ENSINO TÉCNICO E EDUCAÇÃO CRÍTICA: OBSERVAÇÕES SOBRE
A INSERÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS NO MUNDO
TECNOCIENTÍFICO (BRASIL, SÉCULO XXI)
Denilson de Cássio Silva1
Modalidade: Comunicação.
Eixo Temático: Educação e trabalho.
Resumo: A presente comunicação aborda a relação entre ensino técnico e educação crítica, a
partir de observações sobre a inserção das Ciências Humanas no mundo técnico-científico
brasileiro do século XXI. Têm-se como objetivos discutir a relação entre ensino técnico e
educação crítica, examinar o discurso formal-oficial no tocante àquela relação e compreender
a inserção das Ciências Humanas no devir de construção de uma educação técnica, científica e
humanística. O referencial teórico sustenta-se nos pensamentos arendtiano e habermasiano. A
metodologia é de cunho bibliográfico, documental, qualitativo e exploratório. Os resultados
iniciais alcançados apontam para o adensamento da compreensão das Ciências Humanas no
processo de fortalecimento da relação entre as dimensões técnica e crítica da EPT.
Palavras-chave: Educação; Técnica; Crítica; Ciências Humanas.
INTRODUÇÃO
A presente comunicação aborda a relação entre ensino técnico e educação crítica, a
partir de observações sobre a inserção das Ciências Humanas no mundo técnico-científico
brasileiro no século XXI. São considerados, sobretudo, os âmbitos da Educação Profissional
Técnica de Ensino Médio e das instituições de ensino superior, especializadas na oferta de
educação profissional e tecnológica. Parte-se do pressuposto de que as noções de ensino
técnico e educação crítica referem-se a uma realidade dinâmica na qual tais aspectos são
concatenados de forma interativa e interdependente (SILVA, 2014).
Se, por um lado, o termo “ensino” pode sugerir uma delimitação, demasiadamente,
acentuada, atrelada ao fator cognitivo, por outro, a ideia de “educação” pode comportar
determinada imprecisão, posta sua abrangência (MORIN, 2012). Entende-se, aqui, que o
ensino técnico compõe o processo educacional formal e que a crítica intervém ou deve
1
Professor de História do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Unidade Belo Horizonte.
intervir na construção do saber técnico, formando um movimento de transmissão, de
apropriação e de inovação no âmago do ensino-aprendizagem e da elaboração do mundo
humano.
Nesse sentido, os apontamentos sobre a condição epistemológica das Ciências
Humanas, em meio a uma modernidade tecnológica, ensejam a problematização da relação
entre técnica e crítica. Desvelam-se as peculiaridades de disciplinas caracterizadas pela
coincidência entre o sujeito e o objeto de conhecimento em meio a um paradigma vigente de
teor cartesiano. Por meio dessa abordagem, têm-se como objetivos discutir a relação entre
ensino técnico e educação crítica; examinar o discurso formal-oficial no tocante àquela
relação e compreender a inserção das Ciências Humanas no processo de construção de uma
educação técnica, científica e humanística.
De modo análogo, são aventadas as seguintes hipóteses de que: a) A relação entre
técnica e crítica é dialética, multilateral e dinâmica; b) Os discursos formais e/ou oficiais
sugerem a articulação entre ensino técnico e educação crítica, atendendo aos valores
educacionais em voga; c) As Ciências Humanas tornam-se cruciais para a concretização de
uma Educação Profissional Tecnológica de viés emancipatório e humanista.
As principais fontes utilizadas foram livros, artigos, teses, leis, diretrizes, planos e
parâmetros. A metodologia, pois, é de cunho bibliográfico, documental, qualitativo e
exploratório. Realizou-se o levantamento, a leitura, a sistematização e a análise de obras
afins, considerando-se tanto a produção acadêmica quanto dados oficiais, relativos à situação
do ensino técnico e tecnológico e da educação humanística. Na sequência, foram analisados
os pontos nevrálgicos para o atendimento aos objetivos da investigação e testada a validade
do escopo teórico e empírico empregado.
A seguir, no primeiro tópico, serão expostas as tentativas de articulação entre ensino
técnico e educação crítica, a partir da análise de documentos formais. No segundo tópico,
discutir-se-ão os contornos do tecnicismo e a relevância das Ciências Humanas. Por fim,
seguem as considerações finais.
1. ENSINO TÉCNICO E EDUCAÇÃO CRÍTICA: SOLILÓQUIO TEÓRICO
OU CONJUGAÇÃO POSSÍVEL?
No início do século XX, o trabalho e o ensino técnico, após séculos de escravismo,
apresentavam um caráter pedagógico conservador, voltado para o exercício do controle sobre
os grupos sociais, economicamente, marginalizados (GONÇALVES, 2012). A função técnica,
naquele contexto, demarcava lugares sociais de subalternidade e atuava na reprodução da
ordem estabelecida. No ano de 1909, foi instituído o Decreto 7.566, que criava nas capitais
dos Estados as Escolas de Aprendizes Artífices, predecessores dos atuais CEFET’s e IFET’s.
Desde então, acompanhando as diferentes tendências político-pedagógicas pelas quais passou
a educação formal, escolar-acadêmica, no Brasil, as discussões sobre as finalidades, os meios,
os públicos-alvo e os resultados do ensino técnico-tecnológico vêm sofrendo mutações,
ligadas a cenários estruturais de reformulação dos preceitos educacionais.
Da pedagogia tradicional, religiosa e leiga, passando pela pedagogia nova, até a
configuração de uma pedagogia tecnicista, têm se manifestado as disputas em torno dos
projetos, das ações e das orientações fundamentais da educação brasileira. No que tange ao
ensino técnico e tecnológico, adentrado o século XXI, a relação entre a razão instrumental e a
razão crítica, constituem um dos problemas centrais da teoria e da prática educacionais. Tal
questão vem sendo apontada em diferentes estudos, com linhas teóricas variadas (FRIGOTTO
& CIAVATTA, 2006; BOLZAN, 2010) e reflete as tensões em torno do desafio de se
equacionar lutas sociais e indagações histórico-filosóficas. No primeiro caso, há um cenário
no qual se afere um aumento na escala, na diversidade e, por conseguinte, nos conflitos da
democracia, em face de uma sociedade heterogênea e organizada em diferentes grupos
religiosos, étnicos, sexuais, etários, profissionais e outros, que lutam para ascender,
socialmente, por meio da educação, inclusive, de base técnica e tecnológica (DAHL, 2012).
No segundo, surge a demanda de elaboração de uma compreensão teórica, políticopedagógica, capaz de fundamentar uma prática pautada pela conciliação e complementaridade
entre a técnica-ciência e a crítica humanista.
Em ambos os aspectos, os discursos afins, de base legal, tendem a ensejar os valores
sócio-éticos-educacionais acalentados a partir da sociedade civil brasileira, assinalando para o
enfretamento de “um dos grandes problemas dessa nova perspectiva para a EPT (Educação
Profissional e Tecnológica)”, que é “construir uma visão da formação profissional e do
trabalho que ultrapasse o sentido da subordinação às restritas necessidades do mercado”. Sob
tal perspectiva, espera-se que a EPT “contribua com o fortalecimento da cidadania dos
trabalhadores e democratização do conhecimento em todos os campos e formas” (PACHECO,
CALDAS & SOBRINHO, 2012, p. 19). Essa avaliação faz eco a orientações já presentes na
Constituição Federal vigente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nos
Parâmetros Curriculares Nacionais e em Planos de Desenvolvimento Institucional.
No 1º artigo da Carta Magna brasileira, lê-se que, enquanto Estado Democrático de
Direito, a República tem como fundamentos “I – a soberania; II - a cidadania; III - a
dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo político”. Cidadania, pessoa humana e trabalho aparecem, aqui, encadeados, e
convergem para os objetivos republicanos fundamentais, assinalados no artigo 3º:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento
nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988).
Nesse devir, a educação é concebida como projeto social, fator estrutural e
estruturante, devendo ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho” (Art. 205). No artigo 214, ao designar que a lei estabelecerá o
plano nacional da educação, fica exposto que as ações deste deverão conduzir à erradicação
do analfabetismo, à universalização do atendimento escolar, à melhoria da qualidade de
ensino e às “IV -formação para o trabalho; V – promoção humanística, científica e
tecnológica do País”.
“Formação para o trabalho” e “promoção humanística”, novamente, emergem, lado a
lado, nos enunciados da LDB nº 9394/96: “Art. 2º. A educação, [...] tem por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. Adiante, no artigo 35º, são reconhecidas como finalidades do
ensino médio, dentre outras, “III - o aprimoramento do educando como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico;” e “IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina” (BRASIL,
1996).
Tal perspectiva ainda se manifesta nos PCNs, reafirmando a interdependência entre
“cidadania” e “trabalho”, “humanização” e “qualificação”, buscando sintonizar a realidade
escolar e as demandas formativas. Após discorrer sobre a concepção de educação escolar
como uma prática incorporadora da “possibilidade de criar condições para que todos os alunos
desenvolvam suas capacidades” e “aprendam os conteúdos necessários para construir
instrumentos de compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e
culturais diversificadas”, salienta que a “formação escolar deve possibilitar aos alunos
condições para desenvolver competência e consciência profissional, mas não restringir-se ao
ensino de habilidades imediatamente demandadas pelo mercado de trabalho.” (BRASIL,
1997, p. 33-34).
Acompanhando as ambiguidades das legislações supra, que absorvem as disputas e os
interesses em curso na sociedade e buscam uma síntese entre valores tecnicistas e humanistas,
o CEFET MG aponta suas orientações institucionais e político-pedagógicas. No ano de 1993,
ecoando parte do elã de sua longa história2, foi estabelecida como missão institucional
“Promover a formação do cidadão – profissional qualificado e empreendedor – capaz de
contribuir ativamente para as transformações do meio empresarial e da sociedade” (CEFETMG, 1993). O feitio tecnicista estava escancarado. Ao mesmo tempo, afere-se certa
preocupação em assinalar os valores humanos como húmus do processo de ensinoaprendizagem e de pesquisa, indicando que a “(...) educação tecnológica pressupõe
desenvolvimento humano.” (CEFET-MG, 1993).
Essa ambivalência demarca um ponto nevrálgico das diretrizes institucionais
cefetianas que continua presente na vida escolar-acadêmica. No Plano de Desenvolvimento
Institucional para os anos de 2011 a 2015, nota-se que a ênfase atribuída à tecnologia e à
ciência aplicada compõe a expertise da instituição. Se comparado com as perspectivas dos
anos 1990, parece ter ocorrido um avanço na busca por uma reflexão mais atenta ao liame
entre técnica e crítica, na ânsia em se alcançar uma possível coexistência entre as demandas
de qualificação e a resistência à lógica produtivista de mercado, por meio de uma educação
emancipatória. No PDI 2011-2015 verifica-se o fito de aprimorar documentos anteriores, no
que se refere à “valorização do caráter humanista e tecnológico da instituição, em prol da
educação tecnológica, promoção da cidadania e rejeição de políticas e práticas de exclusão”
(CEFET, 2012, p. 15). Dentre os princípios institucionais adotados, constam a “promoção de
2
No decorrer das décadas, o CEFET MG assumiu diferentes denominações e funções, chegando ao século XXI
com sua sede situada em Belo Horizonte. Constituindo-se em um centro de excelência educacional e científica, a
instituição arrosta o dilema entre tradição e inovação didático-pedagógica. Tal situação parece estar presente
também em outras instituições de ensino técnico e tecnológico. Ver: (FRIGOTTO & CIAVATTA, 2003). Esses
autores adotam um viés teórico marxista com o qual dialogamos, não nos limitando, porém, ao mesmo. Ver,
adiante, o tópico “2. Neotecnicismo e a condição das Ciências Humanas”.
educação com valores democráticos e de cidadania com responsabilidade ambiental” e a
“construção de projetos político-pedagógicos de cursos em consonância com a realidade local
e nacional, buscando uma estreita relação entre formação geral, técnica e humanística”
(CEFET, 2012, p. 93-94).
A transformação das concepções institucionais, claro é, situam-se em um quadro mais
amplo de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais, integradores da história nacional e
internacional. Para se compreender o dilema em pauta, cabe levar em consideração a
complexidade das relações entre essas diferentes instâncias, elucidando os vínculos
estabelecidos, mantidos ou rompidos entre o local e o global, as escalas micro e macro. A fim
de que se possa adentrar na análise dessa realidade, é tomada como chave explicativa a
posição das Ciências Humanas no painel da segunda metade do século XX e do século XXI,
avaliada, por diversos autores, como uma situação problemática ante o predomínio da lógica
racionalista (ADORNO & HORKHEIMER, 1985) e do dogmatismo cientificista
(HABERMAS, 2013).
Rompendo-se com a perspectiva binária-dicotômica da inter-relação entre técnicaciência e crítica emancipatória e auferindo a apreensão da complexidade, cabe indagar: Qual
seria a condição das Ciências Humanas? Como as disciplinas das Humanas, alicerçadas em
suas peculiaridades epistemológicas, atuam ou podem atuar no processo de construção de uma
educação técnica e crítica? Qual o risco de se apregoar uma educação técnica e tecnológica,
preocupada com o fortalecimento da cidadania, resvalando-se em um discurso vazio?
Um vislumbre sobre esses questionamentos indica que a relação entre ensino técnico e
educação crítica não se trate de um mero solilóquio teórico. Em vez disso, é explicitado o
desafio de se pensar e de se colocar em prática um projeto sócio-educacional emancipador.
Assim, as respostas a tais indagações reivindicam pesquisa teórica e empírica aprofundada,
cujo teor escapa aos limites do presente artigo. Passa-se, pois, ao afunilamento da discussão
proposta, centrando a atenção nas ingerências do tecnicismo e nas possibilidades de inserção
das Ciências Humanas na modernidade.
2. O NEOTECNICISMO E A CONDIÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS
2.1.Tecnicismo e neotecnicismo
Em fins da década de 1960 e no decurso dos anos 1970 foi traduzida e publicada, no
Brasil, uma série de obras, que defendiam, de alguma forma, a imbricação entre capital,
trabalho, desenvolvimento e educação (SAVIANI, 2013, p. 369). Não por acaso, as reformas
do ensino no Brasil, nesse ínterim, obedeceram à demanda de “grupos ligados ao regime
instalado com o golpe militar de 1964 que buscavam vincular mais fortemente o ensino
superior aos mecanismos de mercado e ao projeto político de modernização”, subordinandose às exigências do capitalismo internacional (SAVIANI, 2013, p. 374).
Sob esse prisma, o tecnicismo tornou-se a corrente pedagógica predominante naquele
período, caracterizando-se, em geral, pela crença no pressuposto da imparcialidade científica,
ancorada nas ideias de racionalidade, produtividade, eficiência e eficácia. Em termos da
educação profissionalizante, dava-se ênfase “no treinamento para fazeres práticos [...]
sobretudo voltados a atividades produtivas e de serviços”, preparando os alunos para “uma
especialidade laboral dissociada de uma formação geral mais ampla” (BRASIL, 1997, p. 8).
Os professores e demais agentes educacionais e escolares, eram concebidos como executores
burocráticos de um planejamento – sistêmico e padronizado, feito por técnicos outros voltado para reduzir ao mínimo a intervenção da subjetividade e atingir a famigerada
eficiência. Segundo Dermeval Saviani,
a pedagogia tecnicista, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento
do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da educação, ignorando que a
articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e por meio de
complexas mediações (SAVIANI, p. 383).
Patentemente, essa tendência político-pedagógica, embora predominante, não era a
única em curso, interagindo com concepções tradicionais, escolanovistas e libertadoras. Nas
décadas de 1980 a 2000, o tecnicismo perdeu seu posto de hegemonia, mas se reinventou e,
com a ascensão do neoliberalismo, adequou-se ao modelo toyotista de flexibilização do
trabalho e do maquinário tecnocientífico e informacional. Esse novo tecnicismo aflora tanto
na produção acadêmica3 quanto no campo legislativo4 e se alinha a um contexto em que os
Estados nacionais encontram-se sob diferentes pressões (ALVES, 2001).
Os contornos desse neotecnicismo cruzam diferentes níveis de ensino e seus
pressuposto e premissas transitam em espaços, outrossim, diversos. Deveras, a técnica-ciência
vê-se ameaçada pela subordinação ao poderio financeiro-econômico (GIDDENS, 1991).
Universidades têm aquiescido a pressões de patrocinadores e substituem pesquisas de longo
prazo pelas de curto, ciência pura por aplicada, mirando o lucro. Afere-se que a “universidade
americana de pesquisa se tornou francamente empresarial na estrutura institucional, na escala,
nas rotinas financeiras e em muitas de suas formas de avaliação do mérito” (GIBBONS et al.
apud BURKE, 2012, p. 173). Naquele mesmo país, as universidades corporativas saltaram, ao
longo da década de 1990, de quatrocentas para cerca de duas mil (SAVIANI, 2013, p. 441).
Ao preço do apoio empresarial, perde-se autonomia acadêmica e o calibre da responsabilidade
científica. Caso
algum cientista isolado ou algum grupo independente revela que determinado
produto ou procedimento é nocivo para o ambiente ou os seres humanos, as grandes
corporações dispõem logo dos recursos necessários para financiar estudos na direção
oposta, desmoralizando os cientistas autônomos e desqualificando os resultados de
suas experiências (SEVCENKO, 2001, p.101).
Acima dos valores humanos têm sido colocados os interesses mercadológicos, na
presunção de que a sociedade deva estar a serviço da técnica e, não, o contrário. Ao mesmo
tempo, “é preciso escapar à alternativa da ‘ciência pura’, totalmente livre de qualquer
necessidade social, e da ‘ciência escrava’, sujeita a todas as demandas político-econômicas”
(BOURDIEU, 2004, p. 21). Com efeito, urge atentar para a relativa autonomia do campo
científico e ter em conta como as pressões externas ao mesmo são exercidas por intermédio de
componentes do próprio campo.
No Brasil, o produtivismo acadêmico, à guisa toyotista, também tem sido tonificado
por uma crescente expectativa quantitativa, via mensuração do número de publicações de
artigos, relatórios, livros, projetos, presença em seminários, simpósios, encontros, acumulação
3
Ver, por exemplo, o artigo publicado no primeiro número da Revista Brasileira de Educação Profissional e
Tecnológica, intitulado “Educação tecnológica para a indústria brasileira”, de Alberto Borges de Araújo.
(ARAÚJO, 2008).
4
Além das ambivalências já tratadas no primeiro tópico, convém salientar a Emenda Constitucional nº 85, de 26
de fevereiro de 2015, promovida por um Parlamento de maioria conservadora e, explícita e prioritariamente,
alinhada aos anseios do meio empresarial.
de pesquisa com encargos administrativos etc, amiúde alheia ao crivo qualitativo e à
participação deliberativa (TREIN & RODRIGUES, 2011). Constata-se, pois, que o
direcionamento didático e político-pedagógico relaciona-se com outras alçadas e tem acolhido
não apenas uma visão crítico-histórica como também um viés neotecnicista, mediatizando os
embates entre um projeto sócio-educacional emancipatório de fortalecimento dos direitos
humanos e outro, mais próximo do telos da produtividade lucrativa.
Qual seria, pois, o fundamento das Ciências Humanas ante tal realidade?
2.2. Crise, crítica e a necessidade das Ciências Humanas
Se é factível a sombra de uma comunidade totalitária tecnicista, há de ser ressaltado
que a técnica talvez não seja capaz de abolir a crítica, “pelo simples fato de que precisa dela
para descortinar novos horizontes” (SEVCENKO, 2001, p. 17). Segundo Sevcenko, os
“sistemas políticos que tentaram banir a crítica morreram, sintomaticamente, por
obsolescência tecnológica.” Portanto, a crítica “é a contrapartida cultural diante da técnica, é o
modo de a sociedade dialogar com as inovações, ponderando sobre seu impacto, avaliando
seus efeitos e perscrutando seus desdobramentos” (SEVCENKO, 2001, p.17). O termo
“crítica”, derivado do verbo grego “krínein” significa decidir e discernir, referindo-se “à
pessoa capaz de elaborar juízos ou proceder a julgamentos”, com base em critérios - do grego
“kritérion” – ligados “aos valores mais elevados de uma sociedade” (SEVCENKO, 2001, p.
18-19). Tolhida de sua capacidade crítica, a sociedade desnorteia-se, dilui sua identidade e
seus fundamentos espirituais, incorrendo em grave crise. As noções de crítica, de critério e de
crise, logo, interagem e abrem perspectivas para a elaboração de respostas às vicissitudes da
modernidade.
Nesse ponto, a inserção das Ciências Humanas avulta-se como vetor imprescindível à
superação da retórica da formação da cidadania e à concretização de uma educação
emancipada e emancipadora.
Seria plausível
referir-se a uma
educação
crítica
menosprezando-se os estudos do processo histórico, filosófico, sociológico e geográfico no
qual os indivíduos constroem suas vidas? Seria razoável supor que os alunos e as alunas têm
condições de se posicionarem ante o esforço e os obstáculos para se erigir uma sociedade
livre, justa e solidária, ignorando as questões abarcadas pelas Ciências Humanas? Pensa-se,
aqui, que uma educação cidadã, abrangendo o ensino técnico, requer o saber sobre o ser
humano e, não apenas, sobre o mundo natural ou instrumental.
Consoante ponderação de Hilton Japiassu,
Não é tanto pelo custo das ciências humanas, tampouco pelo medo de seu potencial
crítico, que o sistema capitalista busca desqualificá-las e abatê-las, mas porque, por
definição mesma, no plano ontológico, estão destinadas a opor, à sua pura e simples
instrumentalização, o não fechamento de seu objeto: o ser humano social.
(JAPIASSU, 2012, p. 126)
A problematização das Ciências Humanas também se manifesta a respeito da
objetividade de tais saberes, ainda mais difícil de ser alcançada, em virtude da situação na
qual o ser humano é, simultaneamente, sujeito e objeto do conhecimento. Essa condição
acarreta ora a tentativa limitada de se aplicar procedimentos das ciências naturais ou exatas,
ora o reconhecimento e o manejo da subjetividade e da parcialidade, sob o risco de se incorrer
em um relativismo cético (RIBEIRO, 2000). Tal inquietação alcança, holisticamente, o campo
científico, palco de desconfianças e disputas intrínsecas e extrínsecas (BOURDIEU, 2004).
Há um abalo dos fundamentos epistemológicos na evidenciação do húmus ideológico
do discurso sobre a verdade científica, afetando mesmo filósofos que mais obstinadamente
defendem a reivindicação da ciência à certeza, como Karl Popper, ao assumir que “toda
ciência repousa sobre areia movediça” (POPPER, apud GIDDENS, 1991, p.50). Nesse
enredo, inexistem comprovações empíricas ou verificações lógicas capazes de firmar um
saber completo, definitivo e imutável, senão, antes, aberto ao debate, à dúvida, à refutação
e/ou ao aperfeiçoamento. Na sociedade da informação, há muita desinformação, “seja porque
lhe chega tendencialmente informação residual, ou porque se lhe impõe informação oficial, ou
porque se entope atabalhoadamente.” (DEMO, 2000, p. 40). Na sociedade do conhecimento,
há também muita ignorância, oriunda, em parte, da superespecialização, que elitiza, mutila e
confina o saber (MORIN, 2012).
Adorno e Horkheimer não hesitam em asseverar que “o esclarecimento é totalitário
como qualquer outro sistema.” Segundo os autores, “sua inverdade não está naquilo que os
inimigos românticos sempre lhe censuraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a
decomposição pela reflexão, mas sim o fato de que para ele o processo está decidido de
antemão”. Em outras palavras, “o que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a
submissão de todo ente ao formalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da
razão ao imediatamente dado” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 32-34).
Nesse
quesito, pode-se arrazoar que a relevância das Ciências Humanas aflora, ao atuar no
desmantelamento do racionalismo, cujo modelo, tomado previamente, limita e condiciona a
própria razão. Porém, ao se atestar que os saberes científicos, incluindo o campo das
Humanas, orientam-se pela racionalidade, não estariam também sendo portadores da
imediaticidade, capaz de reduzir e enquadrar a realidade? Nesse caso, ter-se-ia uma aporia,
dificilmente, solucionável.
Apelando para uma reelaboração da racionalidade, capaz de afastar o irracionalismo
da razão, que a tudo rebaixa e fornece uma aparente segurança e estabilidade, Hannah Arendt
assinala:
O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela
explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung não é tanto o risco de ser
iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica
quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa
de força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma
força externa. (ARENDT, p. 626)
Nesse processo, a “ascensão da vida biológica como bem supremo”, traduz “a vitória
do animal laborans”, extrapolando o estado do homo faber. Este, na medida em que “é apenas
um fabricante de coisas e em que pensa somente em termos dos meios e fins que decorrem
diretamente de sua atividade da obra”, torna-se “tão incapaz de compreender o significado
como o animal laborans é incapaz de compreender a instrumentalidade” (ARENDT, 2014, p.
192). A técnica, dessa perspectiva, descuida da práxis, isto é, pensa a fabricação, a ação do
homem sobre a matéria tornada objeto, em detrimento da interação humana. Segundo Arendt,
se for “comprovado o divórcio entre o conhecimento técnico e o pensamento, então
passaríamos a ser, sem dúvida escravos indefesos, nem tanto de nossas máquinas quanto de
nosso conhecimento técnico”, transformando-nos em “criaturas desprovidas de pensamento e
à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja”
(ARENDT, 2014, p. 4). Contudo, tal condição não constituiria uma essência humana, pois a
efetiva significação do mundo continuaria acessível aos seres humanos, por meio da
comunicação. Arendt recusa qualquer perspectiva fatalista e assinala que os “homens no
plural, isto é, os homens na medida em que vivem, se movem e agem nesse mundo, só podem
experimentar a significação porque podem falar uns com os outros e se fazer entender aos
outros e a si mesmos” (ARENDT, 2014, p.5).
De modo análogo, a despeito de trilhar um caminho filosófico próprio e criticar
determinados aspectos do pensamento de Arendt, Habermas investiga as atribulações da
tecnociência e da emancipação humana, bem como a experiência intersubjetiva do agir
comunicativo, extrapolando a avaliação monista da racionalidade moderna, identificada por
Adorno e Horkheimer como “totalitária” 5. O autor reavalia análises que, na ânsia de criticar a
ideologia da tecnocracia, terminam por situarem-se no plano dessa mesma ideologia. Há
interpretações que ressaltam ora o Estado técnico, obediente “à lógica das legalidades
objetivas”, dissolvendo “a dominação política na administração orientada de maneira
racional” (Schelsky), ora, inversamente, reduzindo não a dominação à técnica, mas a técnica à
dominação (Marcuse). Em ambos os ângulos de investigação, prossegue, ocorre a
maximização de “um tipo de entrelaçamento de sistemas tecnicamente orientados e regulados
com o sistema da sociedade industrial em seu todo”, como se “o progresso da técnica no
contexto de vida social colocasse apenas problemas que somente o progresso técnico poderia
solucionar” (HABERMAS, 2013, p. 527-528). No entender de Habermas, a ação
comunicativa do mundo da vida, embora condicionada, é e permanece sendo condicionante
do sistema e dos subsistemas (HABERMAS, 2012). Ao contrário do que apregoa a
tecnocracia, não basta a competência e as soluções técnicas para decidir sobre os fins,
devendo-se “colocar em marcha uma discussão politicamente eficaz que relacione de modo
racionalmente vinculante o potencial social do saber e do poder técnicos com nosso saber e
querer práticos” (HABERMAS, 2013, p. 538). Dito de outra maneira, “a força libertadora da
reflexão não pode ser substituída pela propagação do saber tecnicamente utilizável”
(HABERMAS, 2013, p.539).
Destarte, a contribuição das Ciências Humanas ao equacionamento entre ensino
técnico e educação crítica liga-se nem tanto ao aspecto, intrinsecamente, operacionalprocedimental, e, sim, à dimensão comunicativa, interativa, criativa e, por conseguinte,
competitiva e colaborativa.
5
Na Teoria do agir comunicativo, a racionalidade é entendida como um fenômeno complexo e dinâmico,
detentor de uma interação entre a esfera instrumental e estratégica e o âmbito comunicativo e intersubjetivo.
CONCLUSÕES
Ao se concentrarem sobre as ideias da formação do cidadão produtivo e da cultura de
mercado no ensino médio técnico, Frigotto e Ciavatta estimam que a educação do cidadão
produtivo “onde o mercado funciona como princípio organizador do conjunto da vida
coletiva, distancia-se dos projetos do ser humano emancipado para o exercício de uma
humanidade solidária e a construção de projetos sociais alternativos.” (FRIGOTTO e
CIAVATTA, p. 68). Tal perspectiva avigora um projeto social e educacional mais amplo, que
prioriza a constituição do ser humano e faz frente ao tecnicismo.
A presente comunicação subscreve essa proposição e, ao argumentar sobre a relação
dialética entre técnica e crítica e explicitar as tensões daí emanadas, a partir de discursos
oficiais, enfatiza o problema e os embates em torno de qual concepção política e pedagógica
deve orientar o ensino-aprendizagem escolar-acadêmico no Brasil. No fito de perscrutar um
possível caminho para se promover uma educação crítica e técnica, cidadã e qualificada, não
subordinada aos ditames do mercado nem aos grilhões do próprio campo científico e
educacional, afere-se a relevância da atuação das Ciências Humanas. Nesse afã, ao postular a
significativa contribuição dos pensamentos de Arendt e de Habermas para o enfrentamento da
questão em pauta, endossamos as hipóteses, inicialmente, levantadas. Em outro momento,
serão adensadas as discussões teóricas e o arcabouço empírico, ora tracejados.
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observações sobre a inserção das ciências humanas