QUARTA CÂMARA CRIMINAL
Habeas Corpus n. 0046857-56.2010.8.19.0000
Impetrante 1
: SIMÃO AZNAR FILHO
Impetrante 2: CARLA DOLEZEL TRINDADE
Paciente
: MIGUEL FACURI AMERICO
Aut. Coatora: 2ª VARA DA COMARCA DE SAQUAREMA
Relatora
: Desembargadora NILZA BITAR
EMENTA – HABEAS CORPUS. CRIME DE
FALSIDADE IDEOLÓGICA. DECLARAÇÃO DE
POBREZA PARA FINS DE OBTENÇÃO DO
BENEFÍCIO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE
JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
EVIDENCIADO. CONCESSÃO EXCEPCIONAL
DA ORDEM. Habeas corpus impetrado sob
alegação de constrangimento ilegal em
decorrência do recebimento de denúncia em que
imputa ao paciente a prática de crime previsto no
art. 299, do CP. A conduta atribuída ao paciente
foi a de ter prestado suposta falsa declaração de
pobreza nos autos de uma ação cível, no
propósito de obter para si o benefício da
gratuidade de justiça. Entendimento amplamente
majoritário no sentido de que informações
lançadas em declaração passível de posterior
conferência não configuram o crime de falsidade
ideológica, tendo em vista a ausência de
capacidade lesiva e ainda, pela não subsunção
da mencionada afirmação à definição de
documento previsto no art. 299 do Código Penal.
O crime de falsidade ideológica só se caracteriza
quando a declaração falsa, inserida em
documento, é dotada de força probante por si só,
independente de qualquer comprovação ulterior.
Precedentes jurisprudenciais. Caracterizada a
coação ilegal. Ordem que se concede para
trancar a ação penal.
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Habeas Corpus nº 0046857-56.2010.8.19.0000
Fls. 2
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Habeas
Corpus nº 0046857-56.2010.8.19.0000, A C O R D A M os
Desembargadores que compõem a Quarta Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em, por
unanimidade, conceder a ordem, na forma do voto da
Desembargadora Relatora.
Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2010
Desembargadora NILZA BITAR
Presidenta e Relatora
4ª Câmara Criminal
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Fls. 3
QUARTA CÂMARA CRIMINAL
Habeas Corpus n. 0046857-56.2010.8.19.0000
Impetrante 1
: SIMÃO AZNAR FILHO
Impetrante 2: CARLA DOLEZEL TRINDADE
Paciente
: MIGUEL FACURI AMERICO
Aut. Coatora: 2ª VARA DA COMARCA DE SAQUAREMA
Relatora
: Desembargadora NILZA BITAR
RELATÓRIO E VOTO
Cuida-se de habeas corpus, com pedido de liminar,
impetrado em favor de MIGUEL FACURI AMERICO, em que se
alega constrangimento ilegal por parte do juízo de direito da 2ª Vara
da Comarca de Saquarema caracterizado pelo recebimento da
denúncia em desfavor do paciente em que se lhe imputa a prática de
crime previsto no art. 299 do Código Penal.
Aduzem os impetrantes que a conduta imputada ao ora
paciente não é típica, não havendo, pois, justa causa para a ação
penal, de sorte que o recebimento da denúncia evidencia
constrangimento ilegal.
Pleiteia, com isso, a concessão da ordem para que seja
determinado o trancamento da ação penal.
Liminar indeferida às fls. 24.
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Fls. 4
Informações prestadas pela autoridade apontada como
às fls. 27, ratificando os termos da decisão de recebimento da
denúncia.
Parecer da Procuradoria de Justiça de fls. 29/31,
opinando no sentido da concessão da ordem.
É o relatório.
Passo ao voto.
A presente ação constitucional merece excepcional
acolhimento, haja vista a flagrante ausência de justa causa para
deflagração da ação penal, já que atípica a conduta imputada ao
paciente.
Vê-se que o paciente foi denunciado pelo Ministério
Público pela suposta prática de crime de falsidade ideológica, tendo
o juízo coator recebido a peça inicial, dando ensejo à deflagração da
ação penal.
A conduta atribuída ao paciente foi a de ter prestado
falsa declaração de pobreza nos autos de uma ação cível, no
propósito de obter para si o benefício da gratuidade de justiça.
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Habeas Corpus nº 0046857-56.2010.8.19.0000
Fls. 5
Ocorre que doutrina e jurisprudência vêm firmando
entendimento de que as informações lançadas em declaração
passível de posterior conferência não configuram o crime de
falsidade ideológica.
Isso porque tal agir não gozaria de qualquer capacidade
lesiva, além de não se subsumir tal declaração à definição de
documento previsto no art. 299 do Código Penal.
O crime de falsidade ideológica só se caracteriza quando
a declaração falsa, inserida em documento, é dotada de força
probante por si só, independente de qualquer comprovação ulterior.
A declaração de pobreza apresentada em processo
judicial com o intuito de concessão dos benefícios da assistência
judiciária gratuita implica apenas uma presunção relativa.
Tanto assim que pode o juízo determinar que o
pretendente leve aos autos documentos que comprovem sua
afirmação, e até mesmo indeferir o seu pleito.
Ademais, acaso demonstrada a não veracidade da
alegação de hipossuficiência e comprovada má-fé do requerente,
pode o juízo aplicar-lhe a pena pecuniária prevista no art. 4º, §1º, da
Lei n. 1.060/50, como sanção.
Não há falar, pois, em tipicidade penal da conduta.
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Fls. 6
Confiram-se, a esse respeito, os seguintes julgados:
“FALSIDADE IDEOLÓGICA. DECLARAÇÃO
DE POBREZA PARA FINS DE GRATUIDADE
JUDICIÁRIA.
Declaração
passível
de
averiguação ulterior não constitui documento
para fins penais. HC deferido para trancar a
ação penal”.
(HC 85976, Min. ELLEN GRACIE, STF)
“PENAL.
RECURSO
ORDINÁRIO
EM
HABEAS CORPUS. INQUÉRITO POLICIAL.
TRANCAMENTO. FALSIDADE IDEOLÓGICA.
DECLARAÇÃO
DE
POBREZA
PARA
OBTENÇÃO
DO
BENEFÍCIO
DA
GRATUIDADE JUDICIÁRIA. SITUAÇÃO NÃO
AUTORIZADA PELA LEI Nº 1.060/50.
ATIPICIDADE
DA
CONDUTA.
CONSTRANGIMENTO
ILEGAL
EVIDENCIADO. I - Conquanto, a teor da
jurisprudência
desta
Corte,
seja
o
trancamento do inquérito policial medida
excepcional, a hipótese delineada nos
presentes autos autoriza que se obste, na
origem, o prosseguimento das investigações,
dada a flagrante atipicidade da conduta
atribuída ao recorrente. II - A conduta daquele
que declara pobreza, fora das hipóteses
legais previstas na Lei nº 1.060/50, com o fito
de obter o benefício da gratuidade judiciária,
per se, não se amolda ao delito tipificado no
art. 299 do CP, uma vez que a declaração, em
si mesma, goza de presunção juris tantum,
sujeita, portanto, a comprovação posterior,
realizada, de ofício, pelo magistrado, ou
mediante impugnação, nos termos da própria
Lei de regência (Precedente do STF: HC
85.976/MT, Segunda Turma, Rel. Ministra
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Ellen Gracie, DJU de 24/02/2006). Recurso
ordinário provido”.
(RHC 200800401458, FELIX FISCHER, STJ QUINTA TURMA, 10/11/2008)
“HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE
INQUÉRITO POLICIAL. DECLARAÇÃO DE
POBREZA
PARA
OBTENÇÃO
DO
BENEFICIO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA
EM DESACORDO COM A LEI N. 1060/50.
VALIDADE
DA
REQUISIÇÃO
DE
MAGISTRADO PARA EXTRAÇÃO E ENVIO
DE PEÇAS À AUTORIDADE POLICIAL.
SOMENTE A PROMOÇÃO DA AÇÃO PENAL
PÚBLICA É DA COMPETÊNCIA DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. ATENÇÃO AOS
PRINCIPIOS DO ACUSATÓRIO E DA
IMPARCIALIDADE.
CONDUTA
DO
PACIENTE É ATIPICA. CASO DE EXCEÇÃO
QUE AUTORIZA O TRANCAMENTO DO
INQUÉRITO POLICIAL OU DA AÇÃO PENAL
EM SEDE DE HABEAS CORPUS.1. O
Trancamento do inquérito policial em sede de
Habeas Corpus se dá por exceção e, reclama
ausência de base para denúncia, ou de
defeitos formais para seu prosseguimento.2.
Necessário se faz, que o acervo indiciário
coligido pela autoridade contenha suporte
fático-jurídico
para
que
seja
dada
continuidade à ação penal contra o imputado.
3. O art. 648 do CPP, diz que a coação é
considerada ilegal quando não houver justa
causa. Assim, o trancamento da ação penal,
medida de exceção que é, somente cabe nas
hipóteses em que se demonstrar, na luz da
evidência, primus ictu oculi, a inocência do
acusado, a atipicidade da conduta ou a
extinção da punibilidade.4. In casu, não há
justa causa, pois, percebe-se a atipicidade,
pelo fato de que o documento é passível de
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averiguação, verificação, bem como, de
comprovação de sua idoneidade.5. A
presunção de pobreza em decorrência da
afirmação, prevista no artigo 4º da Lei
1.060/50, não é absoluta, podendo o Juiz
negar o benefício, se os elementos existentes
nos autos levarem à conclusão de que a
declaração de hipossuficiência não é
verdadeira. Contudo, tal fato não configura a
conduta típica caracterizadora do crime de
falsidade ideológica.6. Constrangimento ilegal
configurado. Ordem concedida”.
(2009.059.05995 - HABEAS CORPUS - DES.
GUARACI
DE
CAMPOS
VIANNA
Julgamento: 25/08/2009 - QUARTA CAMARA
CRIMINAL)
“HABEAS CORPUS. CRIME DE FALSIDADE
IDEOLÓGICA.
REQUERIMENTO
DE
GRATUIDADE DE JUSTIÇA EM AÇÃO DE
COBRANÇA. DECISÃO INDEFERITÓRIA.
EXTRAÇÃO DE PEÇAS E ULTERIOR
REMESSA À 140ª DP PARA INSTAURAÇÃO
DE INQUÉRITO PARA APURAR A PRÁTICA,
EM TESE, DO DELITO DO ART. 299 DO
CÓDIGO
PENAL.
PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS NO SENTIDO DE QUE
EVENTUAL DECLARAÇÃO DE POBREZA
FIRMADA COM O FITO DE OBTER
BENEFÍCIO DE GRATUIDADE JUDICIÁRIA,
NÃO SE ADÉQUA AO TIPO PREVISTO NO
ARTIGO SUPRACITADO, POSTO QUE NÃO
POSSUI, POR SI SÓ, FORÇA PROBANTE.
CONSTRANGIMENTO
ILEGAL
CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA”.
(2009.059.05996 - HABEAS CORPUS - DES.
MARIA ANGELICA GUEDES - Julgamento:
08/09/2009
TERCEIRA
CAMARA
CRIMINAL)
4ª Câmara Criminal
Habeas Corpus nº 0046857-56.2010.8.19.0000
Fls. 9
“EMENTA: PENAL - "HABEAS CORPUS" FALSIDADE IDEOLÓGICA - AÇÃO PENAL TRANCAMENTO - POSSIBILIDADE APENAS
QUANDO DEMONSTRADA A MANIFESTA
ATIPICIDADE
DA
CONDUTA
DECLARAÇÃO DE POBREZA - FALSIDADE
AVENTADA PELO MAGISTRADO - NÃO
ADEQUAÇÃO DA CONDUTA AO DELITO
PREVISTO NO ARTIGO 299 DO CÓDIGO
PENAL - DOCUMENTO QUE, POR SI SÓ,
NÃO POSSUI FORÇA PROBANTE NECESSIDADE
DE
ULTERIOR
AVERIGUAÇÃO PELO JUÍZO, DE OFÍCIO
OU A REQUERIMENTO - ATIPICIDADE NECESSIDADE DE TRANCAMENTO ORDEM CONCEDIDA. I. O trancamento de
ação penal somente é viável ante a cabal e
inequívoca demonstração da atipicidade da
conduta atribuída ao investigado. II.
Consoante recente orientação jurisprudencial
do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida
pelo colendo Superior Tribunal de Justiça,
eventual declaração de pobreza firmada com
o fito de obter o benefício da gratuidade de
justiça não se adéqua ao tipo penal previsto
no artigo 299 do Código Penal, pois não
possui, por si só, força probante, já que
sujeita
à
posterior
averiguação pelo
Magistrado, de ofício ou a requerimento. III.
Ordem concedida”.
(HABEAS CORPUS N° 1.0000.09.5097333/000 - COMARCA DE LAGOA DA PRATA PACIENTE(S):
ALAINE
PERILO
DE
CASTRO,
HENRIQUE
BORGES
RODRIGUES, SINARA LOPES DUARTE AUTORID COATORA: JD 2 V COMARCA
LAGOA PRATA - RELATORA: EXMª. SRª.
DESª. JANE SILVA)
4ª Câmara Criminal
Habeas Corpus nº 0046857-56.2010.8.19.0000
Fls. 10
“Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO JUSTIÇA GRATUITA - PESSOAS FÍSICAS. A
declaração de pobreza não é prova suficiente
da presunção do estado de pobreza. A
presunção de pobreza reveste-se de natureza
relativa e não absoluta, o que, por via reflexa
de conseqüência, revela a possibilidade da
não concessão ou da revogação da
gratuidade de Justiça, se nos autos restar
provado que a parte requerente não se
adéqua ao espírito da lei garantidora de tal
benefício. No caso dos autos, o documento de
fls. 21/32 demonstra que os Agravantes não
podem ser considerados pobres na acepção
jurídica do termo, persistindo, assim, a
necessidade de que arquem com as custas e
despesas
processuais.
RECURSO
IMPROVIOO NESTE PONTO. AGRAVO DE
INSTRUMENTO - JUSTIÇA GRATUITA CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA ABERTURA DE INQUÉRITO POLICIAL - A
conduta praticada pelos Agravantes é atípica
e não se enquadrando no dispositivo legal do
Código Penal, que trata do crime de falsidade
ideológica (art. 299). Ausência de justa causa
para abertura de inquérito policial. RECURSO PROVIDO NESTE PONTO.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - JUSTIÇA
GRATUITA - ART. 4o, § 1o, DA LEI 1.060/50 CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DO
TRIPLO DAS CUSTAS JUDICIAIS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E
RAZOABILIDADE - RECURSO IMPROVIDO
NESTE PONTO”.
(Agravo de Instrumento 990101189917 Relator(a): Eduardo Siqueira - Comarca: São
Paulo - Órgão julgador: 37ª Câmara de Direito
Privado - Data do julgamento: 26/05/2010)
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Habeas Corpus nº 0046857-56.2010.8.19.0000
Fls. 11
Dessarte, é forçoso concluir que a declaração de
hipossuficiência não pode ser considerado documento para fins do
crime de falsidade ideológica, tendo em vista que a submissão à
posterior averiguação do juiz torna irrelevante a declaração
apresentada, o que descaracteriza o crime em razão da inocuidade
do falso.
Portanto, à luz dos princípios da tipicidade estrita e da
ultima ratio que orientam a interpretação das normais penais em
nosso país, há que se reconhecer a atipicidade da conduta do
agente e, por conseguinte, a inexistência de justa causa para o
prosseguimento da ação penal, de forma que o recebimento da
denúncia caracteriza evidente constrangimento ilegal.
Diante do exposto, concedo a ordem para determinar o
trancamento da ação penal, com seu consequente arquivamento.
É como voto.
Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2010
NILZA BITAR
Desembargadora Relatora
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