Preto básico
ANTROPÓLOGO CONDENA A ADOÇÃO DO MODELO DE RAÇAS IMPORTADO
DOS ESTADOS UNIDOS, QUE SIMPLIFICA A REALIDADE BRASILEIRA NA
OPOSIÇÃO PRETO/ BRANCO, E DIZ QUE DESIGUALDADES SOCIORRACIAIS
"NÃO SE RESOLVEM NA CAMA"
Não temos o direito de privilegiar,
em meio às massas pobres do país,
apenas os que pertencem a um
determinado segmento racial
FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Folha de S. Paulo, 15 de dezembro de 2007
Nos 16 ensaios reunidos em "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (ed. 34, 440
págs., R$ 54), Antonio Risério fornece munição de sobra aos detratores das políticas de ação
afirmativa. Seu foco não é exclusivamente o debate em torno da política de cotas para negros
nas universidades públicas ou do Estatuto da Igualdade Racial mas qualquer tentativa de
importar categorias ou políticas raciais estranhas ao contexto brasileiro.
Risério dedica boa parte do livro ao exame do racismo nos EUA e identifica no discurso
militante nacional o empenho em transplantar os mesmos princípios. "Os EUA são o único
país do mundo em que o filho de um preto e de um branco é classificado como negro. A
importação desse modelo dicotômico falsifica a realidade brasileira", diz.
A raiz da diferença, segundo o antropólogo e escritor, está na mestiçagem. Num país onde a
parcela mais expressiva da população se considera "morena", as políticas de ação afirmativa
assentadas sobre categorias binárias cairiam no vazio.
Mas não se trata de mais um elogio ao mito da democracia racial. Risério guarda prudente
distância das diluições do pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro, faz distinção entre
mestiçagem e harmonia social, reconhece a existência de racismo no Brasil e estabelece um
diálogo cerrado com a bibliografia teórica recente, numa prosa que mistura a prolixidade
tropicalista à minúcia do pesquisador acadêmico. Na entrevista a seguir, Risério discorre com
mais vagar sobre as linhas de força do livro.
FOLHA - Há algumas semanas, o Prêmio Nobel James Watson afirmou que os negros são
menos inteligentes que os brancos. Poucos meses antes, geneticistas foram à mídia dizer
que não existe raça pura, visto que o ser humano é composto de genes de origem mais
diversa do que se acreditava. Como avaliar essas linhas de raciocínio? Até que ponto a
ciência pode ser um prisma eficiente para pensar o preconceito?
ANTONIO RISÉRIO - Falamos de "raça" para designar grupos relativamente homogêneos,
em suas características físicas externas transmitidas. E o conceito circula, tanto por
necessidade quanto por astúcia, no campo das reflexões políticas, culturais, ideológicas.
Quanto a Watson, cientistas não são científicos 24 horas por dia -alguns são músicos, outros
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vão à missa.
E a ciência, historicamente, além de templo da objetividade é também um espaço de disputas
e negociações. O que não se deve é pretender bloquear pesquisas que contrariem nossas
posturas ideológicas.
É um absurdo, por exemplo, ver comissários do racialismo neonegro, no Brasil, se
enfurecerem com o geneticista Sérgio Pena [que pesquisa a ancestralidade africana da
população].
Se esses comissários tivessem poder, fechariam o laboratório de Pena, pelo simples fato de
que ele contraria o decreto ideológico neonegro de que inexistem mestiços no Brasil. Acho
que o melhor "prisma" para pensar o preconceito ainda está na antropologia, mas não vejo a
antropologia como uma ciência.
FOLHA - Na introdução, o Brasil aparece como o país "mais e menos racista do mundo",
simultaneamente. Poderia explicar?
RISÉRIO - É uma boutade, evidentemente. Mas não está distante da verdade. Disparo a frase
para desarmar discursos automatizados e chamar a atenção para a especificidade de nossas
experiências históricas, sociais e culturais.
A situação brasileira é paradoxal. Conseguimos, ao longo dos séculos, construir espaços do
mais genuíno convívio inter-racial -e não apenas entre brancos e pretos mas também entre
árabes e judeus. Ao mesmo tempo, o racismo é onipresente. Temos, simultaneamente, as duas
coisas. E, às vezes, manifestando-se contraditoriamente numa mesma pessoa.
FOLHA - Segundo os critérios norte-americanos, quase a totalidade da população
brasileira seria negra, daí a importância de enfatizar a mestiçagem, que seria o traço
dominante no Brasil. Mas isso não equivale a negar a associação entre condição social e
cor da pele? Essa não é uma relação verificável no Brasil?
RISÉRIO - Não, não equivale a negar nada. Existe uma coincidência entre fenótipo e lugar
econômico, tanto no Brasil quanto nos EUA. A maioria dos mestiços mais escuros, dos
pretos, ocupa o porão da sociedade brasileira. Vive mal, ganha pouco, não tem acesso aos
serviços públicos mais elementares.
Mas não devemos confundir as coisas. A mestiçagem é um processo biológico e cultural, não
um mecanismo de redução das distâncias sociais. Não implica a localização do indivíduo
neste ou naquele ponto da hierarquia social.
O problema das desigualdades sociorraciais jamais se resolveu ou se resolverá na cama. Essas
disparidades exigem, para a sua superação, não um incremento de mesclas genéticas, mas
crescimento econômico, investimentos em educação, equalização de oportunidades, aumento
da oferta de empregos. São questões que dizem respeito a ordens distintas de coisas.
FOLHA - O sr. diz que os negros no Brasil são todos mestiços -e que a mestiçagem é um
processo tão abrangente e irreversível quanto ignorado pelo discurso racialista. Essa visão
não corre o risco de alimentar o mito da democracia racial?
RISÉRIO - De modo nenhum. Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra
coisa são as ideologias da mestiçagem. No passado, a mestiçagem brasileira ganhou leituras
mistificadoras, senhoriais.
Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco primário: em vez de rediscutir a
questão, resolveram eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua
deixou de existir. Mas continuamos mestiços. E a mestiçagem não é indestacável da fantasia
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da "democracia racial". Recusar-se a usar a noção é como se recusar a falar de "raça", por
conta do uso que os nazistas deram ao conceito, combatendo ferozmente, aliás, a mestiçagem.
Se não entendermos nossas misturas, genéticas e simbólicas, não entenderemos a nós
mesmos. E é bom sublinhar que mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o
conflito nem a discriminação. A melhor prova disso é o próprio Brasil.
É preciso abolir o instituto da
herança para que as pessoas
possam, de fato, ter igualdade de
oportunidades
FOLHA - O sr. se diz "não exatamente contra as cotas". Tendo em vista a virulência das
críticas destinadas às políticas "racialistas", o que sobraria de positivo nelas?
RISÉRIO - Os pobres, no Brasil, não são todos pretos. Há pobres de todas as cores. Não
temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas os que pertencem a
um determinado segmento racial.
Isso não tem nada a ver com democracia ou justiça social, mas com o sentimento de culpa das
elites branqueadas, o poder de pressão dos movimentos negros e a excessiva reverência do
poder diante das "minorias".
O Brasil pode tomar duas atitudes para resolver os problemas da educação e do acesso ao
mercado de trabalho.
De uma parte, realizando investimentos maciços em educação, porque o sistema educacional
brasileiro não merece o nome de "sistema", e é preciso fazer um esforço muito grande para
tentar aceitá-lo como "educacional". De outra, abolindo o instituto da herança, para que as
pessoas possam, de fato, ter igualdade de oportunidades. Com a vigência da herança, já
nascemos desiguais.
FOLHA - A abolição da herança não lhe parece uma solução mais controversa que a das
cotas?
RISÉRIO - Como a ambição transformadora é muito maior do que a da mera adoção de cotas
raciais, o problema é bem mais complexo. A herança significa a transmissão hereditária de
vantagens sociais e econômicas. Logo, é determinante na definição de mais oportunidades.
Quem nasce em família pobre já vem ao mundo em desvantagem, com a perspectiva de
poucas oportunidades na vida. Dinheiro de heranças, em vez de premiar indivíduos pelo
simples fato de terem nascido em famílias ricas, poderia ser investido em função de
necessidades coletivas, nos campos da saúde e educação, por exemplo. E sem privilegiar
nenhum segmento social ou racial.
FOLHA - O livro faz um exame detalhado do racismo nos EUA. Em que pese o emprego do
racismo de Estado no passado recente, hoje a situação nos EUA, pelo menos no que diz
respeito ao acesso ao mercado de trabalho, não é mais favorável aos negros do que no
Brasil?
RISÉRIO - A vida não começa nem termina no mercado de trabalho. Pense, por exemplo, no
assassinato espiritual dos africanos nos EUA. Se tivesse acontecido no Brasil e em Cuba o
que aconteceu nos EUA, não teríamos hoje um só orixá em toda a vastidão territorial das
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Américas.
Ainda assim, devo lembrar que os EUA são mais ricos que o Brasil, e não é surpresa que os
pretos de lá tenham uma situação trabalhista melhor do que a dos pretos daqui. Mas os EUA
são também a mais desigual de todas as democracias ricas do planeta. A pobreza que lá existe
é, basicamente, pobreza preta. Os pretos norte-americanos podem ter mais acesso ao mercado
de trabalho. Mas a questão do mercado é superável. A destruição cultural, não.
Os EUA são o único país do mundo
em que o filho de um preto e de um
branco é classificado como negro
FOLHA - A importação do discurso norte-americano, apesar do binarismo e da
inadequação ao contexto brasileiro, não pode contribuir para intensificar a discussão em
torno de um problema que está longe de ser equacionado? Não faltam marcos jurídicos no
Brasil capazes de reduzir o fosso entre negros e brancos?
RISÉRIO - Não aposto na obsessão ianque em "marcos jurídicos". E sei que discursos não
precisam ser corretos para ter repercussão na vida de uma sociedade. O discurso do
movimento estudantil, na década de 1960, passava ao largo do movimento real da vida
brasileira, mas agitou o país.
Já o discurso racialista acaba dando voz a enormes carências sociais das massas
negromestiças. Mas tenta enfiar a riqueza cromática brasileira na camisa-de-força do
binarismo norte-americano. Os EUA são o único país do mundo em que o filho de um preto e
de um branco é classificado como negro. Em que uma poderosa fantasia racista não reconhece
a existência de mestiços.
E a importação desse modelo dicotômico falsifica a realidade brasileira. A experiência
histórica de um povo não pode ser substituída pela experiência histórica de outro. E a
transformação da sociedade brasileira não tem de passar, necessariamente, por linhas étnicas
rígidas. Precisamos pensar o Brasil por nossa conta e risco.
FOLHA - É marcante no livro a oposição à idéia, defendida por parte do discurso
universitário brasileiro, de que só faz sentido falar em "cor" no interior das ideologias
raciais. Por que faz mais sentido falar em cor do que em raça?
RISÉRIO - Os ideólogos racialistas abrem fogo contra o modelo brasileiro de classificação
racial, com todos os seus muitos matizes. Acham que o nosso critério de "cor" é mistificação e
que o critério norte-americano de "raça" -que considera negro todo indivíduo que, por mais
claro que seja, tenha uma gota de sangue negro- é objetivo, científico. Mas é científica uma
classificação que atropela o fato biológico em nome de uma fantasia ideológica
essencialmente racista?
No início da história brasileira, tivemos uma classificação binária. Mas ela foi superada e logo
passamos a reconhecer a existência de híbridos. É interessante, aliás, que negromestiços
norte-americanos estejam fazendo agora um percurso inverso ao de nossos ideólogos e
militantes neonegros: reivindicando o reconhecimento de sua birracialidade, aproximando-se
do modelo brasileiro.
FOLHA - É forte no livro a crítica à "alienação universitária". Mas a maior parte dos
autores de que o sr. se vale para embasar seus argumentos são também acadêmicos. A que
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parcela do meio universitário o sr. dirige seus reparos?
RISÉRIO - Aos arautos do racialismo neonegro. Eles simplesmente voltaram as costas ao que
aconteceu e acontece no Brasil, submetendo-se, por motivos nem sempre confessáveis, ao
jugo mental de uma certa faixa militante e discursiva do mundo universitário norte-americano.
Para esses norte-americanos e suas crias locais, os EUA são o modelo e a medida de tudo. A
visão multicolorida que o Brasil tem de si mesmo é coisa do passado. O país tem de delimitar
com nitidez seus campos raciais. O que é moderno e desejável, para eles, não é a hibridez ou a
variabilidade, mas a polarização, o dualismo tão característico do pensamento puritano, com
seu horror a misturas.
Mulatos e morenos aparecem, assim, como miragens ideológicas reacionárias e mesmo
racistas. Não há lugar para eles no mundo sonhado pelos racialistas. E isso, na minha opinião,
é puro, simples e rasteiro capachismo mental, ameaçando transformar a universidade
brasileira num McDonald's de sanduíches conceituais alheios, servidos na bandeja dos "civil
rights" [direitos civis, liberdade civil], numa mescla de desajuste, alienação e ignorância.
FOLHA - No prefácio ao livro, Eduardo Giannetti defende a instituição de uma política
igualitária "visando a democracia racial como valor a ser perseguido, e não como fato".
Isso não é apenas uma maneira branda de rechaçar qualquer mudança efetiva no quadro
social?
RISÉRIO - Muito pelo contrário. O que se propõe é muito mais profundo e radical do que o
atual "racialismo de resultados", com suas reivindicações por cotas, melhores salários, mais
empregos na burocracia estatal etc. Sabemos muito bem que não vivemos numa democracia
racial. Longe disso.
Mas podemos e devemos lutar para um dia chegar lá. Para fazermos com que o mito se
encarne na história, instaurando uma verdadeira democracia racial no país. Como ensinava
Florestan Fernandes [1920-95], a meta de uma democracia social, transcendendo todas as
barreiras étnicas, é o ideal mais elevado que uma coletividade pode propor a si mesma.
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Preto básico - Bresser Pereira