II Colóquio da Pós-Graduação em Letras
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2178-3683
www.assis.unesp.br/coloquioletras
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O TEXTO LITERÁRIO COMO OBJETO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL:
A INTERTEXTUALIDADE PRESENTE NA MÚSICA “MONTE CASTELO”, DE
RENATO RUSSO, POR MEIO DE TEXTOS LITERÁRIOS.
Ellen Valotta Elias Borges
(Mestranda – UNESP/ASSIS – CAPES)
RESUMO: Considerando o texto na dualidade de sua concepção – objeto de significação e
objeto de comunicação – este estudo pretende focar tanto os mecanismos internos quanto os
fatores contextuais ou sócio-históricos presentes na construção de um texto. Para tanto,
analisaremos a música “Monte Castelo”, de Renato Russo, cuja construção parte de textos
literários escritos em épocas e por escritores diferentes (Soneto 11, de Luís Vaz de Camões, e
Capítulo 13, de Coríntios). Desta forma, discutiremos como o contexto de produção e o
contexto de recepção podem atuar na construção dos significados de um texto. Por fim, este
estudo visa a verificar o uso do texto literário como objeto de comunicação na construção de
textos existentes fora do cânone literário carregados de valores sociais.
PALAVRAS-CHAVE: texto literário, contexto histórico-social, intertextualidade
Introdução
O conceito de texto passou por várias transformações ao longo das décadas.
Na segunda metade dos anos 60 o texto era visto como uma entidade abstrata cujo
sentido provinha de relações sintático-semânticas. Posteriormente, já na segunda
metade da década de 70 houve uma grande influência da pragmática que chega para
abrir novos horizontes, despertando o interesse pelos problemas da recepção. É após
a expansão da pragmática que os estudiosos começam a se preocupar com a relação
do texto e seu leitor, surgindo uma tentativa de renovar o estudo dos textos a partir da
leitura.
A escola de Constância é a primeira grande tentativa para renovar o estudo
dos textos a partir da leitura. Esta abordagem alemã desloca a relação texto-autor
para focalizar a relação texto-leitor. Dois grandes teóricos desta escola abordam o
mesmo tema sob uma perspectiva diferente: Hans Robert Jauss trabalha com “a
estética da recepção” enquanto W.Iser trabalha com a teoria do “leitor implícito”.
A estética da recepção surge nos anos 1970 com o intuito de repensar a
história literária. A teoria do leitor implícito data de 1976 e se volta para o efeito do
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texto sobre o leitor particular para observar as reações do leitor no plano cognitivo
durante os percursos impostos pelo texto.
Em 1980 há uma incorporação nas pesquisas em Linguística textual, dos
mecanismos,
processamento
processos,
textual
estratégias
e
pela
de
ordem
construção
dos
cognitiva
responsáveis
sentidos
(KOCH,
pelo
BENTES,
CAVALCANTE, 2007, p.12). A linguística textual conforme se pode verificar em
Marcuschi (1983, p.12-13, apud KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p.12) “trata o
texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações
humanas.”
O texto
Considerando o texto nosso objeto de estudo, é importante defini-lo para
compreender os mecanismos utilizados para análise. Um texto pode ser analisado de
duas formas diferentes: considerando a sua organização interna e estrutural ou
considerando o seu contexto sócio-histórico. Em outras palavras, o texto pode ser
definido como um objeto de significação, já que sua organização interna produz
sentidos ou, ainda, pode estabelecer relações com os demais objetos culturais por
estar inserido em uma sociedade, sendo definido como um objeto de comunicação. No
entanto, um texto não existe por si só, ele cumpre uma função social, histórica e/ou
literária a partir do momento que alguém o lê. Sua construção é feita por relações de
interdependências: forma e conteúdo, leitor e texto, contexto de produção e contexto
de recepção, palavras e sentidos, etc. A partir dos anos 90 há uma grande mudança
trazida pelo sóciocognitivismo e pelo interacionismo bakhtiniano que consideram o
texto um lugar de constituição e interação de sujeitos sociais. Desta forma, o texto é
visto como um objeto heterogêneo construído por relações internas e externas
(elementos históricos, sociais e culturais). Segundo Bakhtin “O texto só ganha vida em
contato com outro texto (com contexto). Por trás desse contato está um contato de
personalidades e não de coisas (1986, p.162 apud KOCH, BENTES, CAVALCANTE,
2007, p.16).
Em razão deste princípio, integramos o conceito de intertextualidade trazido
por Kristeva na década de 1960. Segundo Kristeva (1974, p.60), “qualquer texto se
constrói como um mosaico de citações e é a absorção de um outro texto”.
Embora o conceito de intertextualidade tenha nascido no interior da Teoria
Literária, seu uso foi ampliado e é utilizado dentro de diferentes correntes teóricas
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como Análise do Discurso, Linguística Antropológica, Linguística textual, Semiótica,
por exemplo. Podemos encontrar pontos em comum dentro dessas diferentes teorias
cujo objeto de estudo é ou está relacionado com o texto.
Intertextualidade e interdiscursividade
A intertextualidade é inerente à produção humana visto que o texto é um
objeto cultural representado na sociedade por meio de filmes, músicas, anúncios,
poemas, romances, entre outros meios, Desta forma, podemos considerar a relação
entre os textos responsável pela reprodução e/ou formação do sentido no processo de
produção e recepção textual.
O homem sempre se refere a algo que já foi dito ou feito no processo de
produção simbólica. Falar em autonomia de um texto é, a rigor, improcedente, uma
vez que sua existência se concretiza a partir do momento que alguém o lê, o que
depende do olhar de cada leitor que é livre para interpretar o texto, recriando leituras e
produzindo novos significados. É o leitor em conjunto com suas formações sociais e
ideológicas que realizará determinada interpretação.
Cada texto constitui uma proposta de significação que não está inteiramente
construída. A significação se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário.
Este último é um interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que
participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. A intertextualidade se dá, pois, tanto
na produção como na recepção textual que ocorre dentro do universo sócio-cultural
que todos participam: filmes que retomam filmes, obras de arte que dialogam com
outras, propagandas que se utilizam do discurso artístico, músicas escritas com versos
de poemas alheios, tudo isso são textos dialogando com outros textos.
Podemos associar essas concepções ao estudo de Bakhtin sobre a inerente
polifonia da linguagem, na medida em que todo discurso é composto de outros
discursos, toda fala é habitada por vozes diversas. Na verdade, a intertextualidade,
inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as produções literárias que se valem
de diferentes recursos intertextuais como, por exemplo, referências, alusões,
epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches.
Em qualquer nível, a produção simbólica é, pois, sempre uma retomada de
outras produções, perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores.
A interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja
verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso
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que ele manifesta. A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a
constituição de um texto. A interdiscursividade, ao contrário, é inerente à constituição
do discurso, dado que um discurso discursa outros discursos. Nessa medida,
podemos dizer, então, que o discurso é social, além de apresentar uma
heterogeneidade constitutiva (MAINGUENEAU, 1987, p. 81-93, apud BARROS;
FIORIN, 2003, p.33)
Discutiremos a intertextualidade presentes na música Monte Castelo e sua
relação com a interdiscursividade responsável pela produção do sentido no momento
da produção textual por parte do autor e suas possíveis releituras no processo de
recepção textual por parte de diferentes leitores inseridos em contextos culturais
diferenciados pelo tempo e pelo espaço, além de considerar os elementos externos
integrantes na constituição da música.
O contexto histórico e o leitor
Estudar as estruturas gramaticais com um fim em si mesmo é insuficiente
para compreender a função de um texto, já que esta se relaciona diretamente com o
leitor, responsável por desvendar o conteúdo por detrás de sua estrutura. Entretanto, o
conteúdo é cheio de significados interpretativos que só serão concretizados dentro do
contexto de recepção do leitor, o que envolve fatores ideológicos constituintes deste
sujeito social, portador de uma visão de mundo e conhecimentos específicos, o que
nos faz considerar o texto um universo aberto onde podemos descobrir infinitas
interconexões. A implicação do leitor no universo textual pode adquirir formas muito
diferentes dependendo da distância temporal entre leitor e obra. Quando a distância é
muito grande, o leitor deve, primeiramente, reconstituir a situação histórica do texto
para poder fazer uma leitura mais profunda, observando uma visão de mundo que não
é a de seu universo cultural. A leitura está muito longe de possuir um sentido único e
limitado. O texto literário é, por definição, polissêmico, é a pluralidade de vozes no
decorrer da leitura que define o texto como literário. A ambiguidade presente na
linguagem literária não permite uma posição definida a favor da interpretação literal ou
retórica. O leitor nunca possui um sentido definido em relação a uma obra. Ele constrói
sentidos a cada momento, a cada nova influência, a cada conhecimento novo. O
sentido é criado a cada encontro do leitor com o livro. De acordo com Jouve (2002, p.
103), “é impossível esgotar totalmente uma obra literária. Cada indivíduo traz consigo,
de acordo com sua leitura, um suplemento de sentido”.
470
A linguagem não pode fugir da ação do tempo sendo incapaz de manter
imutáveis os significados atribuídos a determinadas palavras. As palavras não existem
isoladas, o que as torna incapazes de possuir significados estáveis e limitados. Ao
contrário, elas trazem consigo valores que lhes são atribuídos por sujeitos sociais e
ideológicos.
As palavras são habitadas por vozes distintas e quando são recebidas pelo
leitor, elas trazem consigo a voz do outro. Qualquer palavra de determinado contexto
provém de outro contexto, já marcado pela interpretação de outrem. O pensamento do
leitor encontra apenas palavras já ocupadas. Harold Bloom fala de uma “angústia da
influência” em que as vozes dos outros habitam o nosso discurso, que se torna,
consequentemente, polivalente.
É desta forma que um texto literário é construído, por vozes de outros sujeitos
ideológicos que utilizam a literatura como um objeto social para transmitir discursos
ideológicos por meio dos textos. As palavras se relacionam dentro de um mundo
fictício para relatar, satirizar ou imitar a realidade.
Durante o processo de leitura, o leitor tenta interpretar os significados das
palavras, utilizando, para tanto, seu conhecimento de mundo. Contudo, a interpretação
pode ser feita de distintas formas, dependendo da formação e do contexto de
recepção daquele que a faz. Muitas interpretações podem ser feitas, mas nem todas
são válidas. O que faz, então, uma interpretação ser válida e outra não? A validade de
uma interpretação deve estar relacionada com a intenção do texto. Contudo, esta
intenção pode ser percebida de diferentes formas dentro do universo ideológico de
cada um. É por este motivo que nada pode ser desprezado dentro de um texto
literário. É sua estrutura organizacional, suas escolhas lexicais e relações
estabelecidas entre as palavras, além do conhecimento histórico e do contexto de
produção que orientarão o leitor a fazer uma interpretação consciente, respeitando a
coerência interna do texto. Conhecer a vida e o momento histórico do autor pode
ampliar o panorama de compreensão do texto, mas não é suficiente para alcançar a
sua intenção. É durante o processo de leitura e interpretação que o leitor deixa de ser
um simples leitor e passa a atuar como um sujeito social. Na busca do equilíbrio de
uma interpretação válida e coerente, este sujeito faz relações entre aquilo que lhe é
oferecido pelo texto (forma) com aquilo que ele interpreta de acordo com sua formação
ideológica (conteúdo).
A partir de então, o leitor atento e crítico não constrói simplesmente
significados por meio da estrutura que lhe é apresentada, ele se constrói como sujeito
471
social ao utilizar suas formações ideológicas no momento em que relaciona o fictício
com o mundo real. É este fictício que o ajudará a desenvolver o seu intelectual,
melhorando-se como sujeito social. A literatura tem a capacidade de transformar o
leitor em um sujeito social a partir do momento que transforma sua leitura simples do
dia a dia em uma leitura crítica e consciente, é por meio da leitura que as mentes se
desenvolvem.
Os textos literários
Texto Bíblico: Coríntios 13
1 Coríntios 13
1.
Ainda que eu falasse as línguas
dos homens e dos anjos, e não tivesse
amor, seria como o metal que soa ou
como o sino que tine.
2.
E ainda que tivesse o dom de
profecia, e conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência, e ainda que
tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse
amor, nada seria.
3.
E ainda que distribuísse toda a
minha fortuna para sustento dos pobres,
e ainda que entregasse o meu corpo
para ser queimado, e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria.
4.
O amor é sofredor, é benigno; o
amor não é invejoso; o amor não trata
com leviandade, não se ensoberbece.
5.
Não se porta com indecência, não
busca os seus interesses, não se irrita,
não suspeita mal;
6.
Não folga com a injustiça, mas
folga com a verdade;
7.
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta.
8.
O amor nunca falha; mas
havendo profecias, serão aniquiladas;
havendo línguas, cessarão; havendo
ciência, desaparecerá;
9.
Porque, em parte, conhecemos, e
em parte profetizamos;
10.
Mas, quando vier o que é perfeito,
472
então o que o é em parte será
aniquilado.
11.
Quando eu era menino, falava
como menino, sentia como menino,
discorria como menino, mas, logo que
cheguei a ser homem, acabei com as
coisas de menino.
12.
Porque agora vemos por espelho
em enigma, mas então veremos face a
face; agora conheço em parte, mas
então conhecerei como também sou
conhecido.
13.
Agora, pois, permanecem a fé, a
esperança e o amor, estes três, mas o
maior destes é o amor.
O seguinte texto faz parte de um conjunto de textos bíblicos presentes no
Novo textamento em Coríntios 13, dividido em 13 versículos. A enumeração dos
versículos é diferente de todos os outros capítulos apresentados em Coríntios 1 e 2.
Os números sempre colocados no começo de uma linha (nunca na continuação de
uma linha como acontece normalmente nos outros capítulos) causa a impressão de
mandamentos que devem ser seguidos nas seguintes ordens. O tema amor é
apresentado como central dentro do texto. Ele é escrito em primeira pessoa do
singular. O narrador começa o texto demonstrando a insignificância de se possuir tudo
se não houver o amor. Os versículos 1, 2 e 3 são construídos por orações
concessivas.Observe os trechos a seguir:
1.
Ainda que eu falasse as línguas
dos homens e dos anjos, e não tivesse
amor, seria como o metal que soa ou
como o sino que tine.
2.
E ainda que tivesse o dom de
profecia, e conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência, e ainda que
tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse
amor, nada seria.
3.
E ainda que distribuísse toda a
minha fortuna para sustento dos pobres,
e ainda que entregasse o meu corpo
para ser queimado, e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria.
O tempo utilizado (pretérito imperfeito do subjuntivo) é responsável para
causar o efeito de sentido de impossibilidade e suposição. Está claro que o narrador
473
não tem nada daquilo que se apresenta por orações concessivas e dificilmente terá
(ele não fala a língua dos anjos, não tem o dom da profecia, não conhece todos os
mistérios, não tem toda a fé, não vai entregar seu corpo para ser queimado, etc). O
fato de não possuir nada é apresentado para relacionar a possibilidade (ainda que
muito improvável) de conquistar tudo aquilo que parece impossível e ser esta
realização algo irrelevante na ausência do amor. Somente o amor pode suprir todas as
necessidades. Ele é supremo, sagrado e vital. O amor é tudo e tudo sem o amor é
nada.
A partir do versículo 4 até o versículo 8 o narrador começa a definir o que
seria este amor para ele. Essas definições são apresentadas por meio de afirmativas e
muitas negativas, como se fossem regras para serem ou não seguidas. Veja os
seguintes trechos:
4
O amor é sofredor, é benigno; o
amor não é invejoso; o amor não trata
com leviandade, não se ensoberbece.
5
Não se porta com indecência, não
busca os seus interesses, não se irrita,
não suspeita mal;
6
Não folga com a injustiça, mas
folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera,
7
tudo suporta.
8
O amor nunca falha; mas
havendo profecias, serão aniquiladas;
havendo línguas, cessarão; havendo
ciência, desaparecerá;
Encontramos a presença de paradoxo como recurso linguístico para causar
maior expressividade à mensagem, ao afirmar que o amor é sofredor, mas ao mesmo
tempo é benigno, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade, enfatizando a
importância de definir o que é e o que não é o amor, segundo o ponto de vista do
narrador.
De acordo com as ideias presentes no texto, o amor é a perfeição. Sendo um
texto bíblico, este tipo de amor pode ser uma comparação com Deus, pois, segundo a
Bíblia, somente Deus é a perfeição. A superioridade atribuida ao amor é verificada em
outra passagem ao compará-lo ao fato de “transportar montes”, que pode ser visto
como um milagre dentro da biblia. Verifiquemos o trecho seguinte: “[...] ainda que
tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor,
nada seria” Somente a pessoa que possui toda a fé do mundo é capaz de transportar
montes. Ainda assim, a conquista desse milagre seria insignificante se não houvesse a
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presença do amor. Verificamos, desta forma, a supremacia que o texto dá ao amor,
como se ele fosse o próprio Deus.
Todas estas características atribuídas ao amor pressupõem um sentimento
perfeito e sagrado. Sendo o homem um ser imperfeito, cheio de falhas, desejos e
diversos sentimentos contrários ao amor, podemos pressupor que este conceito de
amor apresentado pelo texto 1 faz referência a um sentimento não humano, não
carnal. Somente um ser angelical e/ou sagrado como Deus teria condições de
apresentar um sentimento deste tipo que suporta tudo, que nunca falha. A obtenção
deste sentimento no mundo terreno é apresentada de maneira utópica, o que nos
remete a outra passagem bíblica que nos faz refletir sobre a felicidade não ser deste
mundo (Ec: 6, 9). O texto é construído como se fosse um mandamento, como se por
meio dele as pessoas tivessem consciência da importância de começar a buscar o
amor desde já, ainda que sua conquista só pudesse ser concretizada na vida eterna e
na presença de Deus.
Soneto de Camões
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
O soneto Amor é fogo que arde sem se ver, de Luís Vaz de Camões, trata
das contradições do amor. Ainda que o tema seja o mesmo presente nos outros
textos, aqui ele não possui uma definição clara. Ao mesmo tempo que ele é positivo
também é negativo. O negativo pode ser representado pelas palavras fogo (inferno,
corpo, carne), ferida, dor, solitário. Contudo, sempre há algo positivo para anular o
negativo (Ainda que o fogo arde, não se vê, ainda que a ferida dói, não se sente, a dor
desatina mas não dói). Quando há algo positivo, em seguida há algo negativo
(contentamento descontente, ganha em se perder). O amor é este sentimento
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inacabável de altos e baixos. Esta continuidade é representada pela palavra amor que
é utilizada tanto para começar quanto para finalizar o soneto.
As contradições do amor são utilizadas para acentuar o dualismo platônico
entre matéria e espírito, negativo e positivo, pecado e pureza. Essa feição contraditória
e o jogo de oposições aproximam Camões do Maneirismo e, no limite, do Barroco.
Este soneto é uma tentativa de definir o amor. A impossibilidade desta
definição é apresentada pelas contradições existentes entre os termos positivos e
negativos. Este jogo estrutural realizado por paradoxos causa o efeito de
complexidade do amor, um tema tratado por tantos outros textos, mas não mostrado
na sua dualidade. A definição do amor o tornaria algo objetivo. Sua falta de definição o
coloca no lugar de subjetividade e complexidade: ele pode ser tudo ou nada, bom ou
ruim, positivo ou negativo, material ou espiritual. Na realidade, o soneto trata da
impossibilidade de definir o amor e das incertezas e contrariedades deste sentimento.
Há uma tentativa de definição no começo do soneto “Amor é...”, porém, todas as
definições são impossibilitadas ao finalizar o soneto por um sinal de interrogação,
demonstrando a dúvida e criando incertezas de tudo aquilo que foi definido
anteriormente.
A contrariedade do poema também é vista pela parte externa (estrutura) e
interna (conteúdo). A parte externa representa a possibilidade enquanto a interna
representa a impossibilidade. Ainda que o tema do amor seja algo impossível de se
definir, é um tema possível de ser trabalhado dentro das normas de um soneto: versos
decassílabos, com predomínio dos decassílabos heroicos (sexta e décima sílabas
tônicas), rimas opostas nos quartetos (ABBA) e alternadas nos tercetos (CDC).
A complexidade do amor é demonstrada pela complexidade da organização
estrutural do soneto.
As relações intertextuais
Monte Castelo
MONTE CASTELO
Composição:Renato Russo
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É só o amor, é só o amor
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Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja
Ou se envaidece...
O amor é o fogo
Que arde sem se ver
É ferida que dói
E não se sente
É um contentamento
Descontente
É dor que desatina sem doer...
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É um não querer
Mais que bem querer
É solitário andar
Por entre a gente
É um não contentar-se
De contente
É cuidar que se ganha
Em se perder...
É um estar-se preso
Por vontade
É servir a quem vence
O vencedor
É um ter com quem nos mata
A lealdade
Tão contrário a si
É o mesmo amor...
Estou acordado
E todos dormem, todos dormem
Todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade...
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
Monte Castelo é uma canção da banda brasileira de rock Legião Urbana,
lançada no álbum As Quatro Estações em 1989. Composta por Renato Russo, a
canção traz citações do poeta português Luís Vaz de Camões em seu soneto 11, além
do capítulo 13 de Coríntios, livro da Bíblia.
O tema do amor é tratado como uma ideia de verdade. É por meio dele que
acontece o despertar para a realidade da vida. Esta realidade (verdade) trazida pelo
amor não quer o mal, não sente inveja ou se envaidece. O narrador afirma esta
verdade exposta pela letra ao afirmar que está acordado para a realidade enquanto
todos dormem, o que pode ser visto em um dos poucos versos da música que utiliza
477
apenas palavras do autor (sem fazer referências ao texto de Camões ou ao texto
bíblico): “Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem”.
Ainda que o narrador da música seja o mesmo ao utilizar a 1ª pessoa do
singular, a intertextualidade contida no texto nos remete à outro narrador ao fazer
referência a um texto bíblico: “ainda que eu falasse a língua dos homens...”. O eu
presente neste verso, não é o mesmo eu presenteno no verso “Estou acordado”.
Todo texto traz valores e vozes presentes atrás de seu sentido. O primeiro eu
nos remete à voz do apóstolo Paulo aos conríntios (povo que vivia em uma cidade da
Grécia chamada Corinto). Renato Russo utiliza esta voz aceita como uma verdade
consagrada pela Bíblia para afirmar a sua verdade enquanto homossexual. Desta
forma, Renato Russo utiliza a voz de um narrador para criticar aqueles que criticam o
seu tipo de amor, fazendo com que eles acordem para uma verdade exposta há muito
tempo pela bíblia: o amor. Ao dizer que “todos dormem”, está fazendo uma metáfora
para mostrar a negação da realidade presente na vida de todos.
A música utiliza a intertextualidade para afirmar a importância do amor pelo
texto bíblico e utiliza o soneto para mostrar as contrariedades existentes no amor. É
interessante apontar que os únicos versos do soneto não utilizados na música foram o
12º (“Mas como causar pode seu favor”) e o 13º (“Nos corações humanos amizade”), o
que poderia trazer o tema da amizade. Podemos deduzir, desta forma, que o amor
tratado na canção não está relacionado ao tema de amizade, mas ao tema amoroso.
O uso de um texto bíblico em uma música escrita por um roqueiro
homossexual pode ser visto como uma crítica social e religiosa. Considerando que o
álbum foi lançado em 1989 e Renato Russo tinha assumido publicamente sua
homossexualidade em 1988, é inevitável não fazer relação ao tema.
A supremacia do amor deve estar presente em qualquer situação. Amor é
amor em qualquer lugar desde que seja verdadeiro. O amor de um homossexual não é
menos importante que de outro amor. Por isso que o amor é um paradoxo. A
sociedade considera o amor entre um homem e uma mulher, mas a letra da música
mostra a contrariedade que há no amor: “tão contrário a si é o mesmo amor”. Ainda
que o amor não é o que parece ser aos olhos dos outros, ele não deixa de ser amor.
As pessoas só poderão ver a verdade do amor quando acordarem para uma vida sem
preconceitos. O narrador afirma estar acordado para esta verdade enquanto todos
dormem. Podemos encontrar o tema da hipocrisia: ainda que a verdade esteja
presente, todos continuam dormindo para não vê-la, mas um dia todos deverão
encará-la: “mas então veremos face a face”. Ele afirma uma verdade exposta pela
478
bíblia para requerer o direito da sua verdade. Para tanto, utiliza o texto de Camões
para mostrar a contrariedade que pode estar presente no amor, que ele não é igual
para todos e pode ser sentido de maneiras jamais pensadas. É possível imaginar uma
ferida que dói e não se sente? O soneto afirma que sim. Da mesma forma é possível
imaginar um amor entre pessoas do mesmo sexo. Não há razão para entender o
amor, só há verdade e bondade.
Enquanto o texto bíblico considera o amor algo perfeito, o texto de Camões o
considera um paradoxo. A relação entre os dois textos resulta na construção de um
terceiro texto: a música Monte Castelo. Esta nova construção produz sentidos
diferentes ao ser escrita em outro contexto social.
Considerações finais
A sociedade utiliza a linguagem para expressar opiniões, fatos e situações de
uma determinada época dentro de um contexto histórico-social específico com o intuito
de causar alguma reação/conscientização no ouvinte (leitor). É através do processo de
construção do significado que os participantes discursivos se tornam conscientes de
quem são ao se envolverem e ao envolverem os outros no discurso em circunstâncias
culturais, históricas e institucionais particulares.
A leitura pode agir sob um único indivíduo ou sob uma sociedade. O leitor não
vive isolado no espaço social, a experiência transmitida pela leitura desenvolve um
papel na evolução global da sociedade. Desta forma, um texto pode transmitir valores
dominantes de uma sociedade, legitimar novos valores, romper com valores
tradicionais. O poder que a leitura tem de influenciar a mente humana é o mesmo que
a mente humana tem de modificar uma sociedade.
Renato Russo tenta demonstrar por meio de relações intertextuais a
importância do amor sentido da forma mais verdadeira possível ainda que diferente do
amor convencional ditado pela sociedade onde sua existência é recriminada se
sentida por pessoas do mesmo sexo. Desta forma, o cantor consegue trazer para seu
texto a importância do amor exposta no texto bíblico em conjunto com o paradoxo
presente na essência deste sentimento exposto pelo soneto de Camões para criticar
aqueles que não aceitam este tipo de amor. Contudo, a construção desses novos
significados dependerá do leitor para sua concretização.
Receber um texto não é algo que acontece de maneira passiva, o que vemos
nos personagens são imagens que buscamos para consolidar imagens que temos de
nós mesmos e dos outros no mundo real. O mundo da leitura possui múltiplas facetas:
479
influencia, cria, recria, constrói, destrói e nos permite redescobrirmos a nós mesmos
em cada leitura diferente, seja de diferentes textos ou de um mesmo texto. Por meio
da leitura o indivíduo amplia sua visão de mundo e desenvolve seu lado crítico. É este
dinamismo presente na linguagem que proporciona uma integração da língua com a
literatura. Dos vários conceitos discutidos sobre literatura, fixamos aquele que a
considera capaz de humanizar, além de desenvolver o lado crítico e analítico do leitor.
O ato de leitura inclui experiência, fantasia e necessidade. Todo leitor traz
consigo experiência que o ajudará a compreender os sentidos apresentados em um
texto. Porém, ao mergulhar no universo da leitura, o leitor se envolve com o autor,
apoderando-se de pensamentos que não são seus, refletindo sobre ideias
estabelecidas, avaliando a necessidade de reformulá-las ou confirmá-las, voltando
para dentro de si próprio. A busca da compreensão cria no leitor expectativas que
deverão ser confirmadas ou refutadas no decorrer da leitura. Durante este processo, o
leitor sai de seu mundo real para entrar no mundo ficcional. Nesta viagem muitas
descobertas serão feitas sobre o seu próprio eu. Ao se apossar de ideias que não são
suas, o leitor tem a oportunidade de refletir sobre sua visão do mundo real,
confirmando, modificando ou criando novos sentidos.
Referências bibliográficas
BORDINI, M.G; AGUIAR, V.T. Literatura: a formação do leitor: Alternativas
metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988
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a intertextualidade presente na música