Jair Moreira Rodrigues
Apropriação e usos das tecnologias audiovisuais pelos
índios Xavante no Brasil
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Os estudos relacionais sobre as tecnologias e as sociedades, freqüentemente utilizam
as metáforas do “impacto” como ponto de partida de suas análises, criando, assim, limitações
e distorções que nos impedem compreender essa complexidade fenomênica.
A “coisificação” da tecnologia, descontextualizada e separada da sociedade, vista
como uma entidade material que se choca contra a cultura ou a própria sociedade (também
vistas como entidades materiais), é criticada por vários autores de James Carey a Pierre Lévy.
As tentativas de uma análise do chamado “impacto” causado pelas tecnologias,
deveriam, assim, substituir-se pela busca efetiva das inter-relações dos grupos sociais e suas
técnicas peculiares, já que “as verdadeiras relações não se travam (...) entre ‘a’ tecnologia
(que seria de ordem causal) e ‘a’ cultura (que sofreria os efeitos), senão entre uma multidão de
agentes humanos que inventam, produzem, utilizam e interpretam diversamente as
técnicas”.(Lévy, 1997)
Mas, se consideramos que as tecnologias são produtos de um grupo social e de uma
cultura determinada, como analisar então aqueles casos em que uma tecnologia desenvolvida
por uma cultura estranha, passa a ser utilizada por indivíduos de outra cultura?
Acaso não seria factível uma análise a partir do ponto de vista da metáfora do
“impacto”, criticada anteriormente? Ou talvez devêssemos tratar de buscar as inter-relações
entre estes grupos sociais e suas técnicas peculiares e entre este e o outro grupo que passa a
utilizar as novas tecnologias?
Cremos que a primeira hipótese, o paradigma estereotipado do uso das técnicas e dos
aparelhos tecnológicos, não nos permitiria compreender o fenômeno, além de levar-nos a
conclusões equivocadas e maniqueístas sobre o mesmo, como indica Carey ao escrever que
“tecnologia é tecnologia, é um meio para comunicação e transporte sobre o espaço e nada
mais. Na medida em que a desmistifiquemos, também poderemos começar a derrubar os
fetiches da comunicação pela comunicação e da descentralização e a participação sem
referencia ao conteúdo ou ao contexto”.(Carey, 1989)
A utilização das tecnologias audiovisuais pelos índios Xavante da aldeia Pimentel
Barbosa, uma vez descartada a metáfora do impacto, vem mostrar-se como um exemplo da
impossibilidade de uma análise maniqueísta do uso dessas tecnologias.
Os Xavante, como agentes que se inter-relacionam, interatuando e criando uma
complexidade de fenômenos em vários níveis dessa cultura, se mostram não como meros
sujeitos passivos frente a ocorrência de um fato exterior, mas como aqueles que participam
efetivamente em todo o processo relacionado com a utilização das TIC (tecnologias de
informação e de comunicação) de outra cultura.
Assim, esta análise busca perfilar algumas características de este fenômeno, dentro das
limitações de este tipo de texto, tentando conseguir um entendimento da complexidade das
inter-relações que se estabelecem e buscando compreender os diversos aspectos de sua
contextualização.
Antecedentes
O uso das tecnologias da informação e da comunicação por sociedades indígenas vem
ocorrendo desde algumas décadas em distintos lugares do mundo, desde o Canadá até a
Austrália. Estes aparelhos tecnológicos, como o rádio, o telefone e a televisão entre outros,
também vieram incorporando-se a diversas sociedades indígenas no Brasil.
No caso dos índios Xavante, conhecidos por sua resistência à manutenção de um
contacto efetivo com a sociedade envolvente, o ano de 1946 é considerado como o inicio do
“contacto definitivo” com os não índios.1
Atualmente, entre as aldeias Xavante, Pimentel Barbosa é onde se pode notar mais
claramente a presença das práticas tradicionais e daqueles aspectos considerados por eles
mesmos como sendo os mais representativos de sua cultura. Também é uma das poucas
aldeias onde a permanência das missões religiosas não há sido tolerada, o que muito há
contribuído para a continuidade de diversos aspectos de sua cultura ancestral.
O contacto dos Xavante com os aparelhos tecnológicos da sociedade envolvente
ocorreria de forma simultânea às relações que se estabeleciam entre essas culturas. Com o
crescimento dos assentamentos de colonos, ao mesmo tempo em que os missionários se
aproximavam das populações indígenas na região central do país, os Xavante veriam
incrementadas as possibilidades de ter contacto com os warazu2.
Uma vez que os contactos com os Xavante foram difíceis de estabelecer-se, o interesse
dos meios informativos por estes índios “belicosos” foi muito grande. A presença dos
jornalistas junto aos primeiros grupos do SPI era uma constante. Logo, uma vez que os postos
do SPI conseguiram instalar-se perto dos Xavante, os contactos se incrementariam e
apareceriam também os primeiros antropólogos.
Na opinião de alguns se criaria, a partir de então, uma “dependência tecnológica”
destes bens manufaturados. O interesse pelos aparelhos apreciados pelos Xavante se dava em
função de sua facilidade de uso e sua durabilidade, entre outras cosas.
Com as TIC ocorreria algo semelhante: os Xavante iriam assimilando suas
possibilidades técnicas e encontrando formas de utilizar-las em seu cotidiano mas também, o
que é mais importante, tentando manter o controle sobre os possíveis efeitos dessa utilização.
Nos anos setenta, o Xavante Mário Juruna alcançaria grande notoriedade nos meios de
comunicação devido a sua constante presença junto aos políticos, levando seu gravador
sonoro para registrar as “promessas de campanha” daqueles. Com o tempo, e com o
incremento das relações com a sociedade envolvente, o gravador passaria a ser utilizado em
diversas aldeias.
Os Xavante se interessariam pelos meios de comunicação, inicialmente, como forma
de expor seus problemas e reivindicações à sociedade nacional e ao Governo. Através das
manifestações de empenho em lutar por seu território promovendo invasões às fazendas
vizinhas ou escritórios das instituições governamentais, o que buscava também era chamar a
atenção da imprensa para seus problemas.
O crescente interesse pela divulgação de seus problemas ante a imprensa, significava o
perfeito entendimento das possibilidades destes canais de informação e comunicação com a
sociedade envolvente. Esse interesse se desenvolveria simultaneamente ao desejo de
“fortalecer” aqueles elementos que consideravam essenciais à manutenção de sua identidade
cultural. Inicialmente de maneira pouco consciente, a utilização das TIC como forma de
“reafirmação cultural” começaria a ser vista como uma possibilidade factível pelos Xavante.
1
A partir deste ponto, utilizo o termo Xavante para referir-me exclusivamente aos Xavante da aldeia
Pimentel Barbosa, no estado de Mato Grosso, Brasil.
2
Denominação Xavante para todos aqueles que não são índios como eles; os “homens brancos”.
As TIC na visão de um idealista
Nos anos oitenta, a antropóloga Laura Graham esteve várias vezes em Pimentel
Barbosa realizando suas investigações, levando consigo diversos aparelhos audiovisuais.
O então líder da aldeia, Warodi, começaria a interessar-se pelas possibilidades que
antevia devido à presença de Graham e seus aparelhos. Inicialmente, ele buscaria repassar
seus conhecimentos de uma forma más efetiva que sua tradição oral lhe permitia,
“ampliando” sua audiência aos que posteriormente ouviriam seus relatos nas fitas gravadas.3
Warodi vislumbrava possibilidades de utilização para as tecnologias que Graham
dominava: “Minha presença parecia proporcionar a Warodi os meios ideais para preservar
seus conhecimentos. Eu também lhe oferecia oportunidades para expressar-se para o mundo
exterior. Ele esperava que a través de meu trabalho, ele, bem como os membros de sua
comunidade, pudessem ser reconhecidos pelo mundo exterior como os autênticos
descendentes dos primeiros criadores. Warodi desejava posicionar seu povo dentro de um
contexto global. Ele freqüentemente concluía seus discursos exortando-me a ‘levar suas
palavras ao outro lado do oceano’ para que as pessoas de lá pudessem aprender sobre os
Xavante”. (1995)
Warodi era consciente da importância das atuações que Graham presenciava,
antevendo-as como “instrumentos” que lhe permitiriam mostrar os Xavante a outras culturas:
“(...) Warodi e os anciãos que colaboravam com ele havia (...) planejado esta especial
performance teatral para aproveitar-se de minha perícia tecnológica com a câmera, o gravador
e a escritura, para aumentar os benefícios da comunidade com minha presença. (...) usando
seus conhecimentos sobre mim, ele havia previsto um espetáculo que prendesse minha
atenção, que me motivasse a fotografar e gravar as imagens e os discursos que ele considerava
especialmente importantes”. (1995)
A percepção de Warodi sobre as mudanças que ocorriam ao seu redor, lhe estimularia
a buscar difundir seus conhecimentos como forma de “perpetuar” sua cultura e a si mesmo.4
O crescente contacto com a sociedade envolvente também era motivo de preocupação
entre os Xavante que buscavam aprender novas formas de comunicar-se com essa sociedade.
Fato similar ocorria nas sociedades medievais, onde grupos antes isolados passavam a estar
mais próximos uns dos outros “e, na medida em que as áreas separadas se aproximavam,
requeriam canais de comunicação mais desenvolvidos. Este processo estimulou uma maior
consciência da necessidade de comunicação, assim como também provocou o
desenvolvimento de novos canais para essa comunicação”. (Menache, 1997)
Às possibilidades antevistas da gravação sonora, se somaria também a preocupação
por seus efeitos: os Xavante começariam a controlar a presença do gravador durante as
reuniões consideradas privadas, realizadas em suas casas com os membros de sua facção.
Além do interesse demonstrado por Warodi, os demais Xavante começariam a
interessar-se por outra possibilidade do gravador sonoro: poder gravar seus cantos.
3
A tradição oral continua sendo a principal forma de repasse do conhecimento entre os Xavante. A
prática de contar historias ocorre no ambiente familiar e as discussões dos assuntos mais relevantes ocorrem no
pátio central da aldeia todos os dias.
4
Os anciãos Xavante têm especial interesse pela idéia da imortalidade, o que lhes impele a repassar seus
conhecimentos e suas histórias aos mais jovens, permitindo assim uma continuidade da própria existência
Xavante.
A atração pelas músicas
Segundo Caimi, os Xavante se interessariam inicialmente pelo gravador como uma
forma de poder registrar seus cantos e “trocá-los” com outras aldeias. Essa prática se tornaria
comum entre os Xavante que, ao visitar outra aldeia, costumavam levar fitas gravadas com os
cantos de sua própria aldeia e trazer as gravações da aldeia visitada.5
Logo os indivíduos começariam a gravar os cantos realizados durante as cerimônias
para poder ouvi-los posteriormente em suas casas. Contudo, isso parece não haver diminuído
a freqüência com que se realizam os cantos, já que sua principal importância reside no seu
repasse aos demais indivíduos e sua incorporação às cerimônias, em função de sua aceitação
pela comunidade.6
Também aqui, segundo a visão dos anciãos, o controle do uso dos aparelhos pareceulhes necessário já que em algumas cerimônias a presença de demasiados indivíduos, tentando
aproximar-se com seus gravadores, chegaria a interferir na sua realização ideal. Apesar disso,
os anciãos têm sabido lidar com o problema com certa facilidade, conseguindo manter um
“equilíbrio” entre os interesses dos que querem gravar os cantos e a “correta” realização das
mesmas, tentando utilizar estes aparelhos tecnológicos com prudência.
Se por um lado o gravador não tem promovido o surgimento de novas formas
musicais, por outro criou a possibilidade de uma “apreciação estética comparativa” (sendo
comum as críticas aos cantos de outras aldeias) e de um “aperfeiçoamento estético”, como
menciona Graham: “(...), Warodi fez do gravador um incentivo para uma bonita (sonora)
performance. Ele convocou o gravador para encorajar os participantes a realizar uma
performance esteticamente agradável”. (1995)
Outra utilização dada ao gravador sonoro, que também se estende à gravação em
vídeo, é o simulacro da presença dos indivíduos nas reuniões.
A presença midiatizada7
Como os processos comunicativos ocorrem basicamente através do contacto direto e
pessoal, a presença dos homens adultos e dos visitantes no warã é especialmente valorizada
pelos Xavante, tanto nos processos decisórios como nos diálogos com os que visitam a
aldeia.8
A maioria dos indivíduos em Pimentel Barbosa não lê nem escreve e, similarmente ao
que ocorre com os povos Cri no Canadá, “(...) o modo de expressão primordial segue sendo a
palavra falada, e não a escrita. A fluidez de expressão se julga a partir do discurso oral, e não
da escritura”. (Bennet e Berry, 1998)
5
Caimi Waiassé, relato pessoal, 1998.
Os cantos como resultados de uma “composição” individual não têm muita importância entre os
Xavante: somente quando ele é compartilhado e cantado pelo grupo, adquire relevância.
7
O termo “midiatizar” (traduzido de “mediatizar”) é utilizado aqui segundo a definição dada por
Vicente Romano: “En el contexto de la comunicación, mediatizar significa sacar a alguien de la inmediatez de la
comunicación a través de contactos elementales, la dicción, contradicción y signos primarios, y someterlo por
tiempo indefinido a sistemas mediales heterodeterminados. Estos tienen una estructura monológica, no
dialógica.” (Romano, 1998)
8
Warã es a denominação dada ao “conselho” dos homens adultos, bem como o nome do espaço físico
onde se realizam essas reniões diariamente na aldeia, ao amanhecer e ao entardecer.
6
Como o diálogo com os interlocutores “no Xavante” nem sempre pode ocorrer no
warã, como ocorreria tradicionalmente, algumas reuniões realizadas fora da aldeia são
gravadas e/o filmadas para sua posterior apresentação no conselho da aldeia.
Essa prática também permite aos Xavante aproximar-se à tradição de seus processos
decisórios: tradicionalmente, as decisões ocorrem a partir da discussão entre os homens
adultos no warã e não a partir da imposição das opiniões dos líderes. Esta forma deliberativa
implica na participação de todos nas reuniões. Assim, o deslocamento dos líderes para
participar de reuniões fora da aldeia acaba gerando um conflito com os costumes tradicionais:
“obrigados a participar de um sistema decisório estranho a sua tradição, os líderes encontram
dificuldades para tomar decisões sobre aqueles temas sobre os quais os demais participantes
do warã não hajam sido consultados”. (Rodrigues, 2001)
Assim, essas reuniões são, de certa forma, “levadas” ao warã para que todos possam
participar delas. Dessa forma, os Xavante conseguem um simulacro de sua prática ancestral,
aproximando os indivíduos aos fatos ocorridos e permitindo que estes participem na discussão
dos temas apresentados.
Analogamente a outras culturas onde predomina a oralidade primaria (seguindo a
terminologia de Ong), o som das palavras pronunciadas tem grande relevância no cotidiano
Xavante: “Em uma cultura oral primária, onde a palavra tem sua existência somente no som,
sem nenhuma referência a nenhum texto perceptível com a vista e nenhuma consciência
sequer da possibilidade de tal texto, a fenomenologia do som entra profundamente na
sensação de os seres humanos pela existência, em tanto que processada pela palavra falada”.
(Ong, 1987)
Apesar de não permitir o diálogo, as gravações audiovisuais estariam assim muito
mais próximas de sua tradição oral do que a escritura, o que sugere a facilidade com que os
Xavante “absorveram” essa tecnologia.
As imagens da tribo ou a tribo das imagens
Nas conversações de Graham com os anciãos, surgiria a idéia de conseguir uma
câmera para que os própios Xavante a utilizassem para documentar sua cultura. Juntamente
com a câmera, chegaria também o primeiro aparelho de televisão e de videocassete à aldeia. A
partir de então, os Xavante passariam a acostumar-se com as imagens em movimento na tela.
A presença de videografistas, nas caçadas, pescas, apresentações de canto, dança e cerimônias
em geral, passaria a ser tolerada e logo solicitada pelos demais Xavante, interessados na
documentação de seu cotidiano e sua cultura em geral.
Assim mesmo, a maior parte das fitas apresentadas eram no idioma de outra etnia ou
em português, quando não em algum idioma estrangeiro (no caso de filmes) legendadas em
português. O que poderia ser visto como uma dificuldade, para a perfeita compreensão das
fitas apresentadas, acabaria por promover uma prática muito mais próxima à tradição oral que
a simples assistência dessas fitas.
A assistência das fitas se aproximaria assim às práticas orais de discussão, como
ocorre no warã: durante a apresentação das fitas o que costuma ocorrer é uma explicação do
tema por alguém que haja trazido a gravação e logo, durante a assistência, os indivíduos
começam a discutir, opinar e questionar uns aos outros sobre tudo o que ocorre na tela.
Isto pode ser visto como um “salto” da oralidade às tecnologias audiovisuais, sem
passar pela escritura e “justamente por não passar por esta via individualizada de apropriação
e transmissão de conhecimentos, potencia processos tradicionais, como o debate coletivo no
momento da apropriação de novas informações”. (Gallois e Carelli, 1998)
Com a participação dos Xavante no projeto “Vídeo nas Aldeias”, a utilização da
câmera se veria consideravelmente incrementada em sua aldeia. Esse projeto, criado por uma
ONG de São Paulo, visava ensinar aos índios de diversas etnias a utilizar a câmera de vídeo
para que eles mesmos pudessem documentar suas culturas, com a principal intenção de
proporcionar-lhes condições para “fortalecer” suas identidades culturais e “construir novas
formas de auto reapresentação”.
A partir das experiências compartidas com outras etnias e com pessoas interessadas
em sua cultura, como antropólogos e organizações não governamentais, os Xavante
estenderiam os usos dos meios audiovisuais.
Os arquivos e os “Projetos Culturais”
O interesse pelos arquivos surgiria depois da morte de Warodi: seu sobrinho criaria
uma associação cultural buscando reunir todo o material disponível sobre a cultura Xavante,
desde estudos antropológicos até vídeos e fotografias.
Na opinião de um dos líderes, o fato de poder arquivar imagens e sons “está sendo
muito importante para os Xavante, porque antigamente a gente guardava só de memória, mas
agora não: se a gente não sabe, é só colocar a fita e logo se lembram de como se realizavam os
rituais”.9
Conscientes da importância que tem a escrita na sociedade envolvente e para
relacionar-se melhor com ela, os Xavante começariam a buscar formas de registrar seus
conhecimentos através dessa tecnologia.
A ensino da escrita aos mais jovens passaria a ser uma preocupação dos anciãos: a
aldeia ganharia uma escola onde professores Xavante passariam a ensinar a escrita no idioma
português e Xavante permitindo, assim, que os relatos e histórias fossem também arquivados
na forma escrita.
Contudo, o fato de criar arquivos sobre sua cultura não seria suficiente para sua
manutenção, já que “A manutenção das culturas e o futuro diferenciado destes povos depende
muito mais de sua criatividade nos processos de reconstrução, adaptação e seleção de sua
memória, do que da continuidade de um passado retratado em imagens de arquivo”. (Gallois e
Carelli, 1995)
Conscientes disso, os Xavante buscariam novas formas de mostrar sua cultura desde
seu próprio ponto de vista, começando aí o interesse pelos projetos culturais.
Inicialmente com a participação na gravação de um disco musical, logo se associariam
a uma ONG para um projeto mais amplo: a edição de um livro com as histórias e relatos dos
anciãos, a gravação de um filme documental sobre sua história, um CD com seus cantos
tradicionais e uma apresentação de canto em São Paulo.10
Aos Xavante já não lhes interessava serem “mostrados” ao mundo a través dos olhos
de outras pessoas, fossem antropólogos ou jornalistas: seu interesse em auto-representar-se,
9
Paulo Supretaprã, relato pessoal, 1998.
A apresentação Itsari foi organizada, para ser mostrada em forma de espetáculo: as funções
cerimoniais dos cantos foram explicadas ao público para que pudessem compreender melhor sua dinâmica.
10
revelando aqueles aspectos de sua cultura que consideravam realmente significativos e que
conheciam melhor que ninguém, era parte das tentativas de reforço de sua identidade cultural.
Conclusões
Os Xavante vêm buscando adaptar-se às novas situações que surgem em suas vidas,
utilizando alguns dos recursos tecnológicos da sociedade envolvente como mecanismos de
subsistência de sua cultura, permitindo a continuidade do que consideram ser suas tradições
culturais. Os anciãos e líderes tentam controlar os efeitos indesejados das TIC sem perder de
vista os interesses dos jovens pelas novidades que surgem.
Atuam assim por ter consciência do dilema cultural que muitos jovens enfrentam,
como ocorre entre os Inuit no Canadá: “Como os não-nativos associam as atividades
tradicionais dos Inuit com o comportamento anterior ao contacto, os jovens Inuit
experimentam uma luta cultural relacionada com os conceitos de tradicional e real Inuit”.
(Valaskakis, 1992)
Essa preocupação pela continuidade da cultura tradicional está dirigida às novas
gerações pois, como destaca Carey “nós não só produzimos a realidade, mas temos
igualmente que manter o que produzimos, porque sempre estão surgindo novas gerações para
quem nossas produções são incipientes e problemáticas, e para quem a realidade deve ser
regenerada e tornada fiável”. (1989)
Os Xavante vêm conseguindo utilizar as TIC sem a perda de sua identidade cultural
logrando, inclusive, reforçar e recuperar diversas práticas culturais tradicionais, trocando o
papel de “representados” pelo de protagonista ao auto-representar-se, buscando utilizar todas
as possibilidades oferecidas por essas tecnologias para manter-se eternamente Xavante.
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Gedisa, 1998.
Carey, James W., Communication as culture – essays on media and society, Unwin Hyman,
Inc., Boston, 1989, 241p.
Gallois, Domique e Carelli, Vincent, Índios “eletrônicos” – uma rede de comunicação
indígena, texto publicado na página web do Centro de Trabalho Indigenista:
www.trabalhoindigenista.org.br, 1998.
_____, Vídeo e dialogo cultural - A experiencia do Projeto Vídeo nas Aldeias, Cadernos de
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Valaskakis, Gail, Communication, culture and technology: satellites and northern
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Jair Moreira Rodrigues Apropriação e usos das tecnologias