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ISSN 1809-9815
ano 5 | maio > agosto | 2011
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SESC | Serviço Social do Comércio
SESC | Serviço Social do Comércio
REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA
GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO,
BRASIL
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel
Sueli Ângelo Furlan
A HORA DE IR PARA A ESCOLA
Daniel Santos
CRIATIVIDADE
Marsyl Bulkool Mettrau
ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA:
PENSANDO OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA
DO RIO DE JANEIRO
ano 5 | maio > agosto | 2011
www.sesc.com.br
Monique Assis
Nilda Teves
GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO
BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE
DA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE E
MORALIDADE EM FERNANDO DE AZEVEDO
Murilo Mariano Vilaça
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v.5 nº16
maio > agosto | 2011
SESC | Serviço Social do Comércio
Administração Nacional
ISSN 1809-9815
SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.5 nº16 | p. 1-168 | MAIO > AGOSTO 2011
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SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional
PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL
Antonio Oliveira Santos
DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL
Maron Emile Abi-Abib
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
Mauro Lopez Rego
CONSELHO EDITORIAL
Álvaro de Melo Salmito
Mauricio Blanco
Nivaldo da Costa Pereira
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Mauro Lopez Rego
ASSESSORIA EDITORIAL
Andréa Reza
EDIÇÃO
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral
Christiane Caetano
PROJETO GRÁFICO
Vinicius Borges
SUPERVISÃO EDITORIAL
Jane Muniz
PRODUÇÃO EDITORIAL
Duas Águas| Ieda Magri
REVISÃO
Clarissa Penna
REVISÃO DO INGLÊS
Idiomas & cia
DIAGRAMAÇÃO
Livros & Livros | Susan Johnson
PRODUÇÃO GRÁFICA
Celso Clapp
Sinais Sociais / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/
ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC,
Departamento Nacional, 2006 - .
v.; 30 cm.
Quadrimestral.
ISSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I.
Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.
As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO5
EDITORIAL7
SOBRE OS AUTORES8
REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA GESTÃO
AMBIENTAL EM MATO GROSSO, BRASIL10
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel
Sueli Ângelo Furlan
A HORA DE IR PARA A ESCOLA38
Daniel Santos
CRIATIVIDADE86
Marsyl Bulkool Mettrau
ENTRE O DRAMA E A TRAGÉDIA: PENSANDO
OS PROJETOS SOCIAIS DE DANÇA DO RIO DE
JANEIRO108
Monique Assis
Nilda Teves
GINÁSTICA ESCOLAR COMO DISPOSITIVO
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APRESENTAÇÃO
A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um
espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação.
Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a
publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no
Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas
páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício
poder-se-ão manifestar.
Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da
Sinais Sociais é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas
Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo
ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como
principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”
Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos
– de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão
mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.
Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação
teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das
ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum.
Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer
as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os
objetos em estudo.
O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com
suas reflexões como para segmentos do grande público interessados
em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.
Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente
ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse
debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais.
Antonio Oliveira Santos
Presidente do Conselho Nacional do SESC
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EDITORIAL
No intuito de assegurar a sobrevivência, as sociedades humanas
criam fortalezas que podem se tornar causa ou evidência de suas próprias fragilidades. O Estado hobbesiano busca a paz interna e a defesa
comum e, para tanto, retira de cada membro uma parcela de sua
liberdade. Ao homem contemporâneo “pós-tudo”, resta tentar compatibilizar, com engenho e arte, as estruturas abstratas, lógicas e gerais
com o plano individual, concreto e corporificado de sua realidade.
A presente edição da Sinais Sociais traz algumas contribuições a essa
perene tarefa. O modelo de atividade física escolar defendido por
Fernando de Azevedo na primeira metade do século XX é objeto da
crítica de Murilo Mariano Vilaça, por implicar a normalização simultânea nos campos da educação, da saúde e da moral. Também com forte
referência histórica, Monique Assis e Nilda Teves produzem estudo sobre projetos que têm a dança como meio de inclusão social, e apontam
para a tensão entre sua vitalidade artística e dramática e as ameaças da
apropriação estritamente pedagógica, ou de sua mera reificação.
Outros dois artigos abordam a eficácia de políticas públicas, instru­
mentos modernos de busca da “paz interna” almejada por Hobbes.
Daniel Santos apresenta relevantes reflexões na comparação entre
os benefícios da creche e da pré-escola no processo educacional.
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel e Sueli Ângelo Furlan discutem
a contribuição do ICMS Ecológico para a conservação ambiental.
Finalmente, o trabalho de Marsyl Bulkool Mettrau aborda a criatividade, considerada atributo exclusivamente divino em outras épocas e
civilizações e que, no presente, sinaliza para a existência de infinitas
perspectivas humanas e sociais ainda não formuladas.
Maron Emile Abi-Abib
Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
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SOBRE OS AUTORES
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo. Mestre em Geografia (área de concentração: Ambiente e
Desenvolvimento Regional) pela Universidade Federal de Mato Grosso (2009).
Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Mato Grosso
(2006). Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (Inau). Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Geografia Agrária e Conservação
da Biodiversidade do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas
Brasileiras (Nupaub) da Universidade de São Paulo. Docente de cursos de pós-graduação do Instituto de Capacitação e Pós-Graduação. Última publicação: Estância
Ecológica SESC Pantanal: surgimento e consolidação no contexto pantaneiro (2011).
Daniel Santos
Doutor em Economia pela Universidade de Chicago, atualmente é professor no
IBMEC-RJ e vice-secretário executivo da Sociedade Brasileira de Econometria.
Suas áreas de concentração são em economia da educação e avaliação de políticas públicas. Recentemente, vem se especializando em desenvolvimento infantil,
com especial interesse no impacto de intervenções focalizadas na primeira infância
sobre diversas dimensões de sucesso individual ao longo do ciclo de vida.
Marsyl Bulkool Mettrau
Doutora em Educação pela Universidade do Minho, Braga, Portugal. Mestre em
Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora titular
da Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e professora aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora de livros sobre estudos atuais da
inteligência humana, entre os quais: Inteligência: patrimônio social (2000) e Educação moral, inteligência e altas habilidades (2007). Ministra regularmente cursos
e oficinas sobre o tema.
Monique Assis
Graduada em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá. Licenciada em Educação
Física pela Universidade Gama Filho. Mestre e doutora em Educação Física pela
Universidade Gama Filho, atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação
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dessa universidade. Desenvolve suas pesquisas na área do imaginário social,
atuando principalmente nos temas: análise do discurso (imagem e palavra), questões relacionadas à imagem corporal, cultura popular e o consumo associado ao
aperfeiçoamento do corpo.
Murilo Mariano Vilaça
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em
Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacharel e licenciado em
Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Educação Física pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente colaborador da Pós-Graduação
em Pedagogia Crítica da Educação Física nessa instituição. Professor substituto de
Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ no biênio 2009-2010.
Membro dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (UFRJ) e do Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Nilda Teves
Licenciada em Matemática e Física e em Pedagogia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia das Ciências e doutora em Educação Brasileira
pela mesma universidade. Possui formação em Psicanálise e é professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi diretora-geral de Ensino da
Secretaria de Educação e da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio
de Janeiro e professora titular da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professora titular da Universidade Gama Filho. Tem experiência na área de filosofia com
ênfase em Filosofia da Ciência, atuando principalmente com os temas: fundamentos filosóficos da educação, cultura organizacional, educação física, cidadania e
cultura popular.
Sueli Ângelo Furlan
Professora assistente do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) desde 1986. Mestre e doutora em Geografia Física pela USP. Bacharel e licenciada em Biologia e
Geografia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas socioambientais em
Conservação de Florestas Tropicais, coordenando o Grupo de Pesquisa Litoral
Sudeste: Ambiente, Conservação e Populações Tradicionais, vinculado ao Laboratório de Climatologia e Biogeografia da USP. Credenciada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da USP. Coordenadora do Núcleo de Apoio
à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub) da
USP. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Florestas Culturais na Amazônia.
Coordena a elaboração dos Planos de Manejo dos Parques Naturais do Rodoanel
Trecho Sul e coordenou a elaboração de planos de manejo de áreas protegidas na
Mata Atlântica.
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REPERCUSSÕES DO ICMS
ECOLÓGICO NA GESTÃO
AMBIENTAL EM MATO
GROSSO, BRASIL
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel
Sueli Ângelo Furlan
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Instrumentos de política pública exercem um papel essencial na aplicabilidade dos princípios, diretrizes e normas que estruturam a questão ambiental no
Brasil. Nesse contexto, a implantação de unidades de conservação (UCs) pode
ser considerada um dos procedimentos basilares, sendo essas áreas as principais referências para o cálculo do ICMS Ecológico (ICMS-E), um importante
instrumento de incentivo econômico que vem respondendo paulatinamente
às demandas para garantir a conservação ambiental. Este artigo visa verificar
de que maneira o ICMS Ecológico tem repercutido em Mato Grosso, buscando compreender como esse mecanismo contribui para o incentivo à gestão
ambiental no estado. Os resultados indicaram que a forma pela qual o ICMS
Ecológico vem sendo implementado tem repercussão como um incremento
ainda insuficiente para o setor ambiental dos municípios. Com a previsão de
incorporar aspectos qualitativos ao cálculo do recurso, esse instrumento tende
a se tornar mais eficiente como incentivo às práticas conservacionistas no estado, indo além do seu caráter compensatório em direção a uma perspectiva
socioambiental.
Palavras-chave: ICMS Ecológico, políticas públicas, Mato Grosso
Political Policies tools play an essential, role in the applicability of the principles,
guidelines and standards that structure the environmental issue in Brazil. In this
context the implementation of the conservation units can be considered one of
the basic procedures, being these areas the main references for the calculation
of the Ecological ICMS (E-ICMS), one important tool of economical incentive
that has been gradually responding to the demands to ensure the environmental conservation. This article aims to verify how the E-ICMS has reflected
in the State of Mato Grosso, seeking to comprehend how this tool contributes
for the incentive of the environmental management in the State based on the
perspectives that it has pointed. The results indicated that the way in which the
E-ICMS has been implemented has had a repercussion as an increment still insufficient for the environmental sector of the municipalities. With the prognosis
of incorporating qualitative aspects to the resource calculation, this tool tends
to become more efficient as an incentive to the conservation practices in the
State, going beyond its compensatory nature towards a social-environmental
perspective.
Keywords: Ecological ICMS, public policies, Mato Grosso
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INTRODUÇÃO1
É fato notável que as transformações sociais, políticas e econômicas
que gradualmente constroem a história humana na Terra implicam
novas formas de organização da sociedade e novas configurações do
espaço. Inerente a esse processo, a questão ambiental2 é um dos temas mais emergentes nas agendas políticas de diversos países, especialmente nas últimas duas décadas, com a mobilização em escala
local, regional e global e a necessidade premente de outros padrões
para o desenvolvimento.
Na busca pela melhoria das condições socioambientais atuais, a sustentabilidade tem sido um dos caminhos para a implementação de
mecanismos que orientam para a igualdade, a equidade e a solidariedade, embutidas no conceito de desenvolvimento (SACHS, 2004,
p. 14), para que os limites do ambiente sejam reconhecidos e determinantes no processo de construção das políticas públicas. A sustentabilidade intenta estabelecer a ligação entre os elementos naturais e os
usos humanos que ocorrem em escalas variadas de tempo e espaço,
de forma a considerar as necessidades de ambos, que compõem um
mesmo sistema complexo (BERKES et al., 2008, p. 54).
A partir dessas premissas, a precaução quanto à exploração dos elementos naturais constitui um princípio importante para avançar em
direção à sustentabilidade, considerando a insubstitutibilidade do
capital natural, que pode ser entendido como o ambiente de forma
ampla (LIU et al., 2010, p. 54), incluindo árvores, minerais, ecossistemas, atmosfera, entre outros fatores dos quais a sociedade depende e
usufrui (COSTANZA et al., 1997, p. 254).
Como meio de incorporar tais concepções, os instrumentos de política pública exercem um papel fundamental na aplicabilidade das
Agradecemos ao professor dr. Paulo Antônio de Almeida Sinisgalli, docente
do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (Procam – USP), pelas
reflexões levantadas no decorrer de sua disciplina Economia do Meio Ambiente, que contribuíram para o aprimoramento do trabalho.
2
O termo refere-se às iniciativas, mobilizações e ações que refletem, de maneira geral, a necessidade de uma forma sustentável de desenvolvimento, que
engloba, entre outros aspectos, a conservação ambiental.
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políticas ambientais. Os instrumentos do tipo comando e controle
(ICC) compreendem um conjunto de mecanismos aplicados para a
regulação quantitativa e qualitativa das relações que envolvem a utilização dos recursos naturais (PERMAN et al., 1999, p. 303), tais como:
licenciamento ambiental, zoneamento, outorga pelo uso dos recursos
hídricos, padrões de qualidade, fiscalização e penalidades.
Entretanto, há apontamentos que indicam a insuficiência da utilização exclusiva dessa categoria de instrumentos; entre eles, Motta
(1997, p. 70) destaca a escassez de recursos financeiros e humanos e
as dificuldades de integração intergovernamental nas suas diferentes
escalas.
Com o caráter de complementação aos instrumentos do tipo comando e controle, os instrumentos econômicos, ou de mercado, têm
sido empregados de forma a incrementar a política ambiental, configurando-se ainda como meios importantes para a geração de receitas
destinadas a subsidiar demandas para a proteção dos recursos naturais
(MOTTA, 1997, p. 72).
No Brasil, a implantação de áreas destinadas à proteção ambiental,
denominadas Unidades de Conservação (UC), pode ser considerada
um dos procedimentos mais eficientes de políticas públicas nesse setor, e se caracteriza como a principal referência, juntamente a outros
critérios ambientais, para o cálculo do ICMS Ecológico (ICMS-E). O
ICMS Ecológico é um importante instrumento de compensação e incentivo econômico, que pode vir a responder às demandas para uma
proteção mais eficiente das Unidades de Conservação, das terras indígenas e quilombolas, no caso específico de Mato Grosso. Como será
abordado posteriormente, esse é um mecanismo que varia de acordo
com cada estado brasileiro.
Nesse contexto, as unidades de conservação exercem um papel
significativo, pois possibilitam compreender o funcionamento dos
processos naturais e sua capacidade de resiliência. Esse conceito, originado da Ecologia, tem contribuído para as reflexões acerca da importância de áreas naturais protegidas, bem como dos princípios da
sustentabilidade. Seu significado, de forma geral, está pautado na possibilidade de garantir a capacidade dos organismos e ecossistemas de
evoluir em termos de táticas de sobrevivência, mediante a absorção
das consequências da dinâmica transformação que incidem continua-
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mente sobre os mesmos (BERKES et al., 2008, p. 59-60). Berkes et al.
destacam a potencialidade do conceito para iluminar a análise dessa
ampla e complexa perspectiva.
The concept of resilience helped to move ecological anthropology toward a dynamic, ecological perspective that investigated processes of
change and equilibrium and disequilibrium, through an examination
of the relationship among the environment, individuals, and groups
(BERKES et al., 2008, p. 61)3.
A criação de áreas naturais protegidas tem como marco referencial
a criação do Yellowstone National Park, em 1872, nos Estados Unidos.
Entretanto, já existiam registros anteriores de áreas protegidas, mas
com objetivos diferentes (reservas de caça, por exemplo). A partir desse marco, outros países iniciaram a criação de parques e outras áreas
protegidas. O Brasil instituiu sua primeira área protegida em 1937, o
Parque Nacional do Itatiaia, localizado na divisa dos estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro.
Gradualmente essa prática foi se ampliando, tanto no que se refere
aos seus objetivos quanto em quantidade, por diversos países. Visando
regulamentar e padronizar os conceitos que surgiram por consequência dessa expansão, foram realizados eventos mundiais, bem como se
definiram questões fundamentais em uma legislação cada vez mais
específica. Em meio a esse processo, foram se instituindo novos tipos
de áreas protegidas, de acordo com sua localização em determinado
território, podendo ser de responsabilidade pública ou privada, assim
como foram definidos os objetivos de sua existência.
Nessa trajetória, tornou-se cada vez mais evidente a ideia de que as
áreas protegidas não se constituem como “ilhas” de biodiversidade –
concepção inicialmente embutida nessa iniciativa, que via essas áreas
como unidades isoladas de um contexto social, econômico e cultural.
Dessa forma, os objetivos dessa prática também foram revistos.
Tradução livre: O conceito de resiliência contribuiu na condução da antropologia ecológica à uma abordagem dinâmica, uma perspectiva ecológica que
investigou os processos de mudança, equilíbrio e desequilíbrio, considerando
a relação entre ambiente, indivíduos e grupos.
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No Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, Lei 9.985 de 18 de julho de 2000) é a principal referência
na implementação de áreas protegidas. De acordo com o SNUC, são
atribuídos às unidades objetivos diversos, que variam conforme a categoria que ocupam, sendo a conservação da biodiversidade a razão
fundamental de existência dessas áreas, as quais também podem contemplar, por exemplo, pesquisa científica, turismo e reconhecimento
e valorização da sociodiversidade, por diferentes formas de interação
com comunidades adjacentes.
Apesar dos avanços gerados pela criação das unidades de conservação ao longo do tempo, os conflitos envolvendo essas áreas têm
origens remotas e estão encravados no dilema entre o paradigma do
crescimento econômico e os pressupostos para a conservação da natureza, permeando tanto aspectos técnicos quanto políticos e econômicos, e variando amplamente de acordo com cada localidade. Decorrem daí, portanto, diversos conflitos socioambientais, que envolvem
comunidades rurais, grupos indígenas, organizações privadas, poder
público de diferentes escalas e demais atores, que compõem as arenas
para negociação dos interesses, muitas vezes divergentes.
Na tentativa de avançar para além dessa dicotomia, é premente a
busca por alternativas mitigadoras das dificuldades de criação e manutenção das áreas de conservação. Dessa forma, o ICMS Ecológico
pode contribuir não apenas como instrumento compensatório, mas
também como mecanismo incentivador da proteção dos recursos naturais, podendo ser direcionado à manutenção de unidades de conservação públicas, ou gerido como um recurso complementar pelos
proprietários de reservas privadas.
Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo verificar de
que maneira o ICMS Ecológico tem repercutido na gestão ambiental em Mato Grosso e como esse instrumento pode contribuir para o
incentivo à conservação de áreas de interesse para a conservação no
estado, mediante as perspectivas apontadas.
Os procedimentos e métodos operacionais para a realização da pesquisa envolveram duas etapas: a primeira, quantitativa (levantamento
de dados estatísticos), e a segunda, qualitativa (análise dos resultados).
Os dados primários e secundários foram obtidos a partir de pesquisa
documental e bibliográfica.
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Assim, foram coletadas informações de diferentes fontes documentais, tais como legislação, relatórios institucionais e anuários estatísticos.
Os dados foram reunidos e tabulados em planilhas, e posteriormente
foi realizada a análise das informações encontradas, a qual se subsidiou nas bibliografias consultadas. Essa segunda etapa se baseou na
abordagem qualitativa.
Portanto, a análise conduziu aos resultados de forma polissêmica, a
partir do levantamento quantitativo como subsídio a uma abordagem
qualitativa do fenômeno pesquisado, aproximando-se, assim, das diferentes possibilidades de reflexão à luz do levantamento bibliográfico, numa perspectiva interdisciplinar.
1 ASPECTOS GERAIS DO ICMS ECOLÓGICO
Prover a sociedade requer do Estado a instituição de meios para
garantir o atendimento às necessidades tanto coletivas quanto individuais. Para o alcance desse objetivo, o Sistema de Tributação Nacional
foi estabelecido, com o propósito de arrecadar recursos para atender
às demandas oriundas da sociedade.
O Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transportes Interestaduais, Intermunicipais e de Comunicação (ICMS) foi instituído pelo Artigo 155º
da Constituição Federal de 1988, que, complementado pelos Artigos
157º, 158º e 159º, determina os critérios de distribuição desse imposto.
É um tributo de competência dos estados e do Distrito Federal e é regulamentado pela Lei Complementar n° 87/1996, também conhecida como
Lei Kandir. De acordo com a legislação, parte desse recurso (25%) deve
ser destinada aos municípios conforme lei estadual e o restante (75%),
destinado ao estado (denominado Valor Adicionado Fiscal – VAF).
No início da década de 1990, surgiu a alternativa que propõe que
parte desses 25% destinados aos municípios seja ponderada por critérios ambientais, originando o ICMS Ecológico (IBGE, 2005, p. 51-52),
como ficou conhecido. Em 1991, pela Lei Complementar nº 59 de
1º de outubro, o ICMS Ecológico tornou-se uma determinação legalmente instituída pela primeira vez no país, no Paraná, e que pode ser
definido como um meio de “incentivo econômico de gestão ambiental que visa compensar financeiramente os municípios que apresen-
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tam áreas destinadas especificamente à conservação e preservação do
meio ambiente” (IBGE, 2005, p. 52).
As ideias precursoras, sobre as quais o ICMS Ecológico se apoia, têm
origem em outros países, que dispõem de mecanismos fiscais voltados
tanto à penalização decorrente da degradação, especialmente ligada às questões de desmatamento, como também aos mecanismos de
incentivo, como a isenção de tributos às propriedades que mantêm
áreas de interesse para conservação (LOUREIRO, 2002, p. 40-42).
Atualmente, 14 estados brasileiros possuem a política do ICMS Ecológico instituída: Acre, Amapá, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Sul, Rondônia, São Paulo e Tocantins (The Nature Conservancy, 2011).
Conceitualmente, não se trata de uma modalidade de ICMS, ou
mesmo de tributo, como o nome pode sugerir. Seu caráter é distributivo, sendo uma forma encontrada para compensar a escolha pela conservação ambiental de áreas que poderiam ser destinadas à geração
de recursos fiscais aos municípios com atividades econômicas como
agricultura e pecuária. Motta exemplifica esse princípio, relacionando-o ao custo de oportunidade inerente à escolha:
Restrições ao uso da terra em unidades de conservação impõem perdas de geração de receita, visto que atividades econômicas são restritas in-situ. A renda líquida abdicada pelas restrições dessas atividades
é uma boa medida do custo de oportunidade associado com a criação
dessa unidade de conservação. O uso de renda líquida decorre do fato
de que a renda bruta dessas atividades sacrificadas tem que ser deduzida dos seus custos de produção, que também restringem recursos
para a economia. De fato, a renda líquida significa a receita líquida
provida pelas atividades sacrificadas e representaria, assim, o custo de
oportunidade da conservação (MOTTA, 1997, p. 8).
Segundo o autor, o custo de oportunidade pode também se caracterizar como um dos métodos de valoração de bens e serviços privados
substitutos:
Esse método mensura as perdas de renda nas restrições da produção
e consumo de bens e serviços privados devido às ações para conser-
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var ou preservar os recursos ambientais. (...) É amplamente utilizado
para estimar a renda sacrificada em termos de atividades econômicas
restringidas pelas atividades de proteção ambiental e, assim, permitir
uma comparação desses custos de oportunidade com os benefícios
ambientais numa análise de custo-benefício (MOTTA, 1997, p. 21).
Para que a compensação seja equivalente à possibilidade de uso,
é indispensável a valoração econômica dos serviços ecossistêmicos e
simulações das possibilidades de uso. No primeiro caso, há diversos
métodos que podem ser utilizados para estimar o valor monetário dos
serviços prestados pelos ecossistemas. Trata-se de um tema de caráter
interdisciplinar, que vem se desenvolvendo nas fronteiras da Economia Ecológica.
Entretanto, vale ressaltar que os critérios para o cálculo do ICMS
Ecológico em Mato Grosso não se baseiam na possibilidade de uso,
como sugere o custo de oportunidade, apesar de seguir o mesmo princípio compensatório, mas têm como base aspectos quantitativos (área
espacial e fator de conservação) para o cálculo do recurso a ser destinado ao município.
O entendimento de que o ICMS Ecológico seja destinado aos municípios para efetivação da conservação das áreas protegidas nem
sempre é incorporado pelos atores da gestão pública municipal, visto
que o município tem autonomia quanto à destinação ou utilização do
ICMS Ecológico arrecadado, e a questão ambiental geralmente não
tem sido considerada entre as prioritárias nas agendas políticas, como
será mencionado em seguida.
2 REPERCUSSÕES DO ICMS ECOLÓGICO NA
GESTÃO AMBIENTAL EM MATO GROSSO
O ICMS representa uma das principais fontes de receita tributária dos
estados. Em Mato Grosso, segundo dados dos Relatórios Anuais de Balanço Geral do Estado, divulgados pela Secretaria de Estado da Fazenda
(SEFAZ-MT), esse imposto corresponde em média ao equivalente a 90%
do total de receita tributária arrecadada, com progressivo aumento a
cada ano, como ilustra a Figura 1, que demonstra a evolução do ICMS
arrecadado em Mato Grosso no período de 1999 a 2009.
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Figura 1
Evolução do ICMS arrecadado em Mato Grosso − 1999 a 2009
4,50
4,00
3,50
Valor em bilhões
3,00
2,50
2,00
1,50
1,00
0,50
0,00
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Fonte: Relatórios Anuais de Balanço Geral do Estado, divulgados pela Secretaria de Estado da Fazenda
(SEFAZ-MT).
Mato Grosso foi o sexto estado a aderir à política do ICMS Ecológico, derivado da arrecadação do ICMS, instituída em 2000 com a
Lei Complementar nº 73 de 7 de dezembro e regulamentada com o
Decreto nº 2.758 de 16 de julho de 2001, que esclarece conceitos e
orientações quanto aos procedimentos técnicos e administrativos para
o cumprimento da Lei, cria o Cadastro Estadual de Unidades de Conservação e apresenta os aspectos inerentes aos cálculos desse recurso
nos municípios, considerando não apenas fatores quantitativos, mas
também qualitativos.
Os fatores qualitativos foram definidos mais detalhadamente dez
anos mais tarde, pela Instrução Normativa nº 1, de 5 de maio de
2010, que regula procedimentos administrativos para a organização
do Cadastro Estadual de Unidades de Conservação e Terras Indígenas,
a operacionalização dos cálculos e a gestão do Programa do ICMS
Ecológico e a publicação e democratização das informações.
O órgão responsável pela execução desses dispositivos legais em
Mato Grosso é a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA-MT),
por meio da Coordenadoria de Unidade de Conservação, ligada à Superintendência de Biodiversidade. De acordo com o Relatório sobre a
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aplicação do ICMS Ecológico em Mato Grosso no período de 2002 a
2007, elaborado por essa Secretaria,
tais critérios [qualquer critério ou conjunto de critérios relacionados à
busca de solução para problemas ambientais] são utilizados para a determinação do “quanto” cada município deverá receber na repartição
dos recursos financeiros arrecadados com o Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS). (...) O ICMS Ecológico surgiu como
forma de compensar financeiramente os municípios que possuem restrições de uso do solo de seus territórios por conterem Áreas Indígenas
e Unidades de Conservação; bem como a necessidade da estruturação
de instrumentos alternativos de políticas públicas para a conservação
ambiental (SEMA-MT, 2008, p. 4).
Para a distribuição dos 25% do ICMS, o estado definiu cinco parâmetros, entre eles os critérios ambientais que atualmente são Unidades de Conservação e Terras Indígenas, às quais é atribuído o percentual de 5% do ICMS, como ilustrado na Tabela 1.
Tabela 1
Critérios e percentuais utilizados para distribuição do ICMS
a que os municípios mato-grossenses têm direito
Critérios
Percentuais (%)
Valor adicionado
75
Receita tributária própria
4
População
4
Área do município
1
Coeficiente social
11
Unidade de Conservação/Terra Indígena
Total
5
100
Fonte: SEMA-MT (2010, p. 13).
A Lei Complementar nº 73 instituiu inicialmente, além do critério de
Unidades de Conservação e Terras Indígenas, o Saneamento Ambien-
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tal, que correspondia a mais 2% para os aspectos ambientais. Em 20
de janeiro de 2004, a Lei Complementar nº 157 redistribuiu valores
e reformulou os cálculos. Com esse dispositivo, o critério de Saneamento Ambiental foi extinto e os 5% referentes às Unidades de Conservação e Terras Indígenas foi mantido. Os 2% correspondentes ao
Saneamento Ambiental, com sua supressão, foram transferidos para o
Coeficiente Social.
Cada um dos critérios para a distribuição dos 25% de direito dos
municípios compreende um conjunto de condições específicas. O extinto fator Saneamento Ambiental considerava os sistemas de captação,
tratamento e distribuição de água, sistemas de coleta, tratamento e disposição final de resíduos sólidos e sistemas de esgotamento sanitário do
município. O critério vigente, que pesa sobre a ponderação ambiental
(Unidades de Conservação e Terras Indígenas), considera aspectos relativos ao tamanho dessas áreas e categorias (no caso das Unidades de
Conservação) e situação fundiária, as quais refletem o fator de correção.
Dessa forma, segundo o Anexo 1 da Lei Complementar nº 73 de
7 de dezembro de 2000, o cálculo do ICMS Ecológico em Mato Grosso
é realizado atualmente da seguinte maneira:
ICMS-E = IUCTI x VRFP
IFPICMS
IUCTI corresponde ao Índice de Unidade de Conservação ou Terra Indígena; VRFP corresponde ao Valor Recebido do Fundo de Participação;
IFPICMS representa o Índice Final de Participação no ICMS e ICMS-E
é o valor do ICMS Ecológico de determinado município em dado mês.
O Índice de Unidades de Conservação e Terras Indígenas utilizado
na equação corresponde ao ano anterior ao aplicado e é calculado a
partir do Fator de Conservação do Município (FCM) multiplicado pelo
Fator de Conservação do Estado (FCE):
IUCTI = FCM x FCE
O Fator de Conservação do Município (FCM) corresponde à somatória dos Fatores de Conservação das Unidades de Conservação e das
Terras Indígenas contidas no seu território (Σ FCUCsTIs):
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FCM = Σ FCUCsTIs
O Fator de Conservação específico de cada área é calculado pela
relação entre a área da Unidade de Conservação ou Terra Indígena e
a área total do município, ponderado por um fator de correção (FCo):
FCUC ou TI = Área UC ou TI x FCo
Área do município
Portanto, o Fator de Correção constitui-se em um elemento significativo no cálculo do ICMS Ecológico dos municípios, e tem como
base o nível de restrição das áreas. De acordo com o Anexo 2 da Lei
Complementar nº 73 de 7 de dezembro de 2000, os Fatores de Correção com referências às Unidades de Conservação foram definidos
por categoria, como mostra a Tabela 2.
Tabela 2
Fatores de correção das categorias de áreas protegidas
para cálculo do ICMS Ecológico em Mato Grosso
Categoria da área protegida
Reserva Biológica
Estação Ecológica
Parque Nacional, Estadual, Municipal
Monumento Natural
Refúgio de Vida Silvestre
Área de Proteção Ambiental
Floresta Nacional, Estadual, Municipal
Reserva Extrativista
Área de Relevante Interesse Ecológico
Reserva de Fauna
Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Reserva Particular do Patrimônio Natural
Estrada Parque
Terra Indígena*
Área de Proteção Especial
Fator de correção
1,0
1,0
0,7
0,8
0,8
0,2
0,5
0,5
0,3
0,4
0,5
0,2
0,3
0,7*
0,5
*Fator correspondente às Terras Indígenas registradas. Os demais níveis de consolidação jurídico-formal
sofrem variação (Anexo 1 do Decreto nº 2.758 de 16/07/2001). Fonte: Anexo 2 da Lei Complementar nº
73 de 7/12/2000 (SEMA-MT, 2009, p. 30).
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Com a consideração de critérios qualitativos em conjunto com os
quantitativos, com a Instrução Normativa nº 01, de 5 de maio de
2010, os Fatores de Correção das áreas protegidas foram alterados,
podendo alcançar escores máximos conforme as condições ambientais das unidades, que podem evoluir gradualmente. A Tabela 3 apresenta os escores mínimos e máximos, ou seja, o intervalo de índices
numéricos estabelecido para cada categoria.
Tabela 3
Escores mínimos e máximos do Fator de Correção das áreas
protegidas em Mato Grosso para cálculo do ICMS Ecológico
Categoria da área protegida
Escores mínimos e máximos
do Fator de Correção
Municipal
Estadual
Federal
Reserva Biológica
1,0 – 3,0
1,0 – 2,0
1,0 – 2,0
Estação Ecológica
1,0 – 3,0
1,0 – 2,0
1,0 – 2,0
Parque
1,0 – 14,3
1,5 – 5,0
1,0 – 3,0
Monumento Natural
1,0 – 5,0
1,0 – 3,0
1,0 – 1,5
Refúgio de Vida Silvestre
1,0 – 2,0
1,0 – 2,0
1,0 – 1,5
Área de Proteção Ambiental
1,0
1,0 – 3,0
1,0 – 2,0
Floresta
1,0
1,0 – 4,0
1,0 – 1,5
Reserva Extrativista
1,0
1,0 – 2,5
1,0 – 1,5
Área de Relevante Interesse Ecológico
1,0
1,0 – 2,0
1,0
Reserva de Fauna
1,0
1,0 – 2,0
1,0 – 1,5
Reserva de Desenvolvimento Sustentável
1,0
1,0
1,0 – 2,5
Reserva Particular do Patrimônio Natural
1,0
1,0 – 20,0
1,0 – 15,0
Estrada Parque
1,0
1,0 – 2,0
1,0
Terra Indígena
1,0
1,0
1,0 – 4,0
Área de Proteção Especial
Território Quilombola
1,0 – 2,0
1,0
1,0
1,0
1,0 – 2,0
1,0 – 2,0
Fonte: Anexo II da Instrução Normativa nº 01, de 5/5/2010 (MATO GROSSO, 2010).
Quanto ao Fator de Correção atribuído às Terras Indígenas, o parâmetro considerado se baseia no nível de consolidação jurídico-formal
das áreas, conforme apresentado na Tabela 4.
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Tabela 4
Fatores de Correção de Terras Indígenas de acordo com
os níveis de consolidação jurídico-formal
Nível de consolidação jurídico-formal da terra indígena
Fator de correção
Registradas
0,70
Homologadas
0,65
Reservadas/dominiais
0,60
Demarcadas
0,55
Em demarcação
0,45
Declaradas
0,40
Identificadas
0,30
Em identificação
0,00
A identificar
0,00
Fonte: Anexo 1 do Decreto nº 2.758 de 16/07/2001 (SEMA-MT, 2009, p. 43).
Portanto, os municípios mato-grossenses que possuem em seu território Unidades de Conservação e Terras Indígenas têm direito ao recebimento do ICMS Ecológico, instrumento que possui como critério
determinante a existência legal dessas áreas.
Dos 141 municípios mato-grossenses, 86 recebem o ICMS Ecológico de acordo com o tamanho das Unidades de Conservação e Terras
Indígenas, bem como os fatores de conservação das categorias dessas
áreas. Ou seja, ainda são considerados apenas parâmetros quantitativos, o que significa que quanto maior a área do município ocupada
por áreas protegidas, bem como seu fator de conservação, tanto maior
será o valor de recursos do ICMS Ecológico destinado a ele (SEMA-MT,
2008, p. 6 e 7).
Visando aperfeiçoar os critérios para o cálculo do recurso, a Instrução Normativa nº 001 representa um avanço para que o cálculo leve
em consideração não apenas o tamanho da área e o Fator de Correção
como dado genérico, mas, principalmente, a qualidade ambiental de
determinada unidade, isto é, que as ações estejam, de fato, compatíveis satisfatoriamente aos objetivos das categorias de manejo.
Os chamados escores são definidos após avaliação dos critérios qualitativos, de atribuição da SEMA-MT, que gradualmente vem estabele-
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cendo metodologias para avaliar e definir os Fatores de Correção das
áreas protegidas do estado. A previsão para efeito financeiro da fase
da avaliação qualitativa foi estabelecida para o ano de 2013 em diante
(SEMA, 2011).
Uma das principais ferramentas, de acordo com a Instrução Normativa nº 001, é o Cadastro Estadual de Unidades de Conservação, com
registro atualizado anualmente, que reúne as informações gerais das
áreas protegidas, permitindo acompanhar as ações nelas desenvolvidas. No portal eletrônico da Secretaria de Estado do Meio Ambiente,
o link para acesso ao Cadastro, até o fechamento desta pesquisa, não
estava disponível.
É importante destacar a necessidade de ampla divulgação e fomento
desse importante canal de comunicação com o público, que pretende
congregar e mobilizar o setor para que os propósitos sejam alcançados
e o processo seja continuamente avaliado e aperfeiçoado. Tal ação poderia ser complementada por atividades de monitoramento presencial
periódico nas unidades e pela realização de eventos, por exemplo.
Outro aspecto que se torna saliente na análise da Instrução Normativa nº 001 é a inserção de Território Quilombola no conjunto de áreas
protegidas. Assim como Terras Indígenas, as áreas das comunidades de
remanescentes quilombolas são dotadas de características peculiares
quanto à cultura dos grupos que as ocupam e a relação destes com o
ambiente onde estão inseridos, requerendo estudos com abordagens
específicas para a determinação e avaliação dos critérios qualitativos,
já que o dispositivo legal trata disso superficialmente. Esse talvez seja
um dos pontos mais desafiadores à gestão pública, pois demanda um
trabalho conjunto intra e intergovernamental, articulando instâncias
municipais e estaduais (secretarias de governo), bem como federais,
com as universidades e os institutos de pesquisa.
No contexto apresentado, Mato Grosso possui atualmente 105 Uni­
dades de Conservação, sendo 38 municipais, 44 estaduais e 23 federais
(SEPLAN-MT, 2010, p. 51-53), além de 74 terras indígenas (SEPLAN-MT, 2010, p. 46-51) e 65 comunidades de remanescentes quilombolas (BRASIL, 2010, p. 23-24). Segundo dados dos relatórios sobre a
aplicação do ICMS Ecológico em Mato Grosso, no período de 2002 a
2009 os 86 municípios beneficiados arrecadaram R$ 324.319.496,00,
conforme Tabela 5.
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Tabela 5
ICMS Ecológico arrecadado pelos municípios mato-grossenses – 2002 a 2009
Município
ICMS Ecológico arrecadado (R$)
01
ÁGUA BOA
250.832,01
02
ALTA FLORESTA
245.547,89
03
ALTO ARAGUAIA
04
ALTO DA BOA VISTA
05
ALTO PARAGUAI
06
ALTO TAQUARI
07
APIACÁS
08
ARIPUANÃ
6.037.923,53
09
BARÃO DE MELGAÇO
1.271.298,97
10
BARRA DO BUGRES
1.065.520,10
11
BARRA DO GARÇAS
6.046.039,69
12
BOM JESUS DO ARAGUAIA
13
BRASNORTE
2.486.244,18
14
CÁCERES
1.250.065,23
15
CAMPINÁPOLIS
8.976.623,90
16
CAMPO NOVO PARECIS
6.684.675,43
17
CAMPO VERDE
18
CANARANA
4.565.378,18
19
CHAPADA DOS GUIMARÃES
3.563.316,71
20
CLÁUDIA
21
COCALINHO
22
COLNIZA
23
COMODORO
24
CONFRESA
25
CONQUISTA D’OESTE
26
COTRIGUAÇU
7.011.302,15
27
CUIABÁ
4.086.100,74
28
DIAMANTINO
29
FELIZ NATAL
10.575.251,28
30
GAÚCHA DO NORTE
11.090.875,08
31
GENERAL CARNEIRO
5.212.240,18
26
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2.127.043,88
12.347.563,44
645.367,84
3.645.837,97
11.673.303,45
208.356,74
173.882,04
864,57
1.795.421,62
2.961.014,10
14.524.510,36
1.063.090,52
11.080.966,24
214.276,17
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(Continuação Tabela 5)
Município
ICMS Ecológico arrecadado (R$)
32
GUARANTÃ DO NORTE
33
GUIRATINGA
34
ITIQUIRA
35
JACIARA
36
JUARA
2.771.029,08
37
JUINA
14.987.012,99
38
LUCAS DO RIO VERDE
39
LUCIARA
1.664.000,22
40
MARCELÂNDIA
2.630.647,30
41
MATUPÁ
3.946.764,63
42
NOBRES
4.052.061,63
43
NORTELÂNDIA
105.002,38
44
NOSSA SENHORA DO LIVRAMENTO
835.776,56
45
NOVA BANDEIRANTES
698.958,69
46
NOVA BRASILÂNDIA
47
NOVA CANAÃ DO NORTE
48
NOVA LACERDA
49
NOVA MARINGÁ
50
NOVA NAZARÉ
12.482.646,24
51
NOVA UBIRATÃ
2.716.807,19
52
NOVA XAVANTINA
53
NOVO MUNDO
54
NOVO SANTO ANTÔNIO
55
NOVO SÃO JOAQUIM
56
PARANATINGA
57
PEDRA PRETA
58
PEIXOTO DE AZEVEDO
59
PLANALTO DA SERRA
60
POCONÉ
61
PONTE BRANCA
62
PONTES E LACERDA
2.473.958,89
63
PORTO ALEGRE DO NORTE
4.510.846,05
64
PORTO ESPERIDIÃO
1.408.590,88
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2.884.937,16
999.198,76
15.470,97
64.659,93
5.964,31
1.454.774,96
6.397,14
3.621.894,25
1.251.750,23
197.702,57
4.604.128,45
11.946.586,89
307.824,75
3.876.073,70
291,16
10.103.380,77
60.976,45
2.595.716,43
659.044,39
27
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(Continuação Tabela 5)
Município
ICMS Ecológico arrecadado (R$)
65
PORTO ESTRELA
4.599.144,10
66
POXORÉO
1.855.635,06
67
QUERÊNCIA
9.373.452,08
68
RIBEIRÃO CASCALHEIRA
3.885.384,82
69
RIBEIRÃOZINHO
70
RONDOLÂNDIA
71
RONDONÓPOLIS
878.721,69
72
ROSÁRIO OESTE
2.186.749,00
73
SANTA CRUZ DO XINGU
6.806.335,90
74
SANTA RITA DO TRIVELATO
75
SANTA TEREZINHA
4.073.787,37
76
SANTO ANTÔNIO DO LESTE
3.430.978,21
77
SANTO ANTÔNIO DO LEVERGER
78
SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA
3.409.857,41
79
SÃO JOSE DO XINGU
4.167.074,55
80
SAPEZAL
8.159.970,47
81
SINOP
82
SORRISO
83
TANGARÁ DA SERRA
84
TESOURO
85
VÁRZEA GRANDE
86
VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE
TOTAL
213.344,27
10.717.022,36
687.329,57
647.301,51
11.096,87
27.326,96
11.781.548,42
2.669.014,25
355.280,38
1.561.528,06
324.319.493,50
Fonte: Relatórios da Coordenadoria de Unidades de Conservação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente
de Mato Grosso.
Os municípios que arrecadaram ICMS Ecológico acima de 40% do
valor total do ICMS compreendem 14, do universo de 86, entre os
quais se destacam Conquista D’Oeste, Novo Santo Antônio, Alto da
Boa Vista e Nova Nazaré, que arrecadaram valores superiores a 60%
do total de ICMS repassado. Tais municípios se sobressaem por contemplar um conjunto de aspectos favoráveis a esse quadro.
A Terra Indígena Marãwatsede, por exemplo, possui tamanho superior a 120 mil hectares e está localizada no município de Alto da
28
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Boa Vista, ocupando quase a metade do território do município, o
qual, em termos proporcionais, arrecadou valores representativos do
ICMS no período. Combinação semelhante pode ser encontrada no
município de Conquista D’Oeste, que possui duas Terras indígenas
(Juininha e Sararé) que abrangem uma porção representativa do território do município, sendo o repasse do ICMS também significativo
proporcionalmente.
Como constatado, esse instrumento pode ser considerado uma importante fonte de recursos aos municípios que abrangem territórios
desfavoráveis às práticas econômicas convencionais no estado (como
a atividade agropecuária), incentivando-os a manter as Unidades de
Conservação já existentes e motivando-os para a criação e manutenção de novas áreas protegidas.
Em síntese, trata-se da análise integrada dos seguintes aspectos: tamanho e categoria de Unidade de Conservação ou Terra Indígena,
tamanho do município e valor total do ICMS repassado. A proporção
pode ser entendida resumidamente da seguinte forma: quanto maior
a Unidade de Conservação ou Terra Indígena em relação ao tamanho
do município onde se encontra, mais restritiva sua categoria; e quanto
maior for a proporcionalidade desses fatores com o valor do ICMS
geral repassado, maior será o ICMS Ecológico arrecadado.
Vale considerar também que tão importante quanto a implantação
formal de normas para manter essa política exequível é o estabelecimento de critérios para o acompanhamento de como o recurso deverá ser aplicado pelos gestores municipais, visto que ainda não há,
na política ambiental mato-grossense, instrumentos que assegurem a
gestão e aplicabilidade desse recurso às demandas específicas do setor
ambiental do município.
Para exemplificar essa circunstância, é interessante citar os dados de
um dos municípios mato-grossenses que estão inseridos na política do
ICMS Ecológico, Barão de Melgaço. Segundo informações de gestores
públicos do setor ambiental desse município pantaneiro, localizado
ao sul do estado, há carência de recursos para o setor. Afirmam que o
ICMS Ecológico é resultado decorrente da existência de Unidades de
Conservação, que necessitam de infraestrutura para que possam ser
mantidas (como recursos materiais e pessoal capacitado); entretanto,
ele não tem sido destinado à causa, sendo provavelmente investido
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em outros setores da administração pública, como infraestrutura urbana e saúde.
Para ilustrar esse quadro – que apresenta o quanto os recursos se
mostram insuficientes e o quanto se necessita de um plano de gestão
eficiente para garantir os objetivos do ICMS Ecológico enquanto incentivo à conservação ambiental – realizou-se uma análise que tem
como referência a despesa anual aproximada para manutenção de
uma Unidade de Conservação, no caso a Reserva Particular do Patrimônio Natural SESC Pantanal, com 106.335,86 hectares, localizada
em Barão de Melgaço, uma das principais Unidades de Conservação
do país quanto à estrutura e gestão para proteção dos ecossistemas
pantaneiros.
A Estância Ecológica SESC Pantanal, uma das unidades do SESC em
Mato Grosso, é a instituição proprietária da Reserva. Segundo dados
dos Balanços Anuais da RPPN, a despesa anual para manutenção da
unidade é de cerca de R$ 2.400.000,00 (ano base: 2009).
Ao comparar esse valor com o ICMS Ecológico arrecadado pelo
município de Barão de Melgaço no período de oito anos (2002 a
2009), que foi de R$ 1.271.289,97, e considerando também os outros
73.739,08 hectares de Unidades de Conservação e Terras Indígenas
do seu território, pode-se observar o quanto o recurso deve ser incrementado para que contribua efetivamente com as iniciativas conservacionistas que constituem a base de sua razão de existência.
Outros dados a serem observados são os valores monetários atribuí–
dos aos serviços ecossistêmicos. No município de Barão de Melgaço
é possível estabelecer uma análise a partir dos pressupostos dos mecanismos de valoração dos serviços que o ecossistema oferece como
recursos utilizados para atendimento das necessidades humanas.
De acordo com a pesquisa divulgada por Seidl e Moraes (2000, p. 3),
o valor anual dos serviços ecossistêmicos estimados para o Pantanal da
Nhecolândia (segunda maior sub-região da planície pantaneira) corresponde a US$ 15,5 bilhões, ou US$ 5 mil por habitante. Nesse cálculo
os autores consideraram as seguintes categorias de serviços ecossistêmicos: suprimento de água, regulação da perturbação, tratamento de
resíduos, valor cultural, regulação da água, ciclagem dos nutrientes,
recreação e habitat. Outras categorias foram consideradas, mas não
representaram um fornecimento significativo quanto aos serviços.
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Esse estudo de caso pode ser comparado ao caso de Barão de Melgaço, a terceira maior sub-região da planície pantaneira. É possível
analisar, por um lado, a estimativa de um valor monetário dos serviços
ecossistêmicos pantaneiros e, por outro, um valor monetário que poderia auxiliar na manutenção desse patrimônio. Entende-se que essa
abordagem da valoração ainda carece de dados para a região referenciada, mas deve ser considerada como um ponto de partida para
novos estudos que venham a indicar caminhos para o fortalecimento
da proteção do Pantanal.
Nessa perspectiva, é importante considerar também a necessidade
de se estabelecerem parcerias entre as organizações públicas e privadas, no caso de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) e
Áreas de Proteção Ambiental, de forma que sua manutenção possa
contar com o incentivo do município. Alguns estados, como Paraná e
Mato Grosso do Sul, mantêm as Associações de Proprietários de Reservas Particulares do Patrimônio Natural, organizações que reúnem
os objetivos de seus associados visando criar mecanismos para auxiliá-los no trabalho de manutenção e manejo das Reservas.
A Repams, como é denominada a Associação de RPPNs do Mato
Grosso do Sul, como exemplo de estrutura desse tipo de organização,
tem como objetivo geral promover a preservação do meio ambiente
em RPPNs, contribuindo para o crescimento em área e qualidade dessa categoria de Unidade de Conservação (REPAMS, 2011).
Entre seus objetivos específicos, a Repams visa promover a troca
de informações entre proprietários de RPPNs, poder público em suas
diferentes instâncias e organizações não governamentais; divulgar as
RPPNs de Mato Grosso do Sul, seus objetivos e atividades; apoiar instituições públicas e privadas na implementação de políticas voltadas
para a conservação de reservas privadas; identificar projetos incentivadores da criação de RPPNs no estado e a manutenção das áreas
já existentes, buscando sua sustentabilidade econômica; estimular e
desenvolver pesquisas que contribuam para a missão da organização;
e produzir materiais didáticos e científicos sobre a temática ambiental.
Segundo a Instrução Normativa nº 01, publicada em 2010 em Mato
Grosso, quanto ao aspecto qualitativo das Unidades de Conservação
Privadas (RPPNs), é fundamental que possibilitem a apropriação social das Reservas, isto é, que implementem ações voltadas à educação
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ambiental, ecoturismo, democratização das informações, regulamentação (associada ao zoneamento), produção de baixo impacto, pesquisas e estudos, além de sua conservação e manejo.
A RPPN SESC Pantanal vem atuando e repercutindo de forma a promover tais frentes de trabalho. O município deveria considerar sua importância (consequentemente para a arrecadação do ICMS Ecológico)
não somente em proporção territorial, mas também como geradora
de benefícios que ultrapassam a dimensão quantitativa em tamanho
de área. Dessa forma, uma articulação entre a iniciativa privada e a
gestão pública municipal poderia fortalecer esta ação e contribuir para
ações semelhantes.
Observa-se o quanto os recursos destinados à conservação ambiental ainda podem avançar e contribuir para a gestão ambiental de
Mato Grosso. Espera-se, portanto, que esta pesquisa possa incitar mais
questões para a evolução da temática, repercutindo positivamente no
processo de tomada de decisões dos gestores públicos que visem ao
reconhecimento do importante papel das áreas protegidas no Pantanal brasileiro.
CONSIDERACÕES FINAIS
A aproximação da economia com as questões ambientais tem proporcionado um novo olhar sobre o desenvolvimento da sociedade, especificamente sobre as formas de gestão e planejamento das políticas
públicas, para compatibilizar as diferentes perspectivas de cada um
desses setores, aparentemente dicotômicos, mas fortemente associados de forma híbrida.
A concepção de um sistema econômico que não encontra limites
tende a se tornar cada vez mais distante das práticas sociais, considerando que padrões sustentáveis são indispensáveis ao desenvolvimento. É essencial que o sistema econômico alivie os impactos que
incidem sobre os recursos naturais, que comprometem sua disponibilidade em quantidade e qualidade nas escalas temporais e espaciais.
As políticas ambientais demandam estratégias eficazes para que os
resultados sejam satisfatórios e permanentemente revistos, avaliados e
incrementados. O ICMS Ecológico tem sido um instrumento promissor
na distribuição de recursos destinados aos municípios, com a imple-
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mentação de medidas compensatórias e incentivadoras à conservação
de áreas protegidas.
Em Mato Grosso, a política do ICMS Ecológico foi implantada há
aproximadamente dez anos. Os avanços para adaptá-la à realidade
mato-grossense têm sido gradualmente alcançados, introduzindo aspectos condizentes com o contexto socioeconômico dos municípios e
das áreas protegidas. Entretanto, há fatores latentes, que merecem um
melhor embasamento, para que essa política seja fortalecida e seus
reflexos sejam consolidados, a exemplo de outros estados, que têm
obtido êxito e destaque nesse âmbito.
O fortalecimento do tema nas agendas públicas e políticas do estado e seus municípios é fundamental para instituir a infraestrutura mínima necessária para a execução da política nesses dois níveis.
Consequentemente, a legislação deverá apresentar detalhamentos,
principalmente quanto aos critérios de análise dos aspectos qualitativos das áreas e suas categorias, as quais exigem abordagens específicas quanto aos aspectos físicos, biológicos, ecológicos, culturais,
antropológicos, entre outros, na tentativa de articulá-las da forma
como se apresentam de fato.
O Cadastro Estadual de Unidades de Conservação tem uma função
essencial nesse contexto, podendo ser mais bem divulgado e implementado junto ao público. A Associação de Proprietários de Reservas
Particulares do Patrimônio Natural também representa um meio potencial
para possibilitar a articulação com a iniciativa privada, que intenta contribuir para a conservação ambiental em Mato Grosso; porém, poderia ser mais bem instituída para promover os princípios em que está
alicerçada por meio de eventos e parcerias com organizações afins,
entre outras estratégias, a exemplo de associações de outros estados.
As Terras Indígenas e territórios de comunidades de remanescentes
quilombolas são tipos de territórios com lógicas distintas quanto ao
modo de vida de seus ocupantes, e constituem uma importante lacuna, para a qual novos estudos devem dedicar atenção, no sentido de
subsidiar políticas públicas para o setor.
Acredita-se que, com a evolução gradual das pesquisas e formulação de políticas públicas, o cálculo do ICMS Ecológico poderá se aproximar de um conjunto significativo de fatores na busca por resultados
mais condizentes com as necessidades regionais e locais.
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Portanto, o ICMS Ecológico tem apresentado viabilidade, e medidas
como a estruturação das bases para sua execução, e para a democratização e compartilhamento do processo, bem como a consideração
dos múltiplos critérios a serem ponderados, poderão agregar ainda
mais eficácia à conservação ambiental, promovendo a incorporação e
o aprimoramento dessa política, para que suas repercussões no estado
sejam amplas e exitosas.
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A HORA DE IR
PARA A ESCOLA
Daniel Santos
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Diversos trabalhos têm mostrado que, no Brasil, indivíduos que frequentaram
a pré-escola quando crianças obtêm melhor desempenho escolar, maiores
salários, dentre outros resultados positivos em suas vidas, ao passo que ter
frequentado creche não produz efeitos significativos. Esse fato é intrigante na
medida em que muitos estudos teóricos e descobertas empíricas recentes em
diversas partes do mundo sugerem que quanto antes se começar a investir no
aprendizado, maior serão os benefícios. Este artigo apresenta um panorama da
produção nacional sobre impactos de educação infantil, sugerindo possíveis
interpretações para o dilema e apontando direções para pesquisas futuras que
permitam entender por que creches não têm impacto.
Palavras-chave: educação infantil, creches, desempenho
Several studies have shown that, in Brazil, individuals who attended the preschool in their childhood achieve a better school performance and higher salaries, among other positive outcomes in their lives, while having attended daycare centers does not produce any significant effect. This fact is intriguing in
the sense that many recent theoretical studies and empirical findings in several
parts of the world suggest that the sooner one starts investing in a child’s learning process, the higher the benefits will be. This article presents an overview
of the Brazilian research on the impacts of the early childhood education, proposing possible interpretations of the dilemma and pointing out directions for
future research that may allow us to understand why day-care centers do not
cause impact.
Keywords: early childhood education, day care, performance
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INTRODUÇÃO1
A atenção à primeira infância vem ocupando espaço crescente nas
agendas de pesquisa e formulação de políticas públicas em todo o
mundo nestes primeiros anos do milênio. Por um lado, há farta evidência de que crianças que nesse período são corretamente estimuladas aproveitam melhor o conteúdo ensinado ao longo do ciclo educacional (CUNHA et al., 2006). Por outro lado, há evidência igualmente
abundante de que déficits cognitivos que eventualmente surjam nessa
fase são dificilmente compensados em idades mais avançadas, por
mais que haja investimento das famílias e do governo. A primeira infância é uma faixa etária crítica em termos de aprendizado, e a insuficiência de estímulos tem como provável consequência futura um
menor acúmulo de capital humano por parte dos trabalhadores do
país, com prejuízo para nossa capacidade de crescimento. Além disso,
a desigualdade de estímulos tende a produzir desigualdade educacional e de rendimentos futuros.
Do ponto de vista dos governantes, tais conclusões sugerem que o
fomento ao desenvolvimento infantil deveria estar entre as prioridades
de política social. A grande dificuldade é que nessa idade as crianças
estão predominantemente sob cuidados dos pais, ficando relativamente pouco expostas aos potenciais benefícios de políticas públicas. Dentre as relativamente poucas alternativas de ações voltadas ao
desenvolvimento infantil, a oferta de educação infantil em creches e
pré-escolas tem sido uma das principais apostas do Estado nas diversas
partes do mundo.
Os dados brasileiros mostram que, de fato, crianças que passaram pela pré-escola apresentam desempenho significativamente
superior em várias dimensões de desenvolvimento e bem-estar se
comparadas às que não tiveram essa experiência, mas existe pouca
evidência de que a frequência escolar em idades menores (creches2)
tenha algum impacto. Exemplos dessa evidência estão em Barros
Agradeço os imprescindíveis comentários de Márcia Gil, Sheila Najberg e de
um parecerista anônimo.
2
A educação infantil no Brasil é dividida em creches (0 a 3 anos de idade) e
pré-escola (4 e 5 anos).
1
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e Mendonça (1999; 2000), que analisam o impacto da educação
infantil sobre salários na idade adulta e escolaridade atingida,
e em Curi e Menezes-Filho (2006), Felício e Vasconcellos (2007),
Calderini e Souza (2009), Felício et al., (2009) e Guimarães, Pinto e
Santos (2010), que investigam o efeito do ensino infantil sobre o
desempenho escolar ao longo do ensino básico. Esses resultados
são ainda mais intrigantes se considerarmos que o consenso multidisciplinar que se forma em torno do tema sugere que quanto mais
cedo se investe no desenvolvimento infantil, mais alto é o retorno
(HECKMAN, 2008). Outro fato carece de investigação aprofundada:
algumas estatísticas descritivas sugerem que, no Brasil, é entre as
famílias mais abastadas que ter ido à creche parece fazer alguma
diferença na vida futura das crianças, ao contrário da evidência internacional de que são as famílias vulneráveis as que mais se beneficiam desse tipo de serviço.
Este artigo tem como objetivo principal interpretar a ausência
de indícios de que, no Brasil, o ensino anterior aos 4 anos de idade tenha impactos positivos sobre resultados futuros, bem como
analisar o efeito significativo verificado com a pré-escola. A partir
dessa interpretação, discute-se que recomendações de política educacional e quais esforços de pesquisa complementares deveriam ser
realizados para evitar que haja defasagem de desenvolvimento na
primeira infância.
1 IDADES CRÍTICAS
A primeira infância é uma das fases da vida em que os indivíduos estão particularmente propensos ao aprendizado. Os estímulos
recebidos nesse período não somente aumentam o conhecimento
durante essa fase como também facilitam a absorção de novos conhecimentos no futuro e sua ausência pode levar a defasagens de
desenvolvimento que exigem maiores investimentos futuros para serem compensadas. Em alguns casos sequer podem ser totalmente
eliminadas.
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Figura 1
Desenvolvimento do cérebro
Fonte: Thompson e Nelson, 2001
A Figura 1, extraída de Thompson e Nelson (2001), resume a evidência neurocientífica sobre as fases de desenvolvimento cerebral e
respectivas susceptibilidades para o aprendizado. Já no sexto mês de
gravidez a quase totalidade dos neurônios que compõem um cérebro
adulto está formada. Então, migram para as regiões do cérebro onde
exercerão funções especializadas, e em seguida formam sinapses uns
com os outros para poder se comunicar e reter informações. Estímulos
externos são fundamentais nessa fase para que o cérebro se organize
de modo eficiente, mantendo apenas as sinapses efetivamente úteis
ao seu funcionamento. Apesar de haver um período relativamente flexível de “plasticidade” nesse processo de organização, crianças com
déficit de estímulos por longos períodos podem ter dificuldades permanentes de cognição.
Dentre os indicadores disponíveis para acompanhar o desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, a linguagem ocupa um papel central nos primeiros anos de vida, quer porque seja uma das primeiras manifestações cognitivas dos indivíduos, quer porque é insumo
necessário para o desenvolvimento de outras formas de raciocínio.
Complementando a evidência neurocientífica, estudos nas áreas de
educação e psicologia confirmam a dificuldade da aprendizagem tardia da linguagem, com possíveis consequências sobre outras formas de
aprendizado. A Figura 2 ilustra esses resultados, mostrando notas médias de adultos que vivem nos Estados Unidos, por idade de chegada
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no país, e sugere que indivíduos que se mudaram depois de adultos
conseguem ter apenas 75% do desempenho linguístico daqueles que
mantiveram contato com a língua desde o nascimento.
Figura 2
Proficiência linguística por idade em que teve contato intenso com a língua
Fonte: Johnson e Newport, 1988.
Se, por um lado, é contundente a evidência de que há formas de
aprendizado enormemente facilitadas nos primeiros anos de vida, não
menos importante é a evidência de que parte da desigualdade cognitiva
observada entre pessoas adultas se forma de fato na primeira infância e
acarreta consequências permanentes em termos de diferenças salariais
e de bem-estar. O gráfico abaixo contém a evolução longitudinal de
notas de linguagem entre crianças equatorianas e traz três informações
importantes: a) filhos de mães mais escolarizadas apresentam melhor
rendimento desde bem cedo (36 meses), mas as diferenças podem ser
consideradas relativamente pequenas; b) as disparidades se mantêm relativamente baixas até os 4 anos de idade, período em que grande parte
das crianças passa a ter contato mais intenso com experiências extra-familiares; c) a partir desse momento, a desigualdade cresce enormemente, sendo aos 5 anos significativamente maior do que a percebida
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aos 36 meses. Interessante notar que, na métrica do teste, a tendência
inicial de queda é revertida em idades diferentes dependendo do nível
educacional da mãe (por muitos considerada medida mais fiel da qualidade do ambiente familiar). Com os filhos das mães menos escolarizadas há modificação da tendência somente aos 5 anos. O aumento de
desigualdade manifestado entre 48 e 66 meses não necessariamente é
consequência apenas de eventos ocorridos nessas idades, tais como a
frequência a escolas diferenciadas. É possível que parte dessa dispersão
resulte do acúmulo de experiências obtidas entre 0 e 4 anos, cujo resultado apenas se manifesta depois dessa idade.
Figura 3
Desenvolvimento cognitivo por nível educacional materno (I)
Desenvolvimento cognitivo de crianças entre 36 e 72 meses de idade no Equador
Fonte: Schady, 2006.
A Figura 4, proveniente de estudo semelhante, porém focada em
uma faixa etária mais avançada, ilustra o fato de que a partir de determinada idade os resultados cognitivos se cristalizam e há pouca
modificação na desigualdade entre crianças que vivem em ambientes
familiares diferentes. Na medida em que a desigualdade cognitiva provoca desigualdade no desempenho educacional dos indivíduos, e esta
seja segundo a maioria dos estudos disponíveis a principal fonte de
desigualdade de rendimentos e bem-estar na idade adulta, verifica-se
que a atenção a políticas de desenvolvimento infantil deveria ser
ingrediente fundamental de qualquer política de combate à desigualdade de oportunidades.
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Figura 4
Desenvolvimento cognitivo por nível educacional materno (II)
Tendência na média de teste cognitivo (PIAT, da família Peabody)
Fonte: Heckman, 2008
Com respeito à formação das características não cognitivas dos
indivíduos, os indícios são menos contundentes a respeito da existência de uma fase crítica nos primeiros anos de vida. De fato, diversos estudos mostram que algumas dessas características sofrem
mudanças importantes mesmo durante a idade adulta (CUNHA et
al., 2006).
2 EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL
A constatação de que parte da desigualdade de capital humano entre os indivíduos pode estar sendo gerada já na primeira infância tem
repercussão especial no Brasil, país em que a desigualdade de renda
e riqueza tem sido historicamente um problema agudo. De fato, o
sistema educacional tem dado cada vez mais destaque ao papel desempenhado pelo ensino infantil, que vem passando por profundas
transformações no período recente.
A educação infantil pública no Brasil é de responsabilidade municipal e é dividida em dois níveis: as creches, cobrindo o período de
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0 a 3 anos3, e a pré-escola, dos 4 aos 6 anos. A iniciativa de integrar os
dois níveis em um mesmo sistema é recente. Se, por um lado, a demanda por pré-escola surgiu no país como consequência de famílias
que desejavam antecipar o início da educação formal de seus filhos,
tendo portanto o conteúdo educacional como seu principal objetivo,
por outro, a origem das creches está muito mais associada à necessidade de oferecer às mães uma alternativa de cuidado aos filhos para
que pudessem participar ativamente da força de trabalho. Por essa
razão, durante a maior parte de nossa história recente, as creches brasileiras estiveram vinculadas às secretarias de assistência social e seus
objetivos e atividades eram direcionados para que as crianças permanecessem em ambiente seguro e saudável, sem ter no conteúdo educacional sua prioridade central. Foi apenas com o advento da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, que o poder público
transferiu às secretarias de educação a responsabilidade pelas creches,
definindo-as como parte integrante da educação infantil e obrigando
os municípios a formular propostas pedagógicas e currículos adequados ao novo perfil que se desejava implementar nesses espaços. Os
municípios tiveram dez anos a partir de 1996 para adaptar suas creches às novas exigências.
Uma segunda transformação importante da legislação que orienta o
funcionamento da educação infantil no Brasil foi a redução da idade
mínima obrigatória de ingresso na escola e a inclusão de frequência
a creches entre os direitos da criança. Fortemente influenciado pela
abundante evidência (nacional e internacional) de que a passagem
pela educação infantil efetivamente proporciona diferenciais permanentes em diversos indicadores de oportunidade e bem-estar, a lei
foi por diversas vezes alterada de modo a redefinir direitos e deveres
de crianças e pais no que diz respeito ao ensino infantil. Já na LDB as
creches passaram a ser consideradas direito das famílias, obrigando os
municípios a oferecer serviços gratuitos que possam contemplar essa
demanda. Em 2006, as classes de alfabetização tornaram-se obrigatórias para todas as crianças, reduzindo a idade mínima de ingresso
No caso das creches públicas, há em geral um limite mínimo de idade (em
torno de 3 meses) para que uma criança possa ser aceita. Grande parte dos
municípios opta por subdividir as creches em berçários e maternais.
3
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na escola de 7 para 6 anos e, no final de 2009, o congresso nacional
aprovou nova mudança, tornando toda a pré-escola obrigatória, com
idade de ingresso aos 4 anos a partir de 2011. Ainda persiste um intenso debate entre educadores, psicólogos e demais profissionais da
área sobre a proposta curricular que deveria vigorar na pré-escola. Um
dos pontos de maior divergência diz respeito à conveniência ou não
de integrar a educação infantil ao ensino fundamental, colocando-se
a alfabetização e a preparação para o início do fundamental como
prioridade da pré-escola.
Finalmente, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), um importante instrumento de política criado pelo governo
federal para apoiar financeiramente o ensino básico em estados e
municípios, foi recentemente adaptado para poder atender também às necessidades da educação infantil, revelando mais uma vez
a prioridade que esse nível de ensino vem ocupando na formulação de políticas educacionais no país. Mais do que simplesmente incluir a educação infantil entre as finalidades para as quais as
transferências do fundo podem ser usadas, a lei abriu uma exceção
que permite que creches privadas (desde que sem fins lucrativos e
de algum modo conveniadas ao sistema público de creches) possam receber recursos.
Em recente estudo, Foguel e Veloso (2010) detalham o perfil do
acesso à educação infantil no Brasil, confirmando que, tal como na
maioria dos países latino-americanos4, a cobertura do ensino infantil tem evoluído em ritmo acelerado ao longo da última década.
Mesmo antes da obrigatoriedade prevista em lei, as taxas de acesso
à pré-escola já haviam subido de pouco mais de 50% em 1996 para
cerca de 80% em 2007, já bem próximo da universalização. Nesse
mesmo estudo, os autores mostram também que o uso de creches
no Brasil ainda é significativamente maior entre famílias mais ricas
e educadas, ao passo que na pré-escola é relativamente menos
desigual.
Ver UNESCO – World Data on Education (2006/2007). (http://www.ibe.
unesco.org/Countries/WDE/2006/index.html ).
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Tabela 1
Proporção de crianças frequentando educação infantil por idade no Brasil
Idade
(anos) 1996
Ano
1997
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2.7
0
1.1
1.1
1.5
1.3
1.1
1.2
1.6
2.3
1.4
2.2
1
3.1
3.2
3.3
3.7
3.7
5.1
5.0
6.2
5.7
7.2
8.0
2
7.6
8.1
8.1
9.3
11.5
11.8
11.2
14.3
14.5
17.7
18.3
3
17.4
19.5
20.2
21.7
24.5
26.3
25.5
29.5
30.6
34.6
38.0
4
33.3
36.5
35.7
39.0
43.9
46.0
47.9
50.5
52.6
58.0
60.3
5
51.7
54.8
55.7
57.0
62.7
64.6
67.1
70.9
71.2
75.0
76.8
Fonte: Foguel e Veloso (2010).
Utilizando uma série de perguntas específicas sobre as razões reportadas pelos pais para não colocar seus filhos nas creches5, Foguel
e Veloso (2010) constroem dois tipos de indicadores dicotômicos de
falta de acesso ao ensino infantil. O primeiro (indicador de frequência),
baseado no fato de as crianças estarem ou não fora da escola, assume
o valor zero se a criança não está matriculada e um em caso contrário.
O segundo (indicador de oportunidade) assume o valor um para falta
de acesso apenas se a criança estiver fora da escola e essa situação for
consequência de falta de recursos ou vagas nas escolas disponíveis. Com
base nesses indicadores, os autores calculam, para cada idade, as taxas
de acesso (ou cobertura) e desigualdade6 de acesso a creches e pré-escolas no Brasil, conforme exposto nos gráficos a seguir. Percebe-se
neles que grande parte da desigualdade total existente nas idades mais
novas (linhas claras do segundo gráfico) não resulta de falta de oferta de
vagas em creches, mas, sim, de outros motivos encontrados pelos pais
para que seus filhos não frequentem a escola (linhas escuras)7.
Suplemento de acesso ao ensino da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2006.
6
O indicador de desigualdade utilizado é o proposto por Barros et al. (2009).
7
O mais intrigante no que diz respeito ao acesso ao ensino infantil no Brasil
é que no momento da matrícula existe excesso de demanda, no entanto, há
elevadas taxas de rotatividade e desistência ao longo do ano (evidência preliminar de pesquisa em andamento conduzida por Ricardo Paes de Barros,
avaliando impacto de acesso a creches no Rio de Janeiro).
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Figura 5
Taxas de acesso à educação infantil no Brasil
Fonte: Foguel e Veloso, 2010.
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3 ESTIMATIVAS DE IMPACTO DE FREQUÊNCIA À EDUCAÇÃO
INFANTIL NO BRASIL E SUAS INTERPRETAÇÕES
Ao mesmo tempo em que está se formando um consenso multidisciplinar sobre a importância de investimentos em capital humano
durante a primeira infância, sabemos ainda muito pouco a respeito da
melhor forma de realizar esse investimento. As divergências se concentram essencialmente em estabelecer quando as crianças devem
começar a frequentar a escola (ou mais genericamente se submeter
a algum tipo de cuidado extradomiciliar), em que intensidade, e em
definir qual o tipo ideal de cuidado que uma criança deveria receber.
Estudos que buscam investigar a efetividade do ensino infantil como
meio para promoção de desenvolvimento nem sempre encontram resultados estatisticamente positivos e significativos. Em primeiro lugar,
escolas infantis não são criadas apenas para educar as crianças, mas
também para permitir que os pais aumentem sua oferta de trabalho.
Parte das estimativas de impacto de instituições que não têm no conteúdo educacional seu foco principal encontram resultado nulo sobre o
aprendizado. Em segundo lugar, a existência de impactos significativos
depende da adequação da instituição de ensino ao seu público-alvo.
Parte das atividades exercidas na escola depende da existência de ambiente familiar estimulante para ser melhor aproveitada, mas no caso
de crianças provenientes de famílias particularmente desestruturadas e
vulneráveis pode ser necessário um esforço adicional da escola para
compensar a ausência de tais estímulos. É possível, portanto, que uma
mesma escola tenha impacto positivo se oferecida a uma criança adequadamente estimulada e impacto nulo se oferecida a uma criança
defasada ou com carência de incentivos complementares em casa.
Apesar de não necessariamente conflitantes, os vários papéis desempenhados por instituições de ensino infantil podem levar a escolhas
delicadas sobre o tipo de ensino que queremos. Por requerer atenção
individualizada, o ensino infantil apresenta um custo por aluno relativamente elevado (se comparado a outros níveis de ensino), custo esse que
aumenta ainda mais no caso de intervenções compensatórias. Como os
benefícios em termos de oferta de trabalho dos pais são percebidos antes dos benefícios associados a um maior acúmulo de capital humano
dos filhos, não raro governantes buscam atender à demanda por escolas
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infantis expandindo serviços com baixo conteúdo educacional. Por outro
lado, se parcela significativa da população beneficiada necessitar de fato
de intervenções do tipo compensatório, é possível que a expansão de
um serviço mediano para esse público não surta o efeito desejado. A
possibilidade de se oferecer serviços diferenciados depende intrinsecamente da definição de critérios objetivos para determinar quais seriam
as crianças que poderiam ou deveriam receber esse investimento mais
elevado por parte do governo. Como os custos de reparar déficits cognitivos (e de desenvolvimento em geral) são tipicamente ainda mais altos
em idades mais avançadas, o problema que se coloca é que não fazer
o investimento nessas crianças implicará em ter que fazer investimentos
ainda maiores (e, portanto, com taxa de retorno menor) no futuro, ou
em conviver com níveis elevados de desigualdade8.
3.1 RESULTADOS OBTIDOS NO BRASIL
O Brasil não é especialmente rico em bases de dados que possuam
detalhes sobre características de intervenções voltadas ao ensino infantil e seus respectivos resultados futuros. A Tabela 1 resume as conclusões dos trabalhos disponíveis na literatura econômica e o Anexo 1
descreve de forma sucinta as bases de dados disponíveis e utilizadas
nesses estudos.
Nos primeiros artigos que investigam o tema, Barros e Mendonça
(1999; 2000) usaram a Pesquisa sobre Padrões de Vida de 1996/97
(PPV-IBGE), que contém perguntas retrospectivas a respeito da fre­
quência escolar de adultos. Nesses artigos, os autores estimaram por
mínimos quadrados o impacto de ter frequentado o ensino infantil sobre indicadores educacionais, nutricionais e de inserção no mercado
de trabalho em uma amostra de adultos das regiões Nordeste e Sudeste. Foi detectado impacto positivo da frequência à pré-escola sobre o
nível educacional atingido e a inserção no mercado de trabalho.
Note-se que as estimativas das taxas de retorno dos melhores programas
compensatórios apontam para valores bastante positivos. Isso significa que
esse tipo de investimento não apenas pode ser justificado do ponto de vista de
justiça social, por reduzir as desigualdades de oportunidade entre indivíduos,
como é também eficiente do ponto de vista alocativo.
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Os demais artigos mencionados na tabela utilizam amostras de estudantes matriculados no ensino básico para verificar se aqueles que
frequentaram a educação infantil obtiveram notas maiores em testes padronizados de matemática e linguagem. Curi e Menezes-Filho9
(2006) utilizam amostra do Sistema de Avaliação da Educação Básica
(Saeb 2003) para estimar por mínimos quadrados o impacto de começar os estudos no maternal e pré-escola sobre notas de matemática de
crianças na 4ª, 8ª e 11ª séries do ensino básico, percebendo efeitos
significativos de frequência à pré-escola sobre as notas de matemática. Felício e Vasconcellos (2007) usam um painel de escolas públicas
presentes no Saeb 2003 e na Prova Brasil 2005 para investigar se nas
escolas em que aumentou a proporção de alunos que iniciaram seus
estudos no maternal ou na pré-escola esses alunos obtiveram incrementos em suas notas médias obtidas nos exames. Os resultados foram
positivos e significativos tanto para a proporção de ingressantes no maternal quanto para ingressantes na pré-escola. Calderini e Souza (2009)
juntam informações do Censo Escolar aos dados da Prova Brasil 2005
para estimar o impacto de ter entrado na escola no maternal ou na
pré-escola sobre notas de matemática, tentando lidar com o problema
de endogeneidade dessas variáveis utilizando variáveis de oferta escolar como instrumento. Pinto, Santos e Guimarães (2010) propõem um
modelo estrutural para lidar com a endogeneidade da decisão familiar
de matricular seus filhos na creche ou na pré-escola utilizando método
de funções de controle com variáveis de oferta escolar e incidência de
doenças contagiosas entre crianças de 0 a 5 anos de idade como restrições de exclusão, e novamente encontram impactos importantes de
frequência à pré-escola sobre notas de alunos do ensino básico, porém
com pouco efeito adicional de ter frequentado creche.
Felício et al. (2009) usam dados da Provinha Brasil aplicada em todas as classes de 2ª série do ensino básico da cidade de Sertãozinho
(SP) para estimar o impacto de frequência e exposição à educação
infantil sobre notas de matemática. O estudo difere dos anteriores em
três dimensões importantes: a) os resultados são medidos com menor
distância do tratamento, refletindo características de um sistema de
Os autores também utilizam a PPV para realizar uma série de exercícios similares aos de Barros e Mendonça (1999; 2000), obtendo conclusões semelhantes.
9
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educação infantil mais recente; b) perguntas de frequência à educação infantil das crianças são feitas aos pais (e não às crianças, como
ocorre no Saeb e na Prova Brasil); e c) há perguntas sobre frequência ao ensino infantil em cada ano de vida (ao contrário do Saeb e
da Prova Brasil, que apenas perguntam se a criança foi inscrita pela
primeira vez na escola no maternal, na pré-escola ou no ensino básico). As principais conclusões sugerem que frequentar o último ano da
pré-escola tem impacto importante sobre o desempenho escolar, mas
permanecer no ensino infantil por mais tempo não acarreta ganhos
adicionais estatisticamente significativos. As estimativas são obtidas
com várias técnicas diferentes (mínimos quadrados, pareamento por
propensity score, entre outras), sendo que todas assumem que não há
seletividade em não observáveis, e produzem resultados semelhantes.
Tabela 2
Estimativas de impacto de ter frequentado ensino infantil
sobre resultados individuais futuros no Brasil
Estudo
Barros e
Mendonça
(1999)
Base de
dados
PPV
Nível
Favoráveis
educacional
Creche
Pr (completar
2o grau antes
de 25 anos)
Pré-escola
Escolaridade final
Pr (completar
8ª série, 2o grau
e 3o grau)
Pr (4ª s. < 14 a.
e 3o g. < 25 a.)
Taxa de repetência
Renda do trabalho
dos homens
Nulos
Escolaridade final
Pr (completar 8ª série,
2o grau e 3o grau)
Pr (4ª s. < 14 a.,
8ª s. < 18 a. e
3o g. < 25 a.)
Taxa de repetência
Participação feminina
na força de trabalho
Taxa de ocupação feminina
Renda do trabalho
dos homens
Pr (completar 8ª série
antes de 18 anos)
Participação feminina
na força de trabalho
Taxa de ocupação feminina
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(Continuação Tabela 2)
Estudo
Barros e
Mendonça
(2000)
(variável
explicativa
principal:
tempo
frequentado
na creche
ou
pré-escola)
Base de
dados
PPV
Nível
Favoráveis
educacional
Creche
Pré-escola
Curi e
SAEB/03
Menezese
Filho (2006) PPV
Creche
Pré-escola
Felício e
SAEB/03 Creche
Vasconcellos e Prova
(2007)
Brasil/05
Pré-escola
54
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Nulos
Escolaridade final
Pr (esc. > 4, esc. > 8
e esc. > 11)
Pr (frequentar 3o grau)
Pr (repetência)
Participação feminina
na força de trabalho
Taxa de ocupação feminina
Renda dos homens
Escolaridade final
Pr (esc. > 4, esc. > 8
e esc. > 11)
Pr (repetência)
Renda dos homens
Frequentar pré-escola: nulo para z-scores alturaidade e peso-idade, positivo para peso-altura.
Frequência da merenda escolar: nulo para
z-scores altura-idade, peso-idade e peso-altura.
Tempo de permanência na pré-escola:
Negativo sobre z-score altura-idade
Nota de matemática Pr (concluir primário,
4ª série
ginásio, colégio, 3o grau)
Escolaridade final
Salário
Pr (concluir
primário, ginásio,
colégio, 3o grau)
Escolaridade final
Salário
Nota de matemática
4ª série, 8ª série
e 11ª série
(log) Nota de
matemática 4ª série
por regiões:
SE>CO>NE>S>N
(log) Nota de
matemática 4ª série
por regiões:
SE>CO>NE>S>N
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(Continuação Tabela 2)
Estudo
Calderini e
Souza
(2009)
Base de Nível
Favoráveis
Nulos
dados
educacional
Prova
Pré-escola
Nota de matemática
4ª série (todos)
Brasil/05
Nota de matemática
4ª série (idade
correta)
Felício
Provinha Ensino
et al (2009) Brasil
infantil
Nota de matemática Nota de matemática
(2ª série)
(2ª série)
(ter frequentado)
(frequentar por
mais de 1 ano)
Pinto,
Santos e
Guimarães
(2010)
Nota de matemática
4ª série
Nota de literatura
4ª série
Nota de matemática
4ª série
Nota de literatura
4ª série
SAEB/05
Creche
Pré-escola
Fonte: Elaboração própria.
A Tabela 2 evidencia o fato de que indivíduos que frequentaram
pré-escola apresentam resultados melhores do que os que não frequentam. Os ganhos se manifestam na forma de maiores salários e escolaridade na vida adulta e notas e desempenho educacional ao longo
do ensino básico. Com respeito às notas, o que pode ser interpretado
como medida de influência da pré-escola sobre o desempenho cognitivo dos indivíduos, os números brasileiros são elevados e bastante
semelhantes aos encontrados em países como Argentina (BERLINSKY
et al., 2009), em torno de 0,25 desvio-padrão, e ligeiramente acima
dos obtidos na maioria dos estudos sobre impactos de programas de
ensino infantil em larga escala nos Estados Unidos, entre 0,1 e 0,2 desvios (BARNETT, 2008). Os resultados obtidos nesses trabalhos tiveram
forte repercussão e influenciaram diretamente a defesa da redução da
idade mínima obrigatória para frequência escolar.
Com respeito à creche, a evidência é bem menos contundente. A
maioria dos estudos não encontra impactos estatisticamente significativos, ou encontra apenas impactos de pequena magnitude. As leituras
que costumam ser feitas desses números procuram ou questionar a
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validade das estimativas ou interpretar o significado das mesmas no
contexto do atual sistema de ensino brasileiro.
Para interpretar essa evidência, também encontrada nos Estados
Unidos, é útil esclarecer alguns tipos de intervenções feitas naquele país.
Os programas americanos de ensino infantil se dividem nas seguintes
categorias: a) pre-kindergarten (3 e 4 anos) e kindergarten (5 e 6 anos),
de larga escala e com foco de aprendizado em geral baseado em escolas formais que, eventualmente, também oferecem ensino básico; b)
daycare centers (0 a 3 anos), de larga escala, são essencialmente programas pagos, com cuidadoras para tomar conta de um grupo de crianças
em locais mantidos por associações de bairro e outras organizações
da sociedade civil; c) Head Start, programa compensatório de larga
escala focado no desenvolvimento infantil (entendido de modo amplo)
de crianças que vivem em famílias vulneráveis; além de atividades na
escola (em geral em tempo integral), prevê visitas de educadores, médicos e nutricionistas às famílias para acompanhamento das crianças e
para orientações aos pais, bem como visitas dos pais e filhos para atividades conjuntas na escola nos finais de semana; d) intervenções-modelo, experimentais e de pequena escala, em geral de caráter compensatório e focadas em crianças vulneráveis, e que na maioria das vezes
preveem intervenções simultâneas sobre o aprendizado das crianças e
envolvimento familiar. Grosso modo, os daycare centers se assemelham
ao antigo modelo de creches vinculadas à assistência social, ao passo
que o pre-kindergarten pode inspirar o tipo de creche que está sendo
gestado atualmente nas secretarias de educação brasileiras.
3.2 VALIDADE DAS ESTIMATIVAS
Estimativas de impacto de uma intervenção sobre uma variável de
resultado (digamos, Y), em geral, comparam as distribuições de Y em
um grupo de indivíduos que recebeu a intervenção e outro que não
a recebeu (cujo papel na estimativa é simular o que teria ocorrido ao
grupo tratado no cenário contrafactual em que não recebesse a intervenção). A qualidade da estimativa depende crucialmente de quão
convincente é a suposição de que a única diferença relevante entre
esses grupos foi o fato de um deles ter sido tratado. Assim, as críticas
às estimativas existentes se concentram em: a) colocar em dúvida a
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suposição acima e b) colocar em dúvida que as variáveis envolvidas
no exercício de estimação sejam corretamente medidas. Em ambos os
casos, podemos dizer que é a validade interna das estimativas que está
sendo questionada.
Adicionalmente, se uma estimativa é feita em uma amostra muito
particular, e suspeitamos que, portanto, suas conclusões não sejam válidas em outros contextos, ou se desconfiamos que resultados obtidos
em determinado ponto do tempo podem não ser boas aproximações
do impacto de um programa em outros períodos, dizemos que a validade externa das estimativas é frágil.
3.2.1 VALIDADE INTERNA
DELIMITAÇÃO DOS GRUPOS DE TRATAMENTO E CONTROLE
Idealmente, para estimar o impacto de um tratamento T sobre Y,
gostaríamos de poder comparar dois grupos em que a única diferença
entre ambos (em termos da composição de possíveis características
determinantes de Y) fosse o fato de que um deles recebeu o tratamento e o outro não. Na medida em que o grupo de tratados e não tratados difere em outras dimensões além do recebimento do tratamento,
surge sempre uma suspeita de que eventuais diferenças na distribuição de Y entre os grupos sejam causadas por diferenças nessas outras
variáveis, e não propriamente pelo tratamento.
No caso do tratamento em que estamos interessados (frequência
ao ensino infantil) há três conjuntos de características que costumam
afetar diretamente variáveis de resultado futuro (tais como salários,
notas ao longo do ensino básico, ou escolaridade final atingida) e que
podem diferir sistematicamente entre os grupos de pessoas que frequentaram e que não frequentaram creches e pré-escolas.
O primeiro conjunto são as características individuais das crianças.
Atributos como motivação, inteligência e extroversão frequentemente
não são observados e podem afetar o processo de desenvolvimento de modo a influenciar resultados futuros. Se as famílias levam em
conta nuances da personalidade dos filhos no instante de decidir se os
matriculam ou não no ensino infantil, a interpretação de causalidade
atribuída ao tratamento em exercícios econométricos pode ficar prejudicada. Um exemplo de situação em que egressos do ensino infantil
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são não observacionalmente distintos dos não egressos é aquela em
que os pais, acreditando ser a creche boa para seus filhos, mas sem ter
condições de matriculá-los todos, escolhe os mais atrasados em termos
de desenvolvimento como forma de reduzir as diferenças entre irmãos
(comportamento compensatório). De modo inverso, também é possível que sejam os mais desenvolvidos os escolhidos, sob o argumento
de que podem aproveitar melhor os estímulos oferecidos pelas instituições educacionais (comportamento complementar). Bernal (2001)
conclui, por meio de estimativa estrutural das decisões simultâneas
das mães de trabalhar e utilizar diferentes formas de deixar seus filhos
sob cuidados de terceiros (seja em daycare centers, pre-kindergartens
ou com adultos), que: a) crianças que ficam a maior parte do tempo
nas creches têm desenvolvimento inferior aos criados pelas mães; b)
crianças com melhores índices de desenvolvimento são as que mais
sofrem com a falta de contato com as mães e as que mais perdem com
o fato de serem inscritas em creches.
O segundo conjunto de variáveis refere-se a características do ambiente familiar em que a criança é criada. É razoável supor que um
mesmo tratamento, no caso a frequência a alguma instituição de ensino infantil, tenha efeitos diferentes sobre indivíduos vindos de famílias
diferentes. Para uma criança que vive em domicílio desestruturado,
onde os adultos presentes não oferecem estímulos mínimos para que
se desenvolva, passar boa parte de seu tempo na escola (em detrimento de passá-lo com a família) produz possivelmente um efeito maior
sobre o desenvolvimento infantil do que em uma criança criada em
família estruturada, para a qual cada hora despendida na escola pode
significar uma hora a menos de convívio com os pais e familiares. Por
outro lado, é possível também que uma mesma hora gasta na escola
seja aproveitada de modo mais intenso por crianças que vivem em
famílias mais estruturadas (se os estímulos recebidos na escola e no lar
forem complementares). Em ambos os casos, crianças que vivem em
famílias diferentes poderiam ser beneficiadas de modo distinto por
um mesmo tratamento. Por esses motivos, a simples comparação de
resultados futuros de crianças que frequentaram e crianças que não
frequentaram ensino infantil pode não resultar em boa estimativa do
impacto causal desse tipo de intervenção, ou do provável resultado
que teriam os não tratados caso tivessem frequentado o ensino infantil.
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Diferenças sistemáticas entre as famílias também surgem por outros
canais. É sabido, por exemplo, que pais mais escolarizados valorizam
mais a educação e, portanto, tendem a ser mais propensos a colocar
seus filhos na escola desde cedo. Por outro lado, e na medida em
que uma das principais razões para que uma família decida matricular
seus filhos no ensino infantil seja liberar o tempo dos pais para poder
trabalhar, é possível que sejam os pais com maiores oportunidades
profissionais os que prefiram colocar seus filhos na escola. Se a qualificação profissional for correlacionada com outros talentos para criar os
filhos, surge outro espaço para a existência de seletividade na decisão
de matrícula no ensino infantil.
O Gráfico 1, construído com base nos dados do Saeb 2005, ilustra
o fato de que no Brasil famílias mais estruturadas colocam seus filhos
no ensino infantil com maior probabilidade. Pelo gráfico, construído
a partir de uma amostra de alunos do ensino básico, as mães mais
educadas, que frequentam reuniões de pais na escola e que apresentam atitudes positivas quanto ao empenho dos filhos nos estudos, são
também as que com maior probabilidade matricularam seus filhos em
escolas infantis no passado.
Gráfico 1
Proporção de filhos matriculados no ensino infantil,
por características de ambiente familiar
Fonte: Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2005.
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O terceiro grupo de determinantes de resultados futuros provém de
características de experiências extrafamiliares, em especial relacionadas
às escolas frequentadas entre o momento em que foram matriculados
no ensino infantil e o momento em que os resultados futuros foram medidos. Famílias que valorizam mais a educação, por exemplo, tendem
ao mesmo tempo a inscrever os filhos mais cedo na escola e a optar por
escolas de melhor qualidade, tanto no ensino infantil quanto posteriormente. Se parte dessa qualidade não for observável nos dados, há de
novo espaço para a superestimação do impacto de ensino infantil sobre
outras variáveis que reflitam o desenvolvimento individual. Por outro
lado, pais mais educados sabem que não faltarão estímulos aos filhos em
casa e podem valorizar mais aspectos socioafetivos na escola, ao passo
que pais menos educados podem valorizar um tipo de escola mais intensiva em estímulos cognitivos que eles mesmos não podem proporcionar
aos filhos. Essa é precisamente a conclusão do trabalho de Jacob e Lefgren
(2005). Sendo esse o caso, é possível que seja justamente entre as famí­
lias menos favorecidas que ocorra um maior impacto do tratamento.
A possibilidade de diferenças não observacionais sistemáticas entre
tratados e não tratados compromete estimativas de impacto baseadas
em simples comparação de resultados futuros desses dois grupos e
requer cuidados estatísticos especiais para lidar com potencial viés de
seleção e endogeneidade da decisão de inscrever os filhos no ensino
infantil. Os trabalhos apresentados na Tabela 2 diferem significativamente com respeito às técnicas de estimação e bases de dados utilizadas e nas formas de lidar com problemas de endogeneidade. O
fato de chegarem a conclusões semelhantes faz acreditar que ainda
que essa heterogeneidade possa causar alguma distorção nas estimativas esse viés não deve ser de grande magnitude. Em primeiro lugar,
grande parte das possíveis diferenças entre tratados e não tratados
tem origem em disparidades existentes no ambiente familiar, para o
qual em geral conseguimos observar uma gama relativamente ampla
de características que podemos usar para isolar o efeito do ensino
infantil. Em segundo lugar, pesquisa qualitativa recente10 parece indicar que o principal motivo para matricular crianças em creches é
Entrevistas realizadas com pais para um projeto de avaliação de impactos
de creches no município do Rio de Janeiro em andamento.
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viabilizar a oferta de trabalho dos pais, tendo pouca relação com talentos da criança ou com preferências dos pais por educação. Mesmo
no que diz respeito à qualidade do ensino, a mesma pesquisa revela
que o principal critério para a escolha da instituição educacional é a
proximidade de casa e não a qualidade do ensino. Com respeito à
pré-escola, os resultados obtidos nos trabalhos citados na Tabela 2 são
bastante próximos dos obtidos internacionalmente (BERLINSKI et al.,
2009; BARNETT, 2008), reforçando a impressão de que sejam bastante
próximos do verdadeiro impacto médio na população.
PROBLEMAS DE MENSURAÇÃO
A segunda dificuldade é a medição dos resultados e das características
individuais usadas para tornar comparáveis os grupos de tratamento e
controle. No que diz respeito à validade interna dos resultados obtidos
para o Brasil, o problema de mensuração surge tanto quando se coloca
em xeque a capacidade de um aluno de 4ª série responder fielmente se
frequentou ensino infantil ou não ou ao se estimar o impacto de ter frequentado creche e pré-escola a partir de dados do Saeb quanto quando
se questiona a qualidade de informações reportadas por adultos sobre
se frequentaram ensino infantil, evento que no caso dos dados da Pesquisa sobre Padrões de Vida pode ter ocorrido há décadas.
Erros de medida em variáveis explicativas costumam provocar um
viés de impactos medidos a partir de algumas estratégias empíricas
bastante populares em direção a zero em magnitude, que é justamente o que obtemos no caso dos impactos associados a creches.
No entanto, como mencionado anteriormente, resultados obtidos por
diferentes estratégias e a partir de diferentes bases de dados apontam
para uma conclusão comum de que os impactos de creches são em
geral de pequena magnitude e, frequentemente, estatisticamente insignificantes. Em particular, o desenho amostral do estudo de Felício
et al. (2009) busca especificamente lidar com o problema, perguntando aos pais de alunos do 3º ano do ensino fundamental a respeito
da frequência dos mesmos ao ensino infantil. Os autores conseguem
contornar o problema de respostas provenientes de crianças que poderiam estar insuficientemente informadas e a eventualidade de tais
respostas estarem relacionadas a eventos já distantes no passado. Mesmo esse estudo obtém impactos insignificantes de ensino infantil em
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idades muito pequenas. Não parece, portanto, que a justificativa para
a ausência de impactos de creches sobre resultados individuais futuros
esteja em deficiências de mensuração.
3.2.2 VALIDADE EXTERNA
A validade das conclusões de um exercício estatístico em contextos
diferentes do caracterizado pela amostra em que é realizado depende
essencialmente de quão parecidos são esses contextos. No caso das
estimativas de impacto do ensino infantil sobre resultados futuros dos
indivíduos, há quatro aspectos que com frequência são questionados.
COBERTURA GEOGRÁFICA
Em primeiro lugar, há exercícios como o de Felício et al. (2009), que
utiliza uma amostra de crianças que frequentam a segunda série do ensino fundamental na cidade de Sertãozinho (SP), cujas conclusões não
necessariamente valem para a totalidade do território brasileiro se, por
exemplo, o tipo de ensino oferecido nessa cidade destoar bastante do
existente em outras partes. Como os próprios autores argumentam,
Sertãozinho foi escolhido precisamente por contar com um sistema
educacional desenvolvido para padrões brasileiros e devido também à
receptividade da secretaria de educação municipal em permitir e colaborar para que o estudo fosse feito. O fato de que as conclusões desse trabalho coincidem tanto qualitativamente quanto quantitativamente11 com
as obtidas em pesquisas que partem de dados com representatividade
nacional (GUIMARÃES, PINTO e SANTOS, 2010) sugere que sua validade possivelmente pode ser generalizada para contextos mais amplos.
Os autores encontram um impacto de ter frequentado ensino infantil sobre
as notas de matemática de cerca de 0,25 desvio-padrão, bastante semelhante
ao desvio de 0,27 obtido no Brasil por Guimarães, Pinto e Santos (2010).
Adicionalmente, não constatam nenhuma evidência de que alunos que passaram mais de um ano no ensino infantil obtiveram ganhos superiores aos que
frequentaram apenas um ano. Como a maioria dos indivíduos matriculados
no ensino infantil em determinado ano permanece matriculada nos anos
seguintes, é plausível interpretar esse resultado como evidência de que é a frequência ao último ano da pré-escola (5 anos de idade) que de fato influencia
o desempenho no exame de matemática aplicado.
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CRECHES DO PASSADO
Uma segunda crítica à validade externa da maioria dos trabalhos
sobre o tema é a de que os impactos medidos podem estar relacionados a características do sistema educacional do passado, pouco
informativas sobre o presente. Como foi dito anteriormente, o sistema
educacional brasileiro passou por intensa transformação nos últimos
anos, sendo as mudanças mais significativas a reorientação da finalidade do ensino oferecido nas creches (reforma curricular e passagem
da administração do sistema para as secretarias de educação e não
mais de assistência social), o aumento da disponibilidade de recursos
por meio da inclusão do ensino infantil entre os possíveis beneficiários de transferências do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(Fundeb) e a expansão da rede, com elevação dos requerimentos de
qualificação dos educadores e a redução da idade mínima obrigatória
de entrada das crianças no sistema educacional. É possível, portanto,
que os impactos estimados nos estudos citados estejam associados ao
efeito que um sistema anterior ao vigente tinha sobre o desenvolvimento cognitivo, que não necessariamente é igual ao impacto que
tem o atual sistema. Ao contrário das críticas anteriores, essa parece
de fato pertinente e estudos adicionais são necessários para saber a
extensão de sua relevância. Entre as bases de dados utilizadas nos
estudos citados neste artigo, o que remete a um tipo de ensino mais
recente é o feito com estudantes da 2ª série de Sertãozinho (FELÍCIO
et al., 2009), pois crianças matriculadas nessa série em 2008 deveriam
ter eventualmente frequentado creches, entre 2000 e 2004 (quando
tinham entre 0 e 3 anos) e pré-escola, entre 2005 e 2006. Se considerarmos que 2006 foi justamente o final do prazo para que as creches
passassem aos cuidados das secretarias de educação12, e que foi a
partir de 2007 que a idade de ingresso na escola foi pela primeira vez
reduzida, é plausível que o ensino recebido pelas crianças de hoje seja
bem diferente (eventualmente com impacto positivo sobre aprendizado) do recebido pela coorte que em 2008 estava na 2ª série.
Grande parte dos municípios, como, por exemplo, o Rio de Janeiro, esperou até o limite do prazo para fazer a transição.
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HETEROGENEIDADE DE IMPACTOS
A terceira (e possivelmente mais contundente) crítica referente à validade externa das estimativas é a de que pode haver heterogeneidade
dos impactos tanto devido à idade em que os efeitos estão sendo medidos (um mesmo tratamento pode ter grande efeito sobre um teste
aplicado em determinada idade, mas efeito menor sobre um teste
aplicado em idade posterior) quanto devido ao tipo de tratamento
recebido (duas crianças que disseram ter feito creche em determinada
idade podem efetivamente ter recebido tratamentos bem diferentes
e, consequentemente, com efeitos diferentes sobre um teste futuro
aplicado numa dada idade). Um impacto médio nulo pode ser obtido
tanto por um tratamento que não afeta nenhum dos tratados quanto
por tratamentos que afetem positivamente alguns agentes e negativamente outros.
Tomando o caso americano13, por contar ao mesmo tempo com
diversas bases, com dados longitudinais e bastante completas com respeito a informações sobre características dos tratamentos (em alguns
casos envolvendo aleatorizações dos grupos de controle e tratamento),
as estimativas para impactos cognitivos da grande maioria das intervenções de desenvolvimento infantil mostram que ou o impacto é
nulo, de magnitude ínfima (como no caso de daycare centers) ou o
impacto é positivo e significativo em curto prazo e desaparece com o
passar do tempo (ou seja, crianças que fazem provas logo depois de
terem passado por intervenções obtêm desempenho superior às que
não frequentaram o ensino infantil, mas tal diferença é nula quando
ambos os grupos fazem exames já em idades mais avançadas e distantes do instante da intervenção).
Magnusson et al. (2007) estimam que a frequência ao pre-kindergarten aos 4 anos tem impacto positivo nas notas obtidas no ano seguinte (kindergarten), mas já não encontram qualquer impacto nas
notas da classe de alfabetização. Garces e Currie (2002) verificam que,
entre egressos do Head Start, brancos e negros experimentam benefícios positivos (e de magnitude semelhante) nos primeiros anos do
No Brasil, não há bases de dados que acompanhem crianças longitudinalmente, desde o momento em que poderiam ter frequentado o ensino infantil
até idades em que pudessem estar matriculadas no ensino básico.
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ensino elementar, mas apenas entre os brancos esse efeito é ainda
estatisticamente positivo ao final do segundo grau (e mesmo assim
com magnitude bem inferior à obtida no início do ciclo educacional).
Heckman (2008), conforme Figura 6, mostra que entre crianças vulneráveis sorteadas para frequentar o programa High Scope/Perry School
se observam significativos ganhos cognitivos nos primeiros anos após a
intervenção, mas aos 8 anos a magnitude desse impacto já é bastante
pequena e desaparece após os 10 anos.
Figura 6
Impacto cognitivo do programa High Scope/Perry School
Fonte: Heckman (2008).
Se, por um lado, grande parte dos programas de ensino infantil tem
impacto relativamente pequeno em longo prazo, por outro, há grande
interesse em se saber a razão pela qual alguns programas revelam ter
impactos persistentes e outros não. Tanto no caso dos brancos que
frequentam o Head Start quanto no caso do programa Abecedarian
(implementado na Carolina do Norte, conforme mostra a Figura 7),
de características semelhantes ao Perry School, os impactos são ainda
encontrados em idades tardias, contrariamente ao caso dos negros do
Head Start ou dos egressos do próprio Perry.
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Figura 7
Impacto cognitivo do programa Carolina Abecedarian
Fonte: Campbell et al., 2001.
Parte da resposta parece estar intimamente relacionada à duração
da exposição de crianças vulneráveis a programas de alta qualidade.
No caso do Abecedarian, o acompanhamento das crianças tratadas
perdura até o final do primeiro ciclo do ensino básico, diferentemente
do Perry, que teve dois anos de duração (começando entre 3 e 4 anos
de idade). Pelo primeiro gráfico dos três expostos acima contendo medidas cognitivas do Abecedarian ao longo do ciclo de vida, vemos
que de fato o efeito de curto prazo é significativamente maior que o
percebido em longo prazo, mas, por outro lado, a magnitude do efeito
estabiliza após os 6 anos e perdura até a idade adulta. De modo semelhante, Garces e Currie (2002) constatam que as escolas elementares
que os brancos egressos do Head Start frequentaram após sair do pro-
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grama eram sensivelmente melhores do que as escolas frequentadas
pelos negros, e que tal diferença pode explicar por que o impacto do
programa entre os brancos persistiu até a idade adulta ao passo que
entre os negros o mesmo não ocorreu.
No que se refere às creches brasileiras, as conclusões dos estudos citados sugerem duas possibilidades para interpretar a ausência de impactos nas estimativas e que deveriam ser objeto de investigação futura. Em
primeiro lugar, é possível que o impacto seja positivo mas efêmero, de
modo que mesmo o estudo com menor distância entre o tratamento e a
medição, que coleta informações na 2ª série do ensino fundamental de
Sertãozinho (cerca de 4 anos após o tratamento), possa já não capturar
a existência de efeitos estatisticamente significativos do programa.
Em segundo lugar, as bases de dados brasileiras carecem de detalhes
sobre as características das intervenções recebidas. De acordo com os
resultados obtidos nos Estados Unidos, programas com maior conteúdo
educacional tendem a ter impactos positivos ao passo que programas
em que as crianças apenas são cuidadas apresentam impactos nulos
ou negativos (como em Bernal, 2008). Além disso, as magnitudes dos
efeitos computados parecem depender da assiduidade das crianças durante o período do programa e da exposição (tempo integral ou parcial),
informações essas inexistentes em nossos dados. É possível, portanto,
que o impacto nulo reportado nos estudos seja uma espécie de média
ponderada de efeitos positivos de intervenções recebidas por algumas
crianças e efeitos negativos de intervenções recebidas por outras. Nunca
é demais lembrar que no Brasil o sistema de creches foi originalmente concebido para permitir que as mães pudessem trabalhar, sem que
houvesse o explícito compromisso educacional trazido com a nova LDB
de 1996. É razoável supor, portanto, que grande parte das creches brasileiras se assemelhe ao modelo dos daycare centers americanos, que
em geral se mostra pouco efetivo para promover o desenvolvimento
infantil, e que as transformações rumo a um direcionamento voltado
ao ensino ainda não teriam se completado, fazendo com que o antigo
modelo ainda perdure em parte importante das creches.
Com a informação existente, é possível conjecturar algumas hipóteses, que deveriam ser objeto de investigação futura. O Gráfico 2
mostra a diferença entre a nota de matemática do Saeb 2005 entre
crianças que frequentaram e que não frequentaram creche, segundo
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o nível educacional da mãe (tido aqui como proxy para a qualidade
do ambiente familiar). Interessante notar que nas famílias com mães
pouco educadas, crianças que fizeram creche obtiveram performance
pior do que as que não fizeram, ao passo que o oposto ocorre entre as
mães mais educadas. Há duas formas de analisar esse fato: a) estímulos recebidos na creche são complementares aos recebidos em casa,
de modo que um mesmo estímulo teria impacto relativamente maior
entre crianças que crescem em ambientes melhores, ou b) os estímulos recebidos na creche são efetivamente diferentes (e melhores para
filhos de mães mais educadas). Se considerarmos que grande parte da
evidência internacional mostra que são justamente as crianças de famílias mais vulneráveis as que mais se beneficiam do ensino infantil14,
é improvável que a explicação para o fato apresentado neste gráfico
seja a primeira, sugerindo que heterogeneidade de tratamentos pode
ser um elemento importante omitido das análises disponíveis.
Gráfico 2
Diferencial de notas de matemática entre crianças que fizeram e
não fizeram creche, segundo o nível educacional da mãe
Fonte: Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), 2005.
Ver artigos de Lee et al. (1990), Magnusson et al. (2007) e os trabalhos de
Janet Currie e coautores (1995; 1999; 2000; 2002), além do capítulo em
coautoria com Garces no Handbook of Economics of Education v. 2.
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Os dados do Saeb e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) trazem informações adicionais que podem confirmar
que, no Brasil, as creches que os filhos das famílias abastadas frequentam podem ter impacto bastante distinto das disponíveis às
famílias vulneráveis. Voltando à Tabela 1, percebe-se que há grande
desigualdade na proporção de crianças de 0 a 3 anos matriculadas
em creches, refletindo o fato de que os ricos têm maior probabilidade de ter seus filhos matriculados do que os pobres15. A desigualdade cai drasticamente quando o indicador de acesso a creches
considera sem acesso somente casos em que os pais gostariam de
inscrever seus filhos, mas não o fizeram por falta de recursos ou
de oferta de creches. Consequentemente, pode-se deduzir que a
maior parte da desigualdade de matrícula resulta do fato de que
famílias pobres voluntariamente decidem não matricular seus filhos
em creches, mesmo quando essa decisão não envolve gastos diretos. Se o custo deixa de ser empecilho para diferentes famílias, podemos inferir que diferenças sistemáticas nas decisões de matrícula
devem estar associadas a diferenças nos benefícios, ou seja, no fato
de que as creches a que as famílias pobres têm acesso são relativamente piores do que as das famílias ricas.
A Figura 8, extraída do mesmo estudo, acrescenta dados a essa suspeita ao verificar que justamente entre as famílias mais pobres aumenta a proporção de crianças não matriculadas em creches, sendo razão
para a não inscrição a decisão voluntaria dos pais16.
Em gráficos complementares, os autores verificam que a proporção de
crianças matriculadas nessa faixa etária cresce com a renda familiar per
capita.
16
Essa explicação é ainda coerente com resultados obtidos por Jacob e
Lefgren (2005). Investigando a importância que dois tipos de informação
transmitidos pelos diretores aos pais na hora de tomarem a decisão de em
que escola infantil matricular seus filhos, os autores concluem que as famílias mais pobres são as que dão mais peso à resposta “os professores são
comprometidos com a melhora de resultados cognitivos dos alunos”, ao
passo que as mais ricas valorizam mais o fato de os alunos estarem satisfeitos com a escola.
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Figura 8
Proporção de pais que voluntariamente não colocam os filhos na creche
Proporção de crianças
Distribuição de crianças que poderiam ter frequentado creche mas os pais preferiram não
fazê-lo, segundo o centésimo de renda per capita – Crianças entre 0 e 3 anos de idade – 2006
se igualmente distribuído
Centésimos de renda per capita
Fonte: Foguel e Veloso, 2010.
IMPACTOS COGNITIVOS E NÃO COGNITIVOS
Finalmente, um quarto aspecto referente à validade externa das estimativas está relacionado a outras dimensões de impacto que possam
decorrer da frequência ao ensino infantil não capturadas pelas medidas correntemente utilizadas (tais como notas de linguagem e matemática, salários e escolaridade atingida, entre outras). O fato de que
creches não tenham impacto sobre medidas cognitivas não implica
que não possam afetar de modo importante dimensões não cognitivas
do desenvolvimento humano.
Aqui novamente a literatura internacional mostra que pode haver
diferenças importantes de impacto entre programas com diferentes
finalidades. Magnusson et al. (2007), por exemplo, estimam que crianças matriculadas na escola antes do kindergarten (classe de alfabetização, 5 e 6 anos) sofreram piora em indicadores de agressividade e
autocontrole durante o kindergarten, especialmente quando provenientes de famílias desestruturadas e em situação de vulnerabilidade.
Os autores também observam que esses efeitos adversos não se manifestam entre crianças que não precisaram mudar de escola quando
entraram no kindergarten, sugerindo que o canal de causalidade pode
estar na necessidade de mudança de escola e não nas atividades reali-
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zadas nas creches e pre-kindergartens per si. De todo modo, se as características do sistema educacional forçarem a mudança de ambiente
na passagem da creche para a pré-escola, este deve ser um revés a
mais a ser computado. No estudo, os impactos de creches (daycare centers e pre-kindergarten centers) não desaparecem ao longo dos
dois primeiros anos do ensino fundamental, ao contrário dos impactos
sobre notas de matemática e linguagem. Duncan et al. (2004), contudo, ressaltam que tais impactos não cognitivos adversos não afetam o
desempenho escolar das crianças ao longo do ensino básico.
Outros estudos que utilizam intervenções aleatorizadas e acompanham os indivíduos até a vida adulta17 mostram conclusões bastante
distintas a respeito de efeitos não cognitivos de programas de ensino
infantil (tais como o High Scope/Perry Program, Carolina Abecedarian e Chicago CPC). Nesses estudos, é documentado que as crianças
beneficiárias apresentaram indicadores de criminalidade substancialmente menores que os não beneficiários, bem como casamentos mais
estáveis e menor probabilidade de gravidez precoce. Essas medidas
diferem das anteriores porque: a) nesses programas (de elevado conteúdo educacional e atenção individualizada às crianças) não houve
mudança de escola; b) a estratégia de identificação do efeito envolve
um experimento aleatório; c) as medidas de impacto não cognitivo
foram realizadas já na idade adulta. A mensagem principal é a de que
o ensino infantil pode ter efeitos importantes e duradouros sobre dimensões não cognitivas do desenvolvimento, que podem inclusive superar os impactos cognitivos em termos de suas consequências sobre
bem-estar futuro (CUNHA et al., 2006). Avaliações de custo-benefício
de programas de ensino infantil estão, portanto, incompletas se não
considerarem eventuais benefícios e danos causados pelos mesmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES POLÍTICAS
O QUE TEMOS
Há, grosso modo, três maneiras de interpretar a inexistência de indícios de que creches tenham impactos sobre resultados futuros dos indi Heckman (2008), Doyle et al. (2007) e Barnett (2008) resumem evidências
sobre essas intervenções.
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víduos. A primeira é o questionamento da qualidade e correção dessas
estimativas, quer por deficiências metodológicas, quer por dificuldades
de mensuração. Os contrapontos a essa interpretação são os de que: a)
os estudos têm sido realizados com diferentes metodologias e bases de
dados, e chegam às mesmas conclusões. Há bases de dados que buscam
especialmente corrigir problemas de mensuração (FELÍCIO et al., 2009),
bem como há iniciativas de incrementar os estudos com informações
adicionais que possam simular condições experimentais por meio de
métodos de variáveis instrumentais e os resultados parecem bastante robustos; b) as estimativas para a pré-escola estão também em acordo com
as obtidas em outros países (EUA, Argentina), ao passo que o impacto das
creches não destoa do resto do mundo pela simples razão de que nessa
idade a evidência é pouco conclusiva sobre os benefícios do ensino infantil. De todo modo, é difícil crer que os impactos da pré-escola possam
estar corretos e os de creches não quando as estratégias empíricas usadas
para estimá-los costumam ser a mesma em cada estudo.
A segunda interpretação é a de que o impacto é de fato nulo, o
que significa que os maiores beneficiados pelo serviço oferecido pelas creches são os pais, que com isso podem aumentar sua oferta de
trabalho. Considerando que crianças em creches públicas custam não
menos que R$300 mensais ao erário, é plausível supor que o custo-benefício desse tipo de intervenção seja negativo, pois dificilmente o
incremento na oferta de trabalho dos pais levaria a um aumento de
renda familiar dessa magnitude. Nesse caso, uma política que simplesmente pagasse R$300 para que um dos pais ficasse em casa tomando
conta do filho provavelmente tornaria a vida de todos melhor.
A dificuldade com esse tipo de argumento é que, para ser válido,
seria necessário que fossem calculados todos os possíveis impactos da
creche sobre resultados futuros e não apenas impactos sobre uma dimensão específica, como o aprendizado de matemática ou de linguagem. Frequentar creche ou pré-escola afeta potencialmente múltiplas
dimensões da formação do capital humano e, muitas vezes, conseguimos estimar seu impacto apenas sobre um conjunto restrito de indicadores. Em particular, medidas de resultados cognitivos dos indivíduos
são relativamente mais frequentes nas bases de dados disponíveis que
indicadores não cognitivos, ao passo que quando é possível medir
o impacto desse tipo de intervenção sobre estes últimos, frequente-
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mente obtém-se resultados mais importantes que sobre os primeiros.
Uma análise que desconsidere dimensões importantes de impacto tais
como empregabilidade e salários, escolaridade atingida, criminalidade, propensão à gravidez na adolescência, entre outros, corre o risco
de subestimar os benefícios da intervenção.
O exemplo do Head Start ilustra bem esse ponto. No mesmo texto
em que Garces e Currie (2002) detectam que os ganhos cognitivos
dos brancos tratados pelo Head Start perduram, ao passo que o mesmo não ocorre com os negros, há evidência de significativo impacto
entre os negros em termos de redução de criminalidade, medida pela
probabilidade de encarceramento antes dos 30 anos de idade. Em
outro trabalho, Lee et al. (1990) comparam o Head Start com outras
formas de pré-escola nos Estados Unidos e verificam que: a) ambas
trazem benefícios de curto prazo às crianças se comparadas a crianças
que não tiveram acesso a qualquer tipo de pré-escola e b) o tipo de
pré-escola (Head Start versus outros) com maiores benefícios depende
essencialmente da medida de resultado utilizada (ver Figura 9).
Tamanho do efeito em desvios-padrão
Figura 9
Impacto do programa Head Start sobre diferentes dimensões de desenvolvimento
0.4
Head Start versus outras
intervenções pré-escolares
0.3
Head Start versus “sem
experiências pré-escolares”
0.2
0.1
0.0
A
-0.1
-0.2
Raciocínio
perceptual
B
C
Desempenho
verbal
D
E
Competência
social
A Figuras embutidas B Matrizes de Raven C Teste verbal D Escala de competência social E Inventório de Schaefer
Efeitos ajustados de participação no (programa pré-escolar) Head Start sobre o desempenho no kindergarten e na
primeira série do ensino fundamental
Fonte: Lee et al., 1990.
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Em outro estudo, Barnett (2004) mostra que se, por um lado, o diferencial de QI entre tratados e não tratados pelo programa High Scope/
Perry School desaparece quando as crianças completam cerca de 14
anos, por outro, diferenças importantes continuam a ser estimadas até
os 40 anos de idade em dimensões como salários, probabilidade de
possuir casa própria, necessidade de transferências governamentais
e probabilidade de encarceramento. O autor conclui, ainda, que o
programa Abecedarian reduziu a probabilidade de ser fumante quando adulto, aumentou as chances de estar matriculado na faculdade
ou ter emprego qualificado aos 21 anos, melhorou o desempenho
educacional (reduziu repetência e necessidade de educação especial
e aumentou as chances de completar o segundo e o terceiro graus).
Resultados similares no que diz respeito ao desempenho educacional e criminalidade são também obtidos nesse artigo para o Chicago
Child-Parent Centers, programa compensatório de larga escala mantido pela municipalidade de Chicago.
Em recente e detalhado estudo sobre o High Scope/Perry School,
Heckman et al. (2010) estimam que, do total de US$153 mil em benefícios para a sociedade por indivíduo tratado pelo programa18 (medidos em dólares de 2006), cerca de metade (78 mil) resulta de maiores
salários recebidos pelos indivíduos (o ganho salarial sendo três vezes
maior para as mulheres do que para os homens); pouco menos da metade (67 mil) de economias com criminalidade (especialmente entre
os homens), e o restante de economias com os gastos públicos com
educação (devido à menor repetência) e transferências de renda. Se
considerarmos que dos ganhos salariais ao menos metade resulta de
melhoras em habilidades não cognitivas, temos que parcela significativa dos eventuais benefícios de uma intervenção na primeira infância
ocorre por canais não cognitivos, e sua mensuração é vital para um
julgamento mais fidedigno do custo-benefício de realizá-la.
A terceira leitura é a de que o resultado médio nulo obtido pelas
investigações resulta de uma combinação de resultados positivos que
o ensino infantil teve sobre algumas crianças com resultados negativos
que teve sobre outras. A insuficiência de informação sobre a qualida O custo por tratado foi de US$ 17,7 mil, resultando em taxa de retorno de
8,6 %.
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de e intensidade do ensino efetivamente oferecido em cada escola
infantil não permite avaliar com profundidade essa interpretação, mas
a evidência obtida em países em que dados mais detalhados estão
disponíveis a coloca como uma possibilidade concreta.
Nos Estados Unidos, país com maior riqueza de informações sobre
programas de ensino infantil, detecta-se significativa heterogeneidade
nos impactos medidos. Programas com elevado conteúdo educacional, como alguns pre-kindergartens estaduais e intervenções-modelo
(Perry, Abecedarian, CPC), causam sensível melhora, tanto cognitiva
quanto não cognitiva, ao passo que crianças enviadas a daycare centers e instituições onde a criança é pouco estimulada não raro apresentam desenvolvimento inferior às criadas em tempo integral pelos
pais e parentes. Heterogeneidade importante também é verificada
com respeito à duração dos impactos medidos. Apesar de ser isto,
ainda, objeto de intenso debate, a maioria dos resultados sugere que
grande parte da durabilidade está associada à persistência da exposição da criança ao tratamento. Os benefícios de uma boa escola tendem a desaparecer com o tempo se em níveis subsequentes a criança
for matriculada em escola de qualidade inferior, fazendo com que
programas com maior duração ou seguidos de outros programas de
qualidade aceitável apresentem com maior probabilidade resultados
positivos a longo prazo.
No Brasil, algumas estatísticas descritivas apontam em direção parecida. Em primeiro lugar, vimos que entre crianças com mães pouco
educadas, as que frequentaram creches têm desempenho educacional
inferior às que não frequentaram, ao passo que entre os filhos de mães
mais escolarizadas acontece o oposto. Como a maioria das estimativas
do impacto de um tipo específico de ensino infantil disponível mostra
que, ceteris paribus, são as crianças de famílias mais vulneráveis as que
mais se beneficiam, o resultado acima sugere que as crianças estão
de fato recebendo tratamentos distintos. Em segundo lugar, quando
selecionamos apenas as famílias que reportaram que a razão para que
seus filhos não estejam matriculados na creche não é insuficiência de
recursos (quer porque disponham de recursos próprios, quer porque
tenham acesso a vagas em creches gratuitas), observamos que a frequência com que os pais respondem que simplesmente não querem
matricular a criança é decrescente com a renda familiar per capita.
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Uma possível explicação para isso é de novo a hipótese de que as
creches a que os pobres têm acesso não são da mesma qualidade das
dos ricos, fazendo com que, dadas as opções existentes, prefiram criar
seus filhos em casa.
Caso os impactos sejam efetivamente heterogêneos, o desafio é replicar os casos bem-sucedidos, e fazer com que se generalizem. Um
primeiro passo nessa direção é identificar e estudar quais são os programas bem-sucedidos e suas características, e isso deveria ser prioridade, tanto porque, se não houver tal heterogeneidade e o impacto
for efetivamente nulo, uma mudança na prioridade da expansão da
rede de creches deveria ser considerada, quanto porque, caso a explicação esteja vinculada à heterogeneidade de impactos, torna-se
urgente oferecer aos menos favorecidos serviços com qualidade compatível à recebida pelos mais ricos.
O QUE QUEREMOS
A partir de um diagnóstico preciso a respeito das razões para que
até hoje não tenham sido detectados impactos importantes de fre­quência a creches sobre resultados futuros, é possível saber se há,
dentre as experiências já testadas no Brasil, algumas que funcionem
melhor que outras, e que devem servir de modelo para as creches que
temos. Uma primeira questão relevante, portanto, é saber como usar
da melhor maneira possível os recursos que atualmente já são gastos
com o sistema e em que medida os casos bem-sucedidos devem ser
expandidos para que atinjam seu público-alvo.
Uma segunda questão relevante é saber se há espaço para outros
tipos de intervenção educacional, diferentes do modelo de creches,
que devessem ser implementados, ou oferecer serviços distintos a
crianças que partem de condições iniciais diferentes. Ainda que seja
factível, a partir das respostas dadas à questão anterior, aprimorar
nossas creches de modo a que produzam o maior benefício possível,
resta a dúvida de que seja ou não conveniente fazer investimentos
adicionais e complementares para crianças que vivem em ambientes
familiares vulneráveis ou que apresentam defasagens de desenvolvimento diagnosticadas. Como foi dito, uma creche que mire seu
foco em uma criança com desenvolvimento regular não necessariamente produzirá o efeito esperado sobre uma criança defasada,
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nem conseguirá reduzir a distância com respeito aos colegas que não
apresentam atraso. De um modo geral, todas as crianças parecem se
beneficiar de atendimento extrafamiliar com conteúdo educacional,
mas é possível que algumas precisem de incentivos adicionais para
alcançar as outras.
A literatura internacional mostra que intervenções bem-sucedidas
destinadas a recuperar o atraso no desenvolvimento de crianças que
vivem em famílias vulneráveis são relativamente caras e exigem cuidados especiais, talvez porque nesses casos a escola tenha que cumprir seu papel natural de dar estímulos que em geral as crianças não
recebem em casa e, ao mesmo tempo, compensar as deficiências de
atenção e estímulo da própria família. Dada a importância central
que o ambiente familiar tem sobre o desenvolvimento nas primeiras
fases da vida, é possível que uma escola que seja apenas escola de
fato não faça diferença fundamental na vida de crianças de famílias
desestruturadas, e investimentos maiores deveriam ser considerados.
Doyle, Harmon, Heckman e Tremblay (2007) resumem em cinco
as características de intervenções compensatórias bem-sucedidas ao
redor do mundo:
a) Dosagem: programas que oferecem maiores montantes de intervenção produzem maiores benefícios;
b) Timing: programas que começam em idades mais tenras e se estendem por mais tempo produzem benefícios maiores e mais duradouros;
c) Recebimento direto da intervenção: programas que alteram diretamente a rotina das crianças (por exemplo, ir à escola) produzem
efeitos maiores e mais duradouros que programas que tentam influenciar os pais na esperança de que criem melhor seus filhos;
d) Benefícios diferenciados: algumas crianças se beneficiam mais
que outras de uma mesma intervenção. As diferenças estão relacionadas ao tipo de vulnerabilidade inicial delas e ao grau com
que o programa é desenhado para lidar com aquele tipo específico de vulnerabilidade;
e) Continuidade do suporte: efeitos positivos iniciais tendem a desaparecer se não houver posterior suporte adequado para manter
tais benefícios.
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A essas características, pode-se acrescentar que o envolvimento familiar com a escola potencializa os benefícios de uma intervenção
educacional. A maioria dos programas relativamente bem-sucedidos
como High Scope/Perry School, Carolina Abecedarian, Chicago CPC
e Head Start, apenas para citar alguns, continham (ou contêm) algum
tipo de acompanhamento direto com as famílias, quer na forma de
visitas periódicas de educadores, médicos, nutricionistas e assistentes
sociais para monitorar o desenvolvimento das crianças e orientar os
pais em como criar seus filhos, quer solicitando a presença simultânea
de pais e filhos para atividades conjuntas na escola.
Finalmente, análises de custo-benefício das melhores intervenções
apontam para taxas de retorno ao investimento realizado bastante atrativas, apesar do elevado custo inicial. Além disso, essas taxas
parecem ser especialmente altas para crianças sob risco de vulnerabilidade, sugerindo que se deva tratar desigualmente aos desiguais,
disponibilizando aos menos favorecidos condições para que eventuais
carências de estímulos familiares sejam compensadas por cuidados e
estímulos recebidos na escola. A prudência recomenda, contudo, que
intervenções inovadoras e caras devam sempre ser implementadas em
pequena escala, inicialmente, e avaliadas antes que possam ser replicadas em larga escala. Intervenções-modelo como o Perry School ou
o Abecedarian são expostas a críticas válidas de que ao menos um
dos insumos utilizados em sua confecção não é facilmente contabilizável em termos de custos ou mesmo replicável (a que preço for):
a dedicação e o compromisso dos educadores que as construíram e
mantiveram de modo abnegado. Na impossibilidade de se replicar
em larga escala tais intervenções, avaliações constantes e rigorosas
são necessárias para selecionar os aspectos positivos que possam ser
aproveitados em redes públicas, mas governos certamente deveriam
estimular que tais experiências em pequena escala surgissem como
forma de se apreender características que realmente importam no desenvolvimento infantil.
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ANEXO 1
BASES DE DADOS BRASILEIRAS USADAS PARA
INVESTIGAR IMPACTOS DO ENSINO INFANTIL
Os estudos de impacto de ensino infantil sobre resultados futuros
realizados no Brasil (e sumarizados na Tabela 2) utilizam essencialmente três fontes de dados:
a) Pesquisa sobre Padrões de Vida (PPV), baseada em entrevistas a
cerca de 5 mil domicílios realizadas nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, entre março de 1996 e março de 1997. As variáveis
de maior interesse para a estimativa de impacto do ensino infantil
são perguntas retrospectivas dicotômicas sobre se indivíduos frequentarem ou não cada nível de ensino separadamente, e por
quanto tempo. A pesquisa é particularmente rica em informações
socioeconômicas dos indivíduos, incluindo características educacionais, do trabalho, de casamento e fecundidade, de consumo e
renda. Dessa forma, é possível associar medidas de bem-estar de
pessoas adultas em 1996/97 com características passadas de acesso ao ensino infantil. As desvantagens são: a cobertura limitada
(apenas duas regiões do país), fazendo com que conclusões obtidas dessa amostra não necessariamente possam ser generalizadas
para o restante do país; a ausência de informações detalhadas
sobre a qualidade das escolas que os indivíduos frequentaram; e
a antiguidade, pois além de ter já 13 anos de existência, adultos
que em 1996 reportaram ter frequentado o ensino infantil o fizeram antes dos anos 80, quando tanto a abrangência da população
coberta por esse tipo de serviço era menor, quanto as características dos programas desse tipo eram significativamente distintas
das atuais.
b) Dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e da
Prova Brasil, base de dados bienal composta por quatro fontes
de informação: provas de português e matemática aplicadas a
cerca de 24 mil estudantes que estejam concluindo o primeiro
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e o segundo ciclos do ensino fundamental (atualmente 5ª e 9ª
séries), e o ensino médio (3º ano); entrevistas com os diretores
das escolas a que esses estudantes pertencem; entrevistas com
os professores das turmas desses estudantes; e questionários preenchidos pelos próprios estudantes com informações a respeito
de si e de suas famílias. Em geral, os estudos baseados no Saeb
tomam os resultados das provas como medida de resultado e a
resposta dos estudantes sobre o primeiro nível educacional que
frequentaram como variável de interesse. As principais vantagens
da pesquisa são a existência de informações sobre qualidade das
escolas e das turmas que os alunos atualmente frequentam (que
pode aproximar a qualidade da escola que habitualmente vêm
frequentando desde a primeira vez que foram matriculados) e as
próprias notas dos testes, que em geral são tomadas como medida razoavelmente fiel do estágio de desenvolvimento cognitivo
dos alunos. Dentre as desvantagens estão a ausência de informações detalhadas sobre a família (em particular não se sabe a renda
e detalhes da composição de irmãos) e o questionamento sobre
a acurácia das informações reportadas pelos estudantes, tanto a
respeito de características de seus pais quanto sobre o primeiro
nível educacional que frequentaram (principalmente entre os alunos que ainda estão completando o primeiro ciclo do fundamental). Adicionalmente, para nossos propósitos, é ruim o fato de que
a pergunta sobre frequência ao ensino infantil seja feita de modo
a que os estudantes apenas tenham que responder quando foram
pela primeira vez à escola, sendo admissíveis as respostas “maternal” (creche), “pré-escola”, “primeira série” (do fundamental),
e “depois da primeira série”. Essa estrutura não permite saber
dos estudantes que responderam “maternal”, se também fizeram
“pré-escola” ou não. Por esse motivo, o impacto líquido da creche/maternal é calculado supondo que todos os alunos que entraram nesse nível permaneceram na escola durante a pré-escola.
c) Um estudo recente (FELÍCIO et al., 2009) inova ao utilizar dados
de uma pesquisa de campo própria, coletada no município de
Sertãozinho (SP) em maio de 2008, composta por uma aplicação
da Provinha Brasil a crianças de segunda série de todas as escolas
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do município, questionários com os pais dos alunos, professores
e diretores. A base de dados procura corrigir a suspeita existente
sobre a qualidade das respostas dos alunos nas bases do Saeb/
Prova Brasil ao perguntar diretamente aos pais sobre características da família e sobre o acesso de seus filhos ao ensino infantil.
Além disso, pergunta detalhadamente aos pais se em cada ano de
vida da criança ela esteve inscrita em alguma escola, permitindo
detectar casos de crianças que frequentaram creche mas não pré-escola, e também saber por quanto tempo as crianças estiveram
em cada nível de ensino. Finalmente, trata-se da base de dados
em que o público-alvo frequentou o ensino infantil mais recentemente (para estar na 2ª série do fundamental em 2008, as crianças precisariam ter nascido em torno de 2001 e ter frequentado
o ensino infantil entre 2002 e 2006). A desvantagem mais óbvia
é a limitação da cobertura geográfica, pois Sertãozinho é um município particularmente rico para padrões brasileiros e conta com
uma das redes de ensino público mais bem estruturadas do país.
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CRIATIVIDADE
Marsyl Bulkool Mettrau
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Este artigo tem a intenção de apresentar algumas concepções de criatividade
e de processo criativo e objetiva descrever as mais importantes perspectivas
nessas áreas. De acordo com a literatura, uma definição e uma interpretação
do conceito de criatividade poderiam considerar várias dimensões: áreas de
expressão, graus, níveis de motivação, relevância social e o contexto dentro do
qual está organizado o processo criativo. Esse processo apresenta um largo espectro de características e performances, sendo organizado em uma sequência
de fases importantes para o objetivo da explicação, para o desenvolvimento e
a descrição dos grupos criativos. O artigo aborda também temas como insight,
talento e inteligência humana, criatividade individual e grupal. Finalmente, descreve o pensamento lógico, criativo e também a flexibilidade.
Palavras-chave: criatividade, processo criativo, inteligência
This article intends to present some conceptions of creativity and the creative
process and aims to describe the most important perspectives in these areas.
Several notions emerge when creativity and the creative process are concerned.
According to the literature, we can see that a definition and an interpretation of
the creative concept should consider the following dimensions: expression areas, degrees, motivation levels, social relevance, and the context within which
the creative process is organized. This process embraces a wide range of features and performances, organized in a sequence of phases, which are important
for the purpose of explanation, for the development, and for the description
of the creative groups. Furthermore, the article also approaches issues such as
insight, human talent and intelligence, and individual and collective creativity.
Finally, it describes the logical, creative thinking and also the flexibility.
Keywords: creativity, creative process, intelligence
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INTRODUÇÃO
A história intelectual do conceito de criatividade nos remete ao século XVIII, quando surgiram os debates sobre o gênio criativo e seus
fundamentos. Já Duff (1967, apud LUBART, 2007) diferenciou gênio
criativo e talento, considerando o talento um nível de performance
superior, mas que não necessariamente apresentaria um pensamento
original. De acordo com essa ideia, que se desenvolveu progressivamente, a criatividade seria uma forma excepcional de genialidade,
diferente do talento, determinada por fatores genéticos e condições
ambientais (ALBERT e RUNCO, 1999 apud LUBART, 2007).
No decorrer do século XIX, alguns autores sustentaram a ideia de
que gênio criativo seria aquele que apresentasse a criatividade a partir
de um nível excepcional de originalidade, que dependeria da capacidade de associar ideias.
O início do século XX trouxe novas contribuições ao conceito de
criatividade. Binet realizou estudos de caso baseados na criação literária, sustentando que o pensamento criativo teria associação com parte
da inteligência. Freud referiu-se à criatividade como resultado de uma
tensão entre realidade consciente e pulsões inconscientes, sugerindo
que os artistas e os escritores criam para expressar seus desejos inconscientes através de meios culturalmente aceitáveis.
Essa tensão criativa refere-se também a uma superposição do objetivo
pessoal, individual (o que queremos) com a clareza da análise da realidade (onde estamos). É necessária uma força para unir um e outro, a qual
corresponderia à tensão na busca de nova resolução. Esse processo, uma
vez em andamento, gera um tipo de aprendizado que não significa apenas a aquisição de mais informação, mas sim a ampliação da capacidade
de produzir os resultados que desejamos. Sua duração é longa, pois se
trata de um aprendizado produtivo que dura a vida inteira.
Também Ribot (1900) abordou o papel da inteligência, da emoção
e do inconsciente no pensamento criativo (LUBART, 2007). O interesse pela criatividade como agente de crescimento econômico social é
constante. Indica-o, por exemplo, o livro de Y. P. Guilford, Creativity,
de 1950, considerado um precursor do tema.
O fato histórico do Sputinik, o primeiro satélite artificial da história,
lançado ao espaço pela União Soviética em 4 de outubro de 1957,
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deu origem à disputa espacial com os EUA, e foi, de certo modo, outro
detonador de interesse no assunto, pois acelerou a pesquisa científica
no campo. Foram iniciados novos programas de estudo dedicados ao
tema da criatividade, destinando-se grandes quantias de dinheiro para
o financiamento de pesquisas na área, além da organização de simpósios interdisciplinares impulsionados pela Michigan State University.
Desses estudos resultaram, entre outros, os ensaios reunidos por
Anderson e publicados em 1995 sob o título Creativity and its Cultivation.
Seguiram-se novas publicações e textos coletivos envolvendo de
Anderson a Erich Fromn, de Guilford a Hilgard, de Maslow a Margareth
Mead e de Roger a Sennet. A criatividade tornou-se um objeto de estudo científico, específico e interdisciplinar, e a sociedade pós-industrial se nos apresenta como um sistema programado e criativo, tendo
como centro a invenção, a cientificidade, os valores, os símbolos e a
estética (DE MASI, 2003).
As consequências e repercussões dos estudos voltados mais especificamente para a criatividade têm sido intensas e temos uma expressão
de Einstein que bem o demonstra: “Quando observo a mim mesmo e
os meus métodos de pensamento, chego à conclusão de que o dom
da imaginação foi mais importante para mim do que a minha capacidade de assimilar conhecimentos”. Ainda nessa perspectiva, temos
Niemeyer: “Na arquitetura, a intuição desempenha um papel tão importante quanto o conhecimento... A imaginação e a espontaneidade
são para mim as fontes da arquitetura” (DE MASI, 2003, p. 567).
1 PROCESSO CRIATIVO E CRIATIVIDADE
Já em 1953, Osborn descreveu o processo criativo como um processo que envolve sete etapas: orientação, preparação, análise, criação,
incubação, nova síntese e avaliação. Anziem descreveu outras características do processo criativo no século XX: a saisissement (surpresa),
como a tomada de consciência do problema a resolver; a estruturação
do código que rege o tipo de conhecimento implícito em um determinado processo criativo; a composição e a realização da ideia; o
licenciamento e o dissabor (sensação causada pela frustração de uma
expectativa). Finalmente, é De Masi quem resume: a criatividade foi
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considerada como capacidade de construir e destruir; de revelar segredos; de ver antes dos outros e de fazer ver aos outros; de apresentar originalidade marcada pela avaliação social; de ser pesquisa como
forma regida por um pensamento dotado de originalidade, unidade e
qualidade rara de ser; conquista de alto grau de subjetividade na arte,
de alto grau de objetividade na ciência; de usar um modo para liberar-se das escolhas habituais e obrigatórias; de ser conquista capaz de enriquecer não apenas os aspectos criativos, mas todo o gênero humano;
de ser um método diferente do pensamento comum, capaz de chegar
a resultados que o pensamento comum poderá entender, aceitar e
apreciar somente num segundo momento (DE MASI, 2003).
Criatividade é uma palavra forte, um conceito complexo e um tema
da atualidade, sobre o qual muitos falam mas poucos entendem, pois
se refere a cada nova forma de dizer, fazer, pensar ou construir qualquer coisa, ideia ou produto.
É necessário ter muito conhecimento sobre o tema para afirmar que
o “potencial criador é inerente ao ser humano”, como o faz Ostrower
(1989, p. 9). Penso também que a criatividade é uma dimensão da
inteligência, pois lida com algumas das muitas categorias ou elementos
que compõem nossa inteligência, como a memória, a ordenação, a
intuição, a percepção etc., necessários e participantes na criatividade,
no processo criativo e na inteligência humana.
Vale ressaltar ainda que o tema da criatividade vem, nos últimos
anos, recebendo atenção ampliada, relacionado a questões de outras
áreas, como educação, psicologia e até mesmo na área empresarial,
devido à interdisciplinaridade do assunto e à crescente e visível necessidade de novas soluções e novas respostas para a humanidade continuar seu caminho, o caminho da busca incessante de novas transformações necessárias para o crescimento e evolução da vida humana.
“O vício de se pensar que a criatividade só existe nas artes deforma
toda a realidade humana” (Ostrower, 1989, p. 39) e é uma maneira de
excluir as inúmeras condições criativas existentes em outras áreas. A
maioria das pessoas tem uma representação sobre ser criativo apenas
como uma pessoa que toca, pinta, desenha, dança etc. Mas os cientistas, os pensadores, os filósofos e os técnicos, entre outros, também
são criadores, embora seus produtos não sejam sempre concretos e
visíveis em um primeiro olhar, em um primeiro momento. Apreciar
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e encorajar o uso da criatividade é uma necessidade para atender às
demandas crescentes de nosso mundo em constantes e rápidas transformações e também para a vivência cotidiana.
Usualmente a criatividade pode ser percebida mediante alguns
comportamentos, tais como: motivação extremamente alta em determinado campo de esforço; inconformidade (variando em graus);
facilidade para quebrar algumas convenções; e manutenção de altos padrões de excelência e autodisciplina relacionados ao trabalho
de criação. Nas pessoas que demonstram ter criatividade, nota-se
profundo compromisso com o esforço criativo, podendo aparentar
até certo desligamento em outras tarefas que não sejam aquelas
de seu interesse específico, isto é, seu campo de criação. Às vezes
torna-se difícil conviver com ela, tanto no grupo social quanto no
grupo de trabalho ou familiar, pois apresenta múltiplos e variados
funcionamentos.
Ao comentar o processo criativo, devemos elencar outro aspecto
que faz parte do seu funcionamento: trata-se do insight, que corresponde a uma aparente e súbita compreensão da natureza de alguma coisa, resultando, na maior parte das vezes, em uma abordagem
inédita. Essa compreensão súbita é, na verdade, só aparentemente
súbita, pois muito esforço, motivação, concentração e conhecimentos
já existentes, relacionados à tentativa de uma nova descoberta, são
acionados. O que é súbito é a própria descoberta e um profundo e
extenso esforço direcionado ao alvo que se pretende atingir.
No processo de insight, nota-se ainda, às vezes, que a própria criatividade está sendo realizada na perspectiva da resolução de um problema, que contém todas as etapas necessárias para ser bem resolvido. Assim, todo novo ângulo ou nova ótica assemelha-se a um novo
problema, a ser resolvido no campo da aceitação e de seu uso. Além
disso, quase sempre é possível perceber, nas leituras biográficas e na
observação de sujeitos em ação e em pleno uso de seu potencial criador, que há no processo criativo um período de repouso, ao qual se
segue um período de intenso esforço, em que se percebe uma explosão de mais flexibilidade mental, a fim de favorecer a emergência
do insight. Logo, o insight não é súbito. O resultado da incubação e
emergência da ideia, o ato ou objeto criado é que nos é apresentado
de forma súbita, isto é, quando não se está esperando.
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Ainda descrevendo a pessoa criativa, podemos observar, em seu
convívio com outras, que ela se expressa algumas vezes demonstrando irritação, insatisfação ou até algum nível de agressão, que correspondem ao processo de desejar e poder criar alguma coisa e ainda
não ter conseguido selecionar maneiras para fazê-lo. Usualmente o
meio social não favorece, não encoraja e, muitas vezes, não possibilita a realização criativa, especialmente quando se trata das ideias
de pessoas mais pobres, moradoras de periferias, que têm uma vida
cotidiana mais restrita em possibilidades socioculturais. Essas pessoas
têm ideias, mas não encontram acolhimento e local para apresentá-las
e desenvolvê-las. Na conjuntura difícil do dia a dia, o grupo social tem
sido impedidor ou dificultador da expressão da criatividade e do reconhecimento das expressões do processo criativo em muitas pessoas,
tanto adultas quanto crianças e adolescentes.
Uma sociedade de atores criativos teria melhores chances de encontrar respostas mais eficazes e de propor a promoção da criatividade,
tanto no sistema educacional quanto no sistema empresarial, o que
permitiria encarar novos problemas de maneira mais criativa, procurando novas soluções a partir de novas necessidades e perspectivas.
No campo de estudos da criatividade, um dos marcos da abordagem científica do gênio criativo é a obra Gênio hereditário, de 1869
(FRANCIS GALTON apud SIMONTON, 2002).
Dentre os gênios reconhecidos pela humanidade temos, por exemplo, Charles Darwin, que fez suas pesquisas em casa e foi muito afortunado, uma vez que sua família lhe proporcionou o ambiente especial
de que necessitava para ler e escrever, refletir e fazer experimentos.
Note-se a importância do suporte afetivo, seja ele familiar, do grupo
social ou até mesmo individual.
Simonton (2002) aponta a necessidade de se definir e diferenciar
genialidade e criatividade, uma vez que se trata de tema com o qual
grande parte das pessoas já convive ou reconhece em biografias, jornais, publicações técnicas e históricas, filmes, entre outros. Para o autor, a genialidade refere-se à qualidade daquilo ou de quem é gênio.
No que diz respeito aos indivíduos, o termo gênio passou a corresponder à descrição de algum talento, capacidade ou inclinação natural,
especialmente quando ela ultrapassa as normas usuais e esperadas de
contribuição.
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Simonton (2002) nos remete a Galton (1869), que definia gênio em
termos de reputação duradoura, como os homens e mulheres que receberam o Prêmio Nobel – Niels Bohr (Física), Marie Curie (Química),
Ivan Pavlov (Medicina e Filosofia) e Toni Morrison (Literatura), entre
outros –, que foram reconhecidos por suas notáveis contribuições em
suas respectivas áreas, além de contribuições para o conhecimento
humano e a humanidade. A conceituação de gênio refere-se àqueles
que são donos de uma rara habilidade, de uma capacidade de produzir ideias perenes e absolutamente originais, que favoreçam amplamente o grupo social e a sociedade global.
Há alguns outros fenômenos psicológicos associados à criatividade
e compreendê-los corresponde a uma necessidade, pois tanto nossa
vida cotidiana familiar e social se beneficiam com esta compreensão
quanto as relações no mundo do trabalho. As empresas já demonstram em cursos, capacitações, treinamentos e anúncios um interesse crescente pelos estudos da criatividade de seus empregados e da
própria instituição, para se adaptarem aos mercados de trabalho em
evolução constante e rápida.
2 COMO PERCEBER A CRIATIVIDADE?
O processo criativo é complexo e de difícil observação. No passado falava-se de criatividade referindo-se quase sempre às atividades artísticas, praticamente em oposição às outras experiências,
como a conceituação matemático-científica ou qualquer tipo de
pesquisa e habilidade técnica ou motora. Entretanto, podemos
chamar também de criativa uma pessoa que sempre faz perguntas,
descobre problemas onde outros encontram respostas satisfatórias,
que é capaz de juízos e julgamentos autônomos e independentes
(da família, da escola, da sociedade etc.), que recusa o já codificado e remanuseia objetos e conceitos, sem se deixar inibir pelo
conformismo de aceitar os produtos como já se apresentam. Há um
leque variado de comportamentos, ações, ideias e produtos que
configuram criatividade. Os artistas também podem ser analíticos,
porque dedicam muita atenção e tempo até chegar ao produto
final, aos materiais e à tecnologia que seus trabalhos e suas produções artísticas exigem.
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Ostrower (1989) e Rodari (1982) sustentam que “a função criativa
da imaginação pertence tanto ao homem comum como ao cientista
e ao técnico; tanto é essencial para descobertas científicas como para
o nascimento da obra de arte ou a criação de novas técnicas; é realmente condição necessária à vida cotidiana” (RODARI, 1982, p. 141).
Vygotsky (1982, p. 18) ressalta que os “germes da imaginação criativa
manifestam-se já nas brincadeiras da vida infantil”.
A brincadeira e o jogo não são uma simples recordação de impressões vividas, mas uma reelaboração criativa delas. A imaginação é um
processo pelo qual o homem, desde criança, combina entre si os dados da experiência, no sentido de construir uma nova realidade, correspondente às suas curiosidades e necessidades. É preciso, portanto,
que cada pessoa possa crescer e se desenvolver em um ambiente pleno de experiências e estímulos em todas as direções possíveis, para
nutrir sua imaginação e aplicá-la em novas atividades.
Segundo a maioria de estudiosos e autores do tema, a motivação é
muito importante no pensamento criativo, pois funciona como uma
fonte para a criação. Assim, ter motivação para ou estar motivado com
alguma coisa significa que você poderá passar cinco anos, cinco horas,
semanas ou muito tempo, enfim, investindo seu pensamento na tentativa de descobrir a melhor maneira de fazer ou resolver determinadas situações, apresentar ideias, propostas, projetos etc. Isso significa
dedicar tempo e esforço em relação a algo em que se acredita e que
se deseja.
O processo criativo implica, portanto, esforço, atenção dirigida e
motivação. Fazem parte desse conjunto de múltiplos fatores não só o
contexto ambiental, mas também a motivação, as variáveis de personalidade e de processos intelectuais, os níveis adequados de conhecimento, conjugados à flexibilidade cognitiva e à alta concentração na
tarefa, os traços de prontidão para assumir riscos, as crenças flexíveis e
a confiança pessoal na busca criativa. É verdadeiramente um processo complexo. Não devemos menosprezá-lo nem deixar de incluí-lo
em nossa organização empresarial, individual ou grupal, desenvolvê-lo em todos os campos do saber e do fazer, pois só assim estaremos
exercitando nossa criatividade e a das demais pessoas.
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3 TALENTO E CRIATIVIDADE
Gagné (1997) e Moon (2003) vêm tentando estudar e compreender
o talento como algo que aparece ligado, de alguma forma, à criatividade e ao processo criativo. O suporte afetivo e o acolhimento familiar
são necessários para o desenvolvimento do talento, pois, se a pessoa
não tiver a possibilidade de conhecer os materiais e produtos necessários ao seu ato criador, dificilmente poderá expressar sua criatividade.
É conhecida a importância dos elos afetivos criados pela passagem de
sujeitos reconhecidamente criativos na vida pregressa de uma pessoa
criativa: um treinador, um professor, um amigo, entre outros.
Gagné conceitua o talento como um domínio superior de habilidades sistematicamente desenvolvidas e aplicadas a pelo menos um
campo da atividade humana, podendo ser percebido em uma pessoa
quando comparada a outras atuantes no mesmo campo. O autor agrupa essas habilidades superiores em cinco domínios: intelectuais (raciocínio, memória etc.); criativos (originalidade, invenção, humor etc.);
socioafetivos (liderança, empatia etc.); sensório-motor (força, resistência etc.) e outros (as habilidades sociais). Para ele, a expressão superior
de apenas um desses domínios e habilidades poderia ser chamada de
talento natural. Tais habilidades, que devem ser desenvolvidas, estão
ligadas a motivação, temperamento, personalidade e meio social, e
sua expressão se realiza ao longo da vida pela aprendizagem, pelo
treinamento e exercício. Os talentos implicariam sete campos mais
especialmente definidos: o acadêmico, os jogos de estratégias, o uso
da tecnologia, a arte, o grupo social, os negócios e os esportes.
Já Moon (2003) define talento pessoal como uma capacidade excepcional de selecionar e atingir metas difíceis que se relacionem a
interesses, habilidades, valores e contextos em que a pessoa vive.
Os conceitos de talento e criatividade se relacionam, mas não significam a mesma coisa nem se apresentam de formas idênticas, pois
a criatividade envolve imaginação e o talento envolve aprendizagem.
Claro que imaginação e aprendizagem não são excludentes, porém a
imaginação independe da aprendizagem e o talento depende, para
seu desenvolvimento, da prática e do conhecimento para se expressar
plenamente. Aceitar e reconhecer o talento é uma necessidade e um
compromisso social. O Brasil é conhecido por suas riquezas naturais
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e, talvez por isso, faz pouco uso de seus recursos humanos e investe
pouco neles. Fingir que não existem talentos é uma forma de mentir e de não ter que se ocupar nem se preocupar com a questão de
desenvolvê-los (METTRAU, 2000).
Embora haja muita publicação folclórica sobre as grandes descobertas e os grandes descobridores em todas as áreas, é sabido que muitas
delas, hoje imprescindíveis à vida humana, resultaram da exploração
de ocorrências casuais ou de incidentes aparentemente inesperados
que, aliados à atitude de observação e ao senso de oportunidade,
foram transformados em nova descoberta. Isso não invalida todo o
processo criador até o momento final de seu desdobramento, seu uso
e sua transformação em nova produção ou produto.
Vale ressaltar que há ainda muita desinformação e relativamente
pouca pesquisa sobre o campo de estudos referente à pessoa criadora e à criatividade. Boa parte da sociedade, ainda nos dias atuais,
apresenta certo temor em relação ao desenvolvimento e ampliação
dos traços criativos, por relacionarem algumas características da criatividade a doença mental, atos de loucura ou mesmo delinquência.
Quando se pensa ou se escreve sobre essa inadequada correlação,
não se costuma fazer um levantamento da história de vida de cada sujeito, seus antecedentes familiares etc. Um sujeito que é criativo pode
ter desenvolvido em si ou ter em sua família algum aspecto patológico
que não tem a ver, necessariamente, com sua criatividade ou seu talento. São situações distintas, embora possíveis, e acarretam alguma
confusão quando obtidas em leituras e informações mais superficiais e
populares sobre a questão.
A criação é uma busca de ordenações e significados, e é no próprio quotidiano que o homem sente necessidade de ser consciente,
compreender, analisar e ordenar os fenômenos que o rodeiam, avaliando o sentido das formas por ele ordenadas para comunicar-se com
os outros seres humanos, correspondendo, portanto, a necessidades
existenciais. Assim, o homem não cria só porque gosta ou quer, mas
sobretudo porque precisa, e os processos de criação ocorrem tanto no
âmbito da intuição quanto no pensamento racional.
Usualmente as pessoas consideradas inteligentes e bem-sucedidas
percebem quando o ambiente em que se encontram pode ou não
permitir que aproveitem ao máximo seu talento. Buscam o ambiente
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favorável não apenas para realizar um trabalho competente, mas também para fazer algo importante, usando suas possibilidades e habilidades. Elas criam suas próprias oportunidades, em vez de deixar que
estas sejam limitadas pelas circunstâncias em que se encontram
(STERNBERG, 2000a). Mesmo que não seja uma regra geral, muitos
reduzem sua participação se não houver um meio favorável e estimulador para que seu talento se desenvolva e se ressentem por não
receberem o reconhecimento social de suas produções, atividades rea­
lizadas ou propostas oferecidas.
Estudos de Torrance (1965), um clássico do tema, ressaltaram com
veemência que é necessário desenvolver alguns aspectos específicos, como tornar-se sensível a falhas ou deficiências na informação,
identificar dificuldades ou elementos que faltam, formular hipóteses
e comunicar os resultados encontrados, para que se realizem todas as
fases da criatividade propriamente dita. Trazendo essa reflexão para
a perspectiva laboral, vemos que esses aspectos, necessários e vitais,
nem sempre recebem encorajamento nos espaços tanto empresariais
quanto educacionais. Ainda assim, há pessoas que apresentam variados talentos nos campos do saber ou do fazer e que se tornam muito férteis, apesar de não terem tido oportunidade de escolarização,
isto é, oportunidade de aprendizagem sistematizada e institucional
(METTRAU, 2000). Temos, então, quando não nos preocupamos com
o desperdício do talento e da criatividade, dois tipos de perdas: a
referente à pessoa propriamente dita e a referente ao grupo social,
ou seja, a perda relacionada a uma coletividade, a perda da própria
criatividade enquanto campo de estudos, de produção e de avanços
conceituais.
A imaginação criadora é uma capacidade de combinação e reela­
boração de elementos essencial ao ser humano. Vygotsky (1982),
Ostrower (1989) e outros estudiosos caracterizam a imaginação criadora como uma função vital ao ser humano e ao desenvolvimento
social global e, portanto, temos justa razão para cultivá-la em todo
o nosso percurso de vida.
Sem criatividade nosso mundo não caminharia. Estaríamos ainda
sem fogo, sem roda, sem eletricidade, telefone e avião, entre outras
criações, o que hoje é impensável. Obviamente cada nova criação faz
emergir novos usos e novas dependências desses usos, pois nos acos-
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tumamos de tal maneira a produtos e obras criadas que sentimos sua
falta em nosso cotidiano se eles nos forem tirados.
4 INTELIGÊNCIA E CRIATIVIDADE
A Figura 1 apresenta o Diagrama de Mettrau (2004), no qual uma
das três dimensões da inteligência humana é a criatividade.
Figura 1
Diagrama de Mettrau (2004)
O diagrama apresenta movimento circular e contínuo, indicando
que nossa inteligência não tem hierarquia em suas expressões criativa, afetiva e cognitiva nem existem campos de maior ou menor
expressão entre elas, pois apresentam funcionamento ininterrupto
em todas as fases de nossas vidas. O funcionamento da inteligência
humana é um processo dinâmico, sem local de início nem fim, que
englobaria três expressões distintas, mas indissociáveis e sem hierarquia entre si. Essas diferentes expressões se iniciam, se realizam
e se desenvolvem no contexto do grupo social, isto é, o homem
não existe, não se realiza nem se desenvolve fora do grupo social
(METTRAU, 2004; 2009).
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Criar, conhecer e sentir são as diferentes expressões da inteligência humana. É possível ao homem expressar sua inteligência de variadas maneiras e formas, pois ele é capaz de criar (criação), perceber e
conhecer o que cria (cognição) e sentir emoções sobre sua criação.
“Criar, perceber o que cria e sentir são, exatamente, as dimensões que
distinguem o ser humano dos demais animais” (METTRAU, 2004, p.
257). A partir desse diagrama, a criatividade é vista como uma dimensão da inteligência humana.
As pessoas necessitam obter novos conhecimentos sobre seu próprio
funcionamento inteligente e criativo, para compreender e enriquecer
uma variedade de tipos de interesses e possibilidades, para se libertar
da maioria dos mitos e fantasias que correm sobre esses dois campos
de estudos.
O tema da inteligência humana continua sendo um tópico inter e
transdisciplinar, exigindo reflexão e debate contínuos sobre seus múltiplos aspectos. O Diagrama de Mettrau é parte de uma ideia maior,
qual seja, a compreensão de que nossa inteligência é um patrimônio
social, que devemos cuidar e preservar ao máximo, com atenção e
cuidado, favorecendo sempre um desenvolvimento mais completo de
todas as pessoas e suas potencialidades.
5 FATORES INDIVIDUAIS DA CRIATIVIDADE
Estudos de Sternberg e Lubart (1991; 1993; 1995) sugerem que
deve haver convergência de fatores individuais e ambientais para que
venha a ocorrer a criatividade. A confluência de múltiplos fatores distinguiria a pessoa muito criativa de uma pessoa apenas modestamente
criativa (STERNBERG, 1996).
Ao examinar processos intelectuais de pessoas criativas, as pesquisas
dão destaque para a competência na descoberta do problema (quando
se verificam as falhas ou os procedimentos até então existentes em determinados campos) e para a definição e seleção de estratégias de resolução.
Sternberg (1992) chamou a capacidade de expressão global de “ver a
grande tela” (opondo-se à concentração em detalhes), que é ainda aliada
à preferência pela novidade e produtividade geradora de muitas ideias.
Outro fator componente e importante é a flexibilidade. Por flexibilidade entendemos a aptidão de apreender um único objeto, uma
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única ideia sob ângulos diferentes; ter sensibilidade à mudança como
a capacidade de se libertar de uma ideia inicial para explorar novas
pistas. Flexibilidade é palavra-chave envolvida com a criatividade,
pois reflete a mobilidade e a maleabilidade do pensamento (LUBART,
2007). Segundo o autor, observa-se que, do ponto de vista cognitivo,
temos algumas capacidades intelectuais consideradas essenciais ao
ato criativo:
a) identificar, definir e redefinir (o problema ou a tarefa);
b) revelar, dentro do ambiente, as informações relativas ao problema
(situação, tarefa);
c) observar as semelhanças nas diferentes áreas que clareiam o problema (semelhança, analogia, comparação, metáfora);
d) escolher e fazer comparação seletiva;
e) reagrupar elementos diversos da informação que, quando reunidos, vão formar uma nova ideia (combinação seletiva);
f) gerar várias possibilidades (pensamento divergente);
g) autoavaliar sua evolução para solução de problemas;
h) libertar-se de uma ideia inicial para explorar novas pistas.
O estudo da criatividade remete-nos a um interesse suplementar,
qual seja, o de levantar grande número de questões, tanto de ordem
científica quanto de ordem existencial, que podem ser agrupadas em
cinco problemáticas mais amplas: questões referentes a definições; à
origem das diferenças individuais; ao domínio de expressão do ato
criativo; à criatividade em si; e, por último, a questão: a criatividade
pode se expressar em vários campos distintos ou atingir unicamente
um domínio específico em cada pessoa?
Outra perspectiva se refere à identificação e à medida da criatividade. Qual seria a definição científica da criatividade e quais seriam os
meios e instrumentos capazes de avaliá-la?
6 GRUPOS CRIATIVOS
Para tentar responder a algumas dessas difíceis questões, De Masi
(1997) faz uma análise de treze grupos históricos, conjugada ao estudo
da literatura sobre criatividade, ressaltando algumas constantes que
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dizem respeito à personalidade dos sujeitos criativos individualmente
e à organização dos grupos nos quais eles operam.
Quanto aos fatores individuais, podem-se destacar nos estudos desses grupos: forte motivação dos artistas e cientistas com a atividade
idealizada e realizada; habilidades intelectuais e percepção rigorosa
por forte envolvimento emotivo; amplo senso de união por pertencer ao mesmo grupo; espírito de iniciativa, confiança e reciprocidade;
vontade firme, dedicação total e flexibilidade (DE MASI, 1997).
Quanto às características dos grupos criativos, destacam-se: a convivência pacífica na mesma equipe com diferentes modelos de personalidade; a procura obstinada de um ambiente físico acolhedor, bonito
e funcional; a interdisciplinaridade; a forte complementaridade e a
afinidade cultural dos membros; habilidade na concentração de energias de cada um no objetivo comum; busca e encontro de recursos
para calibrar a natureza afetiva com o profissionalismo e para facilitar
o intercâmbio entre desempenhos e funções. Como se vê, nada fácil
de obter, atingir e manter.
Podemos afirmar que criar é dar forma a algo novo em qualquer campo do pensamento e da atividade e, portanto, o ato de criar abrange
a capacidade de compreender, que, por sua vez, envolve outras capacidades, como relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER,
1989). Assim, a criação pode ser vista como uma dimensão da
inteligência. Os indivíduos altamente criativos têm necessidades fortes
voltadas para o desconhecido, o inusitado, o paradoxal, o misterioso
e o inexplicável. De modo geral, a sociedade não oferece reconhecimento, nem mesmo demonstra interesse no encorajamento e na
persistência dessa curiosidade mais intensa apresentada por alguns.
Em constantes e aceleradas mudanças, necessitamos, de forma essencial e especial, da imaginação e da criatividade, compreendendo
e aceitando a diversidade de talentos e das diferentes personalidades.
Os variados profissionais deveriam, portanto, dispor de todas as ocasiões possíveis para a descoberta e a experimentação estética, artística,
desportiva, científica, cultural, tecnológica e social, a fim de captar e
usar as indicações de novas ideias e criações.
Criatividade, portanto, corresponde a uma maior flexibilidade mental, que impulsiona a pessoa para outros patamares de realização e
pode ser definida como “o processo de produzir alguma coisa que é ao
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mesmo tempo original e de valor” (STERNBERG, 2000, p. 332). Não
está diretamente relacionada ao conhecimento acadêmico, mas sim a
uma produção que pode ocorrer na área acadêmica, cultural, tecnológica ou artística. Sternberg define a criatividade como a capacidade
de ir além do já estabelecido para gerar ideias novas e interessantes.
Ostrower (1989), artista plástica, criadora, professora e escritora,
ressalta que, do mesmo modo que a percepção, a intuição é um processo dinâmico e ativo, que tem participação atuante no ambiente, e
que é também um sair-de-si para captar novas buscas de conteúdos
significativos. Os processos de perceber e intuir são afins, tanto é assim
que não só a intuição está ligada à percepção, como o próprio ato de
perceber talvez não seja outra coisa senão um contínuo ato de intuir.
Já outro autor, De Bono (1994), diferencia dois modelos de pensamento: o vertical (lógico, natural) e o lateral (criativo), descrevendo-os
como diferentes, porém complementares. Segundo o autor, fazemos
muito uso do pensamento vertical e pouquíssimo do pensamento lateral, ainda que essa forma de pensamento seja muito valiosa para
reconhecer ideias dominantes e polarizadoras, gerar as diversas maneiras de examinar situações e relaxar o rígido controle exercido pelo
pensamento lógico (DE BONO, 1994).
Já cabe perguntar, a esta altura, quando é que um grupo pode ser chamado de criativo e quais as propostas disciplinares que mais nos ajudarão
para desvendar os segredos da criatividade coletiva, e ainda novas questões: como pode nossa sociedade perder seus talentos e não usar a criatividade? Voltamos nossa preocupação, agora, para uma sociedade toda ela
mais criativa, com base no estudo de grupos criativos (DE MASI, 2003).
Lent, um estudioso e pesquisador atual do campo da neurologia,
afirma que é pelo desenvolvimento da percepção que também podemos desenvolver a criatividade. “Percepção é a capacidade de associar informações sensoriais à memória e à cognição (conhecimento)
de modo a formar conceitos sobre o mundo e sobre nós mesmos e
orientar o nosso comportamento” (LENT, 2001, p. 556).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Novos saltos no curso da história acontecem e continuarão a acontecer com base nas grandes descobertas nos campos teóricos e práticos.
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Foram necessários muitos milênios de vida arcaica para produzir o
Estado moderno; foram necessários quinhentos anos de organização
moderna para produzir a sociedade industrial e apenas dois séculos de
indústria bastaram para provocar o advento pós-industrial. A imaginação pessoal é influenciada pela experiência (quantitativa e qualitativa),
pela realidade e pelas experiências passadas, incluindo a participação
da memória. Apoia-se na experiência direta com a realidade, pois se
trata de um enlace da imaginação pessoal com a realidade concreta.
“Percebe-se a necessidade de ampliar sempre as experiências se queremos proporcionar uma base suficientemente sólida para a atividade
criadora” (VYGOTSKY, 1982, p. 18).
Todos somos ou podemos ser observadores, pois observar tanto se
ensina quanto se aprende. Desenvolver a observação é um dos caminhos para se desenvolver a criatividade em todas as idades, circunstâncias e locais. A importância de encorajar e oferecer variadas experiências no cotidiano e no ambiente é uma prioridade cada vez mais
visível, uma vez que as pessoas passam a conviver, nos dias de hoje,
mais constantemente com as diferenças e com os diferentes. Oferecer
um ambiente facilitador para o desenvolvimento do potencial criativo
existente em todos nós atende à necessidade de saúde mental, além
de facilitar, ampliar e qualificar nosso viver cotidiano. Delors (1996)
sugere que, nos diversos espaços sociais, a arte e a poesia, aliadas à
ciência e à tecnologia, deveriam ocupar lugar de destaque, a fim de
impulsionar e expandir a ampliação da imaginação e da criatividade
ao longo do desenvolvimento humano.
O comportamento criativo pode ser entendido a partir do exame
de nossa atitude pessoal em relação: ao nosso potencial criativo, ou
seja, como nos vemos em nossas interações com outras pessoas na
busca de novas soluções; às combinações realizadas quando usamos o já conhecido, tanto o conhecimento formal quanto as diversas
experiências; às novas formas que imaginamos para lidar com novas situações ou descobertas; e, finalmente, à nossa capacidade de
avaliar novos resultados a partir dessas outras perspectivas e análises
(WECHSLER, 2009).
A análise e a reflexão desses variados aspectos significantes nos remetem à nossa afetividade e ao quanto ela é significativa no campo
dos estudos da criatividade. É de Noller (apud GLIGIO, WECHSLER
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e BRAGOTTO, 2009) o exemplo de uma equação simbólica relativa
ao processo criativo: Criatividade = f.a (C, I, A), interpretando-se a
criatividade como função (f) de uma atitude (a), em direção ao uso
benéfico e positivo da criatividade, em combinação com três fatores:
conhecimento (C), imaginação (I) e avaliação (A). Essa equação criativa formata, um pouco mais rigidamente, os diversos fatores que irão
compor o conjunto de nosso comportamento criativo.
Os novos tempos ficam velhos muito rapidamente, levando-nos
ao espanto. No sistema social, o conhecimento teórico, a ciência e
a informação ocupam o papel central que já pertenceu à produção
manufatureira. No sistema cultural, o individualismo e o narcisismo
adquirem vigor crescente (DE MASI, 1997). Os burocratas têm medo
da inovação, os criativos temem o imobilismo. As duas posições serão
cada vez mais inconciliáveis. Vencerão os mais criativos, porque a sociedade pós-industrial se alimenta de invenções; não tem outra saída
senão premiar a iniciativa e jogar para fora do mercado o imobilismo
(DE MASI, 2000).
Em conclusão, já vimos que a espécie humana é dotada de possibilidades e inúmeros comportamentos inteligentes, cada vez mais
diferenciados, conforme demonstram as invenções e as descobertas
que auxiliam e fazem parte da evolução de nosso mundo. É de Morin
o pensamento aqui expresso: “o desenvolvimento das competências
inatas anda a par do desenvolvimento das aptidões para adquirir, memorizar e tratar o conhecimento. É, pois, esse movimento espiral que
nos permite compreender a possibilidade de aprender. Aprender não
é apenas reconhecer o que de maneira virtual já era conhecido. Não
é apenas transformar o desconhecido em conhecido. É a conjunção
do reconhecimento e da descoberta. Aprender comporta a união do
conhecimento e do desconhecimento” (MORIN, 1995, p. 71).
Neste artigo, o talento e a criatividade não são concebidos como
dom, mas sim como conjunto de características e comportamentos
que podem e devem ser desenvolvidos e ampliados na interação com
o mundo, e que se apresentam em grande variedade de possibilidades. Para os talentosos nem sempre tem sido fácil demonstrar ou
expressar suas capacidades diferenciadas, pois há uma tendência à
conservação e à padronização.
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ENTRE O DRAMA E A
TRAGÉDIA: PENSANDO
OS PROJETOS SOCIAIS DE
DANÇA DO RIO DE JANEIRO
Monique Assis
Nilda Teves
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Os objetivos do presente estudo foram: a) explicitar as construções imaginárias
que norteiam as práticas cotidianas dos projetos sociais de dança no Rio de Janeiro; e b) identificar como se manifestam as relações entre o ensino da arte e a
formação para a cidadania na estrutura formal e no desenrolar cotidiano desses
projetos. Para tanto, utilizou-se uma trilha metodológica composta pela análise
do discurso, conforme a concepção desenvolvida por Eni P. Orlandi (1988;
1993; 1996), e pelos estudos de etnometodologia, apresentados por Coulon
(1995). As observações de campo se realizaram em dois projetos sociais e envolveram diferentes aspectos que ultrapassavam a dimensão da dança, mas que
são indissociáveis da produção de sentido gerada por essa prática. Características abrangentes do projeto, como localização, condições materiais, origem
e formação dos profissionais, se juntaram a detalhes como vestuário, murais,
gírias, corte de cabelo, enfim, indícios que denotam o imaginário do projeto e
as formas como os alunos expressam sua adesão e identificação com diferentes
vivências da dança. Na investigação perceberam-se outros significados para os
projetos, tais como heterogeneidade, identidade, divertimento, deslocamento
de sentidos nas relações entre ócio e trabalho, casa e rua, desilusão, imbricações com o patrocínio e os vários interesses em jogo, preconceitos, segregação.
Palavras-chave: favela, projetos sociais de dança, imaginário social
The present study’s objective was to: a) explain the imaginary constructions that
guide the daily practices of the dance social projects in Rio de Janeiro; and b)
identify how the relationships between the art teaching and the establishment
of the citizenship in the formal structure and in the daily development of these
projects are manifested. For this purpose, a methodology was applied combining the speech analysis technique according to the concept developed by Eni
P. Orlandi (1988, 1993, 1996) and the ethno-methodology studies presented
by Coulon (1995). The field observations occurred in two social projects and
involved different aspects that surpassed the dance realm but are inseparable
from the production of meaning generated by all this practice. The project’s
comprehensive features such as location, material conditions, origin, and professional training mingled with details like clothing, murals, slangs, hairstyles, in
short, signals that suggest the project’s image and the ways how these students
express their connection to and identification with different dance experiences.
This investigation brought up other significances for the projects such as: heterogeneity, identity, recreation, displacement of meanings in the relationships
between leisure and work, home and street, disappointment, imbrications with
sponsorship and the various interests at stake, prejudice and segregation.
Keywords: slum, dance social projects, social image
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INTRODUÇÃO
A Proclamação da República consolidou e remodelou a cidade do
Rio de Janeiro, sem, no entanto, permitir que se formassem cidadãos.
Isso parece um contrassenso, uma vez que a implantação do novo
regime, inspirado na melhor tradição da Revolução Francesa de 1789,
se propunha exatamente a trazer o povo para o proscênio da cena
política. É difícil imaginar uma República sem participação pública. Da
Matta e Soarez (1999) trouxeram à tona o caráter arbitrário e elitista
da situação. Segundo os autores, a reduzida participação popular no
processo de transição republicana conferiu-lhe um aspecto de surpresa, mais próximo do que se convencionou chamar de golpe. A massa
populacional foi tomada de assalto pela parada militar de Deodoro e
reagiu com incredulidade frente àquele evento aleatório e completamente exterior ao curso normal de seu cotidiano.
As ideias de uma democracia liberal estavam realmente sem contexto em nossa sociedade, ou, como diz Schwarz (2000), estavam definitivamente “fora do lugar”.
Refletindo sobre a disparidade entre a sociedade brasileira negra de
origem escravista e as ideias do liberalismo europeu, Sérgio Buarque
de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil, observa que a tentativa de
implantação da cultura europeia em nosso território, em geral adverso
em todos os sentidos, tornou-se, nas origens da sociedade brasileira, o
fato dominante e mais rico em consequências. Para o autor, “trazer de
países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições e nossas
ideias e tentar manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil caracteriza nossa história, somos uns desterrados em nossas
próprias terras” (HOLANDA, 2002, p. 31)1.
Essa expressão do autor pode ser estendida para a concepção de dança
acadêmica que foi trazida para o Brasil. O rigor dos padrões estéticos do balé
clássico russo e europeu não se adequava nem ao corpo arredondado, nem à
cor morena, e muito menos ao espírito dos brasileiros. Era como se um novo
corpo tivesse que ser construído.
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Era como se a elite carioca se julgasse europeia2, branca e superior,
em contraste com uma maioria negra ou mestiça, formada em grande parte por ex-escravos, que insistiam em contaminar a estética e a
cultura da cidade com seus hábitos perniciosos e primitivos e com sua
religiosidade impregnada de crenças indígenas e práticas africanas.
O enredo do drama carioca, portanto, delineava-se na dualidade de
duas ordens de valores, de duas morais: a moral do senhor, representada por uma elite participativa, e a moral escrava, serviçal, estranha,
porém útil, mas principalmente privada de qualquer direito político.
Uma leitura dessa dicotomia da cidade já estava presente, no início
do século XX, na obra de João do Rio, pseudônimo do jornalista e
escritor Paulo Barreto. Esse personagem lendário da historiografia do
Rio de Janeiro foi um dos primeiros a ler a cidade dual que se tornou
o Rio depois das reformas de Pereira Passos.
Era como se a cidade real, por onde circulava uma rica tradição
popular, não pudesse fazer parte da cena moderna. Como nos diz
Gomes (1996), era vista como obscena e deveria estar fora, para não
manchar o cenário ideal de cidade civilizada, cujo emblema era a
Avenida Central, inaugurada em 1909.
Vê-se que a favela, ao longo do século XX, foi se construindo como
um espelho invertido da cidade urbana e civilizada, e o favelado,
como um fantasma, um outro, foi percebido a partir do que se esperava de um cidadão urbano nos moldes europeus. Essas duas cidades, marcadas pela ordem e pela desordem, entram em conflito e
se complementam, se entranham e se estranham, desaprendendo e
aprendendo cada vez mais uma linguagem comum com que poderiam se comunicar.
O sonho dos dirigentes políticos de tornar a cidade do Rio de Janeiro uma
capital cultural nos moldes europeus fez com que, em 1909, fosse criado
o Theatro Municipal, com o objetivo de receber as companhias de danças
internacionais, e em 1927, se inaugurasse a primeira escola oficial profissionalizante de dança no Brasil, seguindo os padrões estéticos do balé clássico
europeu e russo.
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1 A DANÇA ARTÍSTICA SOBE O MORRO
Desde os anos 1990, vários coreógrafos e bailarinos que compõem
o cenário da dança artística do Rio de Janeiro estão investindo na vivência da dança em comunidades de baixa renda, levando as técnicas
de dança para corpos que, como tradutores do texto e do contexto
social, carregam em si o estigma da exclusão social. Tais coreógrafos
pesquisam as possibilidades estéticas da dança tendo como matéria-prima o cotidiano das favelas, ao mesmo tempo em que abrem espaço para a democratização da vivência da arte.
A dança artística sobe o morro pela ação de projetos sociais que
são, de certo modo, veiculados pela mídia e contam com o apoio de
patrocinadores governamentais e da iniciativa privada, cujos interesses
são diferentes e contrastantes.
No trabalho desenvolvido por Silvia Soter3 (2002), A dança no Rio de
Janeiro: uma alternativa contra a exclusão, foi elaborada uma cartografia dos projetos sociais em dança na cidade. Segundo a autora, o balé
clássico, a dança contemporânea, a dança de rua e as danças populares são alguns exemplos das práticas oferecidas para as comunidades.
Embora todas utilizem a dança como eixo comum, suas propostas diferem quanto a seus objetivos e metas.
O relatório final do estudo apresentou a catalogação de 32 projetos,
sem garantir a cobertura de todo o universo existente, descrevendo
seus conteúdos quanto ao estilo de dança e aos objetivos do projeto,
o número e o perfil das pessoas atendidas, os benefícios oferecidos
(cesta básica, serviço médico e odontológico, assistência social etc.),
características dos financiadores e investidores privados, tempo de
existência dos projetos, apresentações artísticas, entre outros aspectos.
O estudo de Soter revela uma significativa inserção de projetos sociais ligados à dança na cidade do Rio de Janeiro. Observa a autora
que tal fenômeno, já presente desde 1989, ganha vulto a partir de
Silvia Soter é formada em dança pela Universidade de Paris VIII e em Artes
pela PUC-RJ, além de ser crítica de dança do jornal O Globo. Seu estudo foi
patrocinado pelo Programa de Bolsas RioArte, do Instituto Municipal de Arte e
Cultura, e teve como objetivo mapear os projetos de prática de dança oferecidos gratuitamente a comunidades de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro.
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1998, quando surgem 26 dos 32 projetos catalogados, que desenvolvem propostas sociais e artísticas. Os profissionais envolvidos nos
projetos pesquisam as possibilidades estéticas da dança tendo como
matéria-prima o cotidiano das favelas, ao mesmo tempo em que abrem
espaço para a democratização da vivência da arte, elaborando temas
como: resgate da cidadania, recuperação da autoestima, da identidade cultural e étnica, inclusão social e construção de um futuro. Pautando-se no bordão da inclusão social, esses projetos entram em cena
no espaço social da favela e nos palcos da cidade, produzindo, além
de um espetáculo artístico, crenças, fantasias e ilusões.
Esses movimentos vêm, de certa forma, propondo sentidos alternativos à cidadania e à política, mediante a ideia da democratização
da arte. Trata-se de múltiplas ações e projetos sociais de resgate da
cidadania e construção do indivíduo promovidos por ONGs, Igrejas,
empresas e profissionais liberais. São movimentos que complementam
a ação estatal ou caminham em direção oposta, como resposta a uma
crise de cidadania. Pressupõe-se, nesse caso, que a sociedade civil
acaba participando na implementação de novas políticas públicas,
criando redes de sociabilidade e pontes de sentido entre o cidadão e a
sociedade, além de promover um processo educacional mediado pela
corporeidade. Isso porque a educação não se esgota na instrução de
conteúdos de conhecimento, ela passa necessariamente pelo corpo,
pela capacidade de sentir, ver, ouvir e tocar o mundo. Segundo Ferreira
(1993), o corpo todo do homem é seu limite de captação do mundo.
É, pois, mediante sua corporeidade que a pessoa chega às coisas.
Um projeto social de dança trafega por duas linguagens, por duas
formas de ver o mundo. Por um lado, sendo um projeto social, traz
consigo questões que norteiam o pensamento moderno, como direito
à cidadania, desigualdades sociais, marginalidade e alteridade. Por outro, o fato de lidar com a dança se depara com a dimensão anárquica,
plástica e trágica da arte de se embrenhar pelas fissuras do instituído
e transformá-lo.
Considerando essas reflexões, o presente estudo se desenvolveu a
partir de três objetivos principais:
a) Investigar os sentidos de dois projetos sociais de dança oferecidos
gratuitamente a comunidades de baixa renda da cidade do Rio de
Janeiro, conforme expressos nos discursos dos alunos.
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b) Explicitar as construções imaginárias que norteiam as práticas cotidianas desses projetos.
c) Identificar como se manifestam as relações entre o ensino da arte
e a formação para a cidadania na estrutura formal e no desenrolar
cotidiano dos projetos.
Como estratégia metodológica, optou-se por trabalhar o imagi­
nário presente nos discursos dos alunos dos projetos de dança
trilhando diversos percursos. Dentro dessa temática, Gilbert Durand,
em seu livro O Imaginário (1999), aponta para outras combinações
de análise, que fogem de uma lógica binária, as quais ele denominou de bacia semântica, em que A não necessariamente segue B
e tampouco C; há, de fato, uma pluralidade de combinações, produzindo diferentes sentidos. Para tornar o termo “bacia semântica”
mais claro, pode-se pensar no curso de um rio, constantemente
regulado pelo fluxo de seus afluentes: o rio representa o superego institucional e seus afluentes e escoamentos trazem o que é
marginal, seus mitos condutores, seus motivos pictóricos, tudo o
que se mistura com o instituído e que, necessariamente, transforma
seu curso.
2 RESULTADOS
As observações de campo envolveram diferentes aspectos que
ultrapassavam a dimensão da dança, mas que são indissociáveis da
produção de sentido gerada por essa prática. Características abrangentes do projeto, como localização, condições materiais, origem e
formação dos profissionais, se juntaram a detalhes como vestuário,
murais, gírias, corte de cabelo, enfim, indícios que denotam o imaginário do projeto e as formas como os alunos expressam sua adesão e
identificação a diferentes vivências da dança.
Qualquer observação de campo é arbitrária e incompleta se não
incorpora a complexidade e a dramaticidade das experiências observadas e vividas. Cada projeto se constitui em um universo de sentidos
que se apresentam e se velam a todo instante. Mesmo assim, após as
observações, o bate-papo com os alunos e coreógrafos e o compartilhamento de momentos singulares começaram a revelar pistas sobre
os significados daquelas práticas.
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Os alunos, em geral, gostam de dar depoimentos sobre sua experiência dentro e fora da dança, revelando orgulho de fazer parte daquela
tribo, sem, contudo, deixar de apontar a realidade que eles vivem
fora do projeto. Segundo Maffesoli (1987), a constituição dessas tribos
se faz a partir do sentimento de pertença, em função de uma ética
específica e no quadro de uma rede de comunicação.
Na medida em que as histórias de vida eram relatadas, a pluralidade, a heterogeneidade e a riqueza de experiências recheavam aqueles
discursos, mostrando desde o início que o que fora visto nas reportagens jornalísticas em relação aos projetos não abarcava a complexidade do todo. Outros sentidos começaram a emergir.
Na interpretação das reportagens de jornal observou-se que, de
modo geral, os discursos se baseavam em premissas falsas, as quais,
como aponta Orlandi (1993), foram consideradas verdadeiras por
uma produção ideológica historicamente construída e reforçada ao
longo dos anos. O discurso social do asfalto considera que todos os
jovens dos morros da cidade do Rio de Janeiro são iguais, possuem
uma só face de favelado – ou seja, são o outro da cidade, o feio, o
preto, o pobre – e que precisam ser salvos, corrigidos ou inseridos
urgentemente.
As premissas da “salvação”, recorrendo ao imaginário religioso, da
“correção”, sob o viés da moralidade, e da “inserção”, dentro de uma
perspectiva política, são formas elegantes de exclusão, uma vez que as
soluções assistencialistas, na maioria das vezes, não atendem às questões relativas ao direito à diferença (DEMO, 1998).
Retornando à cidade partida, parte-se do princípio de que toda divisão de classes é definida por uma determinação econômica; os ricos
moram no asfalto e os pobres e miseráveis nos morros. Entretanto, a
partir dessa primeira divisão vieram outras, que não mais se reportavam
a um fato, mas que foram se construindo simbolicamente no imaginário
das pessoas. Ser favelado, por derivações morais estabelecidas pela ideologia dominante, abarca as questões da etnia, ou seja, significa ser negro; da ordem social, significa ser desviante; da cultura, ser aculturado;
da sociedade, não exercer a cidadania; das artes, não possuir qualquer
acesso; e da educação, ser quase analfabeto, por uma questão de precariedade do ensino público, ou mesmo por uma dificuldade de aprendizado oriunda de uma debilidade genética inerente à sua origem.
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Essa homogeneização do discurso foi enfocada nos estudos de
Preteceille e Valladares (2000), que revelam que seria ingênuo considerar o universo das favelas como uma unidade ou um espaço homogêneo, pois elementos indicativos de sua diversidade logo aparecem:
localização dentro da cidade; relevo do terreno; antiguidade; grau de
consolidação das construções; verticalização; nível dos equipamentos
e serviços; condição jurídica de ocupação; presença ou não de “organização” de tráfico de drogas. Muitas vezes a arquitetura pode até
se mostrar monótona, apresentando algumas semelhanças no tipo de
material de construção, nos quintais, nos tipos de portas e janelas e até
na distribuição dos cômodos, mas logo as diferenças se definem nos
acessórios que se destacam no interior das casas, pelo tipo de mobília,
pelos aparelhos eletrodomésticos: fogão de seis bocas, freezer, presença de aparelhos eletrônicos, como televisores, videocassetes, DVDs,
CDs e computadores.
Os acessórios funcionam como símbolo de status, uma forma de
comunicar as distinções sociais. É o que Bourdieu (1992) chama de
“capital simbólico”, referindo-se ao acúmulo de bens de consumo que
atestam a classe social de quem os possui. Entretanto, esse capital não
é estático, ele só se mantém como capital simbólico na medida em
que se cria em torno dele uma produção de sentidos que faça com
que ele atenda aos desejos dos consumidores. Muitos adolescentes
entrevistados fizeram questão de mencionar que passavam o dia “jogando videogame, e do último tipo, minha madrinha me deu de Natal”. Mais que um simples jogo, o videogame é um símbolo.
Avançando além das questões econômicas e geográficas, a diversidade da favela também aparece na coloração da pele, no nível de
escolaridade, na vivência da arte, nas experiências de vida, nos gostos,
desejos e fantasias, na religião, nos princípios morais, enfim, existe
um universo de diferenças de uma favela para outra e dentro de uma
mesma favela.
Pode-se dizer que a favela é composta por várias tribos, com mecanismos de regulagem muito sofisticados e distintos. Segundo Maffesoli
(1987), de fato existe uma partilha geográfica e simbólica de territórios, formando vários reagrupamentos, que se apoiam em múltiplas
sociabilidades. Para o autor, “o coeficiente de pertença não é absoluto, cada um pode participar de uma infinidade de grupos, investindo
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em cada um deles uma parte importante de si” (p. 202). O espaço
social compreende várias redes flexíveis de jogos de linguagem, em
que vários códigos são compartilhados por um determinado grupo.
Essa pluralidade de tribos torna o conceito de “cidade partida” pouco
abrangente, uma vez que ele traduz uma dicotomia que reduz em
dois os territórios da cidade. Contudo, tanto a favela quanto a cidade se constituem em uma multidão de aldeias, onde as pessoas se
enraízam, se retraem, buscam abrigo e segurança. Enfim, a cidade é
um grande mosaico urbano ou, como aponta Harvey (1996), o tecido
urbano é uma colagem de espaços e misturas altamente diferenciados.
Quando se entrevista os jovens que moram nos morros, se apreende
que há uma diversidade de experiências de vida tão grande que o
asfalto, aprisionado em sua miopia e seu autocentramento narcísico,
nem sonha conhecer. Vianna (1997), ao estudar o fenômeno dos bailes funk no Rio de Janeiro, relata essa mesma tendência e comenta
que os subúrbios da cidade são sempre considerados como territórios
inexplorados e selvagens, “onde um antropólogo pode descobrir ‘tribos’ desconhecidas como se estivesse na floresta Amazônica” (p. 12).
O que ocorre é que muitas tribos do asfalto (os jesuítas modernos)
desconhecem o que se passa nas favelas (índios) e, muitas vezes, são
eles (os jesuítas) que determinam o que, quando e onde devem ser
feitos os movimentos de intervenção social (catequese).
3 O PROJETO I
O Projeto I teve seu início em 1997, em uma favela da Zona Norte da
cidade do Rio de Janeiro, e desenvolve um trabalho de dança e teatro
com jovens e crianças da comunidade. Atualmente funciona no morro
e também em um sobrado antigo situado numa rua do mesmo bairro.
As atividades oferecidas são: balé, dança afro-brasileira, dança moderna/jazz, mobilidade articular, expressão e consciência corporal,
pesquisa de movimento, laboratório de coreografia, contato e improvisação, interpretação, inglês e cidadania.
Já passaram pelo Projeto 325 pessoas entre 7 e 25 anos, e atualmente ele conta com 113 alunos de dança e 19 alunos do curso técnico de
som e iluminação. O Projeto se mantém pelo patrocínio da Petrobras
e pelos cachês das apresentações.
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3.1 AS VISITAS
O primeiro contato da pesquisadora com o Projeto I se deu na I
Jornada de Dança e Inclusão, realizada na Universidade Gama Filho
em 2000, quando foi feita uma apresentação de dança/teatro com
diálogos e coreografias que tinham como tema a realidade social que
eles viviam no morro, com destaque para a questão da miséria, da violência e da etnicidade negra. Outros encontros se deram em apresentações e mesas-redondas e, por conta do presente estudo, em visitas
periódicas às sedes do Projeto para registro de observações de campo
e entrevistas.
A primeira visita se deu na sede do Projeto, que fica na subida do
morro. Logo se percebeu que as ruas da favela possuem uma ordenação espacial bastante diversa e surgem aos nossos sentidos de modo
insólito, apresentando sérios problemas de orientação para os que não
estão familiarizados com o local. Possuem uma lógica topográfica e,
por que não dizer, uma gramática de valores bastante peculiares, inoculando em seus moradores gostos, costumes, hábitos, modos e opiniões
políticas e contribuindo para tornar os moradores do asfalto cada vez
mais estrangeiros no local.
A sede do Projeto tinha uma sala de dança com espelhos na parede
e outras salas que podiam atender a diferentes atividades. Parecia ser
também um espaço para encontro de jovens. O local era limpo e todo
pintado de branco.
Uma segunda visita, quando foi realizado todo o trabalho etnográfico, se deu na outra sede, um sobrado antigo e adaptado para abrigar
as atividades do Projeto. A sala de aula tinha padrões considerados
razoáveis para uma escola de dança: 63 metros quadrados de área,
piso de linóleo4, espelhos e barra em toda a sua volta, um escritório
de coordenação com sofá e computador, uma pequena recepção com
uma secretária oriunda da comunidade, uma biblioteca e uma cozinha “para as crianças poderem lanchar5”, segundo a coreógrafa, e um
Piso emborrachado adequado para a dança em sala de aula e no palco.
As crianças fazem as refeições na sede para que possam se deslocar da
escola diretamente para o projeto, utilizando o uniforme escolar, e assim economizar no tempo e no gasto com transporte.
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banheiro misto. Todo o acabamento do local era bastante simples,
com paredes cinza, chão de madeira, louças brancas e um mural coberto por folhas impressas com diversas informações.
Fui assistir a um espetáculo. Emocionante. Muito criativo. Muito diferente. Em termos de dança, uma companhia ainda nova, crua em
termos de técnica, porém com bastante expressividade. Como se eles
soubessem o que queriam passar teatralmente. Tinham muita força
para representar o que estavam sentindo e o que viviam. Havia muita
improvisação, muito estudo do movimento, muitas experimentações
cênicas. Gostei!
O debate em si já era emocionante, toda a companhia participava
e todos falavam. Impressionante como aqueles jovens eram alegres
e articulados para falar, muito mais que qualquer bailarino de classe
média, pensei. Falavam sobre a experiência na dança, sobre o preconceito. Fiquei maravilhada.
Logo percebi uma conscientização política que passava, principalmente, pela fala da coreógrafa. Ela dizia: “Falo sobre as coisas que me
indignam, sobre o que as pessoas não querem ver”.
Quando a plateia começou a participar do debate, a questão sobre o
que movia as pessoas a assistirem ao espetáculo começou a ficar mais
clara. As pessoas olhavam para a coreógrafa como se ela fosse uma
pessoa especial, “salvando” aqueles jovens. Tudo me soou como uma
espécie de idealização ideológica e religiosa. O olhar e as palavras
proferidas pela plateia eram de admiração. Mas não de um êxtase
provocado por uma obra de arte.
O aspecto artístico parecia não ser o principal. Dois comentários da
plateia confirmaram minhas intuições. Uma moça falou: “Como foi
apresentar esse trabalho em uma mostra de dança?” (a mostra a que
ela se referia ocorre todo ano, ocasião em que várias companhias de
dança conhecidas se apresentam em teatros espalhados pela cidade).
A coreógrafa respondeu que tinha sido muito legal e que, afinal, eles
eram uma companhia de dança, o que, subliminarmente, deixava claro que eles não se representavam como pobres e favelados que tiveram a oportunidade de dançar, mas como artistas bailarinos.
A segunda pergunta foi ainda mais significativa. Na verdade não foi
uma pergunta, foi uma colocação que mais ou menos dizia assim: “Eu
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estou muito emocionada, achei o trabalho fantástico, você conseguiu
fazer um espetáculo belíssimo sem nenhum ator ou bailarino.” A coreógrafa logo retrucou: “Eles são todos atores e bailarinos.” A moça logo
retificou o que disse, explicando que se referia a bailarinos famosos,
visto que alguns projetos colocavam a Ana Botafogo para dançar com
as bailarinas. E seguiu se justificando. Tarde demais.
Diário de campo (12 de março de 2003)
3.2 AS AULAS DE DANÇA
As aulas acontecem durante todo o dia, várias turmas entram e
saem, ocupam os corredores e a cozinha, conversam, se arrumam ou
se desarrumam, dependendo da aula a ser feita.
Uma das aulas observadas foi a de dança contemporânea, ministrada por professor formado pela própria companhia. A inserção dos
alunos no ensino da dança é uma característica destacada pelo professor: “Depois de toda a nossa vivência, nós devemos ser agentes multiplicadores. Não dá para ficar somente dançando e se apresentando.”
Essa prática possui outros desdobramentos, pois esse mesmo professor
também trabalha em outros projetos sociais e centros culturais.
A fala do professor sugere algumas pistas, que se evidenciaram no
decorrer da análise. A ideia de multiplicação revela um caráter de missão, isto é, de um dever a cumprir. Uma missão de transformação da
realidade social, ou uma missão religiosa que envolve a disseminação
de uma crença. Existe uma construção ideológica do esquema temporal, em que, como aponta Ansart (1978), o passado, o presente e o
futuro se coordenam e proporcionam à ação presente uma plenitude
de significados. A ideia de evolução, numa perspectiva de esquerda, se
baseia num esquema de invalidação do passado, que sublinha toda a
gênese da injustiça e da exploração social que se pretende erradicar. O
que o professor quer é transformar a realidade social, criar alternativas
contra o recrudescimento da miséria e da segregação racial e social.
A dança, portanto, ainda não deixou de ser associada a aspectos
funcionais. Por que “não dá para ficar somente dançando e se apresentando”? Mesmo que todo o processo seja temperado por momentos lúdicos e artísticos, isso é silenciado no discurso, ressurgindo, porém, no significado de sua prática no dia a dia.
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As aulas de dança contemporânea observadas revelam a grande
mistura de linguagens presentes no Projeto , como: elementos de solo
da dança moderna com ênfase nos movimentos de contração e expansão e alongamento, elementos de força da dança contemporânea
e gestos influenciados pela dança de rua e pela dança afro-brasileira.
Na vivência corporal, outros imaginários são resgatados, proporcionando um distanciamento de aspectos mais ligados ao utilitarismo e
uma aproximação da dimensão artística e lúdica.
Essa corporeidade, desprendida de um discurso racional, permite
que os mitos e os deuses da mitologia negra sejam evocados no palco.
Há nos espetáculos um resgate das origens étnicas, ao mesmo tempo
em que o cotidiano atual do morro também é coreografado. Essa tendência de levar o morro para o palco se assemelha à corrente bauschiana, que transporta gestos cotidianos para a cena, dando-lhes uma
dimensão estética.
O próprio fato de levar a pobreza dos gestos cotidianos contemporâneos para o palco ou algumas danças socialmente consagradas já
é uma forma de denunciá-los, de mostrar seus limites e interdições
e a partir daí transformá-los. A improvisação, a retórica urbana e os
objetos ordinários que compõem o cenário das favelas, como sacos
de lixos, ganham uma dimensão estética e toda uma outra rede de
sentidos quando postos em cena.
Essa ideia de transformação abre espaço para uma plasticidade semântica, em que a ação de dar uma nova forma pode ser vivida de
várias maneiras. Dar nova forma ao cotidiano pode significar que a
rotina será alterada, que novas relações serão formadas, que outros
mitos e crenças serão reavivados, que os desejos podem mudar, enfim, que outras formações simbólicas permearão o cotidiano desses
jovens, criando novos sentidos a partir das novas experiências vividas.
Diferentemente da cristalização de sentidos do discurso social mostrado nos jornais, transformar não passa só pela ideia de abandonar
a favela e ser incorporado no universo do asfalto, ou deixar de ser
desviante, ocioso, mundano, ou de se perder na vida optando pelo
espaço da rua. O verbo transformar é polissêmico, é vivido por cada
bailarino de forma singular e única. Não existe um modelo de transformação quando se pensa em uma experiência artística, lúdica, criativa.
Cada um se transfigura de modo diferente a partir da arte.
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3.3 A AULA DE CIDADANIA
Logo colocaram a professora de cidadania para conversar comigo. Ela
me explicou o que fazia, fiquei pensando a razão da inserção daquela
aula em um projeto de dança.
Diário de campo (14 de março de 2003)
Entre as muitas aulas de dança, os bailarinos também têm, semanalmente, aulas de cidadania, compondo o conteúdo curricular do Projeto .
A aula de cidadania é dada por uma jornalista, que utiliza primordialmente jornais como material didático para gerar temas para discussões. “Eu não fico falando sobre coisas que estão fora do universo
deles, eu lido com fatos diários, abordando questões que vão desde a
economia do país e os direitos do cidadão a dicas de saúde, alimentação, cuidados com o corpo, sexualidade”, disse a professora. E revelou
que muitas vezes precisa iniciar o tema de cidadania falando da necessidade de existir para a sociedade, “e o primeiro passo está na certidão de nascimento, que muitos não têm”. É interessante pensar nos
dados populacionais oferecidos pelo IBGE e a quantidade de pessoas
que não possuem sequer registro de nascimento; ou seja, existe uma
camada da população invisível aos olhos do Estado, cuja cidadania é
prematuramente inviabilizada.
A professora conta que é solicitada pelos alunos e suas famílias, que
a consultam sobre situações como falta de luz, cobrança indevida das
contas de telefone, como tirar documentos ou como cozinhar de forma saudável6.
Analisando com mais rigor essa questão, indaga-se o porquê da
inserção diária de aulas sobre “cidadania” em um projeto artístico.
Existem algumas construções imaginárias que estariam regendo o programa curricular do Projeto? É possível que a aula de cidadania seja
usada para lhes dar legitimidade, justificando sua “relevância social”,
reproduzindo o imaginário que circula na sociedade de que, para um
projeto ter importância, valor e patrocínio, deve estar vinculado a uma
A professora diz que ensina como preparar comida macrobiótica, e anda o
tempo todo com uma foto que a mostra com 40 quilos a mais. “Acho que isso
impressiona os alunos, eles aderem à dieta rapidinho”, diz ela.
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ideia de funcionalidade? A prática da dança em si não seria suficiente?
Só dançar? Para quê?
Um projeto que valorizasse maciçamente os aspectos mais sensíveis,
estéticos e lúdicos do indivíduo talvez não obtivesse reconhecimento
social, nem mesmo dentro do próprio grupo, que tem como pressupostos a valorização étnica e uma perspectiva de transformação social.
O direito à arte, à ludicidade, à fantasia, ao sonho e ao lazer não são
questões suficientemente “relevantes” para sustentarem um projeto
social, como se a educação não passasse também pela capacidade de
sentir, ver, ouvir e tocar o mundo.
O mesmo acontece em relação às exigências feitas aos alunos. Todos
devem estar matriculados na escola para participarem do Projeto, a
“Petrobras exige isso para dar o patrocínio”, diz um aluno. Contudo,
a maioria revela um grande desinteresse pelo espaço social da escola,
muitos afirmam que só a frequentam para não serem expulsos do Projeto, outros a frequentam por desejo das mães e alguns revelam que
“terminar o segundo grau é a única forma de fazer uma faculdade de
artes cênicas, educação física ou dança”.
O Projeto, ao valorizar a aula de cidadania nos moldes formais
ou exigir que os alunos frequentem a escola para poderem dançar,
abre espaço para que a fala do instituído penetre num universo
essencialmente artístico. O discurso hegemônico se infiltra através
de pequenas brechas e não para de se reproduzir, o que pode levar
a um empobrecimento da potência artística e lúdica de criação do
Projeto, uma vez que pode funcionar como agente inibidor das
paixões e das emoções. Entretanto, sem capital o projeto fenece. É
necessário ter capital para realizá-lo; ao mesmo tempo, é prudente
controlar sua voracidade, sob pena de empobrecer todo o conteú­
do artístico.
3.4 OS ALUNOS
Os alunos são predominantemente negros e em sua maioria residem
no morro, embora alguns venham de outras comunidades. Existe uma
adesão muito grande de homens, o que não é comum no meio da
dança, principalmente com adolescentes. Talvez, mais do que a possibilidade de se conseguir algumas vantagens por fazer parte de um
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projeto social7, o próprio estilo de dança baseado nos elementos de
cultura corporal8 dos alunos é significativo para eles e, principalmente,
se distancia do estereótipo feminilizante atribuído ao balé clássico.
Um dos alunos chegou a comentar que no início não se autodenominava bailarino, pois tinha vergonha do que os amigos iriam dizer: “Quando me perguntavam, eu dizia que era passista, aprendiz de mestre-sala
do Salgueiro Mirim, até rei Momo, qualquer coisa, menos bailarino.” O
bailarino foi criando uma polissemia da dança para poder se explicar. Ao
associá-la com o samba, daí a ideia de passista, ou com as escolas de samba e o Carnaval em geral, ele tenta pertencer a algo que já é legitimado
pelos pares e usa um acordo de falas para não ser considerado diferente.
Hoje em dia, ser bailarino do Projeto I, segundo esses alunos, é
possuir referências, é pertencer a um tipo de linguagem, é ser reconhecido entre os pares do morro e do asfalto. Um aspecto interessante
observado é que há professores que dão aulas em vários projetos, alunos
que fazem apresentações especiais em outras academias, bailarinos e
coreógrafos que são convidados para dançar no Projeto I, enfim, bailarinos do asfalto e do morro se misturam, se diferenciam e se igualam,
desenvolvem parcerias, trocam saberes e dividem uma mesma cena.
No momento das trocas não há pobre ou rico, o que se vê são bailarinos. De fato, se por um lado eles se diferenciam em seu modo de
inserção social, por outro eles compartilham códigos, vínculos simbólicos que os aproximam uns dos outros, representações coletivas. Não
importa se alguém é branco ou preto, o que importa é se a perna sobe
180 graus, se a pirueta é em quarta ou segunda posição, ou se fulano é
alongado, talentoso, exibicionista, entre outras coisas. Xiberras (2000)
afirma que qualquer perspectiva de inserção ou inclusão tem necessariamente que passar por longo caminho até que espaços reais para as
trocas simbólicas sejam abertos.
O Projeto oferecia uma bolsa de R$50 para cada aluno.
Um ensino a partir da concepção de cultura corporal, de acordo com a
interpretação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), pode ser relacionado à estrutura desse projeto, uma vez que tem como proposta valorizar as
formas de expressão que os alunos trazem da comunidade, resgatar elementos
de uma etnicidade menosprezada pela “cultura branca” dominante e, a partir
daí, criar uma nova linguagem artística.
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A participação no Projeto permite que novos códigos sejam internalizados e que sejam construídas pontes de sentido entre os indivíduos
e a dança, ou seja, a prática da dança os inclui, lhes dá sentido de pertença e de filiação. Isso também pode ser percebido nos bate-papos
antes das aulas, nos períodos de descanso ou nos camarins antes das
apresentações. Tudo gira em torno de eventos, associados às vivências
proporcionadas pela prática artística. Pode-se dizer, entretanto, que
são momentos efêmeros de igualdade social, pois não são transformadas as condições objetivas de vida.
3.5 O LAZER
Conversei com os bailarinos e perguntei o que havia mudado na vida
deles com o Projeto. Duas coisas chamaram a atenção: a ideia de disciplina e uma rejeição aos bailes funk. Talvez o baile funk represente o
Outro da disciplina. É a festa versus a ordem. O projeto, então, parecia
estar na categoria da ordem, mas não era só isso.
Diário de campo (15 de março de 2003)
Quando perguntados sobre o que fazem nos momentos de lazer,
aos sábados e domingos, os alunos falavam do lugar social do Projeto,
ou seja, incorporavam discursos normativos para tentar reforçar sua
posição de não desviante. Desse modo, temas como “ficar na rua”,
“ficar à toa” ou frequentar bailes funks eram prontamente evitados. “Eu
agora estou mais calmo. Estou saindo pouco, não tenho muito tempo e
às vezes estou muito cansado...”. Ou, como disse outra bailarina: “Eu
fico em casa, vendo televisão. Lá onde eu moro é meio perigoso. Tem
dias que tem hora para chegar e hora para sair. Prefiro ficar quieta em
casa...” Se, por um lado, a violência é um dado de realidade na vida
contemporânea, ela não é o único fator que apaga do discurso desses
jovens a representação da rua. Parece existir uma moral que constantemente policia suas expressões mais soltas. O discurso instituído visto nas reportagens dos jornais também surge nos projetos, ao menos
como um acordo de falas entre os bailarinos e o pesquisador externo.
Muitas vezes os bailarinos colocam a participação no Projeto como
um divisor de águas em suas vidas. “Antes eu só zoava por aí ou ficava pensando besteira...”, disse um bailarino. E outro: “Eu ia a todos
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os bailes funk da minha comunidade e de outros lugares, mas agora,
quando você começa a entender de música e dança, não tem mais
saco de ir a esses lugares...”
Todo processo de ensino da arte certamente transforma os indiví­
duos em sua capacidade de sentir o mundo, uma vez que os bailarinos desenvolvem outros gostos, novos vocabulários e outros modos de
fruir a arte. Entretanto, o baile funk está na ordem do lazer, do divertimento e da festa, ele não pode ser visto como o Outro do Projeto,
não pode ser substituído por algo que esteja na dimensão da ordem,
e sim por novas formas de ludicidade, expressividade, sensualidade e,
principalmente, desmedida. Por que, então, ele deve ser enfaticamente negado? Frequentar os bailes assume um estatuto de transgressão
social, étnica e moral, além de figurar na lista dos pecados a serem
evitados.
Vianna (1997) aponta para algumas pistas referentes a essa questão.
Em primeiro lugar, as ideias de conscientização negra, que originalmente circulavam no mundo funk durante o tempo da Banda Black
Rio e se tornaram emblemáticas pelas músicas de James Brown9, não
estão mais presentes, ou seja, não há qualquer tipo de proposta política que envolva a questão da etnia, da superação do racismo ou
do resgate do orgulho de ser negro no movimento funk. Outro ponto
importante, segundo o autor, é que muitas vezes as roupas e gírias usadas nos bailes são parte integrante do estilo de vida dos traficantes e
ladrões cariocas. Afirmar que todos os bandidos da cidade frequentam
o mundo funk não é justificável, “mas que existem relações entre os
dois mundos, como entre o funk e o pagode, isso me parece evidente”
(p. 104).
E, por fim, outro ponto do baile funk que o faz ser tão odioso para
a sociedade é que ele “não serve para nada”, não há de fato nenhuma funcionalidade nessa folia. Os bailarinos se divertem como se o
mundo fosse acabar, naquele momento não há passado nem futuro,
James Brown, em 1968, em um movimento de conscientização dos negros
norte-americanos, cantava: “Say it loud – I’m black and I’m proud”. Segundo
Vianna (1997) James Brown era um dos cantores mais tocados nos bailes
da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1970, dentro do espírito “black is
beautiful”.
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é o tempo vivido. O baile funk está na dimensão da festa, por isso seu
caráter efêmero e subversivo. A festa traz à tona tudo o que é combatido, como a desordem, o esbanjamento, a diversão e o vício e, entre
outras coisas, abre as percepções, anima os sentidos, enfim, propõe
experiências humanas que não se esgotam na racionalidade produtiva10. “A festa é excesso em todos os sentidos, para não fazer sentido
algum” (VIANNA, 1997, p. 108).
3.6 SER ARTISTA
Comecei a circular. Observei que os alunos eram em sua maioria negros e pardos. Todos se vestiam de forma artística, era uma faixa colorida na cabeça, os cabelos de trancinha, dreads, roupas soltas. Em
momento nenhum pareciam querer copiar algum modelo do asfalto,
possuíam uma estética própria, sempre procurando um resgate da cultura negra. Pareciam misturar um estilo artístico com uma valorização
da cultura negra.
Diário de campo (20 de março de 2003)
Ser artista não reside em reproduzir modelos do asfalto. Embora
atualmente o grupo se apresente em diversos locais e seja coreografado por bailarinos do asfalto e do exterior, a arte está em buscar novas
formas de expressão levando-se em conta toda a sua história.
Isso pode ser facilmente observado na estética incorporada pelos
alunos no cotidiano. Os cabelos nunca são alisados, ao contrário,
usam elementos que destacam suas características étnicas, como black power, trancinhas, dreadlocks, permanente afro, cordinha, sem
contar as faixas e os lenços utilizados nos penteados, havendo alguns
alunos que se especializaram em produzir as barbas e cabelos dos
colegas. As roupas, por sua vez, realçam as linhas e as curvas dos
corpos, em oposição ao estilo predominante no vestuário da dança,
que busca destacar um biótipo longilíneo. De acordo com Maffesoli
(1987), quando uma tribo começa a existir, seus componentes deixam de ser massa e singularizam-se em um grupo específico, com
Para entender a complexidade das relações entre a festa e a sociedade
moderna, conferir Duvignaud (1982).
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novos códigos a serem compartilhados. No caso, é a tribo dos atores/
bailarinos negros e pardos.
A dança que eles dançam também possui características particulares. Ao mesmo tempo em que uma técnica acadêmica, como o balé
clássico, é ensinada e aprimorada diariamente, existe a valorização do
que lhes é singular, as origens, os movimentos corporais, o tipo físico, a
musicalidade e a experiência de vida. “Utilizo os elementos da favela
como material cênico. Em vez de esconder, trago para a cena o lixo, os
cobertores, o funk, a violência urbana, o preconceito, as brincadeiras,
as gírias”, diz a coreógrafa, que enfatiza sua posição de artista, e não
de assistente social. “Minha motivação é artística, tudo o que vejo é
levado para o palco”.
A fala da coreógrafa, de certa forma, vai de encontro às falas atribuí­
das às coreógrafas do discurso jornalístico. Se nos jornais elas aparecem sob o véu do discurso religioso de salvação e caridade, dispostas
a se sacrificarem para ajudar crianças a fugirem do inferno, no caso
representado pela polissemia da rua, o desejo da coreógrafa do Projeto I de levar a dança para as comunidades carentes está norteado por
questões artísticas.
A representação dos alunos também se transforma. Se para os jornais eles são vistos como desvalidos, excluídos, marginais ou mendigos, para a coreógrafa do Projeto I, eles são alunos de uma escola de
arte, que se preparam para desenvolver novas formas de dançar e de
se relacionar com o mundo.
Isso não quer dizer que seu discurso não tenha também um forte
conteúdo ideológico: “Gosto de levar ao palco as coisas que me indignam, para ver se os próprios alunos e o público são profundamente
afetados, por terem que ver o que geralmente todo mundo tenta esconder”. A arte, para a coreógrafa, em alguns momentos, passa pelo
viés de conscientização e transformação social, como se a arte servisse
para afastar qualquer tipo de pensamento ingênuo e livrar os indivíduos da “alienação” em que eles vivem. Ela, inclusive, se utiliza da
expressão guerrilha cultural para denominar esse tipo de ação. Será
que esse é o papel da arte?
Este pode até ser um desdobramento da arte: sensibilizar as pessoas para questões referentes às injustiças sociais, mas não pode ser
sua essência. E, se esse for um desdobramento, por que ser mostra-
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do justamente por bailarinos negros e pobres, moradores de favela?
É, novamente, estigmatizá-los e reduzi-los a só uma possibilidade de
expressão, obstruindo alguns caminhos criativos, deixando pouco espaço para a revolução do novo.
Tudo parecia muito organizado, e como eu já vinha acompanhando
o trabalho dessa companhia há alguns anos, percebi que estava tudo
bem estruturado. Não era só uma companhia de dança, mas um projeto pedagógico de formação de cidadania com objetivos bem definidos. Fiquei com medo de toda essa organização abandonar o caos
necessário para a criação artística. Lembrei de Nietzsche.
Diário de campo (22 de março de 2003)
4 O PROJETO II
Dois bailarinos/coreógrafos com ampla formação em balé clássico e
dança contemporânea e com passagens pelos principais balés da Europa e dos Estados Unidos vieram para o Brasil, a partir de um convite
da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro, para montar
uma companhia de dança contemporânea carioca e um projeto social
em dança.
Com a formação da companhia, o grupo de profissionais concebeu
um projeto social que tem como prioridade o ensino do balé e da
dança contemporânea para crianças e adolescentes de comunidades
de baixa renda da cidade. Até a realização desta pesquisa, cem jovens já haviam passado pelo Projeto. Esses jovens são oriundos da
Vila Olímpica da Maré, da Cia. Étnica de Dança e da Fundação Darcy
Vargas. O patrocínio vem do repasse da Prefeitura, embora os organizadores tenham comentado que não lhes foi repassado tudo o que
foi prometido. “A gente está aguentando quanto pode, mas é muito
difícil trabalhar no Brasil. Nós tínhamos um projeto, que na verdade o
prefeito nunca ‘canetou’, tudo ainda é meio incerto, não dou garantia
desse projeto social, e até da companhia durar muito mais tempo. Eu
vim da Europa com uma proposta concreta, de montar uma companhia de dança contemporânea na cidade e um projeto social, mas as
coisas, as promessas e o dinheiro ficaram mais no papel do que na
realidade”, diz o coreógrafo.
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A expressão “canetar”, utilizada no discurso do coreógrafo, significa
tornar oficial o acordo, “assinar embaixo”, estar formalmente comprometido com o Projeto. O fato de o prefeito não querer firmar o
acordo, mesmo que algum dinheiro esteja sendo repassado, denota
as bases frágeis ou talvez excessivamente burocráticas em que esses
projetos culturais e sociais muitas vezes se constroem, daí seu caráter
efêmero e sua frouxidão na determinação de objetivos e metas.
Se as coisas não se oficializarem nem se tornarem uma proposta
municipal de incentivo às artes, ou seja, se ficarem no plano pessoal
do conluio, do conhecido “jeitinho” brasileiro e do favor, nunca passarão pela categoria do direito. O Estado, ao se furtar de assumir um
compromisso, vai ao encontro dos preceitos do liberalismo lockeano. Não havendo impessoalidade nas relações nem universalidade de
princípios, se toda essa iniciativa não é regida pela questão do direito,
como se pretende formar “cidadãos dançantes”? É interessante conferir o título da reportagem do jornal O Globo do dia 24 de outubro de
2000: “O Rio é a nova menina dos olhos do coreógrafo dos cidadãos
dançantes”.
4.1 AS VISITAS
O Projeto II acontece num armazém na Zona Portuária da cidade
do Rio de Janeiro, na praça Mauá. As aulas de dança se realizam no
palco de um anfiteatro de aproximadamente 80 metros quadrados de
área, onde foram adaptados espelhos, barras e o piso de linóleo. O
lugar parece não ser reformado há algum tempo, suas características
lembram as dos teatros antigos, com o chão da “arquibancada” coberto por um carpete vermelho, um piano empoeirado ao fundo e um pé
direito alto, com portas de madeira duplas em formato de arco com
aproximadamente 4 metros de altura.
O contato se deu por telefone, o cronograma das aulas foi repassado, dando à pesquisadora liberdade para assistir a qualquer aula sem
qualquer restrição de turma ou de horário. A disponibilidade desse
Projeto em ser visitado e investigado academicamente contrastou com
a dificuldade encontrada em outros projetos com maior projeção na
mídia e maior suporte econômico.
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4.2 AS AULAS
Todo o caos e a beleza da existência estavam ali presentes. Era a arte
pela arte, onde uma estética nova e revolucionária surgia. Não havia
amarras quanto a resgates étnicos ou ideologias de direita ou de esquerda. Era uma estética que abria para o novo, que revolucionava.
Diário de campo (23 de março de 2003)
A aula de balé clássico é dada pelo idealizador, coreógrafo e bailarino da companhia nos moldes tradicionais, com a utilização de uma
técnica predominantemente europeia. O professor explicava o movimento, tentando traduzir para os alunos o espírito e o significado
de um gestual inspirado numa estética das cortes francesas do século
XVIII: “Gente, esse movimento de braço (reverência) é uma saudação,
um cumprimento que os nobres faziam entre si nos palácios, durante
as festas e encontros, vocês têm que vivenciar esses personagens”.
O balé clássico está maciçamente presente nas escolas de dança,
mas em geral ele é dado de forma mecânica, funcional, como uma
técnica fundamental de preparação corporal para a dança, havendo
um ofuscamento de seu conteúdo lúdico e simbólico. Esse professor,
talvez por sua passagem pelas companhias de dança europeias, permitiu que a fantasia se infiltrasse naquela coreografia.
Por mais distante que essa realidade branca, nobre e europeia possa
estar desses bailarinos, ela se atualiza, resgatando o imaginário ocidental dos contos de fadas, das princesas, dos reis e rainhas. No momento
da dança, a imaginação toma conta e a fantasia se apropria dos corpos
dos bailarinos, inaugurando a dimensão do lúdico; qualquer menina
pode ser Cinderela e qualquer menino, um príncipe valente. Costa
(1999) revela que a experiência corporal lúdica abre espaço para uma
transformação simbólica, permite um desprender-se do cotidiano,
para depois reencontrá-lo transmutado, renovado.
Num pequeno intervalo entre as aulas, em conversas informais, o divertimento já tomava conta dos discursos daqueles alunos: “Essa aula
é muito divertida, eu adoro dançar” e mais, “gente, estou morta e
nossos pais acham que a gente não faz nada, só se diverte dançando”.
Ao investigar a segunda fala, um dado novo emergiu: há uma cumplicidade e os pais desejam que os filhos participem de um projeto social
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enquanto são crianças. Qualquer traço de maturidade ou o fato de já
terem terminado o segundo grau faz com que os alunos tenham que
interromper suas atividades para ingressarem no mundo do trabalho.
Algumas falas reforçam esse outro lado da relação das mães com o
Projeto II: “minha mãe até gosta que eu me ocupe, mas também tem
aquele outro lado de ter que arrumar emprego” ou ainda, “o problema é quando fica grande e começa a perder a graça, a família começa
a te pressionar para trabalhar, não dá mais para ficar fazendo peripécias por aí”. Na visão das mães, o Projeto II é útil durante uma fase
da vida da criança, posteriormente, até pelo componente viciante da
dança, ele passa a ser um problema.
Após o intervalo, iniciou-se uma aula de dança contemporânea com
uma professora convidada. Essa aula se desenvolve dentro dos pressupostos atuais da dança contemporânea. Ela é fragmentada, não segue
uma progressão pedagógica de exercícios característicos do balé, utiliza-se de elementos emprestados de outras técnicas corporais, como
acrobacias e exercícios de interpretação. A aula propõe uma mistura
de referências e um campo aberto para experimentações corporais, o
corpo do bailarino é atravessado por várias correntes, ou seja, uma diversidade de técnicas compõem a sua formação e dão ao seu discurso
coreográfico um tom de mestiçagem.
O processo de aprendizagem na aula de dança contemporânea é
fundamentalmente autoral, o bailarino vai construindo seus próprios
movimentos a partir de determinadas propostas dadas pelo professor.
A partir daí, uma nova dinâmica se instala na aula: existe uma subversão da ordem tradicional, vista no balé clássico, em que o professor
determina padrões corretos para os movimentos. Enquanto o balé trabalha com a ideia de reprodução, a dança contemporânea se recria
constantemente, a partir de uma concepção de transformação. Gomes
(2002), em seus estudos sobre a dança contemporânea carioca, mostra que há sempre um desejo latente entre os bailarinos e coreógrafos de transformarem e serem transformados. Para a autora, a dança
lida com a ideia de trânsito, mobilidade, passagem, troca, subversão,
como em um constante processo alquímico.
A alquimia se dá entre a história do bailarino e a dança que ele
dança, ou seja, todos os seus passos carregam sua subjetividade,
seus sonhos e desejos. Não existe somente um modo de se dançar,
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cabe a cada um descobrir e experimentar novas possibilidades de
movimento.
Não se nota no trabalho do Projeto II nenhuma ênfase na questão
da etnia, de resgate de uma cultura africana ou de qualquer proposta
para uma “arte engajada”; todo o processo segue um viés fundamentalmente artístico. Existe um apagamento da condição social dos
bailarinos, uma vez que isso não é o elemento gerador da criação
na dança.
Em uma leitura tradicional, isso poderia assumir ares de alienação,
porém, dentro de uma perspectiva artística, ocorre um alargamento de possibilidades, que descolam o indivíduo de suas marcas mais
óbvias. Os bailarinos não são vistos apenas pela sua forma de inserção
social, e sim pela sua capacidade de fantasiar e de criar.
Afinal, não é a arte o mais alto poder do falso, a magnificação do
erro e a santificação da mentira? Relembrando Nietzsche (1996), o
poder do falso deve ser elevado até uma vontade de enganar, vontade
artística, que é a única capaz de rivalizar com o ideal ascético. Para
o autor, os artistas são os inventores de novas possibilidades de vida.
Os aspectos essencialmente lúdicos e estéticos vistos nas aulas forneceram novas pistas para a pesquisadora sobre um tema recorrente em pesquisas sobre marginalidade: o papel da casa e da rua no
imaginário dos jovens moradores de comunidades de baixa renda.
As matérias jornalísticas contrapõem esses papéis: a rua representa
a perdição e a casa, a proteção. Nas falas dos alunos outros sentidos
emergiram: “Antigamente eu era muito parado, fui para a Vila Olímpica para fazer alguma coisa” ou, “Antes eu não me ocupava com
nada. Eu fui para a Vila Olímpica e gostei, antes não tinha nada para
fazer” ou ainda, “Agora eu fico mais em casa, antes ficava largado
na praça, não tinha nada para fazer, mas pelo menos não fazia nada
com outras pessoas, em casa ficava sozinho”. A casa e a rua entram
na mesma rede de sentidos, significam o não ter o que fazer, o vazio
de sentidos. A rua muitas vezes não é opção de experiências que pudessem trazer algum significado para esses jovens. O projeto social,
então, cria uma rede de sentidos que norteia as práticas cotidianas
dos bailarinos.
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4.3 OS ALUNOS
Os professores eram os mesmos que davam aulas para uma companhia profissional da cidade e os alunos não eram iniciantes, vinham
de outros projetos sociais de dança. Estavam ali para aprimorar sua
capacidade artística, sua técnica, sua expressividade, sua sensibilidade, e não para se tornarem educados, disciplinados e cidadãos.
Diário de campo (29 de março de 2003)
O Projeto II atua com uma faixa de bailarinos que já possuem
formação inicial em dança, a maioria participa ou já participou de
algum outro projeto social. Talvez isso permita que o Projeto II enfatize uma formação artística menos pedagogicista. Até por ser elaborado por um bailarino/coreógrafo, não se propõe e nem se obriga
a assumir o papel da escola ou da família, partindo do princípio de
que quem está ali quer aprimorar sua vivência artística.
Esses bailarinos já formam outra tribo: a linguagem, os gestos, o
vestuário já se diferenciam daqueles que se notam em projetos sociais formais. Já mostram diferenças entre eles em relação aos estilos
de dança, demonstrando variadas experiências e aptidões. Existe
uma diversidade de identidades, que possuem em comum aquele
território onde valores e referências são compartilhados.
Talvez por esse Projeto viver uma incerteza quanto à sua continuidade, não existe uma escola, mas uma multiplicidade de tendências. O preço dessa riqueza artística pode ser o caráter efêmero
e, portanto, pós-moderno do processo. Entretanto, de acordo com
Maffesoli (2003), essa perspectiva de viver o agora em seu máximo
vigor, sem pensar racionalmente no desenrolar dos fatos futuros, dá
espaço para que uma ética vivida no presente adquira mais força
do que uma moral universalista e distante. Uma nova noção de
temporalidade se inaugura. É a vida que se esgota no ato de viver
intensamente o presente. Para o autor, a vida está aqui, e não em
outra dimensão. A participação mágica está arraigada no aqui e no
agora. O mundo de cá é o que se apresenta a ver e a viver, é o gozo
no presente.
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4.4 APOLO E DIONISIO
Durante uma visita ao Projeto, senti imediatamente que meu estudo, apesar de ter provocado muita dor e sofrimento, tinha valido a
pena. Estava em êxtase lúdico, estético e, por que não dizer, trágico.
Diário de campo (28 de março de 2003)
A questão da temporalidade logo se apresentou como um aspecto
novo no desenrolar deste Projeto. Em primeiro lugar, para a pesquisadora, no lugar social de público, assistindo ao espetáculo, o tempo parou. Naquele momento a intensidade do estético e do lúdico
rompeu com qualquer possibilidade de linearidade do tempo.
A noção de projeto, com objetivos bem definidos e coerentes
com uma progressão linear ordenada, foi brutalmente invadida e
esteticamente dominada por uma força criativa que eternizou aquele instante.
Todo trabalho de corpo, que consiste numa sucessão de passos desenvolvidos ao longo dos anos, pareceu abandonar uma perspectiva
puramente técnica para se transformar em inúmeras possibilidades de
gozo. O lúdico e o estético se conjugaram e o ato de dançar resgatou a
dimensão do jogo e do belo. Dentro de uma perspectiva trágica, Apolo
e Dionisio se reencontraram. A representação artística, portanto, traz a
essência e a aparência, a luz e as trevas, a superabundância das forças
dionisíacas dentro de uma estética apolínea. É nessa união que a vida
se faz sentir, onde ela se afeta, onde ela propriamente é.
Para Nietzsche (1996), a arte trágica produz alegria. Ela surge
como um estimulante da vontade de potência. Nada na vida deve
ser negado, até os aspectos mais tenebrosos devem ser vividos em
sua intensidade. A expansão da vida consiste em aceitar o todo da
existência humana. O autor propõe uma celebração de todas as
forças imanentes, sem a necessidade de se aspirar, de forma mística
ou ideológica, a uma vida perfeita, melhorada ou duradoura.
O Projeto II, ao se furtar de uma retórica linear, moderna e dramática, situou-se além da moral, da metafísica ou da religião. Permitiu
perceber que não há mais fantasias nem ilusões. É tempo de viver
artisticamente, isto é, celebrar cada instante em sua totalidade, sem
saudades de um amanhã perfeito ou redentor.
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A dança bastava-se por si mesma, representava uma intensificação
da vida porque proporcionava uma “pequena morte”, um orgasmo
advindo do êxtase, mas uma morte que traz ainda mais vigor à vida.
Uma vida que se esgota no ato mesmo de sua criação.
Fiquei pensando que as narrativas modernas e a noção de temporalidade linear a que estamos acostumados realmente assassinam a arte.
O Projeto acontecia naquele momento, não se saberia o que viria depois, ou amanhã, era o tempo vivido. A corporeidade experimentada
naquele momento era o ser dentro de uma ética vital. Para mim, uma
experiência inesquecível.
Parece realmente que a arte nasce do caos, é a porta de abertura da
cultura para os instintos. É aí que está a verdade. De novo lembrei do
Nietzsche. A arte é mais ação do que reflexão, é ela que transmuta as
forças reativas em ativas. Ela é potência criativa capaz de proporcionar
uma experiência dionisíaca, muito além do bem e do mal.
Diário de campo (2 de abril de 2003)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas tribos e muitos espaços se formam e se dissolvem a partir da
inserção de projetos desenvolvidos em uma determinada área. Iniciativas governamentais e não governamentais, patrocínios de empresas
nacionais e internacionais, pessoas de fora da comunidade, com ou
sem subsídio financeiro, associação de moradores e até mesmo indivíduos das comunidades desenvolvem projetos que transformam a arquitetura da favela e da cidade e forjam novas subjetividades. Há, por
exemplo, a construção de vilas olímpicas, as salas de aula de escolas
públicas que viram salas de balé, os pátios de igrejas e as praças que
se transformam em palcos, sobrados antigos do Rio de Janeiro cedidos
para serem escolas de dança e teatro e armazéns da Zona Portuária da
cidade que são reformados para abrigarem companhias e projetos
de dança. Todos esses projetos criam códigos de linguagem específicos, definem gírias, roupas, acessórios e corpos, produzem sentidos e
constroem crenças, fantasias, desejos e sonhos.
A proliferação de projetos sociais permite uma vivência rica e
múltipla da arte; entretanto, a dependência de capital e suas imbri-
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cações políticas os transformam em iniciativas caóticas, desordenadas e efêmeras. Muitos projetos são criados e descontinuados sem
qualquer tipo de planejamento racional ou de justificativa pública.
Algumas favelas, mais assediadas pela mídia, possuem uma dezena
de projetos, como a Mangueira, o Pavão/Pavãozinho e a Rocinha,
enquanto outras, como as da Zona Oeste, do Centro e da Leopoldina, são absolutamente esquecidas pelo poder público e pela
sociedade civil.
Alguns projetos parecem buscar somente um impacto instantâneo, são efêmeros, não possuem poder de sustentação, constroem
e destroem sonhos, não podem ser considerados estruturantes na
formação dos indivíduos. O outro lado do colapso dos horizontes
temporais, da busca do impacto imediato e do descaso com a continuidade dos projetos é uma perda paralela de profundidade. Tudo
acontece rapidamente, como uma série de presentes puros e não
relacionados no tempo.
Atualmente, a produção cultural integrou-se à produção de mercadorias em geral. Surge no meio artístico e cultural a necessidade
e a urgência de se produzirem novos produtos e novas experimentações estéticas, para serem imediatamente comercializados. Vale
a pena lembrar Baudrillard (2001), quando afirma que a produção
artística também entrou no estádio de circulação ultrarrápida.
Existe uma produção de necessidades e desejos que mobiliza os
indivíduos a consumirem um determinado produto, que pode ser
um filme, um show, um programa de televisão, um estilo de roupa
ou um espetáculo de dança. Mais do que uma inovação estética ou
uma obra de arte, o que se vê é a atualização do capitalismo, para
manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de conservar sua lucratividade. A estética se materializou por toda parte
e assumiu uma forma operacional. O sistema funciona não tanto
pela mais-valia da mercadoria, mas pela mais-valia estética do signo
(BAUDRILLARD, 2001).
A arte na favela também entra na lógica da diversificação do capital. É como se a preocupação estética do momento suplantasse um
compromisso com o depois. Não há um investimento mais longo e
consistente quanto à formação ética dos atores sociais. A passagem
relâmpago dos investimentos transforma da noite para o dia um
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morador da favela em um bailarino ou em um ator de sucesso, para
depois novamente devolvê-lo à favela, com poucas possibilidades
de dar prosseguimento ao seu trabalho, pois o capital que o impulsionou já migrou para novas experimentações estéticas. O que
vem depois parece não importar, existe um abandono da ideia de
continuidade.
Muitos projetos sociais de dança têm uma duração que parece
estar ligada a uma estética do acontecimento. Interessante notar,
contudo, que a palavra “projeto” tem sua origem etimológica no
latim, projectus, e significa “ação de lançar para frente, de se estender, extensão”.
É importante que a lógica do capital não anuvie a dimensão artística e ética dos projetos. Senão, em vez de projeto social, haverá
um evento social que formará, no lugar de artistas, empresários da
dança e bailarinos frustrados. Por sua vez, os projetos que se engessam em algumas metanarrativas modernas de resgate da cidadania,
da etnia, ou que se baseiam em qualquer forma de engajamento
rígido, que controlam o tempo aprisionando-o a uma linearidade
racional, transformam-se em projetos pedagógicos formais, em que
a dança é usurpada de sua dimensão lúdica e estética.
O homem cidadão pode até ser produzido, mas e o homem artista? Será que o projeto criou uma alma externa feita para ser vista
somente de fora? As marcas exteriores do balé não deixam dúvidas,
tatuam o corpo e os gestos, permitem um reconhecimento imediato
a qualquer olhar dirigido ao espelho.
Antes de ser um cidadão, entretanto, o artista é criador. Ele, de
fato, prescinde do espelho, a intensidade de sua potência criativa
lhe mostra a dimensão de sua existência. Ele sente tragicamente o
mundo, não reflete sobre ele, tenta transformá-lo a cada instante.
Todo projeto social de dança deveria se desenrolar como um drama, sem contudo abandonar seus aspectos trágicos, como as duas
metades de uma laranja. É pela arte que uma cultura se abre para
os instintos, senão, não é arte.
Este estudo não se esgota aqui, muitos outros aspectos do pensamento sobre a arte e a sociedade escaparam ao escopo da abordagem proposta. Algumas coisas, porém, ficaram claras: a pobreza
não aniquila a alegria de viver, o drama e o trágico são vividos em
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todas as classes sociais, cada um a sua maneira. Novas formas de
vida são inventadas a cada dia e, por fim, a capacidade de viver o
lúdico e o estético define o vigor de uma cultura. Qualquer tentativa de achatamento dessas potências gera dor e ressentimento. É a
morte em vida.
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GINÁSTICA ESCOLAR COMO
DISPOSITIVO BIOPOLÍTICOPEDAGÓGICO: UMA
ANÁLISE DA RELAÇÃO
ENTRE EDUCAÇÃO, SAÚDE
E MORALIDADE EM
FERNANDO DE AZEVEDO1
Murilo Mariano Vilaça
Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no VIII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: Infância, Juventude e Relações de Gênero
na História da Educação, em São Luís (MA), em 2010, com o título “O corpo
educado, o homem regenerado: Fernando de Azevedo e o papel da gymnastica escolar (1915-1933)”.
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Como imperativo, a saúde tem constituído uma complexa rede de relações
de poder-saber. Persuadidos da importância do investimento pessoal na busca de uma vida considerada saudável, os sujeitos modificam suas condutas,
submetendo-se a um intrincado procedimento de normalização que extravasa o âmbito biológico da vida, atuando sobre outros aspectos. Neste artigo,
analiso como Fernando de Azevedo articulou saúde, educação e moralidade
por meio da prática denominada ginástica escolar. Partindo da genealogia da
noção moderna de saúde e da sua importância para o controle e organização
do meio social, bem como para a produção de subjetividades, abordo o papel
conferido pelo autor àquela prática no processo de regeneração do povo e na
formação de uma nova nação brasileira. Neste sentido, infiro que, a partir de
uma visão biologicista de educação, Fernando de Azevedo procurou lançar um
investimento biopolítico sobre a população brasileira, apostando no vínculo
entre educação, biologia, política e moral.
Palavras-chave: ginástica escolar, educação, Fernando de Azevedo
As imperative, the health has been a complex network of relationships of power-knowledge, impacting the subjects. Convinced of the importance of the
personal investment in pursuit of a life considered healthy, the individuals modify their behaviors, submitting themselves to an intricate normalization procedure that goes beyond the biological life, working on other aspects. In this
article, I analyze how Fernando de Azevedo articulated health, education, and
morality through the practice known as school gymnastics. From the genealogy
of the modern notion of health and its importance for the control and organization of the social environment, as well as for the production of subjectivities, I
discuss the role given by the author to that practice in the process of regeneration of the people and in the formation of a new Brazilian nation. In this sense,
I infer that, from a biological view of education, Fernando de Azevedo sought
to launch a biopolitical investment on the Brazilian population, focusing on the
relationship between education, biology, politics and morality.
Keywords: school gymnastics, education, Fernando Azevedo
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INTRODUÇÃO
A relação histórica entre práticas corporais e pedagógicas, produção
de saberes e exercício do poder com vistas ao governo dos homens
possui várias nuances, múltiplas formas e distintos objetivos. Cada
configuração histórica tem suas particularidades, que são irredutíveis a
um modelo, um método ou um objetivo. O esforço de compreender
a multiplicidade exige observar traços da experiência, visando à apreensão de alguns sentidos, tendo em vista sua relevância para se compreender uma época e as relações que estabelece com outros tempos.
Tomando a modernidade como uma passagem histórica marcante
no que tange aos cuidados com a vida, haja vista poder ser identificada, entre outras coisas, com a emergência de uma série de biociências, o que, por sua vez, ensejou o nascimento da clínica, da medicina
social e da ideia de saúde pública, é a partir dela, de uma genealogia
das relações de saber-poder que se inventou para governar os sujeitos
e a vida, que constituirei o pano de fundo da discussão central do
presente artigo.
Investigo como Fernando de Azevedo articulou saúde e educação por meio da prática denominada de ginástica escolar2. A partir
duma análise da noção moderna de saúde e da sua importância
para a organização do meio social, estabeleço uma cartografia para
analisar a visão de Azevedo, segundo a qual a ginástica, além de
promover saúde, regeneraria os indivíduos. Inicialmente, focalizo
como a saúde se tornou um imperativo, constituindo uma rede de
relações de poder-saber tipicamente moderna. A análise permitiu
compreender traços da proeminência que aquele imperativo goza
desde a modernidade e como isso repercute, doravante, na formação das noções de homem. Grosso modo, persuadidos da sua importância, os sujeitos modularizam suas condutas, submetendo-se
relativamente a um intrincado procedimento de normalização que
extravasa o âmbito biológico da vida humana, atuando sobre outros
Embora o termo utilizado nos textos de Fernando de Azevedo seja gymnastica
escolar, neste artigo, usarei sua versão atualizada, mantendo o original apenas
nos títulos dos livros. O mesmo procedimento será feito para outros termos
que tenham grafia atualizada.
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aspectos. Os campos da moralidade e da formação do caráter são
alguns exemplos.
Com o apoio analítico-conceitual da noção foucaultiana de governamentalidade, especialmente o polo biopolítico, busco, na primeira
parte deste artigo, fazer uma breve cartografia da lógica operatória
na qual a ginástica está inserida, concebida como um dispositivo biopolítico-pedagógico de gestão da vida. Dessa etapa analítica, depreendo que Azevedo conjugou, com a ginástica, saberes biocientíficos,
intentos biopolíticos de regeneração étnico-racial e formação moral,
investindo biopoliticamente sobre a população brasileira. Esses apontamentos serviram de base para analisar a articulação entre elementos do movimento higienista e a ginástica escolar no pensamento de
Fernando de Azevedo. Cumpre ressaltar que, a partir do século XIX,
viu-se uma crescente influência dos movimentos higienistas no Brasil. Com eles, a escola passou a exercer uma função indispensável na
prática e formação de hábitos e condutas, na promoção de hábitos
saudáveis.
O foco analítico foi o texto “A poesia do corpo ou a gymnastica escolar: sua história e seu valor” (1915), no qual a ginástica é denominada de médico-pedagogia. Secundariamente, outrossim, considero
os textos “Da educação physica: o que ella é, o que tem sido, o que
deveria ser” (1920) e “O problema da regeneração” (1933). Com
eles, foi possível compreender como a ginástica, associada à educação física, é valorizada como prática escolar capaz de regenerar o
povo brasileiro de um modo radical, a saber, alterando a sua constituição étnico-racial. As conclusões sugerem que Azevedo, integrando a noção de governamentalidade biopolítica, reputa à ginástica
um papel fundamental num conjunto de tecnologias que visavam à
prevenção e promoção de dada noção de vida saudável ou higiênica (biológica), mas, sobretudo, à regeneração de uma população
tida como étnico-racialmente deficiente, prescrevendo uma noção
de vida boa e correta (ético-política), sem a qual a nação brasileira
não progrediria.
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1 EIXOS DO IMPERATIVO DA SAÚDE COMO PRINCÍPIO GOVERNAMENTAL
DA VIDA: BIOPOLÍTICA, MEDICALIZAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA
As práticas corporais como atividades de cunho pedagógico intimamente associadas à educação física como uma disciplina escolar
representam, em certa medida, uma mentalidade atinente à modernidade educativa. Quer dizer, a modernidade representa um importante
momento na reestruturação do exercício do poder pela produção de
novos campos de saberes, bem como de meios de transmissão daqueles tidos como oficiais, científicos e verdadeiros, saberes totalizantes e
englobantes, de tal maneira que pudessem ser um eficaz exercício de
poder e de governo (CASTRO, 2006). A modernidade educativa, então,
entendida como uma iniciativa de disciplinarização da sociedade e de
promoção da vida, pode ser analisada a partir dos efeitos que visa a
produzir pelas relações de saber-poder que atualiza, sobretudo acerca
de que subjetividade quer empreender.
Nesse sentido, as práticas corporais estão inseridas na lógica das
relações de poder-saber que a modernidade inventou para governar
sujeitos, preenchendo os requisitos para um exercício do poder biopolítico. Para compreender esse cenário, uma chave interpretativa é
a análise do binômio formado pelo saber médico-higienista. Há a necessidade, portanto, de se resgatarem traços do movimento higienista,
que data do século XIX, e da ideia de saúde pública. É a partir do
conjunto formado pela relação entre saber médico e medicalização da
sociedade, pela noção de saúde pública e pelo movimento higienista
que traçarei uma cartografia.
O filósofo francês Michel Foucault desenvolveu uma vasta e detalhada genealogia dos modos de exercício do poder com vistas ao governo. Sob o termo governamentalidade, ele pesquisou, na década
de 1970, aquilo que considerou como os dois polos do governo dos
outros sob o registro do biopoder, a saber, o poder disciplinar e a
biopolítica, a partir do seu surgimento no século XVII e nos séculos
XVIII e XIX, respectivamente. Na década seguinte, Foucault voltou o
seu olhar para a antiguidade greco-romana, entrecruzando a questão
do governo com a ética, ocupando-se de um estudo detalhado acerca
das práticas de si e das formas de subjetivação (a noção de cuidado de
si, de ascese, de parrhysía etc.) que ensejavam o governo de si.
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O lema da governamentalidade, em todas as suas formas, pode ser
descrito por três questões fundamentais, conforme exposto por
Foucault (2007): “como se governar, como ser governado, como fazer
para ser o melhor governante possível” (p. 277-8). Para tanto, poderes
e saberes são mobilizados. É nesse sentido, o da inserção da política nos limites de uma lógica, por assim dizer, econômica, da melhor
gestão dos recursos para levar a efeito o objetivo do modo mais eficaz possível, que Foucault analisou, no curso “Segurança, território
e população” (1978), a crise do poder de pastorado que ensejou a
passagem para a razão de Estado, para o Estado governamentalizado.
Nessas pesquisas, não só sobre as governamentalidades, o foco foucaultiano está voltado, conforme ele mesmo atesta, para os modos de
objetivação dos sujeitos, isto é, as formas de transformação do ser humano em sujeito. No post-scriptum “O sujeito e o poder”, publicado
na conhecida obra organizada por Dreyfus e Rabinow (originalmente
intitulada Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics),
Foucault identifica o seu extenso trabalho de reflexão como um empreendimento que visa a “criar uma história dos diferentes modos
através dos quais, na nossa cultura, os seres humanos têm sido convertidos em sujeitos” (FOUCAULT, 2001, p. 241). A título de análise,
elejo apenas o polo do governo dos outros, intitulado biopolítica. É o
modo biopolítico de gestão do humano e formação dos sujeitos que
interessa aqui.
Por biopolítica, Foucault entende “a maneira como se procurou,
desde o século XVIII, racionalizar os problemas colocados à prática
governamental pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos denominados como população” (FOUCAULT, 2008a, p. 359). A
biopolítica é um tipo específico de poder que se centrou no corpo-espécie, que constitui uma população de seres vivos transpassados
por uma espécie de mecânica própria calcada nos processos biológicos. De acordo com Foucault (2005), esse exercício do poder é,
essencialmente, um conjunto de tecnologias cujo objetivo é aumentar
a vida, prolongar a sua duração, multiplicar as suas possibilidades, desviar seus acidentes e compensar suas deficiências pela gestão de certos
fenômenos vitais. Dentre os fenômenos que apontam sobre o que tal
poder atua, estão, como vimos acima, a proliferação, os nascimentos
e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade,
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considerando-se todas as condições que podem fazê-los variar. Esses
fenômenos e condições são inseridos num regime de governo que
une política e economia (FOUCAULT, 2007), uma gestão calculadora,
que pretende oferecer o melhor modo de governar aquela entidade
biológica definida como população, por meio de controles reguladores
variados, normalizadores, que respeitam a lógica dos dispositivos de
segurança.
A lógica operatória dos dispositivos de segurança é descrita por
Foucault (2008b) a partir da análise da intersecção entre caso-risco-perigo-crise, própria das técnicas profiláticas de vacinação, tal como
ele aborda utilizando os procedimentos atinentes à variolização na
passagem do século XVIII para o XIX. Com base em seus mecanismos
preventivos, analisa como um problema se distribui numa sociedade,
que risco oferece para as pessoas, qual o perigo objetivo para cada
indivíduo e como gerir uma situação na qual os meios tradicionais não
dão conta, quer dizer, como gerir a crise. Tal regime político está associado a um campo específico de saber, qual seja, a medicina.
O poder político da medicina “consiste em distribuir os indivíduos
uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los, um a um,
constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e
fixar, assim, a sociedade em um espaço” (FOUCAULT, 2008b, p. 89).
Esse trecho indica que uma série de elementos ligados aos mecanismos médicos extravasou para o controle social urbano num sentido
ampliado, indiciando o fato de a medicina, entendida como técnica
geral de saúde, ter assumido um lugar cada vez mais importante na
maquinaria de poder a partir do século XVIII. Consoante à interpretação foucaultiana da modernidade, nesse século nasce um tipo de
poder que está relacionado a um saber médico-administrativo
acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição
de vida, de sua habitação e de seus hábitos (...), uma ascendência
político-médica sobre uma população que se enquadra como uma
série de prescrições que dizem respeito não só à doença mas às formas
gerais da existência e do comportamento (a alimentação e a bebida, a
sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir, a disposição ideal
do habitat (FOUCAULT, 2008b, p. 202).
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Afinal, isolar, individualizar, fixar (em um domicílio, por exemplo), esquadrinhar, dividir, inspecionar, controlar, registrar etc. são ações ligadas
a práticas que visam a promover um minucioso controle social, pautado
sobretudo na previdência, diretamente ligadas ao saber médico.
Tal procedimento de gestão de populações de humanos é nomeado
por Foucault como medicalização. Por esse conceito se entende um
complexo, indefinido e contínuo processo de normalização biopolítica, que envolve uma série de práticas, cujos fundamentos estão nos
procedimentos médicos, que têm uma função política de regular condutas, comportamentos, a vida biológica, incluindo os corpos, para
além do registro das enfermidades. A saúde estava diretamente relacionada à noção de bem-estar da população, constituindo, em bloco,
saúde-bem-estar, um dos objetivos essenciais do poder político, uma
espécie de imperativo da saúde (FOUCAULT, 2007).
Foucault faz uma análise a partir de uma genealogia da medicina
social. Na sua pesquisa sobre a política de saúde no século XVIII, por
exemplo, destaca as mudanças que implicaram uma nova noso-política, ou seja, uma nova “política das doenças”, que não deve ser
entendida como uma intervenção do Estado na prática médica de
cima pra baixo e/ou uniforme. De acordo com o filósofo, houve um
deslocamento progressivo dos procedimentos mistos e polivalentes
de assistência à saúde. O objetivo era operar um esquadrinhamento
mais rigoroso das populações. Por um lado, houve a separação entre
pobreza e doença; por outro, estabeleceu-se um novo quadro de distinções, de diferenciações categoriais e/ou funcionais, no qual a figura
do pobre é substituída pela dos bons ou maus pobres, dos ociosos
voluntários e dos desempregados involuntários etc. Em vez da pobreza, o que emerge como um problema ou uma categoria é a ociosidade. Preocupando-se com suas condições e seus efeitos, a nova
noso-política visa basicamente à produtividade, ainda que se guarde
uma estreita relação com a pobreza. Quer dizer, pretendia-se, por um
lado, primordialmente, tornar a pobreza útil, fixando-a nos aparelhos
de produção com um mínimo de vida saudável, isto é, uma vida que
tornasse os indivíduos capazes de produzir; ou, por outro, aliviar ao
máximo o peso dos pobres para o resto da sociedade.
Essas novas regras, que são fruto da problematização da noso-política
ocorrida naquele século, traduzem a organização progressiva da grande
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medicina no século XIX, que é, por sua vez, corporificada por “uma
política de saúde e de consideração das doenças como um problema
político e econômico” (FOUCAULT, 2007, p. 194). Tal política de assistência não focaliza apenas os pobres, mas sim uma coletividade. Ou
seja, buscam-se efeitos de conjunto, que atinjam toda uma população.
O objetivo geral deve ser compreendido como “a saúde de todos como
urgência para todos; o estado de saúde de uma população” (p. 195).
Na medicalização biopolítica da sociedade, uma série funcional deve
ser implementada e mantida ciosamente, a saber, a disposição da sociedade como meio de bem-estar físico, saúde perfeita e longevidade.
Essa tríplice função fora exercida por um aparelho que conjugava mecanismos de garantia da ordem, desenvolvimento canalizado das riquezas e promoção da saúde em geral: a polícia3 (FOUCAULT, 2007). Haja
vista o foco do presente artigo, dentre suas múltiplas atividades, destaco
o papel de preservar o respeito, o cumprimento das regras gerais de
higiene. O privilégio dado à higiene marca a noso-política moderna, é
um traço destacado do funcionamento da política médica como instrumento de controle social. Pensar a medicalização no seu nascedouro
é se remeter à higiene como um regime de saúde de populações, um
regime que envolve práticas profiláticas que foram alargadas ao conjunto de uma população, a fim de desaparecer com os surtos epidêmicos,
baixar a taxa de morbidade e majorar a duração da vida.
Tais objetivos são operacionalizados pelas instituições, bem como pelas
práticas de saúde pública a elas atinentes. Para a história da saúde pública, os anos entre 1750 e 1830 foram decisivos. É nessa época, segundo
Rosen (1994), que são lançadas as bases do Movimento Sanitário do século XIX, estabelecendo alguns princípios que, associados às mudanças
diacrônicas no campo, influenciam a saúde pública até a atualidade. Possivelmente, é a reboque do Iluminismo que se inicia um ávido impulso
de fazer chegar ao povo os conhecimentos científicos e da medicina, com
o intuito de esclarecer o público sobre os assuntos de saúde e higiene.
É nesse momento histórico que se reconhece a importância dos
dados numéricos precisos sobre os habitantes e tomam força os re Este termo deve ser entendido num sentido genérico, já que, pelo menos
até o final do Antigo Regime, a polícia não se resumia às instituições policiais
propriamente ditas.
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gistros matemáticos da vida e da morte. Em 1786, o célebre matemático Pierre Simon Laplace procurou estimar a população francesa
a partir das taxas de nascimento de distritos representativos. A partir
das ideias de Condorcet sobre o uso do cálculo das probabilidades
nas questões de saúde, Philippe Pinel, em 1807, procurou provar,
matematicamente, o valor do tratamento moral de seus pacientes psiquiátricos. Em 1820, Jeremy Bentham propôs, em seu governo hipotético, a criação de um escri­tório central de estatística. Enfim, vários
Estados, especialmente a França, e estudiosos se debruçaram sobre a
aritmética política (ROSEN, 1994).
Mais tarde, diferentes investigações contribuíram para fortalecer, ainda
mais, a relevância do cálculo estatístico e das probabilidades nas análises
sobre a saúde. Adolpho Quetelet reuniu e organizou dados sobre o tama­
nho corporal e procurou expressar, em um valor numérico, o homem
médio. Assim, em 1835, Quetelet apresentou o índice de Quetelet, também conhecido como índice de massa corporal (IMC), como resultado
da distribuição em uma curva de normalidade. Entre 1849 e 1855, John
Snow publicou dois manuscritos que continham suas conclusões sobre as
mortes por cólera em Londres. Mesmo desconhecendo o agente infec­cioso, Snow identificou e relacionou, a partir dos dados estatísticos,
o número de mortes de cada área habitada com o grau de poluição no
rio Tâmisa e, portanto, das condições socioeconômicas (ROSEN, 1994).
Desses estudos, pode-se especular, emergiram as raízes do discurso
sobre o risco na saúde pública. Com efeito, o higienismo é um traço
fundamental da rede de tecnologias médico-políticas que constituíram
a ideia de governamentalidade biopolítica nos séculos XVIII e XIX, legando ao século XX relevante influência – o que não significa identidade
entre elas, mas sim o compartilhamento de alguns sentidos, práticas e
métodos, tais como o estabelecimento ainda hoje de políticas de controle médico-estatístico de endemias em conjuntos populacionais.
2 A EDUCAÇÃO FÍSICA COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO-PEDAGÓGICO:
O PAPEL DA GINÁSTICA
A problemática das epidemias é um foco constante da literatura médica do início do século passado (MIRANDA e DABAT, 2000). Com
base em um modelo flagrantemente higienista, forjado por discursos
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e práticas, sobretudo médicos, que visavam à profilaxia, conforme se
percebe numa pesquisa preliminar nas publicações disponíveis no catálogo de teses de medicina do Brasil, tal enfoque tem sido largamente
estudado, e seu papel civilizatório vem sendo devidamente trabalhado na sua estreita relação com a educação (GONDRA, 2000; 2003;
2004). Essa preocupação com as epidemias teria chegado ao Brasil,
com reapropriações e reinterpretações, na passagem do século XIX
para o XX, dando lugar ao cuidado com a saúde da população (GÓIS
JUNIOR e LOVISOLO, 2003). O Movimento Higienista ou Sanitarista
defendia a saúde e a educação pública no ensino de hábitos higiênicos, ou seja, defendia a ideia de que um povo educado e saudável é
a principal riqueza de uma nação. Acerca desses projetos civilizatórios
e de nação, bem como da ideia de progresso a eles relacionada, é
indubitável a importância dada à ligação entre educação e ensino de
hábitos saudáveis, relacionada ao higienismo.
Segundo Bagrichevsky et al. (2006), a educação física, desde a modernidade, sempre esteve afinada com os objetivos do controle biopolítico. Soares (1994), no seu estudo sobre as raízes da educação física
brasileira, descreve como o movimento higienista europeu influenciou
a constituição de um campo de intervenção no qual ela foi inserida. A
educação física vem abrigando tais intentos, tomando para si os ideais
da exercitação corporal como uma espécie de carro-chefe. Isso pode
ser comprovado, entre outras coisas, pela clara prevalência histórica
de enfoques em pesquisas que exploram os determinantes biológicos da atividade física, sobretudo quanto às suas consequências para
a saúde no indivíduo ativo e no sedentário, em detrimento de uma
abordagem que considere também os elementos socioculturais.
Tal focalização é uma espécie de legado que a epidemiologia dá à
educação física. Palma e Vilaça (2010) analisaram como a epidemiologia lida contraditoriamente com índices de sedentarismo para definir
estilos de vida de indivíduos de uma população, produzindo rótulos
baseados em pares de oposição binária questionáveis (sedentário versus ativo), visando ao constrangimento e à modularização de condutas. Os autores mostram como os critérios usados num mesmo estudo epidemiológico podem alterar a caracterização de um indivíduo
como sedentário ou ativo. Assim, demonstram como é questionável
o critério científico de determinação de um estilo de vida tido como
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sedentário, o que apontaria menos para uma constatação de cunho
estritamente científico, e mais para uma estratégia moralizante, que
visa a rotular, culpabilizar e normalizar sujeitos.
No âmbito escolar, as práticas corporais parecem estar sob o domínio da educação. É essa disciplina que é a responsável por operacionalizar aquelas práticas com fins, por assim dizer, educacionais.
Nesse sentido, a relação entre elas formaria um dispositivo biopolítico-pedagógico, uma estratégia biopolítica de controle da vida a partir
de uma prática pedagógica. Como um dispositivo, tem uma função
histórico-estratégica de responder a uma urgência, sendo capaz de se
remodelar permanentemente a fim de se adaptar à próxima demanda.
Ademais, está inserido em um jogo de poder, sempre ligado também
a uma ou mais configurações de saber que nascem dele, mas que,
por outro lado, são sua condição de emergência. Ou seja, o dispositivo biopolítico-pedagógico articula um conjunto de saberes, atuando
como uma força nas relações de poder que visam a formar o humano,
orientar sua vida, gerir seu comportamento.
Em relação ao dispositivo formado pela educação física e suas práticas, como a ginástica, cabe apontar que ela se organizou e organiza
fundamentalmente em torno do campo de saberes biomédicos, criando uma espécie de casamento (im)perfeito (BRACHT, 2003). A fisiologia, a biomecânica, a bioquímica etc. são alguns dos pilares mais firmes da educação física. Segundo Bracht, as biociências do esporte, ao
mesmo tempo em que trouxeram legitimidade social, acarretaram um
comprometimento pedagógico da educação física. O casamento com
os esportes e as biociências vem legitimando social e academicamente
a educação física como um campo de saberes e práticas, mas expropria, em certa medida, sua autonomia pedagógica. Esse é um ponto
bastante relevante, porque um dos mais caros subsídios legitimadores
das práticas corporais é justamente uma suposta promoção da noção
marcadamente biomédica de saúde. Isso vem criando uma relação de
dependência da educação física em relação aos saberes biomédicos,
uma vez que são eles que, via de regra, vêm ratificando ou não a eficácia das práticas corporais, dando-lhes ou tirando-lhes legitimidade.
Contudo, tal relação de causa-efeito entre atividade física e saúde,
como argumenta Palma (2000), sequer se sustentaria na prática. Embora fortemente questionável, tal correlação de causalidade serviu e
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segue servindo de fundamento para que a educação física opere como
um dispositivo biopolítico-pedagógico. Como um instrumento pedagógico que, entre outras coisas, ensina os sujeitos a se governarem a si
mesmos, a educação física foi um precioso dispositivo de governo da
vida, sobretudo em termos higiênicos.
Aliada aos métodos de previsão de riscos, a educação física fora proposta como uma forma de combate às doenças. Melo (2001), no seu
estudo sobre o nascimento da ideia de que esporte é saúde, aponta
como o remo foi uma prática desportiva que auxiliou na constituição
de um processo de crescente modernização, urbanização e saneamento da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o autor, no século XIX,
começa-se a perceber uma nova relação dos habitantes com a cidade, com a água e o mar incorporados, primeiramente, como práticas
higiênicas e terapêuticas, o que foi fundamental para o vertiginoso
desenvolvimento do remo como o “sport saudável”, uma prática desportiva plenamente adequada às imagens de progresso e de modernidade. Tais imagens incluíam, como pano de fundo, uma ideia geral
de progresso da nação que se relacionava com o ideal de indivíduos
saudáveis, física e moralmente (MELO, 2001).
A articulação entre discursos e saberes médicos, política e pedagogia
está delineada em termos de higienismo. Citando o eugenista brasileiro Renato Kehl, Gondra ressalta o destaque dado à higiene, definida
como a solução dos problemas da humanidade, pois seria capaz de
engrandecê-la e de promover sua felicidade, assim como seu bem-estar físico e moral, além da evolução somática e intelectual. Ainda
segundo o eugenista, a higiene é uma “arte de conservar a saúde (...),
prolongando a vida dentro dos limites ótimos de sua duração normal”
(KEHL apud GONDRA, 2003, p. 28). Gondra e Garcia (2004) ressaltam a investida higienista sobre a melhoria das condições de salubridade da infância. O tratamento de problemas como a má circulação
do ar, que acarretava um alto índice de contaminação, a temperatura
e a umidade elevadas etc. eram alvos da higienização da sociedade,
especialmente do ambiente escolar.
A infância era vista como capaz de proliferar os ensinamentos e hábitos educacionais e higiênicos. Acreditava-se que ela disseminaria a
consciência higiênica. Ao passo que a criança era vista como uma espécie de elemento propagador dos ideais higienistas, a escola era um
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dos instrumentos mais relevantes para tal, o que reforça a afirmação
acerca da estreita vinculação entre educação e higienismo.
De acordo com o médico parisiense Alfred Becquerel, a higiene
deveria ser entendida de um ponto de vista mais geral, ou seja, como
higie­ne privada, aquela que diz respeito à saúde individual, e como higiene pública, que se refere à saúde coletiva (GONDRA, 2003). Como
uma espécie de conglomerado de ciências, uma ciência compósita
(física, química, história natural e patologia), ela deveria se dar a tarefa
de fazer florescer a humanidade nos seus mais diversos aspectos. E é
justamente nesse sentido que, de acordo com Gondra (2003), o higienismo opera como uma matriz de projetos educativos, o que pode ser
aplicado à inteligibilidade do papel dado à educação física. Conforme
Gondra (2000), o uso pedagógico da higiene pode ser identificado na
medida em que ela aparece como um instrumento de aperfeiçoamento das forças humanas, bem como de desenvolvimento de uma nação.
É na esteira desse pensamento que Fernando de Azevedo, conhecido redator e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova
(1932), parece perceber o papel da educação física na escola.
Na tese apresentada para o concurso à vaga de professor da cadeira
de ginástica do Gymnasio Mineiro, em 1915, defendia a necessidade de fundamentar cientificamente a ginástica escolar, a fim de que
ela fosse devidamente utilizada como prática higienista e moralizante
(GÓIS JUNIOR, 2009). Azevedo era um apologista da colaboração
médico-pedagógica no ambiente escolar, propondo a periódica mensuração de coeficientes ligados a valências físicas, tais como a robustez
e a força muscular, e a introdução de exames antropométricos. Todos
esses elementos deveriam compor um boletim das medições corporais
do aluno, o qual deveria ser assinado por um professor, pelo reitor e
por um médico inspetor (AZEVEDO, 1915).
Segundo Fernando de Azevedo, a cultura física se destinaria a vários
fins. Um deles é definido como ginástica fisiológica. Esta, por sua vez,
subdivide-se em terapêutica e ortopédica e em profilática ou higiênica. Para ele, era justamente esta subcategoria que devia viger na
escola. Conforme o seu entendimento, a ginástica escolar subdividia-se em educativa e higiênica. Enquanto àquela caberia desenvolver a
atenção, a prontidão no movimento, a coragem e a energia, esta tinha
a função de beneficiar o corpo, corrigindo atitudes defeituosas, des-
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congestionando o cérebro, ativando a circulação e obtendo amplitude
do peito (AZEVEDO, 1915). Tal caracterização dá os primeiros indícios
de que a ginástica escolar coadunava-se com os objetivos da governamentalidade biopolítica.
Para Azevedo, é necessária uma colaboração médico-pedagógica,
reservando ao médico um papel importantíssimo na escola. Dentre
suas funções, “ele deve examinar alunos na entrada do colégio, separando as duas grandes categorias de normais e anormais; deverá
velar tanto sobre os jogos, como sobre a aplicação de ginástica, e,
sobretudo, da ginástica respiratória” (AZEVEDO, 1915, p. 185). Sua
argumentação é arrematada com a afirmação de que “é preciso, por
isso, que os médicos inspetores sejam competentes, sobretudo, em
higiene escolar, e afeitos ao estudo e à solução dos mil problemas que
com ela se relacionam” (1915, p. 185). Sua adesão aos princípios da
higiene e sua aposta em um suposto poder de controle social aliado à
promoção de certa concepção de vida ficam explícitas.
Azevedo alude à prática da ginástica moderna uma importância
pouco reconhecida em sua época. Desde o aspecto propriamente
físico-motor ou fisiológico da eficácia dos movimentos e desenvolvimento da energia corporal, passando pelo moral (formação do caráter), pelo higiênico e pelo regenerativo, ele abre um amplo espectro
de benefícios advindos da prática da ginástica escolar.
Quanto ao primeiro, Azevedo (1915) afirma que a ginástica racional
tem de dar ao escolar “a coordenação desejável à produção dos atos
físicos mais difíceis com o mínimo de esforço” (p. 22), tendo por um
dos seus fins “desenvolver o aparelho locomotor” (p. 54). Recorrendo à cultura grega antiga e à indiana dos yoghi, Azevedo propugna a
estreita interligação entre o aspecto físico-motor e a moral, afirmando
que “não pode existir educação antagonista do corpo e do espírito”
(p. 52). O homem, entendido como um maquinário orgânico solidário, sofre a repercussão do “enfraquecimento” dessa solidariedade
harmônica ao nível do estado moral geral, ou seja, do pensamento, da
vontade, dos hábitos e da sociabilidade. Para ele, “o desenvolvimento
do indivíduo e a formação de seu caráter dependem tanto do funcionamento dos órgãos, como da qualidade de sua educação” (p. 53).
Em outro trecho, há a assertiva de que “a inteligência e a moral não
são, pois, menos influenciadas do que o físico pelo exercício e pelo
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funcionamento dos órgãos (...). A atividade não é menos uma necessidade moral do que um dever físico” (p. 57-8).
Sua perspectiva é impactante, controvertida, pelo menos nos dias
atuais, pois nela se lê, por exemplo, que “o homem são, cultivado fisicamente e preparado pelas qualidades do caráter, tem por via de regra
uma predisposição inata à moral”. Além de tal relação ser questionável do ponto de vista empírico, até mesmo especulativamente parece
insustentável – afinal, se é inata, qual seria o papel daquelas formas de
cultivo físico e de caráter na moralidade? Azevedo chega a citar uma
“tendência para o mal” como resultado de um organismo doentio.
Reportando-se novamente à Grécia Antiga, formula uma relação entre
saúde, qualidades morais e coragem como característica de um tipo
ideal de atleta de corpo e espírito.
Azevedo aduz uma série de nomes para corroborar sua visão. De
Schuyten, toma a ideia de que, pela observação, pode-se concluir
que as crianças mais inteligentes têm mais força muscular; de Stanley
Hall, Feré, Ribot e Binet, a visão de que motricidade e psique estão
em íntima ligação; com Robertson, afirma que o homem é a soma dos
seus movimentos; e, para resumir, põe-se ao lado de Waudsley, apostando na excêntrica tese de que o caráter do homem é simplesmente
a soma de seus hábitos musculares. Em suma, era o perfeito equilíbrio
do humano, o desenvolvimento harmônico e integral dos alunos, que
Azevedo focalizava, tomando como inconteste a imprescindibilidade
da dedicação aos exercícios físicos e ao cuidado com a cultura corporal como meio de alcançá-lo.
No que tange à noção de higiene, é menos a ginástica que preocupa Azevedo do que o ambiente no qual é praticada. O ponto seria,
então, fornecer um lugar asseado, as condições materiais propícias
para que todos os benefícios daquela atividade se desenvolvessem
sem empecilhos. Salas arejadas, iluminadas, sob a influência “salutar”
do sol são tidas como condições de possibilidade do êxito, já que
“sem higiene no local e no fato, não há ginástica profícua” (AZEVEDO,
1915, p. 199).
O aspecto da regeneração, no qual há elementos que expressam
juízos de valor impregnados das pretensões de cientificidade das teorias da regeneração da época, deixa ainda mais patente a relação que
viemos delineando no decurso do artigo, a saber, que o pensamento
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de Azevedo se insere na lógica da governamentalidade biopolítica. Caracterizando o brasileiro como um povo sem um tipo étnico definido,
uma etnia ternária, “emperrado, raquítico, destinado à absorção ou ao
menos à quase impossibilidade de galgar agora a posição de destaque
no convívio internacional” (1915, p. 203), Azevedo defende incisiva e
amplamente a necessidade de medicalizar a população do Brasil, a fim
de rejuvenescê-la. Assumindo a modernidade como parâmetro, defendendo que a educação física pela ginástica escolar é um fato precípuo
para regenerar a sociedade brasileira, logo, a nação, afirma que
não há senão seguir estas tendências modernas, em que triunfa (...) o
princípio de fusão de todas as ciências para um perfeito ideal educativo
– o sincretismo, que tem por objeto o homem em formação nas várias
manifestações da sua personalidade somática e moral” (1915, p. 206).
Progredir é tomado por Azevedo como sinônimo de regenerar física e moralmente os indivíduos, conforme aquelas pretensões governamentais biopolíticas. Nesse sentido, “a regeneração física é incontestavelmente um dos maiores fatores do progresso, se não for talvez
este próprio progresso” (1915, p. 205). Pressupondo uma espécie
de degenerescência do povo brasileiro, eleva a ginástica escolar à
condição de instrumento fundamental de regeneração social. O objetivo da educação física escolar, das práticas corporais escolares,
seria a formação de um novo homem brasileiro. Azevedo é taxativo
em relação a isso:
Uma vez entrada pela educação nos hábitos do país, a prática da ginástica, sustentada durante uma larga série de gerações, depuraria a
nossa raça de diáteses mórbidas, locupletando-a progressivamente
pela criação incessante de indivíduos robustos (1915, p. 208-9).
Azevedo conclui sua visão prestigiosa da ginástica, afirmando que
“o país que não tem educação física está morto” (1915, p. 209). Em
suma, povo brasileiro forte se forma a partir da limpeza étnica e racial, de robustecimento físico e moral, o que é operado por meio da
prática da ginástica escolar no âmbito da educação física, com vistas
à medicalização da sociedade brasileira, a fim de regenerar a nação.
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Tal perspectiva também pode ser vista em outras obras. Azevedo
(1920) defende o melhoramento da raça humana pela democratização do ensino e da saúde. O exercício físico é tido como uma “maravilhosa ação mecânica, que corrige e modela a estrutura humana” (p.
22). Azevedo (1933) aposta na educação sanitária como um modo de
inculcar nas crianças hábitos higiênicos, regenerando sujeitos, gerando
uma nova nação. Ao mostrar a importância da saúde, tal educação deveria criar nos indivíduos, desde a infância, uma vigilância constante,
um cuidado intensivo e extensivo com a vida saudável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente análise demonstrou como Fernando de Azevedo era um
homem do seu tempo, ou seja, estava amplamente coadunado com
alguns dos saberes que graçavam à época, notadamente os biomédicos. A partir de uma visão biologicista de educação, estava voltado
para um investimento biopolítico sobre a população brasileira, apostando no vínculo entre biologia, política e moral, em conformidade
com a lógica da governamentalidade biopolítica. Visando à construção
de um novo povo e de uma nova nação, subsidiado pelos valores
higienistas, apostava na educação para a contração de hábitos higiênicos, considerando as práticas corporais como fundamentais no processo de regeneração do povo e da nação, o que deveria contar com
a atuação necessária do dispositivo biopolítico-pedagógico.
Sua ideia de que a higiene envolve não só aspectos físicos, mas também morais, expressa o modelo de medicalização das sociedades modernas, conforme investigado por Foucault, o que indica sua aposta
numa forma de governo dos outros entendida como uma estratégia de
controle da vida calcada na prevenção. Aliás, como ficou evidenciado, as práticas corporais tinham um valor profilático, que deveria ser
intensamente usado para fins educacionais.
Assim, a cartografia feita permitiu que o pensamento de Fernando
de Azevedo fosse compreendido em sua inegável inserção na lógica
da governamentalidade biopolítica das populações.
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NÚMEROS ANTERIORES
EDIÇÃO 11
O SIGNIFICADO AMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICO-INSTITUCIONAL
DIANTE DA PRESENÇA DE ESPÉCIES EXÓTICAS NO BRASIL
Anderson Eduardo Silva de Oliveira
MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO
DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA
Andréa F. Costa
Maria das Mercês Navarro Vasconcellos
PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA
Graziela Ansiliero
Rogério Nagamine Costanzi
GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL
Análise comparativa das ações recentes para a reforma
dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos
Rafael Parente
INICIATIVAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE
Em busca de abordagens avaliativas e de efetividade
Regina Bodstein
EDIÇÃO 12
HOMICÍDIO JUVENIL E SEUS DETERMINANTES SOCIOECONÔMICOS
Uma interpretação econométrica para o Brasil
Lisa Biron
A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA E O CONCEITO DE SOCIEDADE
CIVIL EM GRAMSCI
Estratégias para o enfrentamento da crise socioambiental
Maria Jaqueline Girão Soares de Lima
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UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO RECENTE DA TAXA DE DESEMPREGO
SEGUNDO DIFERENTES CLASSIFICAÇÕES
Marina Ferreira Fortes Águas
ÁREAS PROTEGIDAS E INCLUSÃO SOCIAL
Uma equação possível em políticas públicas de
proteção da natureza no Brasil
Marta de Azevedo Irving
DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Uma análise de eficiência
Vívian Vicente de Almeida
EDIÇÃO 13
BIBLIOTECA E CIDADANIA
Ana Ligia Silva Medeiros
ESCOLA E SAMBA: SILÊNCIO DA BATUCADA?
Augusto César Gonçalves e Lima
O BRASIL, A POBREZA E O SÉCULO XXI
Celia Lessa Kerstenetzky
O MERCADO DE TRABALHO METROPOLITANO BRASILEIRO EM 2009
Lauro Ramos
LINGUAGEM, PENSAMENTO E MUNDO
Ludovic Soutif
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EDIÇÃO 14
EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO LICENCIAMENTO:
UMA ANÁLISE CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES
Carlos Frederico B. Loureiro
A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS
Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de S. Valle
A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS
TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937 – 1996)
Ieda Magri
DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEITORES
TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010
Larissa Morais
OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA ‘MORTE DO AUTOR’
Paulo Cesar Duque-Estrada
EDIÇÃO 15
A DESORDEM DO MUNDO
André Bueno
ESCUTA, ARTE E SOCIEDADE A PARTIR DO MÚSICO ENFURECIDO
Daniel Belquer
A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O RETORNO PRIVADO E AS RESTRIÇÕES AO INGRESSO
Márcia Marques de Carvalho
APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO
Pedro Demo
A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO:
DO ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE EXCEÇÃO
Sylvia Moretzsohn
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