Entrevista | Por Marcelo Balbino, da redação
As contribuições da psicologia no ensino de
Autor da maior pesquisa do mundo sobre desenvolvimento de cognição e linguagem de uma população escolar surda,
Fernando Capovilla*, psicólogo, professor da Universidade de São Paulo, ph.D. em Psicologia pela Temple University
of Philadelphia e livre-docente em Neuropsicologia pela USP, avaliou mais de nove mil alunos surdos em 15 Estados
brasileiros. A seguir, ele explica o foco do seu trabalho, fala sobre o encontro da psicologia com a pedagogia e expõe sua
larga experiência com a alfabetização de crianças surdas e deficientes auditivas.
Divulgação
Qual é o foco do seu trabalho
atualmente?
É a pesquisa e o desenvolvimento de
instrumentos de avaliação e de intervenção para prevenção, reabilitação e
educação em quadros de distúrbios
de cognição e linguagem de etiologia neurossensorial (surdez congênita profunda), neuromotora (paralisia
cerebral), neurolinguística (dislexia do
desenvolvimento, afasias) e mista.
Na sua visão, qual é a relação
existente entre a psicologia e
a pedagogia?
Na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem como em todo
o restante do mundo desenvolvido,
foi a psicologia, em especial a psicologia experimental, que ajudou a
pedagogia a entrar nos trilhos quanto
à alfabetização. Isso se deu de modo
global em 1996. O próprio Piaget
dizia que não sabia como melhor
alfabetizar a criança: se por meio da
abordagem sintética ou por meio da
abordagem analítica. Porém, sabia
como descobrir: aliando o trabalho
de um psicólogo experimental ao de
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Páginas Abertas
um pedagogo e colocando ambos
para conduzirem estudos experimentais a respeito. E é precisamente isso
que temos feito em nosso laboratório
desde 1995 e o que a França, a Inglaterra e os Estados Unidos também
fizeram antes disso, culminando na
revolução fônica de 1996.
E como essa parceria pode
colaborar com o sistema de
ensino?
No Brasil, durante os últimos 30
anos, a psicologia tem falhado em
promover a reforma fônica na pedagogia por mostrar baixa competência
em pesquisa experimental de avaliação e intervenção educacional. No
mundo desenvolvido, o psicólogo experimental de qualidade tem boa formação em metodologia experimental
e estatística para pesquisa científica,
além de consciência sobre a importância de conduzir experimentos
para contrastar a eficácia relativa de
diferentes procedimentos, métodos
e abordagens de ensino-aprendizagem que subsidiem políticas públicas
em educação. Ao mesmo tempo, no
mundo desenvolvido, os governos e a
cultura — consideravelmente mais receptivos à evidência científica acerca
de como alfabetizar competentemente — deram forte apoio à revolução
fônica, permitindo a recuperação nos
rankings internacionais de competência de leitura, como os da Unesco e
da OCDE.
Como foi a realização da sua
pesquisa sobre o ensino e os
deficientes auditivos?
Conduzimos a maior pesquisa do
mundo sobre desenvolvimento de
cognição e linguagem de uma população escolar surda. Em 15 anos do
Pandesb (Programa de Avaliação Nacional do Desenvolvimento Escolar
do Surdo Brasileiro, financiado pelo
CNPq, Capes e Inep), avaliamos mais
de 9.200 alunos surdos de 6 a 40 anos
de idade, da educação infantil até o final do ensino superior, de 15 Estados
brasileiros. Avaliamos competências
de leitura alfabética, compreensão
de textos, leitura orofacial, vocabulário de escrita, qualidade ortográfica
da escrita, vocabulário em português
por leitura orofacial, vocabulário em
Libras etc. Foram mais de 20 horas
de avaliações feitas com cada uma
das milhares de crianças. Usamos
instrumentos originais validados e
normatizados que desenvolvemos em
nosso laboratório especialmente para
avaliar crianças surdas nos últimos 20
anos. Utilizamos também adaptações
da Provinha Brasil e da Prova Brasil. Comparamos o desempenho de
crianças surdas (cuja língua materna
é a Libras) com o do das deficientes
auditivas (cuja língua materna é o
português) em escolas comuns e em
escolas bilíngues, tendo como covariantes a idade e o grau de perda au-
ditiva, o desempenho auditivo com
próteses auditivas, a idade de acesso
à Libras etc.
Qual a importância desse estudo e os seus principais resultados?
Descobrimos que crianças surdas
se desenvolvem mais e melhor em
escolas bilíngues do que em escolas
comuns, e não apenas em Libras. O
êxito abarca também a leitura alfabética, a compreensão de texto e o
desempenho escolar. Descobrimos
que a inclusão é ótima para a criança com deficiência auditiva, mas não
para a surda, e que a criança surda se
desenvolve melhor em escolas bilíngues, onde professores e colegas são
sinalizadores fluentes. Isso porque
a Libras constitui a metalinguagem
para a aquisição de leitura e escrita
alfabéticas, que por sua vez possibilitarão a aquisição e o desenvolvimento
da leitura orofacial. Verificamos que
as crianças surdas só fazem leitura
orofacial depois de adquirirem leitura alfabética, conquistada mais fácil e
rapidamente nas escolas bilíngues do
que nas escolas comuns. Portanto, as
escolas bilíngues promovem melhor
leitura alfabética, que por sua vez
promove leitura orofacial, a qual pode
ser aperfeiçoada por meio do método
Fônico Visual (Visual Phonics) e do
Cued Speech.
bras. Esses resultados mostram que
é errado tirar as crianças surdas das
escolas bilíngues e “pulverizá-las” nas
escolas comuns, onde ninguém as
entende. Nas escolas bilíngues, elas
desenvolvem tanto as competências
pré-requisito para a aquisição da leitura e escrita alfabéticas, que permitirão
a compreensão do conteúdo escolar,
como a leitura orofacial, que possibilitará a inclusão social. Conforme os
resultados mostram, é ingênuo acreditar que o AEE (Atendimento Educacional Especializado) vá conseguir
substituir a escola bilíngue. O lugar
é uma comunidade escolar sinalizadora que permite o desenvolvimento
da língua natural (que é a Libras) aos
surdos brasileiros, desde a educação
infantil.
A pesquisa também alcançou
resultados práticos em avaliações?
Aplicando a Provinha Brasil, a Prova
Brasil e demais testes, descobrimos
que a competência mais importante
para levar a um bom rendimento na
Provinha Brasil e na Prova Brasil é
precisamente a competência em Li-
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Entrevista
Qual é a sua avaliação sobre
as escolas bilíngues?
Como 95% das crianças surdas nascem de pais ouvintes, é nas escolas de
educação infantil e de ensino fundamental bilíngues que elas irão adquirir
e desenvolver a Libras. Se as escolas
bilíngues forem fechadas (como se
sabe, o Ines [Instituto Real de Educação de Surdos-Mudos] está sendo
ameaçado de fechamento), as crianças surdas que vêm de lares ouvintes
não mais saberão a Libras. E para
que seriam necessários os intérpretes? Para interpretarem as aulas para
uma língua que nem elas próprias terão tido chance de aprender, já que
foram privadas da escola bilíngue?
Fechar as escolas de educação infantil
e ensino fundamental bilíngues é privar a criança surda de escola pública
da oportunidade de adquirir e desenvolver linguagem. Mesmo se todas as
crianças com perda auditiva congênita bilateral profunda (a população
majoritária dessas escolas) recebessem implantes cocleares (e isso não
ocorre, pois há critérios de exclusão
bem definidos); se todos esses implantes fossem bem-sucedidos (o que
também não ocorre); e se tivessem
acesso a programas de reabilitação
auditiva intensiva e prolongada bemsucedidos, ainda assim haveria necessidade da Libras para muitas delas.
Existem escolas bilíngues em
São Paulo?
Sim. A Secretaria de Educação daqui
sabe que tolher a criança surda da
Libras é um erro. A pesquisa mostra
isso. Nos últimos dez anos, temos defendido que as escolas especiais sejam
denominadas escolas bilíngues para
surdos e administradas como tais. Felizmente, no dia 11 de novembro de
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2011 foi publicado no Diário Oficial
o Decreto Municipal que estabelece
exatamente isto: as Escolas Municipais
de Educação Especial serem denominadas Escolas Municipais de Educação Bilíngue para Surdos. Com isso, o
município de São Paulo deu o primeiro passo para reverter nefasta política
desumana de descaracterização das escolas para surdos e de seu fechamento
sistemático em todo o país.
Como o senhor avalia atualmente os métodos de alfabetização brasileiros tanto para
alunos regulares como para
deficientes auditivos?
Infelizmente, durante os últimos 30
anos, o Brasil tem sido dominado por
uma abordagem ineficaz, anacrônica
e inviável em termos de neurociência
cognitiva, que ignora todos os progressos desde a década do cérebro e
que destoa do estado da arte do conhecimento científico sobre alfabetização em todo o mundo.
Qual a sua opinião sobre os
PCNs em alfabetização?
Os PCNs em alfabetização se baseiam
numa abordagem amplamente desacreditada no mundo, que prescreve
atividades inócuas para a alfabetização (como o xadrez) e que proscreve
outras sabidamente eficazes para a alfabetização (atividades conspícuas e
sistemáticas, como ensino do código
grafema-fonema, leitura em voz alta,
escrita sob ditado, entre tantas outras), substituindo-as por exercícios
ineficazes (conto de histórias pelo
professor, o reconto destas pelos
alunos — depois que se supõe que
eles as tenham lido silenciosamente
— e sua escrita na lousa pelo professor). Comparando os PCNs brasilei-
ros em alfabetização com os dos países bem-sucedidos (isto é, com boa
colocação nos rankings internacionais
da Unesco e da OCDE), percebe-se
claramente que os brasileiros proscrevem o que os demais prescrevem
e prescrevem o que os demais proscrevem. Essas discrepâncias sistemáticas teimam em se manter à revelia
da evidência científica aceita por consenso internacional acerca de seus
efeitos prejudiciais.
E sobre o construtivismo?
O construtivismo ferreirista, que
subjaz aos PCNs brasileiros em alfabetização, pressupõe que as crianças
ouvintes aprendem a ler melhor se
forem impedidas de fazer decifração
ou decodificação. Mas os achados
de consenso no mundo refutam essa
pressuposição. Para crianças ouvintes, o mundo desenvolvido emprega
o método fônico, com o ensino sistemático de correspondências grafema-fonema-grafema para permitir
decodificar e codificar, ancorando as
unidades da escrita alfabética às unidades sonoras da fala e requerendo
leitura em voz alta e escrita sob ditado. Contudo, o construtivismo ferreirista proscreve o fônico e prescreve o
ideovisual, pontificando que a aprendizagem da leitura não deva passar
pela fala. Com sua ênfase excessiva no significado em detrimento do
processamento metalinguístico inspirado na estrutura da língua materna
de ouvintes e surdos, essa estranha
abordagem trata as crianças ouvintes
como se fossem surdas (ao privá-las
da ancoragem fônica na fala materna)
e as surdas como se fossem ouvintes
(ao privá-las da ancoragem no sinal
materno). Esse raciocínio acaba obstruindo o desenvolvimento das duas.
Existe alguma tese de consenso
mundial para a alfabetização?
O consenso mundial é de que na educação infantil de ouvintes e de deficientes auditivos devam ser desenvolvidos léxico semântico e fonológico e
habilidades metafonológicas de modo
lúdico; e que, na passagem da educação
infantil para o ensino fundamental, se
deva alfabetizar crianças ouvintes ensinando-as a ler por decifração-decodificação e a escrever por codificação,
sendo que as formas fonológicas construídas pela decifração fluente passam
a evocar o processo de reconhecimento fonológico, dando entrada ao léxico semântico assim que esse processo
estiver fluente e que o professor fizer
perguntas dirigidas acerca do significado do texto. Na de surdos, o léxico
semântico e o de sinais na educação
infantil servirá de metalinguagem para
a aquisição da escrita no ensino fundamental, que, por sua vez, propiciará a
aquisição de leitura orofacial e, então,
o mainstreaming (inclusão) a partir do
segundo ciclo do fundamental.
A proposta é diferente no caso
dos PCNs?
Na seção sobre alfabetização, os
PCNs brasileiros dizem explicitamente que não se deve ensinar sistematicamente a criança a ler decifrando da
escrita para a fala e a escrever codificando da fala para a escrita. Os PCNs
desencorajam atividades crucialmente importantes para a alfabetização de
ouvintes, como a leitura em voz alta
(substituindo-a pela leitura silenciosa
de histórias previamente ouvidas) e a
escrita sob ditado (substituindo-a pelo
reconto coletivo daquelas histórias
conhecidas que haviam sido contadas
e que teriam sido “lidas”, mas em verdade apenas evocadas de memória; e
pela posterior escrita, pela professora,
do reconto na lousa). Com seu foco
exclusivo no significado e o desprezo
pelo código, essa abordagem anacrônica desconsidera a importância da
relação entre a estrutura da escrita e
a da fala, prejudicando a aprendizagem da criança ouvinte. Pela mesma
razão, compromete a aprendizagem
da criança surda, ao ignorar a importância da língua de sinais como metalinguagem para a sua alfabetização
em português.
O desprezo pelo código pode
acarretar problemas futuros?
Esse descaso para com a importância da linguagem e de sua estrutura,
típico dessa abordagem, culmina na
prescrição de fechamento das escolas
bilíngues e na dispersão das crianças surdas em escolas comuns, cujos
professores e coleguinhas ignoram
a Libras. Como se vê, a abordagem
dominante é uma faca de dois gumes
cortantes dos dois lados: no processo
de alfabetização da criança ouvinte,
ela separa-a da fala materna com que
pensa; no processo de escolarização
da criança surda, separa-a dos sinais
maternos com que pensa. Duplamente cortante, dolorosa, equivocada e
cruel. Todos esses erros decorrem da
ignorância sobre o desenvolvimento
da cognição e da linguagem da criança, tanto a surda quanto a ouvinte, na
educação infantil e no ciclo 1 do ensino fundamental.
Como foi a ideia, a repercussão e os resultados de se criar
um dicionário trilíngue (português, inglês e Libras)?
A repercussão foi extraordinariamente auspiciosa; os resultados, ainda
mais animadores. Produzindo os melhores instrumentos do mundo para
avaliar linguagem oral, escrita e de
sinais e empregando-os para avaliar
e descobrir sob quais circunstâncias
as crianças aprendem mais e melhor,
constatamos a tremenda importância
da Libras como idioma e veículo de
ensino-aprendizagem da criança surda
nas escolas bilíngues. Com isso, ficou
claro o acerto de investir pesado na
pesquisa lexicográfica e na produção
de dicionários, mesmo antes da legislação sobre a Libras. Recebemos com
honrado espírito cívico e humanitário
a oportunidade de trabalhar duramente para documentar o idioma dos
6 milhões de surdos brasileiros desde
1994, quando começamos nossos primeiros dicionários, até o presente, e
de publicar dicionários, enciclopédias
e outros livros de importância crucial para a educação da criança surda
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Entrevista
brasileira. Nosso objetivo de vida é
promover a educação e o desenvolvimento dessa criança.
No aprendizado, qual a diferença entre a criança surda e
a deficiente auditiva?
Há uma diferença fundamental entre
a criança surda e a criança deficiente
auditiva. Deficiente auditiva é aquela
cuja língua materna é o português, ou
porque a perda auditiva não foi tão
precoce (tende a ser pós-lingual) e/ou
não tão severa (mas apenas moderada
a severa, no máximo) ou, ainda, porque teve um implante coclear bem-sucedido e acesso a tratamento de
reabilitação fonoaudiológica intensa
e prolongada. Surda é aquela criança
cuja língua materna é a Libras.
Como deverá ser o processo
de alfabetização ideal nesses
casos?
Para a criança deficiente auditiva, a
inclusão escolar é muito eficaz. Ela
não precisa de Libras, embora possa
adquiri-la com bastante proveito. Por
outro lado, a criança surda é aquela que
não consegue desempenho auditivo
suficiente para aprender o português
e precisa da Libras para se comunicar.
Para ela, é absolutamente essencial
que haja inserção, desde a mais tenra
idade, em uma comunidade linguística sinalizadora, pelo menos no minimaternal. E também que a família
aprenda Libras e faça uso dela para
se comunicar em todas as situações.
Para essa criança, a assim chamada
inclusão escolar (que a dispersa em
meio a ouvintes que desconhecem
sua língua, na esperança de que isso
irá forçá-la a aprender português) não
passa de ideologia inclusiva intransigente, desumana e hostil. Deficientes
auditivas se beneficiam de inclusão e
do AEE (Atendimento Educacional
Especializado), mas a criança surda
precisa de escola bilíngue para surdos.
Necessita também de que a sua língua materna, a Libras, seja o primeiro
veículo do ensino-aprendizagem da
escola para a aquisição do conteúdo
escolar e do português escrito e lido
orofacialmente. A Libras é a metalinguagem com a qual o português será
adquirido já desde o final da educação
infantil. Essa abordagem é denominada bilinguismo.
Fale mais sobre ele.
O bilinguismo propõe adequadamente a inserção da criança surda, desde
a mais tenra idade, numa comunidade linguística sinalizadora (pelo menos no minimaternal); já a Libras é
o veículo do ensino-aprendizagem
para a aquisição do português como
segunda língua e de todo o conteúdo
escolar. A partir do 5º ano do ensino
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fundamental, a criança surda pode e
deve ser matriculada em escola comum, mas em contra-turno. Nossas
pesquisas demonstram que ela começa a fazer leitura orofacial apenas
quando tem leitura e escrita alfabéticas o suficiente, que no caso do surdo
tende a ocorrer no 5º ano do ensino
fundamental. Até aí, a criança surda
não tem leitura alfabética o bastante
para permitir uma leitura orofacial
que a faça compreender a fala. Como
95% das crianças surdas provêm de
lares de pais ouvintes, elas precisam
da comunidade linguística sinalizadora da escola bilíngue desde o minimaternal até em torno do 5º ano
do ensino fundamental para poderem adquirir língua materna (Libras)
na mesma velocidade que as crianças
ouvintes adquirem o português. A Libras serve como metalinguagem para
permitir a aquisição do português
como segunda língua.
Então a Libras deve ser usada
já na educação infantil?
Sim, do minimaternal da educação
infantil até o 5º ano do ensino fundamental, como meio de adquirir
conhecimento sobre o mundo e de
aprender português, sendo introduzidas as palavras escritas, os grafemas
que as compõem, as formas de articulação orofacial (fanerolaliemas) correspondentes a cada grafema. Tudo
deve ser feito em forma de brincadeira dirigida. Ao mesmo tempo podem
e devem ser usados recursos como o
Fônico Visual (Visual Phonics) e/ou
o Cued Speech, ambos com o objetivo de auxiliar a criança a aprender
a língua falada dos ouvintes. Isso é
crucial, pois a escrita alfabética mapeia não as propriedades visíveis dos
sinais, mas as propriedades da fala,
que para o ouvinte são as audíveis
(fonemas) e para o surdo, as visíveis
(fanerolaliemas). Como alguns fanerolaliemas são menos visíveis que outros, é importante usar Visual Phonics
ou Cued Speech para torná-los mais
conspícuos. Outra razão crucial para
usar Visual Phonics e Cued Speech
é que determinados fanerolaliemas
(como aqueles da articulação dos sons
/b/, /m/ e /p/) são visualmente bastante semelhantes entre si (embora
os fonemas correspondentes sejam
bem distintos, mas só para os ouvintes). Visual Phonics e Cued Speech
tornam os fanerolaliemas não apenas
mais visualmente conspícuos como
mais claramente relacionados aos grafemas correspondentes, o que produz
tremendo impacto sobre a habilidade
de leitura orofacial para a compreensão da fala e sobre a aquisição de escrita e leitura alfabéticas.
Então o bilinguismo propõe a
Libras como ponte para o português e usa o método Fônico
Visual para melhorar a leitura
e a compreensão da fala?
Sim, o bilinguismo cria uma comunidade linguística sinalizadora em torno
da criança desde o minimaternal, para
permiti-la adquirir língua materna na
mesma velocidade da criança ouvinte.
Então usa essa língua como instrumento metalinguístico para a criança
aprender a ler e a escrever em português, possibilitando-lhe adquirir vocabulário de leitura. A aprendizagem
de leitura e escrita alfabéticas é imensamente acelerada quando ancorada
nas propriedades visíveis da articulação da fala, o que é feito pelo uso do
Fônico Visual e do Cued Speech. O
resultado é um extraordinário ganho
na compreensão da fala e na qualida-
de ortográfica da escrita. Isso é bilinguismo pleno, promotor da alfabetização e escolarização competentes e
da inclusão acadêmica, profissional,
cultural e social efetivas.
Nos últimos 20 anos, em meu laboratório na USP, desenvolvemos recursos nas duas frentes de trabalho:
a Libras (por meio da publicação de
Fechar as escolas de educação infantil e ensino fundamental bilíngues é privar a criança surda de escola pública
da oportunidade de adquirir e
desenvolver linguagem.
dicionários, enciclopédias e sistemas
de busca de sinais) e a legibilidade
orofacial do português (por meio de
sistemas de avaliação e ensino de habilidades de leitura orofacial e alfabética), sempre com o objetivo da consecução do bilinguismo pleno. Temos
sido muitíssimo bem-sucedidos, mas
ainda há muito por fazer.
Pelo seu contato com deficientes auditivos e com surdos, eles preferem frequentar
classes especializadas ou salas de aula comuns?
Deficientes auditivos preferem inclusão e vão melhor em inclusão. Eles
se ressentem se forem tratados como
surdos que precisam de sinais — e
com razão — e se identificam com
a cultura dos ouvintes, tendo pleno
direito de fazê-lo. Esses deficientes
querem escola comum e se beneficiam muito com o AEE. Temos trabalhado muito para ajudá-los.
Já os surdos preferem escolas bilín-
gues para surdos e se desenvolvem
mais e melhor nelas. Eles se ressentem
se forem tratados como deficientes
auditivos que não precisam de sinais
— e com razão — e se identificam
com a cultura dos surdos, tendo pleno direito de fazê-lo. Os surdos precisam de escola bilíngue para surdos e
se sentem angustiadamente perdidos
se forem retirados de suas comunidades e colocados em meio a professores e colegas ouvintes que eles não
entendem (já que a leitura orofacial
só emerge nos estágios finais da alfabetização). Eles são incapazes de
compreendê-los por desconhecerem
Libras. Os surdos são plenamente
favoráveis à inclusão, mas não ao inclusivismo doutrinário. Eles são favoráveis à inclusão da criança como um
todo: dela e do seu idioma materno.
A educação na língua materna é garantida constitucionalmente aos povos indígenas. Os surdos gostariam
de ser tratados do mesmo modo, já
que seu idioma é indígena (num certo sentido, ele pode ser considerado
como sendo mais brasileiro do que
o próprio português) e reconhecido
por lei federal. Uma das primeiras
escolas brasileiras não pagas (pública, portanto, apesar de mantida pela
monarquia) foi precisamente o Ines,
antigo Instituto Real de Educação de
Surdos-Mudos, fundado por Dom
Pedro II, o mesmo que está em vias
de ser fechado enquanto escola pela
política inclusivista que ignora a importância da Libras.
www.ip.usp.br/lance/index.html
*Fernando Capovilla é professor da Universidade de
São Paulo, ph.D. em Psicologia pela Temple University
of Philadelphia e livre-docente em Neuropsicologia pela
Universidade de São Paulo.
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