprensa carioca”, o jornalista
Helio Fernandes relata:
“A idéia da Frente Ampla não foi minha, eu somente cedi a casa para os
primeiros encontros e ali se reuniram o brigadeiro Teixeira, o Wilson Fadun
[sic], o Renato Archer, o Ênio Silveira, que era diretor da editora
Civilização Brasileira e o Carlos Lacerda. Gente que nunca havia se
entendido, ali se deram magnificamente bem”. (FERNANDES, 2002)
A Frente Ampla foi declarada ilegal em 05 de abril de 1968. Nesse mês, o
governo de Costa e Silva já sofria enormes pressões para editar o Ato
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Institucional-5, limitando ainda mais a liberdade civil e expandindo os poderes
dos militares e do Executivo. O presidente resistiu até dezembro, quando, no dia
13, uma sexta-feira, o AI-5 enfim foi editado, lançando o país em uma de suas
épocas mais cruéis e repressoras.
Antes disso, porém, o povo organizado ainda fazia sua última tentativa de
conquistar a liberalização do regime pacificamente. No dia 20 de junho, os
estudantes ocuparam a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na
Praia Vermelha. Havia sido marcada pela UNE e pela UME uma assembléia da
Universidade para a manhã daquele dia. Desde cedo, porém, notou-se uma intensa
movimentação de policiais do lado de fora, cercando o campus. Entre os vários
oradores que discursaram naquela manhã estava o líder estudantil Vladimir
Palmeira. Foi ele quem propôs que os estudantes invadissem a reitoria, onde
estava se reunindo o Conselho Universitário, e exigissem que os professores
descessem. Essa quebra na hierarquia representou também uma ruptura nos
padrões educacionais tradicionais e conservadores. “Queríamos quebrar a
dominação dos catedráticos e arejar a universidade”, diz Vladimir. (apud
VENTURA, 1988, p.139)
Reunidos todos no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, professores
e alunos discutiam quando chegou a notícia de que alguns estudantes haviam sido
presos do lado de fora. O reitor Clementino Fraga Filho foi pedir a retirada do
dispositivo policial. Apenas no final da tarde, depois de muitas negociações, o
38
reitor conseguiu a garantia do governador Negrão de Lima de que as tropas seriam
retiradas e de que a saída pacífica dos estudantes estava assegurada. O que
aconteceu, porém, foi um massacre. No dia seguinte, o cronista Carlinhos de
Oliveira narrava as cenas que chocaram a opinião pública:
“Os cariocas amanheceram hoje com as mãos trêmulas; no café da manhã,
os jornais lhes serviram fotografias hediondas. Moças e rapazes deitados de
bruços, com a cara enfiada na grama; moças forçadas a andar de quatro
diante de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a um
muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude, mas deitados
de bruços”. (Id., p.138)
Levados para o campo do Botafogo, próximo à Universidade, os estudantes
tiveram de suportar essas e outras humilhações. Soldados urinavam sobre os
corpos deitados na grama, passavam os cassetetes entre as pernas das moças. A
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revolta provocada por esses atos fez com que a opinião pública se voltasse
definitivamente contra Costa e Silva. Fez com que o dia seguinte ficasse
conhecido como “sexta-feira sangrenta”, devido ao número de enfrentamentos
entre civis e militares que aconteceram nas ruas do Rio. Fez com que a população
se mobilizasse para realizar uma das maiores passeatas contrárias ao governo: a
Passeata dos Cem Mil. E fez também com que o presidente cedesse às pressões
para lançar mão de um Ato de força para reprimir o clima de crescente
descontentamento e rebeldia.
Há divergências quanto aos números relativos à Passeata. O Jornal do
Brasil de 27 de junho de 1968 fala em 60 mil pessoas. O ex-líder estudantil
Vladimir Palmeira fala em 300 mil. O fato é que ela passou para a história como a
Passeata dos Cem Mil. Autorizada pelas autoridades, reuniu artistas, intelectuais,
donas-de-casa, jornalistas, advogados, padres, médicos, garis, motoristas,
professores e estudantes. A concentração foi na Cinelândia, em frente à
Assembléia Legislativa. Vários líderes se revezaram em inflamados discursos. A
multidão carregava cartazes e faixas, e gritava palavras de ordem. Quando a
Passeata começou de fato, seguindo pela Avenida Rio Branco em direção à
Candelária, papéis picados começaram a cair dos edifícios. De braços dados, em
fileiras que ocupavam toda a largura da rua, milhares de pessoas desfilavam
pacificamente. Só havia um conflito entre as palavras de ordem: os moderados ou
39
reformistas gritavam “só o povo organizado derruba a ditadura”. Os mais radicais,
ou revolucionários, respondiam “só o povo armado derruba a ditadura”.
Ao final, decidiu-se formar uma comitiva para reivindicar no Planalto a
libertação dos estudantes presos nas últimas manifestações. Depois de muitas
negociações, o presidente concordou em recebê-los. Na data marcada para o
encontro, porém, houve um impasse: os estudantes Franklin Martins e Marcos
Medeiros, escolhidos como representantes de sua classe, não estavam usando
ternos, o que feria o protocolo de Presidência. Por pouco a reunião não é
cancelada. Resolvido o problema protocolar, deu-se outro: a impulsividade dos
estudantes impediu que o diálogo fosse muito longe. Diante da resistência do
presidente em ceder às exigências do grupo, Marcos Medeiros intimou-o: “Escuta
aqui, professor, eu quero saber o seguinte: o senhor vai ou não vai soltar os nossos
companheiros?”. (Id., p.179) O presidente encerrou a reunião imediatamente e
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retirou-se da sala.
Os atentados de direita, dirigidos principalmente contra os teatros que
apresentavam espetáculos considerados subversivos – como a peça “Roda Viva”,
de Chico Buarque, em uma montagem agressiva e provocadora de José Celso
Martinez Corrêa – continuavam. A guerrilha esquerdista tentava encontrar seu
caminho, fosse nas frentes rurais, fosse nas urbanas. Assaltos a bancos para
financiar o movimento tornaram-se comuns. Os guerrilheiros preparavam-se para
a ação escondidos em pequenos apartamentos, os “aparelhos”. Eram caçados pela
polícia política, que funcionava com base nas delações recebidas e nas
informações conseguidas a custa da tortura de presos. Os agentes dos órgãos de
informação infiltravam-se em todos os grupos. Vivia-se, cada vez mais, um clima
de medo e de paranóia.
No final de setembro, duas músicas disputavam o Festival da Canção
daquele ano: “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, e
“Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim. A primeira tornou-se um dos hinos do
movimento estudantil. A segunda ganhou o festival, mas foi vaiada pelo público
durante 23 minutos seguidos. Sendo mais panfletária, a música de Vandré estava
mais de acordo com os ânimos exaltados que queriam manifestar de forma clara e
direta seu repúdio à repressão e à ditadura. A crítica mais lírica e sutil de Chico e
Tom parecia quase uma manifestação artística alienada, crime imperdoável àquela
altura dos acontecimentos.
40
Em outubro, a UNE resolveu organizar clandestinamente seu congresso
nacional. A cidade escolhida como sede foi a pequena Ibiúna, no interior de São
Paulo. O sítio Murundu, um pouco distante da cidade, era o local onde os
estudantes acampariam e fariam suas assembléias. Evidentemente, o movimento
de cerca de quatro mil jovens em uma cidadezinha acostumada à calma e à
tranqüilidade não passaria desapercebido. Seja por qual motivo fosse, o fato é que
a polícia invadiu o sítio no dia 12 de outubro e prendeu algo entre 750 e 1250
participantes do congresso. O movimento estudantil se esfacelava: as principais
lideranças foram presas ou, quando puderam, partiram para o exílio.
Antes disso, no final de agosto, a polícia invadira a Universidade de
Brasília, agredindo alunos e professores, inclusive alguns professores estrangeiros
que ali estavam como convidados. A repercussão foi péssima. Na Câmara, o
jovem deputado Márcio Moreira Alves juntou-se aos outros políticos indignados
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com o acontecimento e proferiu um discurso que custaria muito caro ao país. De
modo um tanto ingênuo, Marcito, como era conhecido, conclamou o povo a
manifestar seu repúdio não comparecendo às paradas militares no sete de
setembro. Além disso, exortou as moças a recusarem qualquer tipo de namoro
com os integrantes das Forças Armadas, numa espécie de greve de sexo inspirada
na peça “Lisístrata”, de Aristófanes, que estava sendo encenada em São Paulo. O
deputado ainda acusava o exército de ser um “valhacouto de torturadores”.
(GASPARI, 2002, p.316)
Foi o pretexto necessário para a linha dura aumentar a pressão sobre Costa e
Silva. Os militares interessados em aumentar o poder ditatorial do governo
transformaram a crise em algo muito maior do que realmente foi. O discurso de
Marcio Moreira Alves não despertara maior atenção da imprensa. No entanto, o
ministro do Exército, general Aurélio de Lyra Tavares e o chefe do Gabinete
Civil, general Jayme Portella, empenharam-se em protestar contra a ofensa e a
humilhação a que todas as Forças Armadas haviam sido submetidas.
Pressionado, o governo pediu à Câmara licença para processar o deputado.
Era mais do que esperado que a Câmara negasse o pedido, uma vez que a
imunidade parlamentar garante a inviolabilidade das palavras e das opiniões de
deputados e senadores. Com a recusa, o choque entre o Executivo e o Legislativo
seria inevitável. Parece ser justamente isso o que a cúpula dos militares desejava.
41
No dia 12 de dezembro, realizou-se a votação na Câmara que rejeitou por
uma diferença de oitenta votos a licença para se processar Márcio Moreira Alves.
O país estava à beira de um segundo golpe. Os chefes militares sugeriam inclusive
a deposição de Costa e Silva, caso ele não tomasse medidas radicais. Ele tomou.
No dia 13 de dezembro, em uma reunião com todos os seus ministros e com
o vice-presidente Pedro Aleixo, o presidente leu o texto do AI-5 apresentado por
Gama e Silva, ministro da Justiça, e ouviu as considerações de cada um dos
presentes. Costa e Silva não parecia satisfeito com a radicalização da ditadura, e
provavelmente esperava encontrar resistências que lhe permitissem adiar a decisão
ou alterar o conteúdo do Ato. No entanto, apenas o vice-presidente manifestou-se
contra, afirmando que se aquilo que haviam acabado de ler fosse aprovado, não
restaria nada da Constituição, “que é antes de tudo um instrumento de garantia dos
direitos da pessoa humana”. (Id., p.334)
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Não houve jeito. Horas depois, Gama e Silva lia o texto aprovado diante das
câmeras de TV. O Congresso era fechado por tempo indeterminado, as cassações
e suspensões dos direitos políticos eram novamente autorizadas, a liberdade de
expressão e de reunião era cerceada. Um dos piores artigos do Ato era o que
eliminava a garantia de habeas corpus em casos de crimes políticos. Os meios de
comunicação foram invadidos pelos censores. Inúmeros livros foram apreendidos.
Sem alternativas, a oposição passou a ver a luta armada como único caminho
possível. O terror se instaurava, e não tinha prazo para terminar.
3
A Editora
3.1.
A fundação e a Companhia Editora Nacional
As datas relativas ao início da Editora Civilização Brasileira são imprecisas.
O editor Ênio Silveira afirmava que sua fundação foi em 1932. Outras fontes,
porém, afirmam que essa é a data em que a Editora foi comprada por Octalles
Marcondes Ferreira, passando a fazer parte do então poderoso grupo da
Companhia Editora Nacional. O fato é que foi entre o final da década de 1920 e o
início da década seguinte, no Rio de Janeiro, que o poeta Ribeiro Couto,
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juntamente com o escritor integralista Gustavo Barroso e o jornalista Hildebrando
de Lima, irmão do poeta Jorge de Lima, juntaram-se para criar a Civilização
Brasileira. Seu objetivo era agitar o meio cultural do país, ainda muito preso aos
padrões franceses e à vida editorial portuguesa.
A editora não teve inicialmente muito sucesso, possivelmente devido ao fato
de ser administrada por intelectuais que não sabiam lidar bem com o mercado ou
não se dedicavam o bastante ao empreendimento. Ribeiro Couto era também
diplomata, e passava muito tempo fora do Brasil. Sua obra poética já era editada
pela Companhia Editora Nacional, de propriedade de Monteiro Lobato e Octalles
Marcondes Ferreira. Ribeiro Couto então vendeu sua parte na Civilização a
Octalles. Alguns anos depois, Gustavo Barroso, perseguido por motivos políticos,
teve de deixar o país, indo para Portugal. Antes de partir, vendeu sua parte a um
irmão de Octalles, Fenício. Em pouco tempo, os irmãos acabaram comprando
todas as ações.
A Companhia Editora Nacional (CEN), estabelecida em São Paulo, já era
então uma empresa bastante lucrativa e com uma importante fatia do mercado
editorial. Atuava principalmente no setor de livros didáticos, historicamente muito
lucrativo. Apesar da grande experiência acumulada e da “operacionalidade de
Octalles”, (FELIX, 1998, p.44) a Editora Civilização Brasileira continuou não
tendo grande sucesso comercial. A administração à distância dificultava a
obtenção de melhores resultados. A casa chegou a publicar, em meados da década
43
de 1930, a coleção completa das obras de Joaquim Nabuco e títulos de autores
importantes, como José de Alencar, Balzac, Vitor Hugo, Dostoievski, Dumas,
Gorki e Zola. Estima-se que cerca de trezentos mil exemplares tenham sido
produzidos nesse período (apenas para efeitos de comparação, a CEN produziu
então cerca de um milhão e setecentos mil exemplares). (HALLEWELL, 1985,
p.278) O livro de maior sucesso em termos de vendas, porém, foi o Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, que teve inúmeras reedições e
revisões, inclusive sob a coordenação de Aurélio Buarque de Holanda.
Octalles chegou a usar o nome Civilização Brasileira também em uma filial
aberta em Lisboa, que funcionou por cerca de dez anos. O comércio livreiro entre
Brasil e Portugal estava então em fase de transformação. O Brasil sempre fora o
maior comprador, e a venda ultramarina de livros brasileiros havia sido, durante
muitos anos, praticamente inexpressiva. A situação, na década de 30, começava a
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se alterar, em função da queda na taxa de câmbio. O livro brasileiro invadiu
Portugal, chegando mesmo a assustar as editoras daquele país. Octalles parece ter
sido um dos primeiros editores brasileiros a perceber o movimento e a lançar-se
nesse empreendimento. (Id., pp.278-280)
3.2.
Ênio Silveira
Ênio Silveira começou a trabalhar na Companhia Editora Nacional quando
ainda era estudante de Sociologia em São Paulo, no início da década de 1940. A
partir daí sua história começa a se aproximar da história da Editora Civilização
Brasileira. Sua vida pessoal está de tal forma ligada à vida da editora que muitas
vezes é impossível separá-las. Grande contador de casos, Ênio narrava os
episódios que marcaram esse caminho de forma inesquecível. Um deles é o seu
encontro com Monteiro Lobato, que lhe apresentaria a Octalles e lhe ofereceria o
emprego na CEN.
Ênio tinha dezoito anos quando sua amiga Leonor Aguiar, mulher muito
culta e bem mais velha que ele, o convidou para ir uma tarde a sua casa a fim de
conhecer Lobato. Ênio chegou e encontrou a porta aberta, com um bilhete: “entre
e feche a porta por dentro”. Uma vez dentro da casa, Ênio chamou pela amiga,
44
que lhe respondeu do banheiro, pedindo-lhe que fosse até lá. Constrangido, Ênio
foi até o banheiro, onde deparou-se com Monteiro Lobato nu dentro da banheira,
tendo as costas vigorosamente esfregadas por Leonor. Aos poucos, a canhestra
situação foi dando lugar a uma amigável conversa, e Ênio saiu dali com uma
indicação para falar com Octalles. E uma vaga na Companhia Editora Nacional,
que acabou se tornando sua “universidade aberta”. (FERREIRA, 1992, p.30)
Durante o período em que trabalhou na CEN, Ênio teve contato com vários
escritores e intelectuais, tornando-se amigo de muitos deles. Foi também durante
esse período que conheceu e se casou com sua primeira esposa, Cleo Marcondes
Ferreira, filha de Octalles. Pouco depois de se casar, Ênio foi para os Estados
Unidos, onde fez um curso de editoração na Universidade de Colúmbia e
trabalhou na Editora Alfred A. Knopf. Ali conheceu importantes autores
americanos e aprendeu novas técnicas editoriais, principalmente quanto à
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divulgação dos livros. Já havia então desistido de seguir o caminho da Sociologia
e decidido adotar a atividade editorial como profissão.
Foi também nos Estados Unidos que Ênio aprofundou sua posição
ideológica marxista, que já cultivava desde o Brasil. Sua posição política era
contrária à de seu sogro, mas isso não havia interferido em suas relações. Octalles
tivera uma conversa franca e direta com o genro a esse respeito:
“Olha, Ênio, tenho informações de que você tem ligações com a esquerda.
Quero lhe dizer que não sou de esquerda, até pessoalmente sou contra a
esquerda, mas respeito o seu direito de ser, com uma condição: a editora não
tem linha política, e eu queria que você assumisse comigo o compromisso
de em nenhum momento tentar, direta ou indiretamente, interferir
politicamente na editora.” (Id., p.31)
Ênio cumprira o acordo.
Voltando dos Estados Unidos, Ênio foi morar em uma casa que havia
mandado construir, planejada especialmente pra abrigar adequadamente seus
livros. Ali, ele e Cleo tiveram seu primeiro filho. Poucos anos depois, no início da
década de 50, Octalles o chamou novamente para uma importante conversa.
Falou-lhe sobre a Editora Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro, e sobre a má
fase que a empresa atravessava. Octalles desconfiava inclusive de desvios da
gerência local. Havia dois caminhos possíveis a seguir: fechar a empresa ou tentar
45
desenvolvê-la. Octalles queria investir na segunda opção, e queria que Ênio fosse
o encarregado pela tarefa.
Superando um preconceito paulista segundo o qual o Rio de Janeiro é um
lugar onde não se trabalha, Ênio mudou-se com a mulher e o filho pequeno com o
compromisso de ficar por apenas seis meses. Esse tempo, porém, foi suficiente
para que se apaixonasse pela editora e pelas possibilidades que ela lhe oferecia. A
Companhia Editora Nacional estava cada vez mais voltada para o livro didático. A
editora que então mais publicava autores brasileiros era a José Olympio, mas, nas
palavras de Ênio, “embora a figura de José Olympio fosse uma figura
extremamente respeitável e fundamental para a história do livro no Brasil, havia
uma panela da editora José Olympio, alguns autores entravam, outros não
entravam (...)”. (Id., p.52) Ênio percebeu então que essa era uma “vasta área de
manobra” em que poderia atuar como editor.
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Dois anos depois, Ênio vendia sua casa em São Paulo e mudava-se
definitivamente para o Rio de Janeiro. Com o dinheiro da venda, comprou as
ações de Fenício, irmão de Octalles. A editora vivia então um período de rápida
expansão, chegando a publicar vinte livros por mês, ou seja, mais de um livro por
dia útil. (Id., p.54) Alguns livros alcançaram grande sucesso, como O velho e o
mar, de Ernest Hemingway, que teve uma tiragem inicial de vinte mil exemplares.
3.3.
Vulgarizando o livro
Um dos fatores que contribuíram para o sucesso da editora foi a postura de
Ênio de não sacralizar o livro, mas, ao contrário, de desmistificá-lo e popularizálo. Foi ele quem introduziu no Brasil a brochura aparada. Antes disso as páginas
vinham fechadas, e o leitor precisava abri-las com uma espátula. Ênio também
empregou propaganda maciça na venda dos livros, utilizando inclusive outdoors,
o que não era muito comum na época. Investiu em livros de bolso, livros feitos em
papel-jornal, para serem vendidos a preços bem acessíveis nas bancas de jornal.
Essas atitudes provocaram um certo choque entre os mais conservadores. A
reação do editor José Olympio é bastante significativa: “Mas você está
transformando o livro num objeto vulgar”. Ao que Ênio teria respondido: “Mas
46
ele é, enquanto objeto, um objeto, e quanto mais vulgar melhor para os editores,
se você quer saber; e quanto mais vulgar melhor para os leitores”. (Id., p.155)
Ênio defendia que o livro não fosse um objeto de consumo apenas para a elite. O
acesso a ele deveria ser democratizado, como uma forma de impulsionar o
processo cultural brasileiro.
Essa visão de Ênio é expressa com clareza e força em um discurso proferido
por ele em 1966, em homenagem a seu colega de trabalho e companheiro de lutas
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Mário da Silva Brito:
“Acreditávamos no Brasil, acreditávamos nas imensas possibilidades de
nosso povo avançar rumo à plena realização, desde que fossem eliminados
de seu caminho os empecilhos tradicionais – miséria, fome, doenças,
incultura – resultantes da exploração cruel a que sempre esteve submetido,
tanto pelas classes dominantes nacionais como pelas potências imperialistas
que, por sua vez, as controlavam. Para alcançar a eliminação desses
empecilhos, púnhamos (e ainda pomos) muita fé na eficiência dessa arma
branca, silenciosa e paciente, que é o livro. A despeito da eterna
perseguição que em todas as épocas e sociedades sempre lhe movem as
forças do obscurantismo e da prepotência, ele é instrumento capaz de
revolver o mundo e levar os homens a repensá-lo criadoramente.
Convencidos disso, agimos.” (HALLEWELL, 1985, p.449)
O lema da Civilização Brasileira, “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal
vê”, sintetiza a ideologia da editora: é preciso facilitar o acesso ao livro e
incentivar a leitura para que o povo seja capaz de, falando, ouvindo e vendo, lutar
contra as forças que o oprimem.
Entre 1952 e 1958, Ênio foi presidente do Sindicato Nacional dos Editores
de Livros, o SNEL, onde contribuía ativamente para o desenvolvimento da classe.
Dentre outras coisas, foi responsável pela publicação do Boletim Bibliográfico
Brasileiro, única publicação regular do setor entre 1952 e 1967. (Id., p.444)
Junto com a expansão da editora, porém, começaram a surgir divergências
ideológicas entre Ênio e seu agora sócio Octalles. Alguns livros que Ênio desejava
editar eram vetados pelos conselheiros de Octalles em São Paulo. Havia realmente
um movimento na direção da publicação de certos autores marxistas que
incomodava Octalles. Para resolver o impasse, Ênio foi então, aos poucos,
comprando as ações de seu sócio.
47
As diferenças que separavam a editora de Octalles e a Civilização Brasileira
foram mencionadas por Barbosa Lima Sobrinho no discurso com que recebeu
Ênio Silveira como membro do Pen Club do Brasil, em agosto de 1991:
“Na verdade, entre a Companhia Editora Nacional, de Octalles, e a
Civilização Brasileira havia uma grande distância, uma preocupada com o
passado, outra orientada para o futuro. Uma direitista, outra
apaixonadamente esquerdista, não medindo sacrifícios para a defesa de suas
idéias”. (FELIX, 1998, p.398)
O próprio Octalles confirmava isso: “Eu sou um editor tradicional, gosto de
conservar nossa tradição cultural. Já o Ênio é um editor de vanguarda, sempre
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pronto a lançar novas idéias”. (HALLEWELL, 1985, p.453)
3.4.
Arejamento de idéias
Quando se tornou acionista majoritário, Ênio pode publicar livremente
autores “que repensassem criativamente o processo social, político e econômico
brasileiro”, (FERREIRA, 1992, p.56) fossem eles marxistas ou não. A
independência ideológica e partidária sempre foi uma das marcas da Civilização
Brasileira. Tanto que ao ouvir representantes do Partido Comunista Brasileiro
referirem-se à Civilização como “nossa editora”, Ênio reagiu afirmando
resolutamente que a editora não pertencia ao Partido. E chegou mesmo a enfrentar
Luís Carlos Prestes quando ele manifestou seu desagrado por um determinado
título lançado pela Civilização. Um autor lançado pela editora que exemplifica o
não-alinhamento à doutrinação do Partido é o trotskista Isaac Deutscher, de quem
a Civilização publicou toda a obra. Ênio resumia assim a linha editorial de sua
empresa:
“(...) era uma editora com uma linha de esquerda, não exclusivamente,
ortodoxamente de esquerda, mas sobretudo e ortodoxamente numa linha não
partidária. Porque eu não queria de maneira nenhuma ser submetido a
limitações e restrições partidárias que me poderiam tolher todo esse desejo
de contribuir para o arejamento dos espíritos no Brasil”. (Id., p.62)
48
E esse arejamento era realmente necessário. A juventude brasileira era
cerceada, limitada culturalmente. E respondeu com muito entusiasmo quando
passou a ter acesso a pensadores de suma importância internacional. Jovens
marxistas, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, foram se
aproximando da editora e passaram a colaborar muito com ela – inclusive na
pioneira tradução da obra de Gramsci no Brasil. Ainda antes do Golpe, a
Civilização publicou a primeira versão completa de O Capital, de Marx, em
português. E lançou a coleção “Retratos do Brasil”, que Ênio considerava uma
espécie de “Brasiliana viva”, pois era mais voltada para os problemas atuais do
país naquela época, enquanto a coleção editada pela CEN era dedicada à
importante preservação e publicação de documentos do passado.
O catálogo da editora era então voltado principalmente para a área de
ciências humanas, mas contemplava também largamente a produção ficcional e
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poética do Brasil e do mundo. Além disso, havia títulos variados, sobre temas
como filosofia, psicologia popular, educação sexual, ioga e zen-budismo. Em O
livro no Brasil, Laurence Hallewell aponta a característica da editora de temperar
seus lançamentos de alta qualidade – mas nem sempre grande rendimento
financeiro – com best-sellers de venda garantida, especialmente no campo das
traduções de ficção estrangeira. Destaca alguns títulos significativos: dentre os
ingleses, ia de Agatha Christie, Daphne DuMaurier e Ian Fleming a George Eliot,
Aldous Huxley, D.H. Lawrence, Gaham Greene e George Orwell. Dos
americanos, publicou autores fundamentais como T.S. Eliot, William Faulkner, F.
Scott Fitzgerald, Henry James, Norman Mailer, Tennessee Williams e Ernest
Hemingway. Valorizou obras hispano-americanas tradicionalmente desprezadas
pelas editoras, como as de Alejo Carpentier, Julio Cortázar e Ernesto Sábato. De
Kafka a Molière, de Brecht a Oscar Wilde, de Sartre a Tchecov e Tolstoi. De
Lolita, de Nabokov, a Ulisses, de Joyce (em monumental tradução de Antônio
Houaiss). (HALLEWELL, 1985, pp.447-448) O jornalista Zuenir Ventura resume
assim o caráter das publicações da Civilização Brasileira no período que vai de
1964 a 1968, considerado por muitos um dos mais férteis da indústria editorial
brasileira:
“A Civilização Brasileira, investindo na qualidade, era capaz de audácias
como o lançamento de O capital – em edição integral e pela primeira vez
49
em língua portuguesa – e de Ulisses, de James Joyce, numa portentosa
tradução de Antônio Houaiss. A editora não temia, além disso, alternar um
pacote de quatro Norman Mailer com a memorável trilogia sobre Trotsky,
de Isaac Deutscher”. (VENTURA, 1988, p.54)
O editor Ênio Silveira, comentando o catálogo da Civilização, afirmava:
“O nosso catálogo era bastante eclético, mas de um modo geral ele se
situava numa linha ideológica bem marcada, sobretudo com os estudos
brasileiros, que eram sempre transformadores da realidade, num sentido que
a classe dominante e seus porta-vozes não queriam que fossem. Ou seja, se
você perguntar se a Civilização Brasileira ajudou a encaminhar um projeto,
uma utopia socialista no Brasil? Respondo que sim, sem sombra de dúvidas.
E isso eles achavam mais perigoso que qualquer plataforma política ou, na
fase final, pós-64, mais perigoso que um assalto a banco”. (FERREIRA,
1992, p.93)
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A Civilização Brasileira foi responsável por coleções importantíssimas para
a análise da conjuntura sociopolítica do país. A já mencionada “Retratos do
Brasil”, iniciada em 1960, incluía títulos provocadores, como Radiografia de
novembro, de Bento Munhoz da Rocha, que tratava da tentativa empreendida por
Carlos Lacerda em 1954 para impedir a posse do presidente Juscelino Kubitschek.
Alguns outros títulos da coleção eram Política externa independente, de San
Thiago Dantas, O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil, de
Moniz Bandeira e outros, e Assim marcha a família: onze dramáticos flagrantes da
chamada sociedade cristã e democrática..., de José Louzeiro.
Em 1962, a Civilização lançou os polêmicos “Cadernos do Povo
Brasileiro”, que traziam o seguinte texto de capa: “Os grandes problemas de nosso
país são estudados nesta série com clareza e sem qualquer sectarismo: seu
objetivo principal é o de informar: somente quando bem informado é que o povo
consegue emancipar-se”. (HALLEWELL, 1985, pp.451-452) O orientador da
série, composta por folhetos populares, era Álvaro Vieira Pinto, um dos principais
pesquisadores do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), instituição de
orientação esquerdista financiada pelo governo de João Goulart e depois
radicalmente perseguida pelos militares. Hallewell julga necessário dar uma
relação completa dos títulos da coleção para que se possa avaliar com precisão sua
natureza. Aqui, porém, vão apenas alguns exemplos: Que são as ligas
camponesas?, de Francisco Julião; Quem é o povo no Brasil?, de Nelson Werneck
50
Sodré; Quem faz as leis no Brasil?, de Osny Duarte Pereira; Por que os ricos não
fazem greve?, de Álvaro Vieira Pinto; O que é a reforma agrária?, de Paulo
Schilling; Como atua o imperialismo ianque?, de Sylvio Monteiro; e Desde
quando somos nacionalistas?, de Barbosa Lima Sobrinho. Sobre os “Cadernos”,
Ênio comentava:
“Foi uma coleção, se se quiser, engajada, mas não necessariamente. Apesar
do partido querer utilizar a coisa como instrumento de propaganda política,
ainda assim a coleção não era partidária. (...) Essa coleção começou pouco
antes do golpe e permaneceu durante o golpe, ma foi logo terminada,
porque, quando eles descobriram, fizeram parar. Apreenderam vários livros
e prenderam alguns autores. Mas este livro [Por que os ricos não fazem
greve?], em especial, chegou a ter três tiragens consecutivas, alcançou cem
mil exemplares. Era vendido muito barato.” (FERREIRA, 1992, pp.90-91)
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No prefácio ao livro de Jalusa Barcellos, CPC da UNE: uma história de
paixão e consciência, Ênio ressalta a parceria que se estabeleceu entre a editora e
o CPC no que diz respeito à distribuição dos Cadernos. E acrescenta: “Com
tiragens de 20 mil exemplares, muito significativas em 1963, esses pequenos
volumes eram lidos e discutidos em centros acadêmicos, debatidos no e com o
CPC, e exerceram significativo papel conscientizador”. (SILVEIRA, 1994, p.12)
Além dos volumes regulares, a coleção lançou três títulos extras, os famosos
“Violão de rua: poemas para a liberdade”. Como uma subcoleção dentro dos
“Cadernos”, os três volumes de “Violão de rua” lançaram no mercado jovens
poetas como Affonso Romano de Sant’Anna e José Carlos Capinam, ao lado de
outros já consagrados, como Vinicius de Moraes, Moacyr Felix e Ferreira Gullar.
A ideologia que orientava a publicação é resumida nas palavras do poeta Moacyr
Felix, um dos organizadores da coleção: “O artista que pratica sua arte situando
seu pensamento e sua atividade criativa exclusivamente em função da própria arte
é apenas a pobre vítima de um logro tanto histórico quanto existencial”.
(http://www.culturapara.com.br/rbarata/ruylivro.htm) E mais:
“Violão de rua é um gesto resultante da poesia encarada como forma de
conhecimento do mundo e servindo, portanto, ao esforço para uma tomada de
consciência das realidades últimas que nos definem dentro deste mesmo mundo;
(...) obra participante mas não partidária, pretende ser mais um solavanco nas torres
de marfim de uma estética puramente formal, conservadora e reacionária (...).
Violão de rua almejará ser a utilização, em termos de estética, de temas reais,
baseada na certeza de que tudo aquilo que é verdadeiro serve ao povo, de que o uso
51
apaixonado de uma verdade é o instrumento por excelência da humanização da
vida”. (FELIX, 1980, pp.145-146)
Affonso Romano, no livro Música popular e moderna poesia brasileira,
assim se refere à série:
“Tentativa de manter uma posição de vanguarda sem comprometimento com
o formalismo estético. Utilização de todas as formas poéticas, inclusive as
folclóricas e populares. Poesia ideológica e humanista. Poetização dos temas
históricos, fatos jornalísticos e episódios da vida política brasileira.
Heterogeneidade de seus membros, arrolando poetas de todas as tendências
e gerações. Desinteresse pelo aspecto visual e gráfico do poema. Exploração
do aspecto sonoro do verso através do teatro popular e apresentação pública
de textos. Crença de que o poeta deve participar ativamente do processo
histórico.” (http://www.culturapara.com.br/rbarata/ruylivro.htm)
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À ousadia nos títulos, Ênio juntava modernas técnicas na apresentação
gráfica do livro. Contando com o trabalho do capista Eugênio Hirsch, que dizia de
si mesmo “eu não vim para agradar, vim para agredir”, a Civilização Brasileira
revolucionou a indústria editorial brasileira quanto ao aspecto gráfico. Diz
Hallewell:
“O aspecto do moderno livro brasileiro, de qualquer editora, ajusta-se
basicamente ao estilo adotado pela Civilização Brasileira em meados da
década de sessenta. As capas passaram a ser desenhos ocupando toda a
altura e largura do volume, em quatro cores, quase sempre com o registro do
devido crédito ao artista no verso da página de rosto. O projeto tipográfico
finalmente atualizou-se segundo o melhor costume moderno:
particularmente os espaços em branco passaram a ser utilizados mais
generosa e atraentemente do que até então, e um esforço real foi dedicado à
elaboração do lay-out pelo menos da página de rosto. (…) De muitas
maneiras, as inovações representaram um rompimento final com padrões e
práticas oriundos da França e a adoção de métodos norte-americanos”.
(HALLEWELL, 1985, p.454)
3.5.
O feijão e o sonho
A atividade editorial, mais do que qualquer outra atividade empresarial, é
forçada a se equilibrar constantemente entre o que Ênio Silveira gostava de
52
chamar, citando o romance de Orígenes Lessa, “o feijão e o sonho”. Como
empresa, precisa ser economicamente viável, ser um negócio rentável. Como
instrumento de difusão cultural, precisa seguir uma ideologia, muitas vezes
utópica. O editor deve saber conciliar uma boa administração financeira e uma
perspicaz visão de mercado sem abrir mão de seus valores fundamentais, ainda
que estes lhe custem certa redução nos lucros. “O contraponto feijão/sonho é o
que dá a justa medida da qualidade de um editor”. (FERREIRA, 1992, p.97)
Manter-se rigorosamente dentro dos limites da ética e da retidão nas relações
humanas é um grande desafio, e há inúmeros exemplos que comprovam a
dificuldade de muitos empresários em vencê-lo. Sobre sua postura ética, dizia
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Ênio:
“Não é justo que num país de subnutridos ou desnutridos, sendo eu um
homem amparado por uma solidez familiar, amparado por uma solidez
biológica, de alimentação adequada, de estudo adequado, de conforto e dos
prazeres da vida, e tendo nas mãos uma arma de cultura, disseminadora de
cultura, a utilize impropriamente. Sempre tive uma auto-imposta visão ética
da minha profissão de editor. Acho que ser editor num país como o Brasil,
em qualquer lugar do mundo eu diria, mas particularmente num país como o
Brasil, impõe a obrigação de querer transformar esta sociedade, melhorá-la,
aprimorá-la. Tudo o que pude fazer como editor foi nesse sentido. Sem
medir sacrifícios e sem me subordinar cem por cento ao feijão. Eu talvez
tenha, fazendo uma autocrítica, freqüentemente me deixado dominar mais
pelo sonho do que pelo feijão (...)”. (Id., pp.99-100)
Não é verdadeira, porém, a imagem de “Dom Quixote da literatura” que
muitos queriam impor a Ênio. Embora muitas vezes empreendesse negócios de
rentabilidade incerta em função de valores éticos e morais, Ênio não ignorava a
necessidade de investir em livros que pudessem dar um retorno financeiro maior.
3.6.
A repressão
A Civilização Brasileira foi uma das editoras mais perseguidas durante a
ditadura militar. Sua linha editorial voltada para a publicação de obras e autores
considerados “subversivos” lhe valeu rigorosos enfrentamentos com a censura e a
política repressiva dos generais. Logo após o Golpe de 1964, o editor Ênio
53
Silveira teve seu nome incluído em uma das primeiras listas de pessoas que
tiveram seus direitos políticos cassados. Os livros da Civilização Brasileira
passaram a ser apreendidos nas gráficas ou mesmo nas livrarias. A pressão para
que os livreiros não comprassem mais livros dessa editora era enorme, e muitos,
intimidados, deixaram de encomendar livros da Civilização. Sobre essa apreensão
de livros que se abateu sobre o país, diz Hallewell:
“Milhares de livros foram sumariamente confiscados de livrarias e de
editoras pelas mais diversas razões: por falarem do comunismo (mesmo que
fosse contra), porque o autor era persona non grata do regime, por serem
traduções do russo, ou simplesmente porque tinham capas vermelhas.
Muitos policiais se contentavam com qualquer coisa que tivesse a marca da
Civilização Brasileira (...)”. (HALLEWELL, 1985, p.483)
Muitas apreensões viraram motivo de piada, dada a incapacidade dos
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agentes da lei de reconhecerem o que era ou não subversivo, o que os levava a
confiscar obras que não tinham qualquer relação com o comunismo ou a esquerda.
“Só parece ter escapado o Livro Vermelho dos Telefones”, (Id., ibid.) dizia um
editorial do Jornal do Brasil em janeiro de 1966.
A editora Civilização Brasileira logo se tornou, ao lado do jornal Correio
da Manhã, um dos principais núcleos de resistência e oposição à ditadura. Sua
livraria, no Centro, tornou-se um ponto de encontro dos intelectuais de esquerda.
Ali se encontravam pessoas como Leandro Konder, Moacyr Felix, Ferreira Gullar,
Carlos Heitor Cony, Antônio Callado, Antônio Houaiss, Nelson Werneck Sodré e
Paulo Francis. Eunice Duarte, que trabalhou por cerca de dez anos ao lado de Ênio
na editora, afirma que a Civilização tornou-se um importante centro de discussão.
A movimentação nos corredores era intensa, e o clima de agitação permanente
fazia com que a editora fosse uma espécie de caixa de ressonância onde se refletia
o clima do país.3
A Civilização publicou, em meados de 1964, um dos primeiros relatos
sobre o Golpe de abril: Os idos de março e a queda em abril, de Alberto Dines.
Em 1965, lançou Até quarta, Isabela, uma reunião de cartas escritas na prisão
pelo líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Foi também nessa época que
se publicaram importantes periódicos em que opiniões contrárias ao governo eram
3
Depoimento de Eunice Duarte à autora.
54
veiculadas. A revista de comentário político Reunião, que saía quinzenalmente,
circulou apenas por poucos meses. O Ato Institucional no. 2, de outubro de 1965,
limitou de tal forma as liberdades civis que fez com que muitos revendedores se
intimidassem e deixassem de trabalhar com ela. A Paz e Terra, revista que reunia
o pensamento progressista cristão, era dirigida por Waldo César. Mais tarde se
consolidaria como uma nova editora, passando a lançar também títulos
importantes. O historiador José Honório Rodrigues coordenou, para a Civilização,
a revista Política Externa Independente, que teve poucos números. O mais
importante periódico desse momento, porém, foi sem dúvida a Revista Civilização
Brasileira, que chegou a ter tiragens de vinte mil exemplares. O terceiro capítulo
desta monografia tratará sobre ela em detalhes.
Os periódicos e os livros francamente em oposição ao regime publicados
pela editora e a postura combativa de Ênio Silveira fizeram com que ele se
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tornasse alvo de uma forte perseguição. Sua primeira prisão ocorreu logo após o
Golpe. Os militares queriam interrogá-lo sobre a origem de seus bens, uma vez
que não acreditavam ser possível se obter algum lucro, no Brasil, com a
publicação de livros sobre política e ciências sociais. Com essa prisão, a editora
sofreu um tremendo golpe financeiro: pouco tempo antes, Ênio havia acertado
com o Banco Nacional a compra de duzentas toneladas de papel da Finlândia. A
encomenda já havia sido feita quando veio o Golpe e, logo depois, a prisão de
Ênio. O banco mudou de idéia quanto ao financiamento da compra, sob a
justificativa de que “as condições haviam mudado e certamente não poderia levar
adiante o acordo”. (FERREIRA, 1992, p.66) Ênio teve de se desfazer de uma
parte significativa de seu patrimônio para arcar com as despesas.
Pouco mais de um ano depois, em maio de 1965, Ênio foi indiciado no que
ficou conhecido como o “IPM da feijoada”. Tratava-se da alegação de que o
editor tivesse auxiliado o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, em sua fuga
do país. O que Ênio na realidade fizera fora oferecer ao governador um almoço
em sua casa, pouco ante de Arraes se refugiar na embaixada da Argélia. A famosa
feijoada servida, à qual compareceram inúmeros intelectuais de esquerda, amigos
de Arraes, causou a Ênio cerca da vinte dias de prisão.
As apreensões de livros da editora e as várias prisões de Ênio tiveram um
enorme peso sobre as finanças da Civilização. Um dos golpes mais duros, porém,
está relacionado à Companhia Editora Nacional, e aconteceu antes mesmo do
55
Golpe. A Civilização continuava sendo a representante de vendas da CEN no Rio
de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. Como já se disse, o catálogo da CEN era
voltado principalmente para o setor de livros didáticos. Diversas ordens religiosas,
responsáveis por colégios espalhados por todo o país, começaram a enviar cartas
para Octalles afirmando que “havia uma contradição básica entre as organizações
educacionais da Igreja Católica” e o fato da CEN ser representada pela editora de
um “notório comunista”, o senhor Ênio Silveira. Diante dessa contradição, seus
colégios suspenderiam a compra dos livros didáticos da CEN. Como única
solução possível para o impasse, Ênio se propôs a abrir mão da representação da
CEN, o que significava a perda de um ganho seguro em um momento em que a
editora se via atacada por todos os lados. Octalles ainda relutou, tentando
encontrar outros caminhos, mas não havia saída. A Civilização deixou de
representar a CEN e perdeu cerca de 40% de sua renda estável.
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Outro dos fortes golpes financeiros que a editora sofreu foi a apreensão
dos originais, do material de gráfica (fotolitos, filmes etc.) e da tiragem inicial de
cinco mil exemplares do primeiro volume de uma tradução da obra de Lênin feita
por Álvaro Vieira Pinto. Ênio pagou ao tradutor e à gráfica conforme o
combinado, mas não pode vender um exemplar sequer. Ao todo, mais de trinta
títulos da editora foram apreendidos. “Eles invadiam nosso depósito, iam às
livrarias, recolhiam os livros e sumiam com eles. (...) Foi um período terrível. Nós
éramos atacados de todas as maneiras possíveis e imagináveis, cerceados:
intimidação a livreiros e gráficos, apreensão de livros”. (Id., p.71)
Um exemplo da pressão exercida contra as gráficas é o processo que foi
movido contra Felix Cohen Zaide, dono da Gráfica Lux. A gráfica era responsável
pela impressão de parte do catálogo da Civilização, o que inclui todos os números
da Revista Civilização Brasileira.
Contribuíram também para a crítica situação financeira em que a editora
mergulhou ao longo da ditadura o corte de créditos e a proibição de negociar com
instituições públicas, especialmente com o Banco do Brasil. Não tendo outra
opção, Ênio foi obrigado a pedir concordata em 1966. Depois de vender grande
parte de seu patrimônio pessoal e de lutar ferozmente para saldar as dívidas,
conseguiu reequilibrar, por algum tempo, as finanças da editora. Uma carta sua a
Glauber Rocha, de 25 de novembro de 1975, mostra a precária situação em que a
empresa se encontrava. Ênio respondia a um pedido de ajuda financeira
56
(adiantamentos a serem pagos por originais que Glauber enviaria para publicação)
feito pelo cineasta, então exilado na Europa. Diz Ênio:
“Como seu amigo e admirador há tão longo tempo, é evidente que
procurarei ajudá-lo. Não tenho condições, entretanto, de o fazer na medida
de suas necessidades e com a urgência reclamada. Se você é um exilado na
Europa, lembre-se de que também o sou, aqui dentro. Preso e processado
tantas vezes, sofro agora os reflexos econômicos que minha condição de
paria me traz: o establishment não me topa e poucos são os banqueiros que
querem financiar a Civilização, tida e havida por eles como
permanentemente consorciada com o ‘inimigo’... Vivemos, pois, um dia-adia de riscos, e a simples sobrevivência já constitui feito heróico.”
(ROCHA, 1997, p.542)
Depois de algumas considerações práticas sobre as propostas enviadas por
Glauber e sua adequação ao mercado editorial brasileiro, Ênio termina com uma
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mensagem que dá o tom de seu posicionamento: “Aguardo essas providências
para verificar como, quando e de que forma poderei ajudá-lo. Até lá, agüente as
pontas, que a luta mal começou...” (Id., p.543)
Ainda sobre esses problemas financeiros, diz Hallewell:
“Já em meados de 1970 a recusa de crédito bancário fora eficiente o
bastante para obrigá-lo a levantar capital de giro por meio de vultosas
liquidações, até mesmo de obras como o Dicionário das artes plásticas no
Brasil, de Roberto Pontual, livro de referência absolutamente não polêmico
(porém caro), publicado apenas um ano antes, e que em circunstâncias
normais teria tido uma vendagem firme e garantida por vários anos”.
(HALLEWELL, 1985, p.497)
A fúria dos militares e dos grupos de extrema-direita, porém, ia além do
simples corte de créditos. Na madrugada do dia 14 de outubro de 1968, Ênio
Silveira estava em casa, dormindo, quando recebeu o telefonema do senhor que
fazia a segurança da livraria da editora, na rua Sete de Setembro. O antigo
sargento, expulso do exército por ser de esquerda, estava apavorado: haviam
colocado uma bomba na livraria e metade da fachada tinha vindo abaixo. Ênio
correu para o local e ficou petrificado diante da cena: quase cinqüenta cabeças
espalhadas pelo chão diante dos escombros. Um instante depois, porém, percebeu
o que de fato acontecera: uma loja de perucas, ao lado da livraria, fora também
atingida pela explosão, e os manequins haviam se espalhado pela calçada.
57
Esse seria apenas o primeiro atentado. Em novembro de 1970, um
misterioso incêndio arrasaria novamente a livraria e os escritórios centrais da
editora. Três anos antes, em janeiro de 1967, a livraria Freitas Bastos, vizinha à
Civilização, sofrera um incêndio muito parecido, cujas causas nunca foram
descobertas. Muitos acreditam que a Freitas Bastos foi incendiada, por engano,
pelo mesmo grupo que, em 1970, atingiu o alvo certo – a Civilização Brasileira.
O editor Ênio Silveira foi preso sete vezes durante a ditadura. Uma delas
foi no dia de seu aniversário, quando Ênio reunira alguns amigos em sua casa.
Armados com metralhadoras, os soldados invadiram o apartamento, prenderam
Ênio e perguntaram por outros intelectuais também sob ordem de prisão. Um
deles era o escritor Antônio Callado, que chegava justamente naquele momento à
festa. Em inglês, Ênio advertiu o amigo, que não foi reconhecido pelos policiais e
conseguiu assim se livrar da prisão. Em dezembro de 1968, logo após a
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publicação do AI-5, Ênio foi preso novamente. Em maio de 1970, Ênio foi detido
por ter publicado, em 1965, o livro Brasil – guerra quente na América Latina, de
João Maia Neto. No final de outubro do mesmo ano, Ênio foi preso pela sexta vez,
sob a mira de duas metralhadoras, sem qualquer justificativa. Sua liberação, dez
dias depois, também nunca foi explicada.
Em uma de suas prisões, Ênio perguntou ao coronel Gerson de Pina por
que havia tanto ódio contra a Civilização Brasileira. A resposta dá uma medida da
importância do livro como instrumento de difusão cultural e do destaque que Ênio
alcançara nessa área:
“Porque você é uma das mais eficientes armas de sabotagem de nossos
princípios de vida. Uma editora (...) é uma arma perigosíssima, que você
arma silenciosa e constantemente. Por isso é que você foi preso. Você é
mais perigoso pra nós que um sujeito que está assaltando um banco”.
(FERREIRA, 1992, p.94)
3.7.
O Albatroz
Durante a década de 70, Ênio foi sendo absolvido das acusações que
pesavam contra ele. Possivelmente as autoridades se sentiram um pouco
58
constrangidas pelo fato de a imprensa e a Anistia Internacional estarem dando
publicidade ao caso. Apesar das dificuldades cada vez maiores, a editora
continuava lançando títulos importantes na oposição ao regime: A origem da
família, da propriedade privada e do estado, de Engels, em tradução de Leandro
Konder (1974); O golpe de ’64: a imprensa disse “não”, de Thereza Cesário
Alvim (1979); Fazenda modelo, de Chico Buarque (1974); Bar Don Juan, de
Antônio Callado (1972 – antes, em 1967, a Civilização havia lançado, do mesmo
autor, o romance Quarup).
A ação oficial contra os clássicos do socialismo teórico foi abrandada na
década de 70. A repressão estava mais voltada para obras que fizessem críticas
diretas à situação do país. Assim, a Civilização pode vender cerca de 50 mil
exemplares de O Capital no Brasil e mais cerca de 20 mil em Portugal (que estava
sob o impacto da recente Revolução dos Cravos, de 1974). (HALLEWELL, 1985,
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p.498) Foi também em meados de 1970 que a Civilização passou a investir na
venda de livros pelo Correio, o que chegou a representar 5% de seu total de
vendas.
Em 1978, com o abrandamento da censura, Ênio pode relançar a Revista
Civilização Brasileira, agora sob o nome Encontros com a Civilização Brasileira.
Esse novo periódico também teve enorme sucesso, tendo 29 números publicados
entre julho de 1978 e janeiro de 1982. Com o início da abertura, certos temas
deixaram de ser tabu. Sobre esse momento, Ênio comentou, em seu discurso de
posse no Pen Club do Brasil, em agosto de 1991:
“Mas, por um desses paradoxos que tornam ainda mais confusa a história de
certas pessoas e de determinadas nações, a restauração da ordem
democrática, ou, melhor dito, da ‘aparência democrática’, tornou como que
redundante ou supérflua nossa atitude de partisans editoriais. Exaurida por
anos de luta, que lhe consumiram o modesto patrimônio material a duras
penas amealhado, a Civilização Brasileira e eu mesmo nos demos conta de
que estávamos agonizando, em termos empresariais, ao chegar à praia
depois da tempestade. Seríamos como o albatroz do famoso poema de
Baudelaire?” (FELIX, 1998, p.78)
O ímpeto combativo da Civilização Brasileira parece ter abrandado um
pouco nesse período do início da abertura, possivelmente em função de problemas
de saúde vividos por Ênio Silveira:
59
“E também fiz minha própria história fantástica. Tive uma isquemia
cerebral, fiquei totalmente paralítico do lado esquerdo. Um quadro de
isquemia provocado por tensão nervosa. De repente eu fiquei paralítico e
não pude falar direito durante três meses. Tive que reaprender a andar (...).
Isso aconteceu como subproduto do golpe”. (Id., ibid.)
Apesar de ter conseguido sair da concordata e saldar algumas dívidas com
a liquidação de títulos importantes e com a venda de patrimônio pessoal, Ênio
continuava com uma empresa combalida nas mãos. Procurou então se associar
com outras editoras, mas não apareceram muitas propostas. Por fim, em 1985,
Ênio entrou em contato com o empresário português Manuel Bulhosa, um
banqueiro milionário que já havia comprado a editora Difel, de São Paulo.
Interessado em expandir seus negócios no Brasil, Bulhosa comprou 80% da
Civilização Brasileira, tendo firmado o acordo de não desvirtuar sua linha
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editorial. Bulhosa declarou-se grande admirador de Ênio – embora não
concordasse com suas idéias políticas –, e lhe pediu que continuasse como diretor
da empresa. De fato, Bulhosa cumpriu o acordo, e nunca vetou, por razões
ideológicas, sequer um título proposto por Ênio. Algum tempo depois, Ênio
vendeu a Bulhosa os vinte por cento das ações da editora que lhe restavam.
“Sou muito grato ao Bulhosa pelo simples fato de ele ter mantido a
Civilização Brasileira. Não importa que eu seja hoje, de uma empresa que
foi minha, um mero assessor. O importante é que a empresa continua
atuando. Ele, absolutamente capitalista, recomeçou a empresa, que agora
está novamente estável, está se reerguendo financeiramente. E eu continuo
com muita liberdade”. (Id., p.81)
Por mais de dez anos, até a sua morte, Ênio continuou como diretor da
civilização e como conselheiro da Bertrand – grande editora de Bulhosa em
Portugal, que depois inaugurou aqui a Bertrand Brasil – e da Difel. Em 1996,
pouco depois da morte de Ênio, Bulhosa vendeu o grupo BCD (Bertrand,
Civilização e Difel) para o poderoso grupo Record. Parece que o empresário
português mantinha suas editoras no Brasil como uma espécie de deferência
especial ao editor que tanto admirava. Hoje a Civilização Brasileira funciona
como um selo dentro do grupo Record, relançando importantes títulos do antigo
catálogo e incorporando novos autores.
60
Para concluir, mais uma citação de Laurence Hallewell. Embora longo, o
trecho sintetiza a importância do editor Ênio Silveira e de sua empresa, a editora
Civilização Brasileira, como pólos de resistência e coragem política, difusão
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cultural, modernização e democratização do livro no Brasil:
“Pelo menos de igual importância, para o desenvolvimento da indústria
editorial brasileira, foi o exemplo dado por Ênio Silveira na administração
de sua própria empresa, a Civilização Brasileira. Sua contribuição em
métodos administrativos, publicidade, produção gráfica e política editorial
foi, no conjunto, quase tão importante, em seu tempo, quanto haviam sido as
inovações de Monteiro Lobato.
Como Lobato, Ênio Silveira é um radical; mas, enquanto Lobato
virtualmente abandonou a atividade editorial para dedicar-se a suas
campanhas políticas, a política de Ênio Silveira encontrou expressão em seu
trabalho editorial – a ponto de pôr em risco a própria existência de seu
negócio durante os primeiros anos após a revolução de 1964.
O autor em desacordo com um régime que tema ultrapassar os limites
da tolerância oficial pode freqüentemente imitar Victor Hugo ou Karl Marx,
fugindo para o estrangeiro para disseminar suas idéias malquistas a partir do
abrigo seguro do exílio. Um editor não tem essa opção: ou calará sua crítica,
ou se exporá, e seu negócio, a enorme variedade de sanções de que dispõe o
Estado moderno. E enquanto o autor perseguido tem quase que assegurada a
simpatia do público, o editor que tomba, vítima das formas mais insidiosas
de pressão governamental (tais como restrição de crédito ou tributação
injusta) pode ver sua própria ruína popularmente atribuída a mera inépcia
comercial. Contudo, aparecem ocasionalmente homens dispostos a correr
esse risco por suas convicções. Ênio Silveira manteve-se fiel a uma política
editorial que pôs à prova os limites de tolerância de todos os governos,
desde Castello Branco até Geisel. Como resultado disso, sofreu contínuos
prejuízos financeiros e dilapidação de patrimônio, repetidas prisões e pelo
menos uma tentativa de assassinato”. (HALLEWELL, 1985, p.445)
4
A Revista
A Revista Civilização Brasileira (RCB) teve vinte e dois números
publicados entre março de 1965 e dezembro de 1968. Sua importância como
núcleo de resistência intelectual à crescente opressão da ditadura militar é
destacada por todos os que viveram a época. Estudar esse periódico, analisando
seu conteúdo e fazendo uma breve síntese de suas características físicas é,
portanto, uma forma de recuperar uma parte significativa da memória do nosso
país. É uma tentativa de descobrir o que aquelas páginas amareladas contêm e
como podem contribuir, nos dias atuais, com exemplos de dignidade, coragem e
coerência. Aqui, se fará uma abordagem mais geral da Revista e de suas diversas
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seções. O capítulo seguinte será dedicado a uma análise mais detalhada sobre o
conteúdo de literatura e de crítica literária presente na publicação.
4.1.
O objeto
No formato de 14 x 21cm e com uma média de 300 páginas por volume, a
RCB assemelha-se, visualmente, a um livro. Sua periodicidade bimensal, porém, e
seu conteúdo altamente diversificado e ligado às questões mais prementes da
época em que era publicada fazem dela um periódico no sentido clássico. Seu
preço sofreu pequenas alterações ao longo dos números, em função da alta
inflação e das mudanças no sistema monetário do período. Os números de 1 a 4
custavam CR$1500. O número 5-6 custava CR$2000.4 O número 7 traz também
impresso na capa o preço de CR$2000, mas um carimbo se sobrepõe indicando a
alteração: CR$3000, valor que se manterá até o número 11-12. A partir daí muda
4
Algumas vezes, dois números da Revista foram publicados em um só volume. As razões para
isso nem sempre ficam claras, mas era comum haver atrasos em função de problemas financeiros
ou de dificuldades na reunião dos artigos e das colaborações. Em muitas ocasiões as dificuldades
eram impostas pela repressão política, direta ou indiretamente (ver, por exemplo, o comentário ao
editorial do n.5-6, mais adiante).
62
a moeda, e passa-se a trabalhar com valores em cruzeiros novos.5 Os volumes 13 a
17 custam NCr$3,00, o volume 18 custa NCr$4,00 e os dois últimos, 19-20 e 2122, custam NCr$5,00.
Todos os números foram impressos na Companhia Gráfica Lux, de
propriedade de Felix Cohen Zaide. Como já se disse no capítulo anterior, Zaide
foi perseguido por ser um dos principais fornecedores de serviços gráficos à
Editora Civilização Brasileira. Vendida nas livrarias ou podendo ser adquirida por
assinatura – inclusive no exterior –, a Revista chegou a ter, em alguns números, a
impressionante tiragem de 20 mil exemplares, esgotados rapidamente. É
interessante notar, quanto à tiragem, que não há uma indicação precisa a esse
respeito nos exemplares da Revista. O número 2, porém, traz uma pequena nota
introdutória que expressa a alegria dos editores por ter a tiragem de 10 mil
exemplares do número 1 se esgotado em apenas 25 dias. Duas notas na seção
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literária do Correio da Manhã confirmam esse espantoso sucesso inicial: na
primeira, de 04 de abril de 1965, José Condé afirmava: “Quinze dias após o
lançamento da Revista Civilização Brasileira, seis mil exemplares – dos dez mil
distribuídos no Rio e em São Paulo – já tinham sido vendidos, o que atesta o êxito
absoluto da nova publicação idealizada e dirigida por Ênio Silveira”. A segunda,
de 27 de maio, anuncia o lançamento do segundo número, e destaca: “o primeiro,
de 10 mil exemplares, teve a edição esgotada em vinte e cinco dias”. (CONDÉ,
1965) (ver ANEXO). No número 5-6, outra nota da direção da Revista
mencionava a tiragem de 20 mil exemplares:
“Plataforma para o debate e a exposição livre de idéias, a REVISTA
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA – apesar de todas as dificuldades que o próprio
quadro cultural de nossa Pátria já oferecia ao seu progresso – alcançou a
partir do segundo número a tiragem de 20.000 exemplares, cifra expressiva
em qualquer parte do mundo para uma revista do gênero”. (RCB, n.5-6, p.3)
Mais adiante, na mesma nota, mencionava-se a existência de assinantes no
exterior: “(...) aqui estamos de novo em contacto com nossos leitores que, hoje, já
incluem centenas de assinantes em vários países da Europa e América, inclusive
nos Estados Unidos”. (Id., p.3)
5
Em fevereiro de 1967, a moeda mudou do cruzeiro para o cruzeiro novo, com o corte de três
zeros (CR$1000 = NCr$1,00).
63
Não é tão difícil compreender o sucesso da RCB. A ditadura implantada
com o Golpe de 64 ainda não tinha calado a voz da imprensa e da
intelectualidade, como o faria a partir de dezembro de 1968, embora já começasse
a exercer uma forte pressão sobre os que se manifestavam contra o regime. O
clima pesava com as denúncias cada vez mais freqüentes de tortura, com os
exílios forçados, com as cassações. Os fatos ainda eram muito recentes, e os
rumos, incertos. A tensão e a inquietação levaram a um movimento de intensa
análise da situação, em termos políticos, econômicos e culturais. Expor as
relações de poder – nacionais e internacionais – que levaram ao Golpe era uma
forma de tentar compreendê-lo, e de organizar uma reação. Os intelectuais de
esquerda – e é necessário frisar mais uma vez: não apenas os marxistas ortodoxos,
mas de todos os matizes da esquerda – encontraram na RCB um veículo de
expressão e livre debate de suas idéias. Laurence Hallewell atribui parte de seu
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êxito inicial a uma relação entre a RCB e a extinta Revista Brasiliense: “Parte do
êxito da Revista, talvez fosse devida ao fato de que ela veio preencher a lacuna
deixada pelo desaparecimento da Revista Brasiliense. Esta era algo semelhante,
porém mais tradicionalmente uma revista marxista ortodoxa, fundada por Caio
Prado Júnior em 1955 e que saiu pela última vez em fevereiro de 1964”.
(HALLEWELL, 1985, p.486) Seja pelo motivo que fosse, o fato é que a
intelectualidade nacional – e parte da internacional também – estava ávida por um
espaço em que fossem discutidos com coerência e clareza, sem sectarismos, os
rumos que o país vinha tomando. Mais se falará, adiante, sobre as características
ideológicas da RCB, o que ajudará a compreender melhor esse sucesso de vendas.
Quanto à capa, a RCB teve dois padrões. O primeiro, que vigorou até o
número 11-12, trazia o desenho de um homem rústico e forte, com um grande
chapéu de palha na cabeça e um peixe na mão. Alguns traços retos completavam a
imagem vazada em branco contra um fundo que variava de cor a cada edição (ver
ANEXO). O tom geral era de simplicidade e economia; o resultado enxuto e, de
certa forma, duro, apontava para uma identificação com a dureza daqueles
tempos, com a simplicidade do povo e com a força dos trabalhadores. Além do
desenho e dos traços, essas primeiras capas traziam em destaque, além do nome
da revista (todo em letras minúsculas), alguns autores e artigos. O preço e o
número completavam o conjunto. A partir do número 13, porém, a composição da
capa foi alterada. O desenho deu lugar a uma divisão em cinco retângulos. Nos
64
dois quadros superiores, o nome da revista, acompanhado do preço e do número, e
o símbolo da editora, em grande destaque. Imediatamente abaixo, um dos quadros
destacava alguns artigos e seus respectivos autores e o outro trazia uma imagem
em duas cores relacionada a um dos temas destacados. O retângulo inferior, que
ocupava toda a largura da revista, trazia também uma imagem, que podia ser
inclusive uma ampliação da que viera no quadro acima. Essa imagem, que
predominava na distribuição gráfica dos elementos visuais, dava o tom geral da
capa, indicando algum tema importante abordado na Revista. Com essa alteração,
as capas passaram a ser mais modernas e dinâmicas, contando com maior força e
impacto visual. O curioso é que, embora a Editora Civilização Brasileira tivesse o
hábito de indicar o capista de seus livros, o responsável pelas capas da Revista
não é mencionado. Os depoimentos colhidos, de pessoas que colaboraram e
trabalharam de perto na elaboração de diversos números, também não
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acrescentaram nenhuma informação a esse respeito. Eunice Duarte, assistente de
Ênio Silveira na Editora por cerca de dez anos, afirma ter a lembrança de que o
próprio editor idealizava as capas e algum funcionário da casa simplesmente as
executava. Seja como for, as capas da Revista funcionavam como uma vitrine ou
janela para o seu interior.
As ilustrações internas eram poucas. Raros artigos eram acompanhados por
algumas fotografias, sempre em preto e branco e impressas em um caderno com
papel especial. Um exemplo são as imagens que acompanham a entrevista
concedida pelo artista plástico Ivan Serpa ao poeta Ferreira Gullar, no número 2,
intitulada “O artista já não pode fechar-se em si mesmo”. As fotografias mostram
o artista e alguns de seus quadros. Outras matérias ilustradas com fotos são, por
exemplo, o artigo de Mário Barata sobre o fotógrafo Fernando Goldgaber
(número 3) e uma entrevista do escultor paraibano Fernando Jackson Ribeiro a
Ferreira Gullar, intitulada “Eu não sei para que serve a minha arte”, publicada no
número 1.
As ilustrações que aparecem com maior freqüência, em quase todos os
números, são as charges do cartunista Jaguar. Sem estar relacionadas a matérias
específicas, as charges criticavam, com humor e ironia, diversos aspectos da
realidade social, política e cultural do país e do mundo.
Com seu traço
contestador e irreverente, Jaguar “colocava o dedo na ferida”, não poupando nem
mesmo o meio intelectual. O número de charges publicadas em cada edição da
65
Revista era irregular, assim como sua distribuição pelas páginas. Com isso, os
desenhos de Jaguar pontuavam as reflexões mais profundas contidas nos artigos
com seu humor ácido, e ajudavam a reconstruir dentro da Revista o clima geral
em que vivia a sociedade brasileira na época. (ver ANEXO)
Além das fotografias e das charges, inúmeros anúncios publicitários eram
intercalados com os artigos. Todos, entretanto, voltados para a indústria editorial
ou fonográfica. Anúncios dos Discos Festa6 dividiam espaço com os que
apresentavam lançamentos de editoras como a Zahar, a José Olympio, a
Brasiliense, a Companhia Editora Nacional, a Paz e Terra e, é claro, a própria
Civilização Brasileira (ver ANEXO). Na sua maioria, os livros anunciados
tratavam de temas sociológicos, históricos ou políticos, de modo geral
contribuindo para a conscientização a respeito dos fatores relevantes implicados
na configuração política e social do mundo na segunda metade da década de 60.
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Títulos significativos, que podem exemplificar essa tendência, são O Capital, de
Marx, O poder jovem, de Arthur José Poerner, as biografias de Trotski e de Lênin,
além de outros que tratavam da Guerra do Vietnã, das revoluções na América
Latina, do movimento estudantil, da Rússia e do nazismo. Em todos os números
da Revista, as contracapas e a quarta capa eram sempre dedicadas à publicidade.
As primeiras páginas da Revista eram sempre ocupadas pelo “Roteiro”,
chamado de “Índice” a partir do número 13.7 Até o número 10, o “Roteiro”
agrupava os artigos em categorias que indicavam os principais temas sobre os
quais se debruçava a Revista. Eram elas: Política Nacional, Política Internacional,
Economia, Literatura, Cinema, Teatro, Artes Plásticas, Música, Documentário,
Problemas Culturais e Filosóficos, Ciência e Tecnologia, Cultura Popular, Direito,
Problemas Sociais e Políticos, História e Notas de Leitura. Evidentemente, nem
todos os números traziam artigos em todas as categorias, de modo que
eventualmente alguma delas não era publicada. Do número 11-12 em diante,
porém, esse agrupamento por categorias foi eliminado. O “Roteiro” ou “Índice”
passou a listar apenas os títulos dos artigos e os nomes dos autores, sem fazer
qualquer divisão temática. Isso provavelmente se explica por uma diminuição no
número de contribuições ou por dificuldades financeiras que impuseram uma
6
Produtora de altíssima qualidade cultural, de propriedade de Irineu Garcia, em parceria com o
poeta Thiago de Mello.
7
Em alguns números posteriores, essas duas nomenclaturas convivem ou se alternam.
66
redução no tamanho da Revista. Com menos artigos, uma divisão em blocos
temáticos não era mais necessária. É preciso lembrar que houve um processo de
endurecimento do regime ditatorial contra as manifestações da oposição, e que
isso tornou o trabalho dos editores e dos colaboradores da RCB mais difícil e
arriscado.
4.2.
Direção e Conselho de Redação
Possivelmente também por problemas com a repressão, o quadro com os
nomes dos integrantes do Conselho de Redação da Revista deixou de ser
publicado a partir do número 5-6. Até o número 4, figurava como diretor
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responsável o editor Ênio Silveira e como secretário o filósofo Roland Corbisier.
Como integrantes do Conselho, Alex Viany, Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Cid
Silveira, Dias Gomes, Edison Carneiro, Ferreira Gullar, Haiti Moussatché, M.
Cavalcanti Proença, Moacyr Felix, Moacir Werneck de Castro, Nelson Lins e
Barros, Nelson Werneck Sodré, Octavio Ianni, Paulo Francis e Oswaldo Gusmão.
Abaixo da lista dos nomes, uma nota advertia que as matérias não-assinadas eram
de responsabilidade do Conselho de Redação. No entanto, o jornalista Moacir
Werneck de Castro (cujo nome inclusive não consta do Conselho de Redação
publicado no número 4) afirmou em depoimento para este trabalho que o
Conselho não tinha uma participação efetiva nas decisões e na seleção de material
para a Revista. Muitas vezes os nomes que ali constavam haviam sido incluídos
por uma questão de cortesia ou de amizade. “Não haveria nem tempo para sentar
e discutir entre todos o que ia ou não ser publicado”.8 Eunice Duarte, em seu
depoimento, confirmou esse distanciamento. Segundo ela, apenas Paulo Francis,
Ênio Silveira, Moacyr Felix e ela própria estavam envolvidos diretamente na
produção da RCB. As contribuições chegavam espontaneamente (quase nunca se
encomendava uma matéria ou artigo a alguém), eram analisadas e alocadas nos
diferentes números publicados.
8
Depoimento de Moacir Werneck de Castro à autora.
67
Há uma quebra na periodicidade da Revista após o número 4, publicado em
setembro de 65. O número 5, que deveria sair em novembro, sai apenas em março
de 66, junto com o número 6. Esse volume, que não traz mais a relação dos nomes
do Conselho de Redação, aponta como diretor responsável M. Cavalcanti Proença,
e como secretário, Moacyr Felix. Essas alterações, somadas ao atraso na
publicação, podem indicar que a Revista passara por alguns problemas com o
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regime. De fato, a nota da direção que abre o volume afirma:
“Pretendendo manter-se em postura crítica diante de fatos, personalidades,
correntes de pensamento e passageiras configurações políticas, é
compreensível que [a RCB] tenha sido obrigada a suportar as
incompreensões e violências com que esse legítimo direito democrático
costuma ser enfrentado, em todos os quadrantes, por autoridades que se
julguem detentoras da verdade única e inquestionável. (...) Lamentamos a
quebra involuntária de periodicidade, mas esclarecemos que o atraso na
publicação deste número, que se deve à soma de circunstâncias políticas que
têm mantido em sobressalto a Nação e nos obrigaram a diversas
modificações estruturais e administrativas, não significa qualquer alteração
em nossa linha de conduta”. (RCB, n.5-6, p.3)
Laurence Hallewell, em O livro no Brasil, destaca a importância da Revista
e afirma, sobre a alteração da Direção no número 5-6: “Em outubro de 1965,
pressões do governo Castello Branco obrigaram Ênio Silveira a retirar-se da
direção nominal tanto da Revista como da editora para evitar que houvesse uma
ação oficial direta contra elas. Naquela altura ele já fora preso três vezes”.
(HALLEWELL, 1985, p.486) Carlos Nelson Coutinho afirma também que o
afastamento de Ênio foi mais para poupar a Revista do que para preservar a si
próprio. “Ele nunca se preocupou em não se expor”.9 Para a então ingrata tarefa
de se expor e assumir os riscos da direção da editora ofereceu-se, num gesto de
extrema generosidade, coragem e dignidade, o historiador Hélio Silva. Ênio
Silveira foi grato a ele por toda a vida.
A direção indicada no número 5-6 permanece inalterada até o número 8, de
julho de 66. O número 9-10 é lançado apenas em novembro desse ano. A nova
quebra de periodicidade não é explicada, mas a alteração na direção sim: M.
Cavalcanti Proença falecera, sendo substituído no cargo de diretor responsável
por Moacyr Felix. Como secretário, assume o dramaturgo Dias Gomes. O texto
9
Depoimento de Carlos Nelson Coutinho à autora.
68
editorial, intitulado “Duas perdas irreparáveis”, lamenta a morte de Proença e
também a do compositor Nelson Lins e Barros, responsável pela seção de música
da RCB. Diz o texto: “Vivemos em profunda tristeza, nos dias que correm,
quando – além do panorama sombrio que nos cerca – somos atingidos, todos nós
que participamos da REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, por duas perdas
irreparáveis (...)”. (RCB, n.9-10, p.3) No mesmo número, um belo texto de Carlos
Drummond de Andrade em homenagem a M.Cavalcanti Proença é publicado,
bem como um de Sérgio Cabral em homenagem a Nelson Lins e Barros. Até o
último número, em dezembro de 68, Moacyr Felix e Dias Gomes permaneceriam
como diretor responsável e secretário, respectivamente.
4.3.
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Editoriais
Nem todos os números da Revista traziam editoriais, que, quando
apareciam, eram sempre bastante diversificados quanto ao tema e à forma. O
primeiro editorial, intitulado “Princípios e propósitos”, apresenta a Revista e
estabelece sua linha ideológica. Por sua importância para a compreensão do
periódico como um todo, será aqui analisado em detalhes.
O texto inicia-se com uma breve consideração sobre a História como um
processo de contínuo desafio, em que as conseqüentes vitórias ou derrotas levam
a novos desafios. Em seguida, passa a colocar uma série de questões sobre a
capacidade do povo brasileiro de superar “as forças que se opõem ao
desenvolvimento do País, numa linha democrática e independente” e de
“abandonar formulações meramente especulativas e, através do estudo objetivo de
todas as componentes da realidade nacional, equacionar e depois resolver seus
graves problemas”. Como resposta a essas provocadoras indagações, uma
categórica afirmação: “Cremos que sim”. E mais: a tarefa de “estudar em seus
mínimos pormenores a complexidade da vida brasileira” recai principalmente
sobre os intelectuais. Um princípio básico, porém, deve servir como ponto de
união entre todos os estudiosos: o de que “sem liberdade no mais amplo sentido
não será possível retirar a Nação e seu povo do limbo em que se encontram”.
(RCB, n.1, p.3)
69
Há uma consideração sobre o golpe de abril e seu impacto no projeto
intelectual de superação das dificuldades brasileiras que merece ser destacada,
pois aponta, de certa forma, para a relação entre cultura e repressão: “O golpe de
abril, sendo mero episódio da crise crônica em que nos encontramos, certamente
dificulta, mas por isso mesmo estimula, abre novas perspectivas e torna inadiável
a tarefa que lhes cabe [aos intelectuais] executar”. (Id., ibid.)
A RCB surge então, com esses propósitos definidos, pretendendo ser o
veículo de divulgação sobre os estudos e as pesquisas acerca da realidade nacional
e um grande fórum de debates. Ressalva-se que a publicação “fugirá
deliberadamente ao gratuito, porque acredita indispensável um alto índice de
objetividade aos trabalhos que acolher em suas páginas”. Não se ocupará,
portanto, de “faits divers”, mas apenas daquilo que tenha conteúdo e sentido e que
“se insira no processo da revolução brasileira”. (Id., pp.3-4)
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Uma idéia é mencionada várias vezes ao longo do texto: a de que a Revista
não se prenderá a limitações partidárias ou individualistas, buscando sempre
amplitude de visão. Isso é reafirmado sempre com bastante força e clareza: “(...) a
REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA não será orientada por qualquer partido ou
concepção sectária”. (Id., p.4) No entanto, os editores julgam necessário ressaltar
que essa atitude de ampla aceitação e de rejeição ao sectarismo não deve ser
tomada como sinal de que se publicarão todos os tipos de pensamento:
“É preciso deixar bem claro que [a Revista] não somente repudiará como
abertamente combaterá tudo aquilo que admitir como válida ou moralmente
correta a presente estrutura sócio-econômica do Brasil, ou entender como
inevitável e até mesmo necessária a submissão dos interesses nacionais ao
das grandes potências, sejam elas quais forem”. (Id., ibid.)
A partir dessa afirmação, passa-se a considerar o espaço a ser dado para as
contribuições estrangeiras. Afirma-se que serão acolhidas todas as manifestações
e expressões internacionais que “contribuam para a melhoria da condição
humana”, sem que isso resulte numa limitação imposta por “um nacionalismo
sentimentalóide e estreito”. O editorial aproveita para criticar mais uma vez os
rumos da política nacional, afirmando que a Revista “por certo não cairá nos
esquemas geopolíticos, nos planejamentos estratégicos continentais que o State
70
Department e o Pentágono idealizam e que certas figuras da política nacional
executam”. (Id., ibid.)
Encerrando o texto, uma última reafirmação do princípio de abertura e
liberdade, e uma mensagem de esperança:
“Não nos fixaremos, portanto, em posições ou postulações herméticas. Há
um mundo em movimento em torno de nós, o futuro se nos afigura
auspicioso e queremos participar desse estado dinâmico e alcançar dias
melhores para o Brasil e a humanidade”. (Id., ibid.)
Pode-se, portanto, resumir a orientação da RCB em dois princípios básicos e
em um propósito principal: os princípios de liberdade – ou democracia – e de
crença num futuro melhor e o propósito de ser um espaço para o estudo e o debate
profundo das questões brasileiras, sempre voltados para a superação das
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desigualdades sociais e do atraso em que o País se encontrava – e se encontra
ainda hoje. De fato, ao longo de todos os números se poderá observar a coerência
mantida em relação a essas postulações iniciais.
O segundo número da Revista traz, em lugar do editorial, a reprodução de
uma entrevista concedida pelo marechal Henrique Teixeira Lott ao Correio da
Manhã. Uma pequena nota introdutória explica que o texto preparado pela
Direção para abrir o volume – em que se manifestava “o júbilo pela extraordinária
acolhida que teve nossa Revista em todo o País”, tendo a primeira edição, com
tiragem de 10 mil exemplares, se esgotado em apenas 25 dias, como já foi dito
aqui – foi substituído pela entrevista do marechal Lott por ser ela “uma síntese
precisa de tudo aquilo que desejaríamos dizer”. E o que diz Lott, ou pelo menos o
tom geral do que ele afirma, está de certa forma resumido no parágrafo inicial de
sua fala:
“Só é legal o Poder que emana do povo e que em seu nome é exercido; a
autoridade não será legítima se não se basear nesse princípio. É por esse
motivo que as ditaduras só se mantêm pela violência e pela corrupção. A
mais frágil das ditaduras é, exatamente, a ditadura militar porque de um lado
contribui para impopularizar as Forças Armadas e de outro as contamina
com o micróbio da corrupção”. (RCB, n.2, p.3)
Mais adiante, quase ao final da entrevista, afirma:
71
“Não é compreensível falar-se em Democracia sem plena liberdade de
reunião, de pensamento e de imprensa, sem liberdade sindical, sem
liberdade de cátedra, sem liberdade nas universidades e nas organizações
estudantis”. (Id., p.4)
Com isso, pode-se dizer que os dois primeiros números da Revista abrem
seus volumes com manifestações abertamente contrárias ao regime instalado pelo
Golpe de 64. O mesmo tom, evidentemente, se manterá nos artigos que os
compõem. Nos números 3 e 4, no entanto, essa oposição ao governo militar se
fará de forma ainda mais direta: o editor da Revista – e dono da Editora
Civilização Brasileira – Ênio Silveira dirige-se diretamente ao presidente Castello
Branco em suas duas famosas “Epístolas ao marechal”, a primeira intitulada
“Sobre o ‘Delito de opinião’”, e a segunda, “Sobre a vara de marmelo”. Com uma
linguagem fina e irônica, Ênio começa sua primeira carta mencionando o livro
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The Presidential Papers, do escritor americano Norman Mailer. Nele, Mailer
reuniu as cartas que ele mesmo escrevera ao Presidente John F. Kennedy e que
publicara nas revistas com as quais colaborava. Nessa correspondência unilateral,
Mailer analisava e desenvolvia temas os mais variados: de política externa (com
uma crítica à invasão de Cuba e ao vergonhoso episódio da Baía de los Cochinos)
a delinqüência juvenil nos Estados Unidos, passando inclusive pelo campeonato
mundial de boxe. A premissa de que parte Mailer – e de que Ênio Silveira se
apropria – é a de que “o exercício de um mandato presidencial freqüentemente
aliena da realidade do dia-a-dia quem dele se desincumba”, (RCB, n.3, p.3) e que
essa visão externa e desinteressada pode ser muito útil para a tomada de decisões
importantes.
Foi a partir da leitura do livro de Mailer que Ênio teve duas idéias: primeiro,
a de editar o livro em português (o que fez em 1966); segundo, a de fazer o
mesmo que o norte-americano, e passar a estabelecer uma correspondência
“igualmente unilateral, igualmente voluntária, igualmente audaciosa” com o
Presidente. Ênio pede desculpas pelo tratamento pouco protocolar, mas justifica-o
pelo desejo de estabelecer “um tom menos rígido, menos palaciano, mais
coloquial, de cidadão para cidadão”. É preciso esclarecer que Ênio não omite um
detalhe importante: só tivera chance de ler o livro de Mailer poucas semanas
antes, quando se encontrava preso “por obra e graça do Cel. Intendente Gerson de
Pina” no Quartel do I Batalhão da polícia do Exército, no Rio de Janeiro. Ênio
72
segue com sua sutil ironia ao afirmar que hoje tem a impressão – que antes não
tinha – “de que o Senhor deseja – como eu – a felicidade da Pátria”. No entanto,
não compreende por que o Presidente parece ser um adepto do monólogo.
Reconhece que dificilmente o marechal encontrará tempo ou interesse para lê-lo,
ele que é “hoje um dos 486 brasileiros que o seu governo considera indesejáveis
para o trato público da coisa pública”. “Além disso, o Senhor poderia argumentar
que eu não sou Norman Mailer; mas o Senhor também não é John Fitzgerald
Kennedy (...)”. (Id., p.4) Ênio reafirma então seu desejo de escrever, mesmo que
não seja lido, ao menos para fazer uma catarse. E essa catarse se inicia com uma
auto-apresentação, uma espécie de resumo biográfico. A opção por essa estratégia
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justifica-se por lhe parecer
“(...) perfeitamente normal que o Senhor não tenha a mínima idéia de quem
– ou do que – eu seja. Tomo, por isso, liberdade de lhe dar um breve retrato
pessoal, cuja utilidade adiante se verá, e que, caso lhe falte outro destino,
poderá completar as fichas do Conselho de Segurança Nacional e do SNI”.
(Id., p.5)
De sua trajetória pessoal, Ênio passa a uma consideração da situação
política e social do país, fazendo uma sucinta mas aguda análise das conjunturas
que levaram ao Golpe. No caminho, faz uma espécie de autocrítica a respeito da
atuação da esquerda no contexto pré-64. Por fim, chega ao ponto principal da
epístola: a liberdade de expressão. Afirma que, por mais contraditório que tenha
sido o governo de João Goulart, pelo menos um ponto brilhante há de ficar para a
história: o de que foi um dos períodos em que o país experimentou maior
liberdade de opinião. Questiona então diretamente o Presidente:
“Gostaria que o Senhor se perguntasse, com a firmeza de atitudes que
dizem ser característica marcante de seu temperamento, se os historiadores
isentos, no futuro, poderão ter conceito semelhante quando se dedicarem à
análise do seu governo (...). Por melhores que sejam suas intenções
pessoais, Senhor Marechal, por mais que lhe pareçam inevitáveis alguns
momentos de violência no curso de uma ‘revolução’ (não sei porque é que
insistem em denominar assim, de modo sociologicamente incorreto, o
movimento insurrecional vitorioso em 1o de abril), sua honestidade
intrínseca não lhe permitirá esperar resposta afirmativa àquela pergunta”.
(Id., p.8)
73
Ênio lista então uma série de violências que continuam a ser praticadas, um
ano e quatro meses após o Golpe: prisões, inquéritos intermináveis, apreensões de
livros etc. Todos motivados pelo que se convencionou chamar, indistintamente,
de “delitos de opinião” ou de crime de subversão. E esclarece o que é um
subversivo naquele contexto político: “Subversivo é quem deseja a modificação
pacífica da estrutura sócio-econômica nacional; subversivo é quem tenha
defendido
um
governo
legitimamente
constituído,
que
não-subversivos
derrubaram (...)”. (Id., p.9) Depois de apontar mais contradições e violências do
novo regime, Ênio conclui:
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“O chamado ‘delito de opinião’, Senhor Marechal, é o crime que devemos
todos praticar diariamente, sejam quais forem os riscos. Se deixarmos de ser
‘criminosos’, nesse campo, seremos inocentes... e carneiros. Pedindo-lhe
desculpas por ter abusado de seu tempo e de sua paciência, Senhor
Marechal, subscrevo-me, Atenciosamente, Ênio Silveira”. (Id., p.11)
A epístola seguinte, no número 4 da Revista, intitula-se “Sobre a vara de
marmelo”. Nela, Ênio retoma a linha iniciada na carta anterior. Faz uma nova
análise do Golpe, a que se acrescentam considerações sobre as contradições
internas das Forças Armadas e sobre a falta de posição ideológica da maioria dos
indivíduos que as compõem. Critica o tom do discurso proferido pelo Presidente,
em que este afirma, a respeito das eleições estaduais que se aproximam, que
“jamais admitiremos que qualquer parcela do poder seja usada para fins
inconfessáveis e capazes de comprometer a continuidade da Revolução”. (RCB,
n.4, p.5) Esse trecho, diz Ênio, revela o acordo tácito feito entre o governos e as
cúpulas partidárias: “brinquem à vontade, meninos, mas não perturbem o sono de
Sua Excelência”. (Id., ibid.) Ênio destaca ainda a pressão exercida pelos grupos de
extrema direita sobre as decisões presidenciais, e o quanto isso é prejudicial para a
Nação. Depois de considerar o papel das Forças Armadas, passa a analisar as
estratégias econômicas de submissão ao imperialismo norte-americano, e é duro
ao chamar a atenção do marechal para a responsabilidade que tem nas mãos:
“A História irá julgar aqueles que, como o Senhor, tiveram nas mãos uma
imensa parcela de responsabilidade pelo encaminhamento (ou
desencaminhamento) dos interesses de todo um povo. (...) Ainda há
possibilidade de o Senhor deixar de lado a vara de marmelo e os
preconceitos e (...) estender as mãos aos verdadeiros representantes do povo
74
brasileiro para esse trabalho de recuperação nacional que não pode ser
adiado nem mais um minuto e requer o devotamento de todos, acima de
paixões e rancores”. (Id., p.8)
O editorial do número 5-6, como já foi dito, traz duas notas da Direção. A
primeira, mais longa, reafirma os princípios e propósitos da Revista diante dos
ataques que tem sofrido e menciona a expressiva quantidade de 20 mil exemplares
vendidos. A segunda, bastante curta, trata de mais um episódio do debate acerca
da série História Nova do Brasil travado nas páginas da Revista. Constata o
recebimento de uma carta do Prof. Américo Jacobina Lacombe endereçada à
Direção da RCB. A carta é uma resposta ao artigo de Nelson Werneck Sodré
publicado no número 4. A nota, porém, afirma que por falta de espaço o texto de
Lacombe será publicado em outro número da Revista. De fato, essa publicação
acontece no número 8.10
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Os dois números seguintes, o 7 e o 8, não apresentam editoriais. No número
9-10, como já se disse, o editorial é dedicado a M. Cavalcanti Proença e Nelson
Lins e Barros, que haviam falecido. O número 11-12 não traz propriamente um
editorial, mas sim um texto não-assinado intitulado “O trono de Macbeth”. Nele,
faz-se uma análise do Golpe de abril, de suas causas e conseqüências, e apontamse os caminhos possíveis que se abrem diante do segundo marechal a assumir a
Presidência. Iniciando-se com a epígrafe “Fear not, till the Birman Wood do come
to Dunsinane!”, o texto conclui:
“Se a situação que vivemos nos traz à lembrança a história de Macbeth, é
bom não esquecer que a profecia das bruxas foi cumprida até o fim: as
florestas de Birman acabaram chegando a Dunsinane. Ao longo da história,
o povo acaba sempre derrubando o muro de todos os castelos que se
transformaram em Bastilhas”. (RCB, n.11-12, p.10)
O número 13 traz o editorial “Dois anos de RCB”, em que se faz um
balanço da publicação. Reafirmando a importância de lutar constantemente pela
verdade, sem a qual “a função do intelectual perde sua capacidade criadora e
desce ao nível dos atos em que o homem avilta em si a humanidade inteira”, a
Direção reconhece que houve “tropeços, dúvidas e erros” ao longo do caminho.
(RCB, n.13, p.3) Seu constante alento, porém, foi “o manifesto apoio das camadas
10
Os detalhes do debate a respeito da série História Nova do Brasil são apresentados na seção
intitulada “Histórias da História Nova”, mais adiante.
75
sociais mais lúcidas do nosso País”, o que se comprova pela excepcional tiragem e
pela repercussão nacional e internacional da Revista. Por fim, reafirmando os
princípios de abertura e de não-sectarismo, encerra:
“(...) nossa finalidade maior, aquela que fundamentalmente nos justifica, é a
de nos esforçarmos em ser uma publicação para todas as expressões do
pensamento em que se representam verdadeiramente as forças vivas da atual
História brasileira, aquelas que ora lutam por uma real emancipação
econômica e cultural do nosso povo, e por sua integração, como destino
soberanamente assumido, numa humanidade que busca libertar-se cada vez
mais de todos os sistemas de opressão ou de exploração do homem pelo
homem”. (Id., p.4)
Esse é o último editorial publicado nos volumes regulares. Os números
seguintes contarão com algumas matérias não-assinadas: textos ou documentos de
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responsabilidade da Direção, que já haviam aparecido nos números anteriores e
que serão comentados brevemente a seguir. Antes, porém, um breve mas
importante comentário sobre os Cadernos Especiais lançados pela RCB.
4.4.
Cadernos Especiais
Foram três os Cadernos Especiais lançados pela RCB, todos sob a direção
de Moacyr Felix e Dias Gomes. O primeiro, de novembro de 1967, é inteiramente
dedicado à análise dos cinqüenta anos da Revolução Russa. Traz uma
apresentação em que se afirma a intenção dos Cadernos Especiais: analisar
monograficamente temas e problemas da atualidade brasileira e internacional.
Mais uma vez, são reafirmados os princípios de independência intelectual e de
busca da verdade. E se anunciam os temas dos próximos números especiais:
“Teatro e realidade brasileira” e “Função e responsabilidade do intelectual no
mundo moderno”. Por fim, a Direção agradece a Cid Silveira e a Luís Mário
Gazzaneo, responsáveis pela coordenação e por valiosas colaborações na edição
do primeiro número especial. Dos inúmeros intelectuais cujas reflexões foram
incluídas nesse número, destacam-se, dentre os estrangeiros, Isaac Deutscher,
Roger Garaudy, Georg Lukács, Leon Trotski e Lênin. Dentre os brasileiros, o
76
jovem marxista Carlos Nelson Coutinho e o histórico comunista Astrojildo
Pereira.
O segundo número, tratando do teatro brasileiro, sai em julho de 1968. A
nota de abertura apresenta o volume e seu objetivo de traçar um panorama do
novo teatro como parte “refletida e refletora de nossa realidade”, e já adverte para
o grande número de polêmicas que os artigos contêm, pela diversidade de visão
de alguns articulistas e entrevistados. Participam dessa grande discussão, expondo
as mais diversas e por vezes contraditórias opiniões, personalidades do mundo
artístico e teatral como Dias Gomes, Luiz Carlos Maciel, Oduvaldo Vianna Filho,
Anatol Rosenfeld, Flávio Rangel, Cacilda Becker, Tite de Lemos, Ferreira Gullar
e Augusto Boal.
O terceiro Caderno Especial, de setembro de 1968, no entanto, não segue o
tema inicialmente planejado e exposto na nota de abertura do número 1. As
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circunstâncias históricas o forçam a abordar um assunto mais premente: a invasão
da Tchecoslováquia ocorrida no mês anterior. A nota de abertura afirma que a
Revista não tem “a pretensão nem a possibilidade de fazer a cobertura jornalística
desse processo político em pleno desenvolvimento que é a crise deflagrada pelos
eventos na Tchecoslováquia”, (RCB, Caderno Especial n.2, p.3) mas deseja
contribuir de forma crítica e consciente para a discussão do acontecimento.
“Assim, depois de fixar sua posição no editorial, oferece à leitura de todos os
progressistas brasileiros um documentário que lhes permitirá estudar em
profundidade as origens dessa crise e meditar sobre suas conseqüências (...)”. (Id.,
ibid.) A posição fixada pela Direção no editorial intitulado “A crise no mundo
socialista” deixa claro seu repúdio à ocupação soviética, e indica que esse fato
apenas contribuirá para o agravamento da crise que já se percebia nos países
socialistas. Um farto documentário, incluindo manifestos e relatos sobre as
condições de vida – políticas, econômicas, sociais e culturais – na
Tchecoslováquia e no mundo socialista como um todo, faz desse Caderno
Especial um importante retrato histórico sobre os acontecimentos internacionais
de agosto. A publicação desse número provocou um grande descontentamento no
Partido Comunista Brasileiro, o que levou o Comitê a interpelar o editor Ênio
Silveira. Sempre fiel a sua máxima de não submeter a editora a nenhum tipo de
pressão ideológica, entre retratar-se ou reafirmar os princípios nos quais
acreditava, optou por desligar-se oficialmente do Partido.
77
O número prometido sobre a função e a responsabilidade dos intelectuais no
mundo moderno acaba nunca sendo realizado.
4.5.
Matérias não-assinadas
Quase todos os números da Revista trazem matérias não-assinadas, e seria
cansativo abordá-las aqui individualmente. Vale, porém, um comentário geral,
com destaque para algumas delas. No número 1, fazem um balanço das
“Condições e perspectivas da política brasileira”, da política externa independente
e do terrorismo cultural, além de comentar um editorial d’O Estado de São Paulo
que demonstra o ultraconservadorismo daquele jornal.
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No número 2, além da já citada reprodução da entrevista concedida pelo
marechal Lott ao Correio da Manhã, há uma análise sobre o plano econômico do
governo e seu impacto sobre a indústria nacional. No número 3 é publicado um
manifesto de professores americanos contra a invasão de São Domingos pelo
exército dos Estados Unidos, além de um artigo intitulado “Investigações e
debates sobre um ‘delito de opinião’”, em que se transcreve um ofício expedido
contra a Editora Civilização Brasileira por um Inquérito Policial-Militar
instaurado para investigar a atuação da empresa. Ao ofício, segue-se uma vasta
documentação, assim apresentada pela RCB:
“Por se tratar de documentação curiosa, ilustrativa da fase tragicômica por
que vem passando a vida brasileira a partir do golpe de 1o de abril,
transcrevemos a seguir o despacho do Juiz Antônio de Castro Assumpção
(...), o recurso do Promotor Sérgio Demoro Hamilton, o despacho do
Procurador-Geral do Estado da Guanabara (...) e – finalmente – as razões do
advogado Heleno Cláudio Fragoso interpostas no recurso criminal
submetido ao Supremo Tribunal Federal”. (RCB, n.3, p.323)
Ainda na linha de “Documentário”, a Revista traz uma seleção de artigos
publicados em diversos jornais a respeito da prisão do editor Ênio Silveira no caso
que ficou conhecido como “IPM da Feijoada”. A eles acrescenta-se um manifesto
assinado por 600 intelectuais pedindo a libertação do editor e o pedido de habeas
corpus impetrado pelo advogado Heleno Fragoso.
78
A partir do número 4, os documentos jurídicos serão apresentados em uma
nova seção, especialmente dedicada ao Direito e apresentada por Cândido de
Oliveira Neto, que ocupara a pasta da Justiça no governo Goulart. Em seu texto
inicial, o advogado afirma estar a vida jurídica do Brasil “com febre de 40 graus, à
beira do delírio”. (RCB, n.4, p.357) E explica que a seção será dedicada a realçar
trabalhos de grandes advogados em favor de causas públicas e terá como ponto de
honra a defesa, “o mais intransigente possível”, do Supremo Tribunal Federal. Ali
serão publicados mandados de segurança, despachos, pareceres e certidões
relativos às causas de liberdade de expressão, tais como o acórdão unânime do
STF em favor do editor Ênio Silveira (n.7), a apelação do advogado Nelson
Hungria da sentença contra Carlos Heitor Cony (n.8) e o mandado de segurança
impetrado pela Editora Civilização Brasileira contra o Departamento Federal de
Segurança Pública (n.7).
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Inúmeras matérias não-assinadas são reproduções de artigos ou documentos
estrangeiros que adquirem relevância diante da instabilidade do quadro político e
econômico internacional. Além do já citado manifesto de professores americanos
contra a invasão de São Domingos (n.3), há também um manifesto do Comitê do
Dia do Vietnã, que reúne estudantes e professores dos Estados Unidos em uma
organização contrária à intervenção norte-americana no sudeste asiático (n.4);
uma carta do presidente da República Democrática do Vietnã, Ho Chi Min, em
agradecimento ao apoio manifestado pelo cientista norte-americano Linus Pauling
e por oito detentores do Prêmio Nobel da Paz à causa da pacificação (n.5-6); uma
carta do professor americano Warren Ambrose, que presenciou a invasão policial
à Universidade de Buenos Aires, experimentando pessoalmente a violência e a
brutalidade dos regimes autoritários na América Latina (n.11-12); a reprodução de
um colóquio publicado pela revista francesa Democratie Nouvelle sobre a
revolução na China (n.13); a reprodução de um artigo publicado no jornal
Granma, de Havana, sobre o movimento negro nos Estados Unidos (n.18), além
de inúmeros outros artigos sobre a Guerra do Vietnã, questões soviéticas e outros
assuntos que dominavam o cenário internacional.
Dentre as matérias não-assinadas que tratam de assuntos nacionais, deve-se
destacar o questionário proposto pela RCB a personalidades da vida pública
nacional (n.7, de maio de 1966), em que nomes como o dos governadores
Magalhães Pinto (de Minas Gerais), João Agripino (da Paraíba) e Adhemar de
79
Barros (de São Paulo), dos generais Mourão Filho, Pery Bevilacqua e Cordeiro de
Farias, do senador Daniel Krieger, dos deputados Saturnino Braga e Adauto
Cardoso e do marechal Eurico Gaspar Dutra, dentre outros, respondiam a quinze
perguntas bastante provocadoras sobre o quadro geral da política brasileira. A
primeira delas, apenas para que se tenha noção do tom que orientava o
questionário, era a seguinte: “Considerando a vigência dos Atos Institucionais,
caracteriza como democrático o regime vigente no Brasil?” (RCB, n.7, p.17)
Outras versavam sobre o rumo das eleições indiretas, a política externa, o papel
das Forças Armadas, a censura e o movimento estudantil, sempre no mesmo tom
direto e franco, quase agressivo. A lista das personalidades a quem se remeteu o
questionário é precedida pela reprodução da carta assinada pelo diretor da RCB,
na época o professor M. Cavalcanti Proença, enviada a cada uma delas. Nela, o
diretor explica as razões que levaram a Revista a formular o questionário, sendo a
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principal delas o desejo de “esclarecer nosso povo sobre o que se passa nesta hora
incerta, a fim de que ele possa marchar com quem ou com aquilo que mais de
perto estejam em sintonia com seus legítimos reclamos”. (Id., pp.15-16)
Evidentemente, não se poderia examinar aqui todas as respostas. A do marechal
Gaspar Dutra, porém, merece ser citada pelo que revela em sua estratégia de nada
revelar: em carta endereçada ao diretor da RCB, o marechal louva o
empreendimento democrático mas reconhece que deve, entretanto,
“dizer que uma longa vida pública e as atitudes francas e positivas por mim
sempre assumidas, no passado e no presente, autorizam-me a dispensar-me
de considerar, explicitamente, cada uma daquelas perguntas, todas de
antemão respondidas pela posição que sempre mantive como cidadão e
como soldado”. (Id., p.19)
O leitor que se lembrar das medidas de Dutra como ministro da Guerra
durante o Estado Novo e, mais tarde, como Presidente (1946-1951) – dentre as
quais se inclui o fechamento do PCB e o rompimento das relações democráticas
com a União Soviética, num alinhamento total com os interesses norteamericanos –, certamente poderá imaginar quais seriam as respostas do marechal.
Outro que se exime de responder ao questionário é o governador Magalhães
Pinto, que afirma estar, naquele momento, apenas examinando a situação, “para
ter uma idéia exata do que ocorre em nosso País”. E completa: “prefiro estar
80
discretamente no meu canto, de onde procuro examinar os acontecimentos com
isenção (...)”. (Id., p.53)
Para compreender a primeira pergunta do questionário, mencionada acima,
acerca da “vigência dos Atos Institucionais”, é preciso lembrar que o AI-2 havia
sido editado em outubro de 1965 e o AI-3 em fevereiro de 1966. A RCB de março
de 1966 (n.5-6) formulou importantes considerações sobre esses Atos. O artigo
intitulado “O problema da sucessão” tratava da questão das eleições indiretas para
a Presidência estipuladas pelo Ato de outubro. (Deve-se ter em mente que, em
1965, o último número da Revista saiu em setembro, antes, portanto, da edição do
AI-2). E ressaltava a preocupação formal do governo em manter as aparências de
democracia. Na realidade, porém, a extinção dos partidos políticos e a recusa em
permitir as eleições diretas apontavam para outros caminhos. A necessidade de
continuar mantendo uma aparência democrática decorreria da “consciência de que
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acabaremos por retornar à normalidade”. (RCB, n.5-6, p.7) Essa consciência
preocuparia os encarregados da sucessão pois todos
“responderão, amanhã, diante da consulta popular, pelas suas posições de
hoje. Se fosse possível eleições sem eleitorado (...), tudo teria acerto. Mas aí
acabaria a possibilidade de obedecer ao formalismo democrático. Seria
declarar, positivamente, que o povo nada tem a ver com o poder e com a
escolha de seus detentores. Isso é possível por algum tempo – não é possível
para sempre”. (Id., ibid.)
Uma nota ao final do artigo esclarece que o texto já estava pronto quando
foi editado o AI-3, mas que esse novo Ato não altera nem invalida a análise ali
feita, apenas comprova a hipótese da opção pelo aberto autoritarismo: “o poder
majestático escolheu o caminho de negar, ostensivamente, a consulta popular – e
caracterizou-se a si próprio”. (Id., p.8)
Os dois Atos são reproduzidos na íntegra ao final do volume. Uma
inteligente estratégia é empregada para ressaltar suas características autoritárias e
antidemocráticas: a publicação, em páginas que antecedem imediatamente a
reprodução dos Atos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da lei que
cria o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana no Brasil, de março de
1964, assinada pelo presidente João Goulart. O efeito que se cria através dessa
aproximação é de uma estranha e incômoda ironia. Os artigos XX e XXI da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, estabelecem que todo
81
homem “tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas” e de “tomar
parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes
livremente escolhidos”. (Id., p.346) O AI-2, por outro lado, no artigo 15, permite
ao Presidente da República suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos
por um prazo de dez anos, bem como cassar mandatos legislativos federais,
estaduais ou municipais. (Id., p.359) A Declaração Universal assegura ainda que
“a vontade do povo será a base para a autoridade do governo; esta vontade será
expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”. (Id., p.347) O
AI-3, porém, em seu primeiro artigo, estabelece que as eleições estaduais se darão
de forma indireta, através das Assembléias Legislativas, “em sessão pública e
votação nominal”. (Id., p.368) Com isso, fica patente o desrespeito à Declaração
Universal que faz parte das bases da ONU e da qual o Brasil é signatário.
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Outro desrespeito patente aos direitos humanos foi a violência cometida pela
polícia contra os estudantes que se reuniam em assembléia pacífica na Faculdade
de Medicina, no Rio de Janeiro, no dia 23 de setembro de 1966. Estranhamente,11
é na RCB de número 8, de julho desse mesmo ano, que se publica a carta anônima
da mãe de uma estudante envolvida no confronto com a polícia. Com medo de se
identificar, a remetente da carta, que fora às portas da faculdade para dar apoio à
filha “sem jamais pensar em dissuadi-la (...), por julgar a causa estudantil
absolutamente justa”, (RCB, n.8, p.309) relata seu horror diante da chegada de
cada vez mais tropas fortemente armadas. Entre palavrões e ameaças de
“arrebentar esses filhinhos de papai rico, que estão lá dentro bem aquecidos e
alimentados”, (Id., p.310) os policiais militares cercaram a faculdade naquela
madrugada. Os quase mil policiais preparavam-se para uma guerra, quando na
realidade o que enfrentariam era um grupo de seiscentos jovens desarmados,
sendo quase metade deles moças. Apesar da tentativa dos mediadores de encontrar
uma saída pacífica para o impasse, os soldados invadiram a faculdade e
espancaram os estudantes, diante da visão aterrorizada de seus pais. O relato dessa
mãe que viveu horas de angústia diante da barbárie é forte e comovente, e expõe a
covardia de um sistema que só sabia se impor pela violência.
11
O fato de um evento ocorrido em setembro ser comentado na edição de julho do mesmo ano não
é explicado. Pode-se atribuir a atrasos na publicação ou a outros problemas de periodicidade.
82
4.6.
História da História Nova
Outro tipo de violência usado pelo novo sistema para se impor foi, como já
se disse, a apreensão de livros, na maioria das vezes sem qualquer justificativa.
Um desses casos de perseguição – aos livros e a seus autores – foi o que se abateu
sobre a coleção História Nova do Brasil. Sob a coordenação de Nelson Werneck
Sodré, os jovens professores Joel Rufino dos Santos, Maurício Martins de Melo,
Pedro de Alcântara Figueira, Pedro Uchôa Cavalcanti Neto e Rubem César
Fernandes – alguns deles recém-formados – produziram uma coleção didática que
abordava os fatos históricos sob uma nova perspectiva. Nas palavras do próprio
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Sodré, o objetivo era
“(...) proporcionar aos professores de nível médio (...) textos que lhes
permitissem fugir à rotina dos compêndios didáticos adotados, ampliando as
perspectivas da História e proporcionando, mais do que conhecimentos, um
método capaz de, ainda no nível médio, mostrar aos jovens as verdadeiras
razões históricas dos acontecimentos (...)”. (RCB, n.3, p.30)
Em março de 1964 o Ministério da Educação e Cultura do governo João
Goulart publicou os primeiros cinco números. Outros três estavam em fase de
composição, e mais dois estavam ainda sendo escritos. Após o Golpe, porém, os
livros foram acusados de conter idéias sectárias e subversivas e de estarem a
serviço da propagação do comunismo. Os livros foram apreendidos e os autores
presos para responderem a inquérito.
A RCB deu um espaço privilegiado em suas páginas para a exposição desse
caso e para o debate que daí surgiu. O primeiro artigo a tratar do tema foi o de
Nelson Werneck Sodré, publicado no número 3, intitulado “História da História
Nova”. Nele, o historiador afirma que “o poder de coação deriva da
clandestinidade com que se exerce”. (RCB, n.3, p.27) Por isso a necessidade de
“mostrar os bastidores da coação e do terrorismo”. (Id., ibid.) Segundo ele, “os
IPM em curso não resistem à luz do público”, e desnudá-los seria destruí-los.
Com essa intenção, passa a relatar brevemente as atividades do ISEB, órgão em
que a coleção foi idealizada e produzida. Em seguida, destaca o papel da imprensa
e dos supostos analistas dos volumes da História Nova, decisivo para que a
83
coleção fosse tachada como um veículo de divulgação das idéias comunistas.
Possivelmente, pouquíssimos dos que criticavam haviam de fato lido as obras.
Tratava-se da utilização da “conhecida e rotineira técnica nazista de repetir tantas
vezes a mentira que ela acabe passando por verdade”. (Id., p.31) Dentre as
mentiras que se divulgavam, uma em especial foi propagada nos quartéis,
ajudando a acirrar os ânimos dos militares contra a publicação: a de que os livros
ultrajavam a figura de Duque de Caxias e infamavam as tradições do Exército.
Sodré foi preso no fim de maio sem qualquer acusação formal, e foi liberado
– também sem explicação – em fins de julho. Dentre os inúmeros interrogatórios a
que foi submetido, muitos tratavam do “caso História Nova”. Já em liberdade,
voltou a dedicar-se a suas atividades como escritor. Seus colegas, co-autores da
polêmica coleção, porém, estavam em situação muito difícil, agravada pela
suspensão dos direitos autorais relativos à obra. Conseguiram então que uma
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editora particular – a Brasiliense, de São Paulo – a publicasse. Embora se
soubesse que não se tratava de uma obra perfeita – os próprios autores
reconheciam isso no prefácio, solicitando a contribuição crítica dos leitores para o
seu aperfeiçoamento em edições posteriores – os livros vendiam bem. É provável
que parte dessa venda fosse estimulada pelo escândalo que envolvia os títulos.
Quando a edição estava próxima de se esgotar, os livros foram novamente
apreendidos. O mandado de busca e apreensão, assinado pelo coronel Gerson de
Pina, mostrava que se havia esquecido que os livros “não tratavam das Ligas
Camponesas, dos Grupos de Onze, do CGT, mas da descoberta do Brasil, da
expansão açucareira, da Abolição (...)”.(Id., p.35)
Já se estava então em março de 1965, quando as forças da direita radical
exigiam o endurecimento do regime. No mês de maio, um dos co-autores da
coleção, Maurício Martins de Melo, foi chamado a depor no IPM do ISEB. Não
voltou para casa; seus pais e seu advogado não tiveram acesso a ele, e sequer
foram informados do local onde se encontrava preso. Caracterizava-se uma
espécie de seqüestro, pela qual passaram também Pedro Alcântara Figueira e Joel
Rufino dos Santos. Por sua obra ‘subversiva’, esses historiadores foram
submetidos às brutalidades e à violência policial. Sodré relata, ainda nesse
primeiro artigo publicado na RCB sobre o tema, as circunstâncias em que foi
tomado o depoimento de Maurício Martins de Melo. Levado para uma sala onde
se encontravam o major Bonecker, responsável pelo inquérito, o escrivão e um
84
homem não identificado, alto e forte em seus trajes esportivos, Maurício ouviu do
major: “Maurício, este é o Maciste. A especialidade dele é o ‘telefone’. Você sabe
o que é ‘telefone’, não sabe?”. (Id., p.39) Em seguida, o acusado teve de assistir
ao major ditando para o escrivão as perguntas e as respostas do suposto
interrogatório. Os três presos, diz Nelson Werneck Sodré, perderam peso
espantosamente, são mantidos separados e incomunicáveis por longos períodos e
sofrem todo tipo de violência e humilhação. Finalizando esse primeiro relato dos
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episódios da história da História Nova, diz Sodré:
“O que está em jogo não é a minha pessoa, nem mesmo os efeitos que, sobre
a minha família, a ‘guerra psicológica’ possa ter causado. O que está em
jogo não é mesmo a sorte de três jovens professores cujo crime foi ter
escrito comigo uma História Nova do Brasil. O que está em jogo é a sorte
da cultura brasileira. Antes de terminar, um depoimento pessoal: a
intelectualidade e as demais camadas do povo brasileiro não julguem o
Exército por alguns encarregados de IPMs e por indivíduos que se fazem
passar por oficiais. Acontece que sou militar e conheço a minha gente: os
soldados do Brasil, os autênticos, estão tão envergonhados disso tudo
quanto o nosso povo. É claro que esta narrativa vai continuar”. (Id., p.40)
E continua: no número seguinte da Revista, Sodré continua o relato no
artigo intitulado “História da História Nova (II)”. Nele, trata ainda da prisão de
três co-autores da coleção, e da veiculação, através da imprensa, da notícia de que
os acusados seriam mantidos na prisão até que seu “mentor espiritual”, o próprio
Sodré, se apresentasse para depor. No entanto, Sodré não recebeu, em momento
algum, intimação para comparecer novamente diante das autoridades responsáveis
por esse IPM. E menciona ainda a afirmação do major Bonecker de que pretendia
conseguir informações importantes dos presos empregando o que ele mesmo
chamou de “tratamento psicológico”. Esses dois “aspectos novos da
arbitrariedade” são comentados por Sodré:
“No que diz respeito àquele [o condicionamento da libertação dos
professores presos a seu depoimento], só me restava esclarecer o óbvio: que
estava pronto a depor, à disposição de quem pretendesse ouvir-me.
Condicionar a libertação dos professores ao meu depoimento e não tomar
esse depoimento foi, entretanto, o que os responsáveis fizeram. (...) Quanto
ao segundo aspecto, o do ‘tratamento psicológico’ para conseguir
‘informações altamente comprometedoras’ a meu respeito, começaram a
surgir e circular, realmente, boatos inquietantes”. (RCB, n.4, pp.71-72)
85
Sodré menciona então as cartas que os presos conseguiram fazer chegar ao
Correio da Manhã e que, publicadas por aquele jornal, revelam as torturas a que
estavam sendo submetidos. Evidentemente, fontes do Exército posteriormente
desmentiram o conteúdo das cartas, alegando que continham inúmeras mentiras
destinadas a comover a opinião pública. Por fim, após a colocação de todos os
empecilhos possíveis para retardar o julgamento dos habeas corpus pelo Supremo
Tribunal Federal, os três professores foram soltos. Pouco depois, porém, foram
novamente intimados a depor, sem que fosse permitido a seus advogados
acompanhá-los. Depois disso, dois deles escolheram o exílio. Para Sodré, “o que
importa destacar, nessa longa novela, é o fato de ter sido apreendido um livro, de
terem sido presos cidadãos por terem escrito esse livro; de ser o fato de escrever
um livro tido como crime e objeto de apuração através de Inquérito Policial
Militar”. (Id., p.77)
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Entretanto, esse segundo artigo de Sodré traz ainda o que ele chama de
“resposta a uma infâmia”. (Id., p.78) Trata-se de um extenso e minucioso
comentário a respeito do parecer de que foi relator o professor Américo Jacobina
Lacombe. Esse parecer, publicado pela Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, afirmava que a História Nova, “além de deformar a
mentalidade juvenil com conceitos errôneos e falsos, abomina e despreza tudo
quanto aprendemos na maneira de interpretar a História. Amesquinha o culto
cívico e deslustra os mais memoráveis fatos da nacionalidade”. (Id., p.79) Sodré
acusa Lacombe de mentir e de distorcer fatos e trechos dos livros. E ironiza o
trabalho do relator, agradecendo-lhe por ter atendido ao pedido feito pelos autores
no prefácio: Lacombe, com sua “penosa exegese” da obra, apontou falhas e
deslizes que devem ser corrigidos em próximas edições.
Antes de finalizar, Sodré avalia a repercussão da História Nova com
bastante lucidez:
“Os autores da História Nova sabiam, ao escrevê-la, que seriam combatidos
pela historiografia oficial e particularmente pela cátedra universitária (...).
Esqueceram apenas uma coisa: chocar-se-iam também com o negócio do
livro didático, uma das mais antigas, articuladas e superadas organizações
existentes no país. Pisamos, realmente, em calos demais, e estamos pagando
por isso”. (Id., p.82)
86
Os parágrafos finais de Sodré são emocionantes pelo que têm de humildade
e de autocrítica. Pede perdão a seus leitores pelo tom exaltado e panfletário que
foi obrigado a adotar, tão distante do que lhe é habitual. Afirma que valoriza a
crítica e a divergência, mas que se sentiu ferido pela infâmia e pela covardia do
parecer de Lacombe:
“No momento em que autores de uma obra, boa ou má, conhecem o exílio, a
prisão, os IPMs, as campanhas maciças de descrédito, vivem [sic]
professores, escritores, intelectuais contra eles, é que me parece o essencial
do problema. (...) O que me desconcerta é ter de me envergonhar por eles.
Lacombe escreveu sua infâmia numa revista lida por trinta pessoas; eu lhe
respondo em outra lida por cem mil pessoas. Não voltarei, pois, ao assunto”.
(Id., p.83)
Um pouco adiante, porém, reconhece que as circunstâncias podem obrigá-lo
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a retomar a discussão, ainda que a contragosto. E termina: “No mais, perdoem-me
pelo que não desejava escrever e escrevi – por me ter posto no nível daqueles que
se infamam quando pretendem infamar a outrem, por ter de descer em vez de
ascender. Isso também é um sinal dos tempos”. (Id., p.84)
Ainda no número 4 da Revista, publica-se o mandado de segurança
impetrado pela Editora Brasiliense contra o encarregado do IPM-ISEB. Assinado
pelos advogados Cândido de Oliveira Neto, Cândido de Oliveira Bisneto e Aldo
Lins e Silva, o documento ocupa as últimas vinte páginas do volume, e constitui
mais um capítulo na história da violência contra a História Nova. Outro desses
capítulos, mais belo e esperançoso, é o poema de Thiago de Mello “Estrela de
esmeralda e rebeldia para o companheiro Joel Rufino dos Santos”, publicado no
número 3 (ver ANEXO). O poeta termina assim sua mensagem:
“Pode ser que o major diga que não.
Pode o major golpear teu rosto jovem,
erguer o punho torpe da impostura.
Mas contra a primavera dessa estrela
não poderá jamais nenhum major”. (RCB, n.3, p.130)
O número 5-6 da Revista traz a já citada nota da Direção em que se acusa o
recebimento da carta de Américo Jacobina Lacombe em resposta ao artigo de
Nelson Werneck Sodré publicado no número 4. A Direção avisa que, por falta de
espaço, a carta será publicada em momento oportuno. Isso só acontece em julho
87
de 1966, no número 8 da Revista. O artigo “Ecos da história da História Nova”
traz uma explicação por parte da Revista, a fim de contextualizar o leitor para que
se possa melhor compreender o texto de Lacombe. Nesse breve histórico, a
Revista resume o artigo de Sodré que Lacombe vem contestar. E resume também
o conteúdo do parecer de que Lacombe foi relator. O mais importante, porém, é
que esse texto introdutório, assinado M.C.P. – M. Cavalcanti Proença –,
acrescenta um fato novo ao debate: as conclusões do parecer do IHGB foram
usadas na denúncia feita pelo Procurador Geral da Justiça Militar, em transcrição
literal, como prova de que a coleção História Nova deveria ser apreendida e seus
autores processados. E mais: demonstra que o texto do parecer foi redigido e
aprovado já durante o governo militar, e não na administração anterior, como se
quer fazer acreditar. Encerrando a apresentação, o diretor da Revista “hipoteca a
sua solidariedade a Nelson Werneck Sodré pelo ardor e hombridade com que
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defendeu seus companheiros de equipe” (RCB, n.8, p.316) e cita Rui Barbosa para
definir um determinado tipo, fazendo uma crítica com destino certo: “Cortesão
das vitórias ganhas, bravo no desarmamento dos desarmados, fujão das situações
arriscadas, inimigo das causas vencidas e lacaio das triunfantes”. (Id., ibid.) A
carta de Lacombe se inicia logo após essa citação. Nela, o historiador se diz
violentamente agredido pelo artigo de Sodré publicado no número 4 da RCB.
Reafirma as conclusões de seu aparecer, esclarecendo os pontos que considerou
mal interpretados ou propositadamente desvirtuados pelo “General Sodré”. Volta
a chamar a atenção para os erros de informação contidos nos volumes da coleção
em questão. E conclui afirmando:
“Se dele divergi e apontei erros que, a meu ver, invalidam a obra, jamais
concluí por qualquer recomendação contrária à livre manifestação ou ao
livre debate de idéias (...). Sou de todo estranho às conseqüências de ordem
política ou judiciária, ou qualquer outra, que a edição dos citados livros
hajam [sic], por ventura, provocado (...). Sustento o direito, dele e meu, de
escrevermos e nos criticarmos livremente. Como discípulo de Rui Barbosa
entendo que o direito negado ao adversário virtualmente cessa de existir
para nós”. (Id., p.318)
A RCB traz ainda, no número 11-12, a reprodução da denúncia do
Procurador Geral Eraldo Gueiros Leite, em que o Sr. Américo Jacobina Lacombe
é indicado como testemunha de acusação contra os responsáveis pela História
88
Nova do Brasil. Com isso, completa-se o conjunto de documentos apresentados
como parte da polêmica, e marca-se, mais uma vez, a posição da Revista,
decididamente contra os abusos e violências cometidos contra a livre expressão de
idéias.
4.7.
Arte e cultura
As discussões políticas, sociais e econômicas sobre o Brasil e o mundo que
se travavam nas páginas da Revista dividiam espaço com questões culturais não
menos polêmicas. A RCB tinha seções específicas dedicadas aos diferentes tipos
de manifestações artísticas e culturais. Além do espaço dado à literatura, a ser
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comentado em mais detalhes no capítulo subseqüente, havia uma forte
preocupação em recolher e repensar o momento cultural brasileiro e internacional,
avaliando-o criticamente. O clima de efervescência do mundo artístico na segunda
metade da década de 60 – dividido entre o engajamento e a alienação, o retorno às
raízes populares e o experimentalismo da vanguarda – era reproduzido em artigos,
debates e entrevistas.
O número 1 já deixava evidente essa intenção provocadora. Na seção de
cinema, um debate reuniu os cineastas Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e
Glauber Rocha em torno de questionamentos sobre as origens, as ambições e as
perspectivas do Cinema Novo. Dividindo com ele a seção, um artigo de Roberto
Schwarz sobre o filme “8 ½”, de Fellini. Na seção de teatro, além de um balanço
sobre o que foi produzido em 1964, um artigo de Paulo Francis apontando novos
rumos para os autores. Sobre as artes plásticas, o provocador artigo “Por que
parou a arte brasileira”, de Ferreira Gullar, e uma entrevista do poeta com o
escultor paraibano Fernando Jackson Ribeiro, intitulada “Não sei para que serve
minha arte”.
Os números seguintes mantêm essa linha, apresentando matérias como a
entrevista concedida pelo pintor Ivan Serpa a Ferreira Gullar intitulada “O artista
já não pode fechar-se em si mesmo” (n.2); a continuação do debate sobre o
Cinema Novo, agora com as contribuições de Gustavo Dahl, Carlos Diegues,
David Neves e Paulo César Saraceni (n.2); dois ensaios de Brecht (“O mundo
89
atual pode ser reproduzido pelo teatro?” e “Teatro de diversão ou teatro
pedagógico”, ambos no n.3); um “confronto” sobre Música Popular Brasileira,
com entrevistas de Edu Lobo, José Ramos Tinhorão e Luís Carlos Vinhas (n.3); o
contundente artigo-manifesto de Glauber Rocha sobre o Cinema Novo, “Uma
estética da fome” (n.3); um artigo de Rogério Duarte sobre o Desenho Industrial
(n.4); um texto de Dias Gomes sobre sua peça O berço do herói e sobre os
problemas que teve de enfrentar com os censores (n.4); “O bicho que o bicho
deu”, de Luiz Carlos Maciel, sobre a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho
come, de Ferreira Gullar e Oduvaldo Vianna Filho, encenada pelo Grupo Opinião
(n.7), dentre muitas outras. Evidentemente, seria impossível comentar, mesmo que
brevemente, cada uma delas, e resultaria cansativo continuar a enumerá-las. Essa
resumida amostragem, porém, já oferece uma visão, ainda que rápida e
superficial, de como a arte e a cultura ocupavam um importante espaço não só nas
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páginas da RCB, mas também no cenário político e social instaurado com o novo
regime. A arte, com seu caráter contestador e libertário, passou a ser uma das mais
eficientes formas de expressar a resistência à ditadura, de se manifestar contra os
abusos do poder e de lutar pela liberdade e pela democracia.
Além dos debates divididos por áreas artísticas, inúmeros artigos sobre
temas culturais mais amplos eram publicados na seção “Problemas culturais e
filosóficos” ou, posteriormente, fora de qualquer seção, quando o “Roteiro”
deixou de ser assim dividido. Alguns exemplos são “Tragédia e tragicomédia do
artista no capitalismo”, de Georg Lukács (n.2); “A formação dos intelectuais”, de
Antonio Gramsci (n.5-6); “Cinco maneiras de dizer a verdade”, de Bertolt Brecht
(n.5-6), e “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter
Benjamin (n.19-20). Mais uma vez, esgotar a lista seria impossível. O que importa
é destacar a preocupação da Revista em oferecer a seus leitores uma visão crítica
acerca das manifestações e dos problemas culturais, instigando a reflexão e a
conscientização sobre os temas que lhes são subjacentes.
Sobre o espaço dedicado aos temas culturais pela RCB, diz Marcelo Ridenti
em seu livro sobre os artistas e a revolução:
“A Revista Civilização Brasileira dava especial destaque aos temas
culturais, expressando o florescimento artístico em curso. A cada número,
eram dedicadas cerca de cem páginas ou até mais – por volta de um terço da
90
revista – a questões de cultura em sentido estrito, especialmente a
brasileira”. (RIDENTI, 2000, p.133)
Reunindo em seus diversos volumes temas polêmicos e extremamente
contemporâneos e nomes de grande destaque no cenário artístico nacional e
mundial, a RCB tornou-se, novamente, portadora das vozes de uma geração,
retrato vivo de uma época que não se acabou de todo. Por isso, apesar de
contemplar obras e eventos de um período histórico específico, continua
despertando o interesse de novos leitores e se provando bastante atual. Muitas das
questões levantadas e discutidas em suas páginas permanecem ainda hoje,
motivando debates e discussões. Por trás das críticas e apreciações aparentemente
circunstanciais, estavam ocultos conceitos fundamentais sobre arte e cultura e
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reflexões profundas e permanentes sobre os rumos da humanidade.
4.8.
Assuntos internacionais
Embora dedicada primordialmente à discussão dos temas e dos interesses
nacionais, a RCB não se furtou a lançar um olhar crítico sobre acontecimentos
mundiais. A seção “Notas internacionais”, publicada no número 9-10, apresentava
breves mas pertinentes comentários sobre eventos internacionais recentes. São
textos mais datados, que muitas vezes oferecem dificuldades de compreensão ao
leitor que não estiver familiarizado com os nomes e os fatos mencionados. Bem
redigidas, essas notas curtas e irônicas constituem uma aguda crítica aos
desmandos e às injustiças praticados em uma época tão turbulenta. Um belo
exemplo é a nota intitulada “Liberdade, liberdade” (numa alusão à peça de Flávio
Rangel e Millôr Fernandes):
“As entrevistas concedidas no México pelo Padre Lage e pelo Sr. Francisco
Julião ao correspondente do Nouvel Observateur foram divulgados em
tradução castelhana pelo periódico Columna 10 (Buenos Aires). Não
poderão ser publicadas nos dois países da língua materna dos entrevistados,
91
pois em Portugal reina Salazar e no Brasil reina – segundo informa o
marechal Castelo Branco – a liberdade de imprensa”.12 (RCB, n.9-10, p.55)
O artigo “Assim vai o mundo”, publicado no número 7 e que Otto Maria
Carpeaux assinou somente com suas iniciais, tratou também, em pequenas notas,
sobre assuntos diversos: a carta de Ho Chi Min ao Papa Paulo VI, a influência
britânica na economia de Moçambique, o fim da NATO... Era uma forma de estar
em sintonia com os recentes e inquietantes acontecimentos que sacudiam o mundo
em meados da década de 60. A RCB, ao publicar esses comentários, arriscava-se a
enveredar pelo caminho dos faits divers que, desde o início, em seu primeiro
editorial, repudiou. No entanto, a possibilidade de contribuir para o
enriquecimento do livre debate nacional acerca das questões políticas, econômicas
e sociais certamente pesou na decisão de incluir essas notas.
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Os assuntos internacionais tinham, de fato, grande espaço dentro da Revista.
Basta que se veja o número – e a expressividade – de seus colaboradores
estrangeiros: Georg Lukács, Linus Pauling, Jean-Paul Sartre, Lucien Sève, Gérard
Lebrun, Bertolt Brecht, Roger Garaudy, Antonio Gramsci, Pier Paolo Pasolini e
muitos outros que tiveram artigos traduzidos e publicados, fossem eles produzidos
especialmente para a RCB ou não. Esses artigos tratavam não só de política e
economia, mas também de ciências e questões culturais. Exerceram, portanto, um
importante papel na abertura da intelectualidade brasileira para outras correntes de
pensamento, e ofereceram à juventude de então novos caminhos para o debate. É
nesse sentido que se destaca a importância da RCB como divulgadora, no Brasil,
de pensadores e teorias de extrema relevância internacional, muitas vezes ainda
inéditos no país.
Um dos acontecimentos internacionais que mais destaque mereceu em um
só número da Revista – não se incluindo, é claro, os Cadernos Especiais dedicados
à revolução soviética e à invasão da Tchecoslováquia – foi a rebelião dos
estudantes franceses. O número 19-20, de maio-agosto de 68, traz uma vasta
coleção de artigos de autores estrangeiros (Sartre, Garaudy, Lefebvre...) e
brasileiros (Hélio Pellegrino, Ignácio Rangel, Paulo Francis...) sobre o tema, de
modo a oferecer vários ângulos de interpretação.
12
Padre Lage defendia a teoria de que separar a Igreja de Cristo e a doutrina de Marx era um
grande equívoco; foi um dos inspiradores da Teologia da Libertação. Francisco Julião era o líder
das Ligas Camponesas e um dos maiores defensores da reforma agrária no Brasil.
92
4.9.
A amplitude temática
Como se pode ver pelo exposto até aqui, a Revista caracterizava-se por uma
enorme amplitude temática. Em cada um de seus volumes, inúmeros e variados
temas eram abordados por diferentes autores. Além das seções analisadas
brevemente acima, há outras igualmente importantes: a de economia, a de ciência
e tecnologia, a de cultura popular etc.. Por limitações de espaço, será impossível
comentar cada uma delas isoladamente.
A abertura para diversas áreas e temas é coerente com a proposta expressa
no editorial do número 1, “Princípios e propósitos”. Ali se estabelece o nãosectarismo e o princípio máximo de liberdade de pensamento – desde que esse
pensamento não compactue com a ordem política, econômica e social então
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vigente no país. Carlos Nelson Coutinho, que esteve sempre próximo de Ênio
Silveira na Editora e também na Revista, vê uma sintonia entre essa abertura e a
ideologia marxista, que prega uma visão totalizante e revisionista da realidade.13
4.10.
A importância da RCB
A simples apresentação, brevemente comentada, dos aspectos aqui
apontados já seria suficiente para demonstrar a importância da Revista Civilização
Brasileira como veículo de resistência intelectual nos anos em que foi publicada.
O lugar de destaque que ocupava pode ser confirmado pela expressividade de seus
colaboradores, pela rápida venda de tiragens indiscutivelmente grandes para
periódicos do gênero, pela relevância dos debates que se travavam em suas
páginas e pela repercussão que provocava.
O jornalista Zuenir Ventura, no livro 1968: o ano que não terminou,
comenta o sucesso da Revista e aponta a curiosidade pelas idéias teóricas como
uma possível explicação para ele:
13
Depoimento de Carlos Nelson Coutinho à autora.
93
“Mas independentemente do uso instrumental que os jovens revolucionários
procuravam fazer de alguns autores, havia uma natural curiosidade pelas
idéias teóricas, o que explica o sucesso da Revista Civilização Brasileira,
que de 65 a 69 [sic] foi o pólo de concentração da intelectualidade de
esquerda. Ali se travaram debates entre a esquerda reformista e a esquerda
revolucionária. Através de suas páginas, tomou-se contato com Walter
Benjamin, Louis Althusser, Eric Hobsbauwn [sic], Adorno, Juliet Mitchell,
entre outros. Nela colaboravam intelectuais como Alceu Amoroso Lima,
Ferreira Gullar, Paulo Francis, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Nelson
Coutinho, Leandro Konder, Nelson Werneck Sodré”. (VENTURA, 1988,
p.55)
Essa curiosidade teórica era uma maneira de a juventude tentar embasar
seus impulsos revolucionários, apoiando-os em uma teoria mais sólida. Aliada à
relativa permissividade dos primeiros anos pós-Golpe, resultou em uma espécie de
boom editorial. A cumplicidade que aquela geração tinha com a leitura foi outro
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fator importante para o sucesso editorial: “Lia-se como hoje se vê televisão”. (Id.,
ibid.)
Ênio Silveira, comentando a Revista, ressaltava sua enorme importância
dentro do conjunto de produções da Civilização Brasileira:
“Quanto aos projetos que desenvolvemos, a Revista Civilização Brasileira
foi um capítulo à parte. Dentro da editora nós decidimos fazer uma revista,
que enquanto tal, não era muito rentável, eu não estava preocupado que
fosse algo rentável (...). Esta revista felizmente foi crescendo muito. Quando
Sartre esteve aqui, eu mostrei a ele a revista, onde havia até um trabalho
dele, que nós tínhamos publicado com autorização, e ele disse: – Que
tiragem tem a revista? Naquele momento a Revista Civilização Brasileira
que era um livro, um livro de duzentas, trezentas páginas, num formato de
livro, 14 x 21 cm, com trezentas páginas em papel jornal, com pouca
espessura, mas trezentas páginas! Eu disse a ele que na época a revista tinha
uma tiragem de trinta mil. Ele quase desmaiou. (...) Bom, mas a revista foi
um sucesso, novamente no sentido de agitar, sem querer doutrinar e sem
estar a serviço de partido (...)”. (FERREIRA, 1992, p.85)
Em seu discurso de posse no Pen Club do Brasil, em 20 de agosto de 1991,
mais uma vez Ênio destaca, dentre suas realizações profissionais, a publicação da
RCB:
“Marco refulgente dessa fase foi a edição da Revista Civilização Brasileira
(...). Considerada nos meios culturais e universitários do Brasil e do mundo
inteiro como um padrão de dignidade da intelligentsia brasileira diante das
forças do obscurantismo, essa publicação (...) constituiu um dos maiores
94
galardões de minha carreira e marcará para todo o sempre a presença da
editora na história cultural do país. Um grupo corajoso e abnegado de
intelectuais dignos desse nome e de sua missão social me ajudou a
conquistá-lo, mas a um deles, em particular, o Brasil e eu nunca teremos
suficientes palavras de agradecimento e louvor pelo admirável trabalho que
realizou com sua dedicação admirável e comovente modéstia: o poeta
Moacyr Felix (...)”. (FELIX, 1998, p.78)
De fato, o poeta Moacyr Felix foi o grande companheiro de Ênio Silveira,
não só na coordenação da série “Violão de rua”, da RCB ou, posteriormente, da
Encontros com a Civilização Brasileira, mas trabalhando incansavelmente a seu
lado na editora. O professor e poeta Carlos Lima destaca o fundamental papel
exercido por Moacyr Felix, especialmente e, relação à Revista e a Encontros, “que
foram e são trincheiras da Inteligência nacional contra os autoritarismos e contra
as estruturações sociopolítico-econômicas que nos deformam como indivíduo e
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como povo; nessas páginas continuaremos reaprendendo a cultura da resistência”.
(Id., p.425)
A leitura da Revista faz com que se perceba não só o que foi a resistência
intelectual a todas as formas de opressão mas também dá mostras de como essa
resistência pode continuar a ser, e de como se faz necessária nos dias atuais. É,
portanto, não só uma leitura que se volta para o passado, mas algo que pode
esclarecer e desvendar o presente. É por isso que qualquer trabalho sobre a
Revista jamais a esgotará: suas possibilidades de releituras e atualizações e os
diversos ângulos que oferece a quem quiser se debruçar sobre ela tornam-na um
assunto praticamente inesgotável. “Apesar das contribuições esparsas, ainda está
por ser escrito um trabalho definitivo sobre a história da RCB, sem dúvida a mais
influente do período nos meios políticos, artísticos e intelectuais de esquerda”.
(RIDENTI, 2000, p.133) Possivelmente, um trabalho definitivo ainda levará
muito tempo para surgir, se é que surgirá.
Deve-se ressaltar também o destaque dado à Revista no livro de Marcelo
Ridenti, Em busca do povo brasileiro. Tratando sobre o engajamento dos artistas e
intelectuais, principalmente nas décadas de 60 e 70, o autor recolhe depoimentos
importantes sobre a RCB e sobre o papel agitador que desempenhava. Carlos
Nelson Coutinho resgata essa importância, naqueles primeiros anos pós-Golpe:
95
“É um período muito rico na produção, na publicação e na difusão entre nós
de autores marxistas, digamos, não-ortodoxos. Ao mesmo tempo, se cria, já
em 65, um instrumento extremamente fundamental para a agregação dos
intelectuais nessa época: a Revista Civilização Brasileira, que venceu vinte
e dois números, de 65 a 68, quando ela foi obrigada a ser extinta pelo AI-5.
Na RCB publicaram todos os intelectuais significativos da época. E todos
eles numa posição crítica à ditadura”. (COUTINHO apud RIDENTI, 2000.
p.131)
O poeta Ferreira Gullar faz coro:
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“A resistência à ditadura na área cultural começa com o antigo CPC da
UNE, o qual se agrupa no Opinião, por um lado. E o outro lado na
Civilização Brasileira. O Ênio Silveira cria a Revista Civilização Brasileira,
reúne um grupo de intelectuais, entre os quais eu também, Moacyr Felix,
Dias Gomes, Cavalcanti Proença, Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré.
Depois se amplia, tem outras pessoas, o Leandro Konder, o Carlos Nelson
Coutinho”. (GULLAR apud RIDENTI, 2000. p.131)
O filósofo Leandro Konder chama a atenção para o fato de que a RCB foi
uma das primeiras iniciativas regulares contra o governo militar. Segundo ele, a
RCB “quebrou a inércia da esquerda”, e “alimentou focos de resistência”.14 Além
disso, não havia, na época, outra revista que atuasse nessa linha com tamanha
relevância. A falta de concorrência valorizava ainda mais a existência da RCB.
Em um de seus depoimentos, o poeta Moacyr Felix lembra que a Revista
Paz e Terra – que, posteriormente, desenvolveu-se na editora Paz e Terra – surgiu
como um dos frutos da RCB. Voltada para o público cristão progressista, a Paz e
Terra teve também enorme sucesso.
“Tivemos que fazer, porque eles queriam uma série de idéias deles. A RCB
ficou muito marcada como socialista, aberta, mas dentro de uma linha
materialista. Nós queríamos mostrar que colaborávamos também com eles,
dentro de qualquer linha de humanismo. Lutou pela liberdade, pela
humanização da vida, contra a alienação, tem consciência de que este
mundo está desumanizado, quer um mundo qualitativamente transformado
num mundo melhor? Estamos de acordo, vamos expor suas teorias. [...]
Fizemos a Revista Paz e Terra, depois a editora Paz e Terra, com mais de
cem livros publicados (...)”.(FELIX apud RIDENTI, 2000. p.134)
Já relatando a parte mais prática de produção da própria RCB, os seus
bastidores, diz Moacyr Felix:
14
Depoimento de Leandro Konder à autora.
96
“Logo que foi aberta a Revista Civilização, houve uma reunião de
intelectuais. (...) Paulo Francis queria tudo em termos jornalísticos, quatro,
cinco laudas. Eu falei: ‘Ao contrário, quero tudo em ensaios, meditação, é
uma revista de conscientização.’ Todas as revistas eram armadas assim:
chegavam aqueles artigos todos, a gente pedia, eu tirava de livros, de
revistas estrangeiras, artigos nacionais. A intelectualidade brasileira toda
colaborava na Revista Civilização. [...] Eu lia aqueles artigos, subia, no fim
do dia, e dizia: ‘Ênio, este aqui é bom.’ (...) Neguei muita coisa que vinha
sectária, dogmática, boba. (...) Ela foi o maior sucesso possível”. (Id., p.132)
Moacyr respondia a uma observação feita no trabalho de Carlos Guilherme
Mota, Ideologia da cultura brasileira, em que o autor afirma que a Revista passou
por diferentes fases de acordo com as variadas orientações políticas dos
intelectuais que a conduziam. Segundo Mota, a Revista teria passado por períodos
de maior radicalização ou de preponderância de linhas de pensamento
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progressistas e por outros de maior conservadorismo, com uma linha mais fechada
e voltada para o passado, em análises ultrapassadas e populistas sobre a realidade
nacional. Essa fase mais “serena” teria ganhado força a partir de 1967. A
diminuição do número de textos editoriais e panfletários seria uma prova dessa
maior serenidade, assim como a inclusão de textos de Marcuse e Adorno.
(MOTA, 1977, pp.206-208)
Seja ou não verdade que a RCB passou por momentos variáveis quanto à
orientação político-filosófica, é inegável que a publicação manteve-se sempre fiel
a suas linhas mestras e a seus princípios fundamentais. É inegável, também, que
sua contribuição para o livre debate de idéias e para o quadro cultural brasileiro –
de então e de agora – é inestimável. Resta muito a descobrir.
5
Literatura e crítica literária
Sendo um periódico publicado por uma editora de livros, a Revista
Civilização Brasileira, naturalmente, dava muito espaço em suas páginas a
matérias e artigos relacionados a literatura. Sem dúvida, isso se alinhava com o
propósito geral do periódico, já tantas vezes comentado neste trabalho. Comentar,
analisar e criticar a produção literária era uma forma de estimular o pensamento
“vivo e atuante”, contribuindo para uma reestruturação das condições sociais e
econômicas brasileiras, na luta por liberdade e justiça. Se um dos princípios
norteadores da RCB era dar espaço àquilo que “de uma ou de outra maneira se
insira no processo da revolução brasileira” (RCB, n.1, p.4), a literatura não podia
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ser deixada de lado.
Além disso, outro princípio básico da RCB manifestou-se também
vivamente nas páginas dedicadas à literatura: a abertura para a produção
intelectual estrangeira, sem se deixar tolher por um “nacionalismo sentimentalóide
e estreito”. (Id., ibid) Assim é que tantas traduções, e mesmo obras ainda não
publicadas no Brasil, são comentadas e avaliadas, como se verá adiante.
Todos os números da Revista trazem uma seção intitulada “Literatura” – até
o número 11-12, quando a divisão em seções deixa de existir. Ainda assim, essa
área de interesse continua sempre presente, não havendo um número sequer da
RCB que não a explorasse. Pela quantidade e variedade de artigos, matérias e
resenhas literárias publicados, bem como pelo número de poemas incluídos, será
impossível comentar cada um deles separadamente. O que se fará aqui será apenas
uma análise das linhas gerais que orientavam e davam o tom desses textos. Com
isso, se poderá compreender a ideologia que os informava e a opção editorial por
trás deles.
Como ficará claro pela exposição a seguir, muitos dos livros resenhados ou
analisados na RCB não eram obras ficcionais, tratando-se sim de ensaios e outras
produções teóricas das áreas de ciências sociais, história, economia e política.
Nelson Werneck Sodré, responsável pela seção literária da Revista, comenta essa
característica, sugerindo razões para tal. E, com aguda ironia, ressalta ainda o fato
98
de que a produção específica sobre a situação política brasileira partia
majoritariamente daqueles contra o Golpe, ou seja, de intelectuais de esquerda:
“Persiste, e por boas e sólidas razões, o interesse pelo livro político, e
particularmente tudo o que se prende à situação atual do país, aquela que
derivou do golpe de abril. Apareceram alguns depoimentos interessantes,
entre os quais, infelizmente, não é ainda possível situar aquele que deveria
estar sendo preparado para constituir a versão oficial, uma espécie de ‘livro
branco’; anunciado, não veio à luz. Que razões motivam esse atraso, não se
sabe. Isso cria a aparente singularidade de ficarem as forças dominantes
indefesas; e diante de livros que a criticam e que aparecem em
impressionante sucessão. Será assim tão extrema a carência de autores, do
outro lado, ou será mesmo carência de razões?”
5.1.
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Panoramas de 1964: estabelecendo princípios
Para iniciar a análise do tipo de abordagem da produção literária levada a
cabo pela RCB, é necessária uma leitura atenta dos dois artigos sobre o tema
publicado em seu número inaugural. Nesse primeiro volume, um artigo de Nelson
Werneck Sodré intitulado “Prosa brasileira em 1964: balanço literário” dá
algumas pistas das diretrizes que serão adotadas. Sodré começa o artigo
explicando a opção por inaugurar a seção literária da Revista com um balanço do
ano anterior. Apontando as desvantagens desse modo exposição, procura
diferenciar seu texto dos outros balanços “que vêm aparecendo” (e cuja maior
precariedade, segundo ele, “está na ausência de perspectivas, no sentido de que
confundem, na massa informativa, as proporções, juntando o ruim, o razoável e o
excelente no mesmo plano”). Sodré reconhece as dificuldades inerentes à
atividade de “ajuizar”, mas enfatiza a maturidade que a literatura brasileira já
alcançou e que a permite distanciar-se do “provincianismo literário que se
caracteriza, particularmente, pelo destaque imerecido a pessoas da simpatia de
quem escreve, e omissão propositada das que não estão nessa graça”. (RCB, n.1,
p.146) Com isso, a Revista firma novamente seu compromisso com o nãosectarismo, princípio já expresso em seu editorial de abertura, reforçando a opção
pela liberdade de pensamento e pela recusa de parti pris de qualquer espécie.
99
Por que, então, optar por um balanço da produção literária de 1964, dadas as
dificuldades que a forma “balanço” apresenta? A justificativa de Sodré é que isso
permite “de maneira ampla, estabelecer as conexões necessárias com o que se
vinha fazendo”. E mais: permitia também avaliar o impacto do Golpe de abril na
produção literária nacional. Isso fica bem claro na página seguinte, quando se
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desenha um breve panorama da atividade intelectual no ano que acabara:
“Cabe dizer, por fim, o óbvio: 1964 foi um ano perturbado e a literatura
brasileira sofreu, como todas as atividades, as conseqüências do golpe que
interrompeu a vigência da normalidade democrática em nosso país.
Escritores e editores foram presos, submetidos a curiosos e caracterizados
IPMs; outros emigraram; terceiros estão foragidos, não se sabe deles. É
claro que livros foram queimados em praça pública, e livrarias, comerciais e
particulares, foram invadidas, vasculhadas e depredadas. (...) Foi um ano
negro, não apenas para a literatura, mas para a cultura brasileira. A safra
teria de ressentir-se disso, e assim aconteceu, realmente. Não foi das mais
ricas, por isso mesmo, nem em quantidade nem em qualidade. O processo
de desenvolvimento da criação artística, em nosso país, que vinha em
aceleração, padeceu, este ano, sérias perturbações. (...) É preciso
acrescentar, finalmente, que os intelectuais brasileiros souberam enfrentar
bem a contingência: as surpresas negativas foram poucas, muito raras
mesmo, e de importância reduzida; as positivas foram muitas, e
confortadoras; gente que não tinha posição, ou pouco se importava em frisála, destacou-se, participou, acordou.” (Id., p.147)
É interessante o julgamento que o autor faz sobre a reação dos intelectuais
ao Golpe; esse é um assunto controverso que, como se viu no capítulo anterior,
mereceu bastante espaço na Revista.
Sodré passa em seguida a comentar as traduções publicadas em 1964, e
destaca que nunca se traduziu tanto em nosso país. Segundo ele, as traduções não
só apresentam excelente qualidade como também abarcam um amplo horizonte de
obras. Dentre outros, menciona William Faulkner e F. Scott Fizgerald como
autores que se tornaram disponíveis ao público brasileiro. No entanto, diz Sodré,
em 1964 interrompeu-se o movimento que vinha colocando à disposição do
público bons poetas e dramaturgos ingleses, franceses e alemães. Por outro lado, e
confirmando o que já se disse acima, o ensaio – e especialmente o ensaio político
– ganhou maior espaço. Sodré destaca, nesse campo, a atuação das editoras Zahar
e Civilização Brasileira, que combinaram qualidade e pertinência de conteúdo
com sucesso de público.
100
Quanto à ficção – que para Sodré é o gênero “que indica a maturidade de
uma literatura” (Id., p.150), associando e vinculando autores e leitores –, é
abordada em um apanhado que junta conto, romance e novela. Nos contos, Sodré
destaca dois autores: Clarice Lispector, com A legião estrangeira, e Dalton
Trevisan, com diversos livros, dentre os quais Cemitério de elefantes e O vampiro
de Curitiba. A análise de cada um desses autores é muito breve, e segue uma linha
mais da impressão pessoal que da crítica literária atrelada a alguma escola ou
corrente teórica. O mesmo acontece em relação aos romances e novelas:
destacam-se José Cândido de Carvalho, com O coronel e o lobisomem
(amplamente louvado como “não apenas ... um grande romance de determinado
ano, mas ... um dos acontecimentos da ficção brasileira moderna”, por saber
“fundir as experiências de linguagem com o todo da ficção” – Id., p.151); Carlos
Heitor Cony, com Antes, o verão (no qual o autor “revela acentuado
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amadurecimento em sua arte ficcionista” – Id., ibid); e Clarice Lispector, com A
paixão segundo G.H. (embora Sodré hesite em afirmar, como a autora, tratar-se de
um romance). Outras obras são comentadas com menos destaque, merecendo
apenas uma ou duas linhas cada. Segundo Sodré, o ano foi muito pobre para a
ficção.
O balanço volta então a tratar dos ensaios, agora brasileiros, e apenas
aponta, sem desenvolver, um questionamento sobre as especificidades desse
gênero e os limites de sua inserção no campo da literatura. O fato é que o espaço
para esse gênero no mercado encontrava-se então bastante ampliado, o que o faz
merecedor de quatro páginas de comentários – bem mais do que o espaço
dedicado a traduções e a ficção. São mencionados diversos livros e autores,
muitos dos quais voltados para “temas palpitantes da fase atual”: Francisco
Mangabeira e a questão do petróleo, Antônio Callado com Tempo de Arraes,
Hélio Silva e seu Sangue na areia de Copacabana, Osny Duarte Pereira e sua
contribuição à coleção “Cadernos do povo brasileiro”, intitulada Que é
Constituição?... Depois de contemplar ensaios biográficos e históricos, Sodré
comenta alguns ensaios de natureza literária: de Guilherme Figueiredo, As
excelências ou Como entrar para a Academia, “um retrato bastante fiel da vida
literária brasileira” (Id., p.155); A luta literária, do “talentoso Fausto Cunha”; O
romance, teoria e crítica, de Adolfo Casais Monteiro; O relógio e o quadrante, de
Álvaro Lins; e, de Clóvis Moura, Introdução ao pensamento de Euclides da
101
Cunha. Há outros livros comentados, e essa breve listagem tem por objetivo
apenas ilustrar a seleção feita por Sodré.
Sob o abrangente subtítulo “Outros gêneros”, Sodré comenta a fraca
publicação de peças de teatro em livro, as poucas obras de caráter memorialístico,
e as “indefectíveis antologias” que, “valendo-se do interesse do público, aparecem
aos montes (...) com a queda de qualidade inevitável” (Id., p.157). Por fim, em
uma última subdivisão intitulada “Crônica política”, Sodré comenta a expansão
desse gênero dadas as circunstâncias vividas no país. Nesse campo, os autores que
mais se destacaram foram Alceu Amoroso Lima e Carlos Heitor Cony. O
primeiro, cujas críticas publicadas na imprensa diária vinham de muito tempo e
prosseguiram depois de abril, reuniu-as no volume Revolução, reação ou reforma,
que Sodré caracteriza como “um dos livros de maior importância entre os que se
ocupam da política brasileira atual, escrito com muita clareza, da parte de um
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homem de posição definida, inequívoca, enraizada em bases filosóficas, um
acontecimento, em suma, e um dos sintomas mais eloqüentes dos tempos que
estamos vivendo” (Id., p.159). Quanto a Cony, “habitualmente avesso à política,
pelo menos no sentido vulgar”, tornou-se “um dos mais destacados cronistas
políticos do país” (Id., ibid). Seu livro O ato e o fato teve enorme sucesso de
público e despertou “iras desenfreadas” em função da coragem e da lucidez com
que o autor expõe os aspectos mais variados – e cruéis – do Golpe. Sodré
menciona ainda como relevantes a publicação de Hay gobierno?, em que os
chargistas Jaguar, Claudius e Fortuna reuniram suas bem-humoradas críticas à
“abrilada”, e 1º de abril, estórias para a história, em que Mário Lago recolhe
episódios das primeiras prisões políticas efetuadas após o Golpe.
No parágrafo de conclusão, Sodré desculpa-se por eventuais omissões e
reconhece que, apesar de seu esforço, certamente há deficiências. Menos uma:
“não colocamos melhor o livro do compadre, por ser do compadre”. As linhas
finais revelam um tom melancólico e pungente: “Fizemos pouco ou fizemos
muito, em 1964. Fizemos o que era possível.” (Id., p.160)
Nesse mesmo número 1 da Revista, segue-se ao artigo de Sodré outro longo
panorama, intitulado “Poesia brasileira, 1964” e assinado por M. Cavalcanti
Proença. Na conversa preliminar com que Proença inicia seu texto, uma discussão
fundamental para a poesia da época – e, em especial, para o modo como esta se
configurará nas páginas da RCB, em todos os seus volumes – é delineada: a
102
questão do engajamento político. Citando Sartre, Proença diferencia o
engajamento, que significa “estar em situação com a sua época”, do populismo,
que, segundo o pensador francês, descende dos “últimos realistas, e [é] ainda uma
tentativa de tirar o corpo fora”. Proença endossa a opinião de Sartre de que não é
mais possível tirar o corpo fora, e de que a alienação é em si uma tomada de
posição. Ressaltando que esse tipo de engajamento (a que chama de “engajamento
filosófico”) “confere ao artista a liberdade de escolher o destino que deseja para si
e para todos os homens” e que nada tem a ver com um engajamento partidário ou
de interesse material (estes sim limitadores e empobrecedores, pois forçam o
artista a abrir mão de sua liberdade criadora), Proença faz uma crítica bastante
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dura:
“[A] busca de uma liberdade de criação artística, levada ao extremo do
desligamento do mundo externo, resulta em outro engajamento, o da evasão,
de alheamento, de erradicação, tudo isso levando artistas de importância e ,
às vezes, com um belo passado, a encaixar a máscara do tédio, para que não
lhes possamos ver as rugas do ressentimento ou as contraturas do medo. (...)
Em latim, para máscara, e para títere, se diz: larva.” (Id., p.161-2)
Assim como Nelson Werneck Sodré, Proença se propõe a abordar em seu
artigo apenas as obras publicadas no ano de 1964. Tendo esse conjunto em mente,
ressalta a herança modernista como traço comum, e a liberdade de expressão
estética como conquista inalienável. Comenta a inexistência de escolas ou
conjuntos de princípios coletivos, constatando a manifestação de artistas
individuais e de grande diversidade formal e temática. “O próprio concretismo
torna aparentados os seus adeptos apenas pelo aspecto gráfico, e não pela
convergência temática.” (Id., p.162)
Apesar dessa diversidade, porém, Proença identifica uma tendência de
aproximação dos poetas em torno de um sentimento de nacionalidade, de um novo
idealismo “que tornará superados os que ainda se deixarem ficar rochapiteando, a
cantar o céu azul e as nuvens mais brancas”, bem como os que, “à falta de
Portugal”, procurarem outras metrópoles para incensar (Id., p.163). Explicitando
sua visão política, Proença diz sobre essa última postura: “Como a poesia não se
dissocia da vida, este sentimento de um mínimo de poetas é máximo nos atuais
detentores da situação política no Brasil, cuja revolução é retrovolução.” (Id., ibid)
Mas a maioria dos poetas não partilha essa visão, e encontra-se apenas no traço
103
comum do engajamento que se manifesta em inconformismo, e assim Proença
destaca, por exemplo, Cassiano Ricardo, que dentre os modernistas ainda em
atividade é o que mais tem buscado a renovação constante e as novas formas de se
expressar, o grupo da revista Práxis e seus avanços teóricos, a releitura de
Sousândrade feita pelos irmãos Campos e o tom polêmico encontrado na reedição
de Oswald de Andrade. Dentre as novidades, Proença se detém sobre
Proclamação do barro, de Fernando Mendes Viana, Estação Central, de Ledo
Ivo, Cantigas de acordar mulher, de Geir Campos, além de Luiz Paiva de Castro,
Moacyr Felix, Mauro Mota e alguns outros, sempre citando muitos versos e dando
brevíssimas impressões pessoais sobre a qualidade da poesia. Analisa ainda a
produção do Grupo Ptyx, “todos muito jovens, buscando, em principal, a
originalidade. E, porque essa busca é milenária, recaímos no uso indiscriminado
de minúsculas, nos jogos de palavras, nos trocadilhos, nas erudições acotovelando
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populismos” (Id., p.169).
Mais do que considerar aqui a opinião de Proença a respeito de cada uma
das obras e artistas mencionados, o que interessa é perceber a visão de poesia que
informa sua crítica, os elementos que ele valoriza. Sem dúvida, o maior deles é a
preocupação com o mundo, o “engajamento filosófico”, seguido de perto pela
experimentação e pelo apuro formal. Os últimos, porém, são considerados vazios
sem o primeiro. Como se verá mais adiante, toda a produção poética publicada nas
páginas da RCB orienta-se mais por este do que por aqueles, ainda que
explorando as liberdades formais já conquistadas.
5.2.
O momento literário
Voltemos, porém, a Nelson Werneck Sodré. No número 2 da RCB, em
artigo intitulado “Notas de crítica” – equivalente ao que, a partir do número
seguinte, se chamará “O momento literário” –, Sodré apresenta a proposta que
orienta a seção literária, sob sua responsabilidade. De certa forma, está também
apresentando, mais uma vez, as características que marcam a Revista:
104
“Dentro do critério de discutir a forma de fazer esta revista, e cada uma de
suas seções, chegamos a algumas decisões provisórias, mas restam ainda
muitas questões abertas. De sorte que a fisionomia da seção literária
permanecerá ainda fluida por algum tempo, talvez sempre, e isso poderá ser
um bem. Há consenso em alguns pontos, embora tudo seja
permanentemente debatido: é preciso fazer crítica dos livros editados
recentemente, e não apenas a resenha informativa; é preciso acompanhar a
atividade literária em seu desenvolvimento e, por isso, as formas definitivas
são postas de lado; é preciso insistir na variedade, muito mais do que na
uniformidade. De sorte que a seção será algo novo, mas ainda não definido
– uma conseqüência de seu processo. A cada número, pois, corresponderão
alterações”. (RCB, n.2, p.155)
Com esse caráter aberto e mutável, condizente com os princípios
norteadores do periódico, a seção realmente passou por inúmeras modificações.
Foi publicada em quase todos os números da Revista, com poucas exceções – nos
números 11-12 e 13, a seção não foi publicada, sem qualquer explicação. Quando
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a seção é retomada, no número 14, Sodré inicia com uma breve menção ao tempo
afastado: “Por motivos que não vem ao caso mencionar, andei ausente desta
seção.” (RCB, n.14, p.171) Na verdade, ele “andou ausente” da Revista como um
todo, e não apenas da seção literária: sempre tão presente e ativo colaborador,
Sodré não teve qualquer outro artigo publicado nesses dois números.
No número 2, em que aparece pela primeira vez como tal, a seção divide-se
em quatro partes: livros políticos, onde novamente têm destaque as obras sobre a
situação do país após o Golpe; ensaios, em que se destaca o peso das traduções e
das reedições, mais do que de lançamentos; ficção, onde sobressaem as traduções
de Dublinenses, de Joyce, de peças de Aristófanes e de uma nova edição de contos
de Hemingway, além de, no campo da produção nacional, a peça O berço do
herói, de Dias Gomes, e a coletânea de contos Os dez mandamentos; e, por fim,
sob o subtítulo de revistas, comentam-se alguns periódicos, mas sobretudo faz-se
uma análise do importante papel a ser desempenhado pelas revistas culturais no
Brasil. (Id., pp.155-169)
No número 3, nova ressalva sobre o formato ainda não definitivo da seção:
“Diz o ditado que o homem põe e Deus dispõe, pretendendo frizar [sic] que
as coisas acontecem de forma muito diferente do que o homem planeja. Isso
tem acontecido com esta revista e, particularmente, com a sua seção
literária. Claro que temos planejado muito, pensado em iniciativas
interessantes, armado algumas, iniciado outras. E a realidade nos tem
105
colocado, intransigentemente, na situação de executar sempre o imprevisto,
o tópico, o que o instante exige, pondo de parte tudo aquilo que ficou antes
pensado, planejado ou esboçado. (...) As boas iniciativas em que pensamos,
entretanto, ficam transferidas, mas não esquecidas. (...) No fundamental –
fazer uma seção literária séria, isenta de injunções, movimentada, crítica –
continuamos, e nem poderia deixar de ser assim, fiéis aos planos
estabelecidos. Na forma, surgiram variações. (...) A fisionomia definitiva
desta seção, pois, – tanto quanto o possa ser algum dia – está longe de ter
sido atingida.” (RCB, n.3, p.111)
Sodré dedica-se então principalmente a comentar os últimos abusos de
poder e atos de violência do Governo. Os títulos das partes em que o texto se
divide, se comparados aos do número anterior, mostrarão bem o caráter dos fatos
que impuseram mudanças contingenciais à seção: universidade (sobre as torturas
e o terror nas universidades brasileiras), tortura de estudantes, apreensão de
livros e terror em Portugal. É como se os acontecimentos recentes não deixassem
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espaço para a literatura, e o crítico fosse forçado a afastar os olhos dos livros para
encarar a realidade. Só no fim da seção é que Sodré dedica alguns parágrafos aos
últimos lançamentos, iniciando a análise com uma frase cheia de sarcasmo e
muito significativa: “Pois é: ainda se edita no Brasil, e ainda se escreve”. (RCB,
n.3, p.115)
No número 4, Sodré, com notável modéstia, expõe as criticas que sofreu de
seus colegas no Conselho de Redação: parecia haver um desejo geral de que a
seção se ocupasse menos dos lançamentos recentes, o que resultava em uma
espécie de extensa lista de resenhas, e passasse a fazer análises mais profundas de
autores e obras individuais. Outra idéia era que a seção se dedicasse a uma
“desmistificação literária”, “reduzindo às devidas proporções os falsos valores que
ocupam a área das letras brasileiras, e não só das letras”. (RCB, n.4, p.175) Sodré
reconhece a procedência dessas críticas, mas justifica a predominância de textos
que fazem apenas resenha de livros afirmando: “(...) a resenha, mais informativa
do que crítica, pretendia atender à parte do público (...) que, por viver em outros
centros que não Rio e São Paulo, precisam [sic] ser informados a respeito do
movimento editorial. Note-se que as resenhas, aqui, não são simples arrolamentos,
mas têm pretendido, dentro de seus limites, exercer seleção, discriminar valores,
destacar o importante”. (Id., p.176) Sodré ainda ressalta que, a partir daquele
volume, certas mudanças seriam introduzidas, como por exemplo a inclusão de
um ensaio crítico de Carlos Nelson Coutinho que demonstraria a maior qualidade
106
e profundidade de análise pretendidas. Tal ensaio, no entanto, só é publicado no
número seguinte, sendo intitulado “Uma análise estrutural dos romances de
Graciliano Ramos” (comentado com mais detalhes adiante).
De fato, a seção continuou a seguir, de modo geral, essa linha de resenhas,
apresentando obras selecionadas de diversos gêneros, sempre precedidas por um
comentário mais amplo sobre a situação da literatura no quadro político e social
específico que se vivia então, uma espécie de balanço da produção literária em
tempos de terror e obscurantismo. Muitas vezes, a literatura era deixada de lado
para se comentarem os últimos abusos policiais ou os últimos desmandos da
política.
Mais interessante e útil do que fazer um extenso levantamento das obras e
dos autores resenhados por Sodré é reproduzir alguns desses trechos em que a
ironia fina e a penetrante inteligência do crítico se voltavam para a situação do
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país como um todo, revelando o contexto em que a literatura do período estava
inserida e propiciando uma visão muito mais abrangente de suas características.
Certamente, eles dizem mais sobre a produção literária da época do que uma ou
outra frase isolada sobre determinado lançamento.
Assim, por exemplo, no número 5-6, de março de 1966, Sodré comenta a
tentativa de impor a mediocridade como norma, inclusive pelo controle dos meios
de divulgação: “chega a ser grotesco o esforço em impingir criaturas omissas
como geniais, em glorificar a mediocridade e, por tais processos, indicar um
caminho, o da passividade, o do conformismo, o da neutralidade artística, o da
omissão diante dos problemas”. (RCB, n.5-6, p.101)
No número seguinte, há uma nova menção à mediocridade reinante, ao
conformismo premiado. No entanto, a situação negativa que o país enfrenta – e
seus inevitáveis reflexos na área literária e cultural – é encarada de forma um
pouco mais otimista. O trecho abre a seção publicada em maio de 1966 e chama a
atenção para a efervescência cultural que, paradoxalmente, dominou as décadas de
60 e 70, apesar da repressão imposta pelo governo militar:
“O momento literário brasileiro, condicionado, como não podia deixar de
ser, ao conjunto nacional, apresenta-se refletindo diretamente as
conseqüências do que vem ocorrendo no País. Observadores superficiais,
que se sensibilizam diante dos fatos correntes, e são incapazes de tirar deles
as conclusões mais profundas, verificam apenas, e com natural pessimismo,
107
o lado negativo, o esforço do obscurantismo para impedir o
desenvolvimento da cultura nacional. Esse esforço, operado por meios
cirúrgicos e brutais, de início, e concretizado em inquéritos, cassações,
demissões de mestres, exílio de intelectuais, prisões, apreensões de livros,
etc., toma, a partir do ano em curso, forma organizada, pela valorização
sistemática da mediocridade, pela glorificação do conformismo, pela
premiação dos passivos ou dos renegados ou dos corrompidos. Mas este é
um dos lados do problema, e não é o único. Seria cego aquele que não
observasse, também, o extraordinário esforço da cultura nacional para
sobreviver, a unidade hoje existente entre os intelectuais em defesa das
liberdades e, especificamente, a criação, com trabalhos de mérito, no teatro,
no cinema, na ficção, no ensaio, nas ciências. Ao lado disso, a vigorosa luta
estudantil, marcada por episódios diários, a que é indispensável conceder
toda atenção e que revela a pujança das gerações mais jovens e sua
inconformação com a estupidez erigida em norma cultural. A realidade
sempre se compõe dos dois aspectos; ver um deles, apenas, é ver mal e
parcialmente.” (RCB, n.7, pp.159-60)
Pouco adiante, Sodré segue na mesma linha ao iniciar um pequeno balanço
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da produção literária do ano anterior comentando novamente: “Não se opera o
retorno à idade da pedra apenas pelo uso de instrumentos físicos de coação. Há
um nível que, quando atingido pela cultura, não admite retorno.” E ainda: “O
travesti cultural, embora revestido de autoridade formal, desperta apenas o riso.”
(Id., p.160)
É interessante comentar duas idéias que aí aparecem e que são recorrentes
nos textos de Nelson Werneck Sodré para a seção de literatura da RCB: a de que a
cultura é de fato um meio eficiente e poderoso de resistência à brutalidade e à
estupidez impostas pelo regime ditatorial e a de que os pseudo-intelectuais,
elevados à categoria de mestres não pelo valor de sua obra, mas pelo conformismo
e pelo alinhamento em relação à ordem vigente, não passam de “renegados” que o
tempo e a história saberão reduzir a seu lugar de mediocridade e irrelevância no
plano cultural nacional. Veja-se, por exemplo, o contraste exposto no número 910 entre a dificuldade de divulgação “que entorpece o movimento literário
brasileiro” e
“os falsos valores que continuam impunes, alardeando o que não possuem,
gozando dos favores da publicidade organizada, (...) escribas capazes de
provar que o branco é preto, fazendo reportagens para revistas caras,
coloridas e de circulação garantida, apregoando qualidades de outros, que
apregoam as suas, e todos entoando o coro de louvações à mediocridade,
porque assim é preciso: que seria deles se não fosse a mediocridade? Esses
escritores “apolíticos”, capazes de louvar qualquer coisa, têm boa imprensa,
108
e recebem louvações pelo comportamento manso (...). O mais, é lama que as
enxurradas hão de carregar, com seus títulos, suas medalhinhas, seus
livrinhos, suas revistinhas, e tudo que por aí anda, a fingir de cultura (...).”
(RCB, n.9-10, pp.114-5)
Fica evidente que a oposição aí explicitada é não apenas entre “engajados” e
“alienados”; vai além, envolvendo intelectuais sérios, “que têm algo a dizer e não
encontram lugar e oportunidade”, em contraste com os “corrompidos”,
“renegados”, “vendidos”.
Em julho de 1966, no número 8 da Revista, Sodré mantém o otimismo:
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“Apesar dos esforços para colocar o livro fora da lei e do escasso poder
aquisitivo de nossa gente, o movimento editorial persiste, teimosamente, em
fornecer a teimosas criaturas que procuram enriquecer os seus
conhecimentos número crescente de obras importantes.” (RCB, n.8, p.147)
Em seguida, ressalta que nunca houve no país tanto desejo de conhecer e
discutir novas idéias, o que leva os editores a publicarem não apenas o que terá
garantia de vendas como também obras importantes que contribuam
qualitativamente para o clima de debate reinante e para a liberdade ao menos no
plano intelectual.
Já alguns meses depois, o crítico parece abalado, desanimado pela
dificuldade que envolve a produção literária brasileira. Ele então “compreende o
drama terrível dessa dificuldade de divulgação que abafa revelações, que oculta
talentos, que impede a renovação de valores”. (RCB, n.9-10, p.114) E aponta os
problemas enfrentados pelas editoras: “O mercado editorial denuncia os efeitos
desastrosos da política econômica e financeira: livros caros, vendendo pouso, as
editoras não subsidiadas em dificuldades, autores que não conseguem ser
publicados.” (Id., p.115)
O tom otimista de Sodré parece definitivamente deixado pra trás em
setembro de 1967, mais de um ano depois de ele ter insistido em que a realidade é
composta de dois lados, e que ver apenas um deles é ver mal e parcialmente.
Agora, os pontos positivos que antes destacara parecem ter se esmaecido:
“Depois da fase inicial de unidade, que sucedeu à implantação da ditadura,
os intelectuais – que resistiram bem naquela fase – dispersaram-se e
permitiram que fosse colocado em primeiro plano o que os divide e não o
109
que os une. (...) É lamentável verificar (...) que, no campo dos intelectuais, a
luta seja desenvolvida entre partidários das diversas tendências, e não contra
a ditadura.” (RCB, n.15, p.214)
È importante retomar as críticas feitas pelo Conselho de Redação da RCB à
organização da seção literária a cargo de Sodré. Conforme já ficava bastante claro
no número 4, de setembro de 1965, o Conselho desejava que a seção fosse mais
crítica, fazendo análises mais profundas de determinadas obras, em vez de
meramente informativa. Sodré argumentava então que a informação se fazia
extremamente necessária naquele momento, em que a circulação das novidades no
meio cultural e literário era muito restrita. A mesma crítica se repete em julho de
1967, no número 14. Dessa vez, ainda que fazendo a mesma objeção e ressaltando
que a informação que a seção literária até ali vinha fornecendo era não meramente
quantitativa, como a que por vezes se fazia disponível em outros veículos, mas
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sim qualitativa, agregando à seleção de título e autores um sério juízo de valor,
Sodré cede. A partir desse número, além de um balanço mais amplo dos últimos
lançamentos, a seção passa a ter uma parte intitulada “Nota crítica”, que se ocupa
em maior profundidade de apenas um ou dois títulos.
De fato, a seção permaneceu com esse formato nos números seguintes, com
algumas poucas variações circunstanciais. Chama atenção a preocupação de
sempre dedicar espaço a livros de ficção e de não-ficção, estrangeiros e nacionais,
bem como a revistas e outros periódicos. Era uma maneira de abarcar o conjunto
da produção literária do período, uma vez ser impossível comentá-la em sua
totalidade. Manteve-se sempre também a opção por abrir a seção com um
comentário geral sobre a situação do país, indo além dos limites estritos do meio
literário. Fica evidente a compreensão dos diferentes meios como interrelacionados: não se pode falar de literatura sem se considerar a política, a
economia, a educação, os movimentos sociais. Esse espaço de abertura era
utilizado por Sodré para comentar e denunciar os abusos do poder ditatorial,
fazendo questão de relatar os últimos desmandos, a hipocrisia, a crueldade, a
violência.
No último número da Revista, Sodré faz uma observação em que prevê que
os tempos hão de mudar. Denuncia o endurecimento do regime e a escalada da
violência, mas, com o habitual otimismo, deixa espaço para a possibilidade –
remota – de que haja uma mudança para melhor:
110
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“Um dos problemas de quem escreve em revista de periodicidade larga,
como esta, consiste na desatualidade permanente de seus pronunciamentos,
decorrente do fluxo natural do tempo, de um lado, e do ritmo velocíssimo
com que os processos se desenvolvem, em nossa época. Não é possível
prever, pois, qual o clima em que viveremos quando estas linhas estiverem
sendo lidas (...). Escrevo em outubro, serei lido provavelmente em
dezembro, e talvez em dezembro a fase histórica seja outra, quem sabe? O
que é possível assegurar, sem sombra de dúvida, (...) é que vivemos uma
fase muito difícil, em nosso País, agora, quando a violência foi erigida em
sistema e parece não encontrar limitações. Estamos, realmente, sendo
apresentados a alguma coisa que não conhecíamos (...), alguma coisa de
radicalmente novo: o terrorismo político. (...) Presumíamos que a nossa
provação seria profunda e, provavelmente, longa; não poderíamos presumir
que, tão depressa, assumisse as formas que vai assumindo. Não sabemos o
que estará marcando o quadro em dezembro, e resta-nos a esperança e a
confiança de que, em qualquer dezembro, na perspectiva, viveremos tempos
melhores.” (RCB, n.21-22, pp.195-6)
Como se sabe, passariam-se ainda muitos dezembros antes que a situação
melhorasse. Naquele dezembro específico foi promulgado o AI-5, e de fato a fase
histórica passou a ser outra, ainda mais dura. A Revista, como muitos outros
veículos, sentiu o golpe na pele; não pôde continuar a ser publicada.
5.3.
Artigos e ensaios
A seção literária assinada por Sodré, porém, não era a única forma de se
abordar a literatura na Revista. Possivelmente para atender ao desejo do Conselho
de Redação de ver realizada uma crítica mais profunda e uma abordagem mais
detalhada de algumas obras importantes, publicavam-se também inúmeros artigos
sobre os mais variados temas – e com as mais diferentes visões – do mundo
literário. Evidentemente, será impossível comentar todos eles aqui.
Vale começar com um ensaio que Nelson Werneck Sodré menciona em sua
seção, e que claramente responde ao desejo do Conselho. Trata-se de “Uma
análise estrutural dos romances de Graciliano Ramos”, de Carlos Nelson
Coutinho. É muito relevante que, mais do que o objeto de análise (a obra de
Graciliano Ramos), seja o método empregado para fazer tal análise o que torna o
111
ensaio de Coutinho merecedor de tanto destaque na Revista. De fato, o método é
explicitado já no título do texto: a proposta é fazer uma “descrição das estruturas
significativas inerentes à sua obra e a relação entre estas estruturas e a realidade
social brasileira”. (RCB, n.5-6, p.107) Coutinho segue o materialismo dialético
que norteia as obras de Georg Lukács e Lucien Goldmann, fazendo uma crítica
marxista-estruturalista. Quer, portanto, não apenas compreender a obra de
Graciliano em seu significado interno mas também explicitar a estrutura mais
ampla em que ela se insere – e da qual ela é “ao mesmo tempo, um produto e um
fator estruturante”. (Id., p.108) Antes de iniciar a análise, Coutinho faz questão de
afirmar o caráter hipotético de seu ensaio – que deriva, segundo ele mesmo diz,
não da modéstia do autor, mas da adoção da dialética como princípio
metodológico, o que faz com que o estudo só possa ter suas afirmações
comprovadas à luz de uma leitura mais ampla, posterior, que o insira na
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perspectiva da relação entre o todo e as partes que o compõem. Em nota, Coutinho
ainda afirma a igualdade, a seus olhos, entre marxismo e estruturalismo genético.
O ensaio procede então a uma longa análise da obra de Graciliano, em que
sobressai a preocupação de vê-la inserida no contexto da realidade brasileira.
É significativo que o primeiro artigo publicado na RCB a empreender uma
crítica literária de fôlego, extensa e profunda, tenha optado pelo método
estruturalista e por essa abordagem marxista. Outros estruturalistas foram
publicados em números posteriores, como Lucien Goldmann, com o artigo
“Materialismo dialético e história da literatura” (RCB, n.11-12, pp.108- 125), com
tradução do próprio Carlos Nelson Coutinho. Nesse ensaio, escrito em 1947, o
filósofo e sociólogo romeno-francês defende o materialismo histórico tentando
desfazer equívocos comuns divulgados pelos críticos desse método. Um dos
principais deles é confundir a análise marxista que leva em conta a influência de
fatores econômicos e sociais sobre a criação literária com um tipo de crítica que
explica a obra em função da biografia do autor e do meio social em que ele viveu.
Goldmann afirma que a literatura deve ser vista como a “expressão de uma visão
de mundo”, mas que, longe de se prender apenas a uma análise material das
condições de mundo em que a obra se insere, o materialismo dialético deve
considerar a obra em seus diversos aspectos, não só em sua relação social mas
também em sua lógica interna, no plano estético. Com isso, Goldmann rebate
também o argumento daqueles que enxergam a crítica marxista como
112
essencialmente política e materialista, “fechada aos valores do espírito”. (Id.,
p.109)
Seguindo uma linha semelhante, o artigo de Georg Lukács publicado no
número 13 enfoca mais especificamente a polêmica entre arte engajada e arte
livre. Intitulado “Arte livre ou arte dirigida?”, o texto foi originalmente publicado
em setembro de 1948, e questiona a colocação do problema com base em duas
concepções estéticas tão radicais e antagônicas: ou a arte é vista como
“propaganda”, perdendo portanto seu valor propriamente artístico, ou como
“alienada”, distante da realidade, “arte pela arte”, encerrada em torres de marfim.
Mais uma vez, como no texto de Goldmann, trata-se da necessidade de conciliar
liberdade artística e criadora com a inserção do autor e da obra no mundo
material, social e econômico em que ele se insere e no qual repercute. É
interessante destacar a charge de Jaguar publicada imediatamente após o fim do
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texto, que mostra um poeta sendo hipnotizado e manipulado, qual uma marionete,
por um homem grande, gordo, de rosto grotesco (ver ANEXOS).
Já no número seguinte, porém, a RCB abre espaço para uma voz dissonante.
Em “O estruturalismo é o ópio dos literatos”, Otto Maria Carpeaux questiona e
critica esse método de análise literária, entendendo-o mais como ideário político.
(RCB, n.14, pp.245-250) Mais uma vez, uma charge de jaguar fecha o texto.
Intitulada “Estruturalismo”, mostra a ironia do cartunista dirigida a intelectuais
que adotam esse método inclusive em suas criações poéticas (ver ANEXOS).
Os artigos sobre literatura na RCB, porém, eram bastante variados, e não se
limitavam a discussões teóricas sobre abordagens e metodologias de crítica.
Incluíam algumas entrevistas e muitos ensaios sobre obras ou autores específicos:
“Do sertão à pancada do mar”, de M. Cavalcanti Proença, em que se trata da obra
Os sertões, de Euclides da Cunha, a propósito do centenário de nascimento do
autor; “Marinetti em São Paulo”, de Mario da Silva Brito, sobre a estética futurista
e sua “antropofagização” pelo grupo modernista paulista; “James, um profeta
sofisticado”, de Antônio Callado, em que o escritor brasileiro comenta
brevemente a vida e a obra de Henry James; “O misticismo popular na obra de
Dias Gomes”, de Anatol Rosenfeld, em que o crítico alemão radicado no Brasil
analisa as peças O pagador de promessas e A revolução dos beatos; “A travessia
de Cony”, de Paulo Francis, sobre o recém-lançado romance de Carlos Heitor
Cony, e ainda muitos outros.
113
Vale comentar a interessante iniciativa de João Antônio ao realizar uma
análise do novo romance urbano que começava a ganhar força na década de 1960,
contando com a participação de expoentes do gênero. “Inquérito: o romance
urbano” é publicado no número 7 da RCB, de maio de 1966. Após uma
introdução em que analisa a herança da geração de 30 e sua consolidação do
romance regionalista nordestino, João Antônio – ele próprio já um autor de
destaque com Malagueta, perus e bacanaço, publicado em 1963 pela Civilização
Brasileira – reproduz as respostas de seis novos escritores a uma série de dezoito
perguntas sobre o processo de criação literária, as características do romance
brasileiro e do romance urbano em particular, a profissionalização do escritor, a
relação entre autor e editor e o mercado de literatura no Brasil. Os “depoentes”
desse inquérito são: Carlos Heitor Cony, Sylvan Paezzo, João Martins, Esdras do
Nascimento, Thereza Cristina e José Agrippino de Paula. Embora nem todos
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tenham seguido carreiras proeminentes na literatura nacional, tinham em comum o
fato de estarem se destacando na produção literária do período. E mais, como diz
João Antônio ao apresentá-los: “congregam uma só tônica grata ao romance
brasileiro – a principal preocupação é o homem na cidade grande, a fixação de
seus desvãos e seus múltiplos matizes”. (RCB, n.7, p.194)
Percebe-se portanto, nos artigos sobre literatura na RCB, uma grande
variedade de temas e abordagens, de obras e de autores analisados, bem como de
colaboradores responsáveis pelos textos – brasileiros e estrangeiros, críticos já
estabelecidos e reconhecidos ao lado de novos escritores e intelectuais. Ou seja,
nesse espaço continuava vigente a opção por diversidade e abertura expressa nos
princípios norteadores da Revista. De modo geral, nesses artigos, a prosa ficcional
ganha mais espaço do que a poesia ou a prosa ensaística, mas isso é de certa forma
compensado pela publicação de poemas e a abordagem de obras políticas,
econômicas e sociológicas na seção “Notas de leitura”, como se verá a seguir.
5.4.
Poesia
Com apenas uma exceção – o número 16, de novembro-dezembro de 1967 –
todos os números da Revista Civilização Brasileira trouxeram ao menos um
114
poema publicado em suas páginas. Alguns poetas eram assim apresentados ao
público pela primeira vez. Outros, mais ou menos conhecidos, contribuíam com
obras inéditas ou mesmo já publicadas anteriormente. Geir Campos, Ferreira
Gullar, Thiago de Mello, José Carlos Capinam, Moacyr Felix, o argentino Mario
Trejo, o uruguaio Mario Benedetti, Fernando Py, José Godoy Garcia e muitos
outros mostraram ali suas criações poéticas.
Um traço comum a quase todos os poemas era a flagrante opção pela
estética engajada, sendo dedicados a temas políticos e sociais. No primeiro
número, o poeta Moacyr Felix, integrante do Conselho de Redação e o principal
responsável pela seleção de poemas, publica o seu “Recado ao poeta e seus
problemas”, em que se dirige a Carlos Drummond de Andrade e confessa: “muitas
vezes afastei daqui o construtor de versos/ e artesão de domingos ocos, o
marceneiro de esquifes/ onde a palavra só cabe transformada em coisa/
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desligada/do antiqüíssimo sangue da vida em que se anima”. (RCB, n.1, p.178)
Fica a evidente opção pela poesia como reflexo da vida, mais do que como arte de
lapidar palavras; o conteúdo social tem primazia sobre a técnica.
É essa a tônica geral da maioria dos outros poemas. Como “Aos que vão
nascer”, de Bertolt Brecht, em tradução de Geir Campos: “Realmente, eu vivo
num tempo sombrio./ A inocente palavra é um despropósito. Uma fronte sem
ruga/ demonstra insensibilidade. Quem está rindo/ é porque não recebeu ainda/ a
notícia terrível.” (RCB, n.2, p.170) No mesmo número, quatro poemas de Ferreira
Gullar são reproduzidos: “O açúcar” (“Em usinas escuras,/ homens de vida
amarga/ e dura,/ produziram este açúcar/ branco e puro/ com que adoço meu café
esta manhã em Ipanema”), “Maio 1964” (Mas quantos amigos presos!/ quantos
em cárceres escuros/ onde a tarde fede a urina e terror”), “Agosto 1964” (“Digo
adeus à ilusão,/ mas não ao mundo. Mas não à vida,/ meu reduto e meu reino”) e
“Dois e dois, quatro” (“Como dois e dois são quatro/ sei que ávida vale a pena/
embora o pão seja caro/ e a liberdade, pequena”). Em todos, a mesma opção fica
patente.
Presos às circunstâncias que os cercam, os poetas são como que impelidos a
adotar uma linguagem de denúncia, de solidariedade, de luta. Bastam alguns
títulos para comprová-lo: “Estrela de esmeralda e rebeldia para o companheiro
Joel Rufino dos Santos”, de Thiago de Mello (aqui reproduzido nos ANEXOS);
“Colóquio dos violentos”, de Joaquim Cardozo; “1964”, de Renata Pallotini; “A
115
pedra não é a estrada, e a estrada não é a fome”, de Oswaldino Marques... Há,
inclusive, poemas agrupados sob temas comuns, como em “Cinco poemas que
falam do Vietnam”, reunindo escritos de Barbara Beidler, Moniz Bandeira, Eliseu
Maia, Isnard M. Vieira e Moacyr Felix.
Este é também o responsável pelo texto de apresentação de outra seqüência
de depoimentos, semelhante à que realizará depois João Antônio em relação ao
romance urbano. Aqui, sob o título “Poetas falam de poesia”, Olga Werneck faz
uma série de perguntas a respeito do conceito e do papel da poesia, do acesso que
o povo tem a esse tipo de produção literária, da poesia oral, da inspiração e da
relação forma-conteúdo (ver a lista completa em ANEXOS). A pesquisa foi
apresentada nos números 2, 3 e 4, e dentre os escritores que responderam ao
questionário estão Aníbal Machado (falecido pouco tempo depois), Joaquim
Cardozo, Vinicius de Moraes, Geir Campos, Affonso Romano de Sant’Anna,
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Ferreira Gullar e Moacyr Felix.
Na introdução à seção, afirma Felix: “Atravessamos um período em que a
fundamental necessidade de indagar-se emergiu para o primeiro plano da vida
brasileira”. (RCB, n.2, p.173) Os poetas, “que exercem diariamente o difícil ofício
de moer seu coração entre as palavras”, têm o dever de indagar-se sobre si
mesmos e sobre sua atividade a fim de saber se contribuem ou não, e de que
modo, para a “consciência coletiva ou o conjunto de aspirações, de sentimentos e
de idéias do grupo social de que fazem parte (...)”. (Id., ibid.) Assim, valorizando
o engajamento como forma de expressão da liberdade (segundo Felix, o
engajamento é “situação necessária e prévia para a inteireza de quaisquer dos atos
que o homem realiza dentro de sua essencial condicionalidade histórica,
incluindo, e sobretudo, os atos de conhecimento”), a seção idealizada e
concretizada por Olga Werneck reúne os depoimentos de “alguns autorizados
nomes de gerações e de situações diferentes”. (Id., p.175) As respostas publicadas
formam um panorama da poesia brasileira daqueles anos, mostrando como a
pensavam e a encaravam seus próprios criadores. Constituem, portanto, um
relevante documento histórico-literário e uma valiosa fonte para os estudantes e
todos os interessados em literatura.
116
5.5.
Notas de leitura
No número 7, de maio de 1966, aparece pela primeira vez a seção “Notas de
leitura”. A partir daí ela será freqüente, quase sempre ao final do volume. Como o
nome indica, reúne observações críticas a respeito de obras literárias, abordando
os mais diferentes gêneros, autores e temas. Essas curtas resenhas são assinadas
por personalidades do meio cultural, como Roberto Pontual, Otto Maria
Carpeaux, Esdras do Nascimento, Leandro Konder, Thereza Cesário Alvim,
Antônio Callado, Ferreira Gullar, Edison Carneiro, Luiz Carlos Maciel, Luiz
Costa Lima, João Antônio e muitos outros. Tratando tanto dos lançamentos
recentes quanto de obras mais antigas ou mesmo inéditas no Brasil, a seção adota
um caráter mais opinativo do que propriamente informativo, e, de certa forma,
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complementa o trabalho de Nelson Werneck Sodré em seus comentários às
novidades do mercado editorial brasileiro.
Como são muitas as resenhas (cerca de 130 no total), será inviável fazer
aqui uma análise pormenorizada delas. A menção de apenas alguns títulos, porém,
já dará uma idéia da diversidade abarcada: Numa terra estranha, romance do
norte-americano James Baldwin publicado pela editora Globo, é analisado por
Esdras do Nascimento; A arte de ser mulher, uma coletânea de artigos publicados
na revista Cláudia pela psicóloga Carmem da Silva, é analisado por Thereza
Cesário Alvim; O teatro épico, de Anatol Rosenfeld, ganha uma análise de Dias
Gomes; Dialettica del concreto, uma abordagem da filosofia marxista pelo crítico
e filósofo tcheco Karel Kosic, é lido na tradução italiana por Leandro Konder; A
necessidade da arte, livro de Ernst Fischer publicado pela Zahar Editores, é
resenhado por Ferreira Gullar; por fim, História da minha vida, a autobiografia de
Charles Chaplin publicada pela José Olympio, é apresentada sob a crítica de Paulo
Francis. E isso é apenas uma seleção dentre as resenhas publicadas no número 7.
Vale ressaltar apenas um dos livros citados acima foi publicado pela editora
Civilização Brasileira, embora outros dois títulos resenhados mas não incluídos na
lista também o fossem. Isso de certa forma aponta uma tendência que se
confirmará nos números seguintes: há uma certa preponderância de livros da
Civilização Brasileira resenhados na seção, mas isso não impede de modo alguma
a inclusão de obras lançadas por outras, e variadas, editoras.
117
Dentre os livros de poesia comentados, destacam-se A luta corporal e
outros poemas, de Ferreira Gullar, e A educação pela pedra, de João Cabral de
Melo Neto, ambos analisados por Roberto Pontual; A canção do amor armado, de
Thiago de Mello, e Um poeta na cidade e no tempo, de Moacyr Felix, analisados
por Otto Maria Carpeaux (sobressai, na segunda dessas resenhas, a frase: “O
problema não é saber quando a grande poesia é engajada, mas quando a poesia
engajada é grande.” – RCB, n.9-10, p.346); Poemário da Silva Brito, uma
coletânea de poemas de Mário da Silva Brito publicada pela Civilização
Brasileira, comentada por Ferreira Gullar (e aqui cabe um parênteses: embora
elogie a obra do poeta, Gullar critica a edição em determinados pontos,
questionando a seleção feita e lamentando a falta de informação a respeito da data
dos poemas, por exemplo; isso mostra que, mesmo publicada por essa editora, a
RCB consistia num espaço de livre expressão crítica) e Quatro quartetos, de T.S.
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Eliot, analisado por Octávio Mora.
Com uma lista resumida dos livros de ficção resenhados, fica evidente a
grande força da produção do período: Os ratos, de Dionélio Machado, na análise
de Esdras do Nascimento; Pensão Riso da noite, de José Conde, analisado por
Fausto Cunha; A hora dos ruminantes, de José J. Veiga, na leitura de Salim
Miguel; Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, novamente por Esdras
do Nascimento; Tutaméia, de Guimarães Rosa, por Roberto Pontual; 64 D.C.,
uma coletânea de contos de Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Hermano
Alves, Marques Rebelo e Sérgio Porto, por Luiz Fernando Cardoso, e O enterro
da caftina, de Marcos Rey, por João Antônio são alguns exemplos das novidades
em terreno nacional.
Dentre os estrangeiros, o já mencionado James Baldwin foi acompanhado
por escritores como Herman Hesse e Jean-Paul Sartre. Mas era mesmo na área de
não-ficção que a presença de autores internacionais se fazia mais forte,
especialmente de intelectuais de várias correntes de esquerda: Lucien Goldmann,
Reuben Osborn, Antonio Gramsci, Roger Garaudy, Georg Lukács, Louis
Althusser e Henri Lefebvre são alguns dos que tiveram obras comentadas.
A não-ficção nacional também mereceu enorme destaque, com obras nas
áreas de sociologia, história, economia, política e artes (especialmente cinema e
teatro). Celso Furtado, Luiz Carlos Maciel, Luiz Costa Lima, Cândido Mendes,
Fernando Gasparian, José Honório Rodrigues, Nelson Werneck Sodré, Osny
118
Duarte Pereira e Hélio Silva são alguns dos nomes que se misturam aos já citados
Leandro Konder, Roberto Pontual e Otto Maria Carpeaux como autores de
resenhas e também de obras resenhadas.
O simples elencar desses intelectuais, se não é suficiente para dar conta da
riqueza de suas obras e de seu pensamento, já é o bastante para comprovar a
importância da Revista Civilização Brasileira no plano intelectual brasileiro. No
período imediatamente posterior ao golpe, a reunião de pensadores desse quilate e
a exposição de suas idéias era uma forma de contestar o regime de força instalado,
de defender a livre manifestação de idéias e de insistir em um projeto políticosocial que passava necessariamente pela conscientização do povo a respeito dos
problemas enfrentados pelo país e das características da inserção deste no
contexto internacional.
A diversidade de idéias, obras, temas, gêneros e autores presentes nas
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páginas dedicadas à literatura na RCB e a liberdade de expressão sempre
comprovada nos textos publicados reforçam o caráter aberto e democrático da
Revista, em perfeita consonância com os princípios e propósitos explicitados em
seus editoriais.
6
Conclusão
A Revista Civilização Brasileira foi um veículo extremamente importante
na expressão de idéias contrárias ao regime ditatorial imposto pelo Golpe de 64.
Sua postura combativa reuniu diversos intelectuais de esquerda, com o
compromisso da luta pela liberdade e pela justiça. Regida pelos princípios do livre
pensamento e do não-sectarismo, abrigou em suas páginas representantes de
diversos matizes de esquerda, sem se restringir ideologicamente. A única
exigência era a de que todas as idéias ali expostas fossem orientadas,
coerentemente, no sentido de condenar a situação política, econômica e social do
Brasil que se vivia então. Em seus vinte e dois números, a Revista reúne artigos e
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matérias que fazem uma análise crítica de temas polêmicos e atuais, oferecendo ao
público a possibilidade de abertura e de aprofundamento teórico. A cultura e a arte
passavam por uma fase de grande efervescência, e isso se refletia nas páginas da
RCB. Assim, pode-se dizer que ler a Revista Civilização Brasileira é como
vasculhar um baú em que se guardam, intocadas, memórias de um passado que
não acabou, pois que nos constitui ainda hoje como povo e como Nação.
A Revista Civilização Brasileira atuou na brecha que existia nos primeiros
anos da ditadura militar, reunindo e organizando o pensamento intelectual de
esquerda. Sua existência marcou a época, e faz parte da experiência dos que
viveram aqueles anos. A Editora Civilização Brasileira, responsável por sua
publicação, já era reconhecida desde antes do Golpe como um importante centro
de divulgação de obras marxistas e revolucionárias, em todos os sentidos da
palavra – exceto o que queriam por força lhe impor os militares da ‘Revolução de
abril’. A linha editorial que a casa seguia é bastante significativa para a
compreensão dos princípios que a norteavam. O peso que dava aos títulos das
ciências sociais e da nova ficção nacional e internacional é uma mostra de sua
orientação e de seus objetivos: a abertura e a renovação do mercado editorial
brasileiro, a democratização do acesso à cultura, o incentivo à leitura, a crença no
livro como objeto capaz de transformar o mundo. Ênio Silveira, dono da editora
nos seus anos de maior importância e produtividade, foi preso inúmeras vezes
durante a ditadura por sua postura franca e combativa, por sua coragem e
120
tenacidade na luta contra os desmandos do poder. É impossível dissociar sua
figura da imagem da Civilização Brasileira.
A descrição das características gerais da Revista e, em mais detalhes, de
algumas de suas principais matérias revela a coerência de sua linha editorial com a
visão de mundo manifestada pela editora em outras publicações. Uma breve
análise de conteúdo mostra que este seguia a orientação geral dos princípios e
propósitos explicitados nos editoriais: abertura para idéias contrárias ao regime
mas não alinhadas sob uma única ótica, amplitude temática e discussão de
assuntos que pudessem contribuir para uma revisão dos rumos do país – políticos,
sociais, econômicos – na tentativa de promover a superação das dificuldades
históricas e contingenciais que impediam (e impedem) a igualdade e a justiça
social.
Por fim, em uma análise mais detalhada da seção de literatura e crítica
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literária, destaca-se a importância da literatura na concepção de resistência
intelectual expressa pela RCB. As características dos artigos literários corroboram
a opção geral da Revista, sendo totalmente coerentes com seus princípios e
propósitos: amplitude temática, liberdade de expressão, não-sectarismo etc.
Evidentemente, pela opção eminentemente descritiva que se fez neste
trabalho e pelas limitações típicas de uma dissertação de mestrado, foi impossível
examinar a fundo todos os textos que compõem a Revista, ou mesmo mencionar
tudo o que mereceria ser lembrado. Além disso, essa viagem ao passado através
das páginas da RCB é, necessariamente, envolta em motivações subjetivas, que
passam igualmente pelo intelectual e pelo emocional, e que estão sujeitas, desse
modo, a inúmeros desvios e turbulências no caminho. A opção por determinados
artigos e autores em detrimento de outros não foi orientada por critérios objetivos,
mas apenas pelo impacto causado por sua leitura. É claro que esse impacto está
condicionado a diversas variáveis: o leitor, o momento, a intenção... Uma segunda
leitura jamais será igual à primeira. É por isso que o que se propôs, mais do que
esgotar o assunto em uma análise minuciosa de cada um dos elementos que
compõem a Revista, foi a simples recuperação de uma parte importante do
passado coletivo da Nação. A partir daí, está aberto o caminho para que novos
leitores se debrucem sobre a coleção desses volumes e descubram novos rumos,
novas possibilidades interpretativas, novas sutilezas. Não se fez aqui uma análise
do discurso ou um estudo estilístico. Tampouco o olhar que orientou esta leitura
121
foi o do historiador preocupado em determinar fatos e datas precisas. O caminho
percorrido, como já se disse, é inegavelmente subjetivo. Não poderia ser de outra
forma.
A conclusão, coerente com os princípios da Revista, é aberta e convida a
novas reflexões. O que fica evidente, depois de concluída a pesquisa, é o quanto
ainda há a pesquisar. E mais: o quão atuais são os temas discutidos nos vinte e
dois números da RCB, o quanto ainda pode deles ser aproveitado, o quanto ainda
pode ser extraído como lições de coragem e ousadia, de coerência e dignidade, de
ética e de compromisso com as causas coletivas. Essas lições, em um tempo como
o de hoje, em que reinam a individualidade e o egoísmo, a omissão e a apatia, a
cumplicidade com as injustiças e a desonestidade, são mais do que apenas ecos de
um passado histórico: são chaves que apontam para a possibilidade de um futuro
mais justo e menos desigual, baseado no respeito e na tolerância entre os seres
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humanos.
7
Referências
CARPEAUX, Otto Maria. A batalha na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização
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Depoimentos
Eunice Duarte
Carlos Nelson Coutinho
Ferreira Gullar
Leandro Konder
Moacir Werneck de Castro
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Anexos
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Maria Rita C. Jobim Silveira A Revista Civilização Brasileira: Um