Interstícios /
Hall Freire 1
Pontificia Universidade Católica de São Paulo
PUC/SP
Norma Leonor Hall Freire
INTERSTÍCIOS
Colaboração para os Estudos Semióticos dos Textos com Memória Própria
Doutorado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2013
Interstícios /
Hall Freire 2
Norma Leonor Hall Freire
INTERSTÍCIOS
Colaboração para os Estudos Semióticos dos Textos com Memória Própria
Doutorado em Comunicação e Semiótica
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica
Área de Concentração: Signo e Significação nas Mídias
Linha de Pesquisa : Cultura e ambientes midiáticos
sob a orientação da Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira.
Interstícios /
Hall Freire 3
São Paulo
2013
Banca Examinadora
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Interstícios /
Hall Freire 4
Para Rafael
Interstícios /
Hall Freire 5
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
INTERSTÍCIOS
Colaboração para os Estudos Semióticos
dos Textos com Memória Própria
RESUMO DE PESQUISA
Palavras-Chave - texto - memória - fragmento - mosaico - temporalidades - símbolo - ritual
Um texto tem a capacidade de preservar a memória de seus prévios contextos. Sem essa função não
haveria História. Se um texto permanecesse na consciência do observador apenas como si mesmo, o
passado se apresentaria a nós como um mosaico de fragmentos desconexos. Fiz minhas, na abordagem do Conto de Amaro, as palavras de Iuri Lotman. O objetivo da presente pesquisa em relação ao
Conto de Amaro, uma narrativa do século XV produzida no mosteiro de Alcobaça em Portugal,
considerada como um enigma no âmbito da literatura medieval é, antes que descortinar origens, dar
uma voz à narrativa. Para isso outros textos foram necessários. O elemento interno do Conto de
Amaro que permite melhor visibilidade de situações semelhantes é o de temporalidades distintas
convivendo num mesmo espaço narrativo. A aplicação do método comparativo a essa constelação
ampliada com a pesquisa de 14 textos de apoio, produziu uma ampla rede de significados incorporados de alguma forma ao Conto de Amaro e que podem ser chamados de sua memória. A identificação desses significados nas mediações comunicativas da cultura mapeadas por Jesús Martín-Barbero - socialidade, institucionalidade, tecnicidade, e ritualidade - permitiu uma interpretação do
Conto de Amaro em vários níveis que lhe são próprios, acrescentando entendimento ao texto. Ao
mesmo tempo, gerou a percepção de duas lógicas distintas em funcionamento dentro e fora no texto, que solicitavam compreensão. Uma delas, diferente da que é característica do pensamento descritivo e explicativo e que, de algum modo, pode ser chamada língua dos nomes próprios. O funcionamento dos nomes próprios é tão diferente no conjunto das línguas naturais, que eles podem ser
considerados uma língua à parte. Sua presença, no entanto, é sensível no substrato das culturas e na
heterogeneidade da consciência humana. O espaço que habitam é mosaicado, sua temporalidade é
distinta e sua natureza é de símbolos. Na pesquisa que apresento, limitei-me a indicar sua presença e
fiz alguns comentários. Entre os autores que auxiliaram imensamente na compreensão do objetivo
cito Jerusa Pires Ferreira, Aron Gurevitch, Claude Lévi-Strauss, Iuri Lotman, Roman Jakobson, Boris Uspenski, Vyacheslav Ivanov e Santo Amaro.
Interstícios /
Hall Freire 6
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
INTERSTICES
Collaboration for Semiotic Sudies of the Texts with Own Memory
ABSTRACT
Keywords - text - fragment - mosaic - memory - temporalidaes - symbol - ritual
A text has the ability to preserve the memory of their prior contexts. Without this function there
would be no Story. If a text remained in the observer's consciousness only as itself, the past would
be as a mosaic of disconnected fragments. Did mine, in the approach of the Conto de Amaro, the
words of Yury Lotman. The objective of the present research in relation to Conto de Amaro, a 15thcentury narrative produced in the monastery of Alcobaça in Portugal, regarded as an enigma in the
context of medieval literature is, before unveiling the origins, give a voice to the narrative. For that
other texts were needed. The internal element of the tale of Amaro that allows better visibility of
similar situations is the distinct temporalities living in the same narrative space. The application of
the comparative method to this larger constellation with the 14 texts of research support, produced
an extensive network of meanings embedded in some way to the Conto de Amaro that you can call
its own memory. The identification of these meanings in the communicative mediation of culture
mapped by Jesús Martín-Barbero - socialibility, institutionality, technicality, and rituality- allowed
an interpretation of the tale of Amaro on several levels that are its own by adding understanding the
text. At the same time, generated the perception of two distinct logics operating inside and outside
the text, which called for understanding. One of them, different from that which is characteristic of
descriptive and explanatory thought that, somehow, can be called the language of names. The functioning of names is so different on the set of natural languages, they can be considered a separate
language. Their presence, however, is sensitive in the substrate of the cultures and the heterogeneity
of human consciousness. The space they inhabit is mosaicado, their temporality is distinct and their
nature is symbols. In the research, I indicate its presence and made a few comments. Among the
authors who helped immensely in understanding the goal I quote Jerusa Pires Ferreira, Aron Gurevitch, Claude Lévi-Strauss, Yuri Lotman, Roman Jakobson, Boris Uspenski, Vyacheslav Ivanov and
Santo Amaro.
Interstícios /
Hall Freire 7
SUMÁRIO
I_ UM MAPA, UM PONTO OU DOIS
I.1_Introdução 11
10
II_ O MANUSCRITO, um recorte fotográfico
20
Da Estrutura do Texto 22
O Mar Coalhado
23
A Roda da Fortuna 25
Val de Flores 25
Leomites 27
Joaquim de Fiore
27
Um Códice Iluminado
28
A Despedida 30
Olhar mais doce
31
Farpas Apocalípticas 32
Os Espirituais
33
O Culto do Divino
34
Brajlides, Valydes, Baliides...
Isabel 35
Trovadores e Cruzados
Os Cátaros
42
Cultura do Paratge
43
Inquietação e Heresia 44
Os Rosários de Maria 46
O Ramo da Consolação
48
Heterodoxias 49
Pastores
53
Uma Risca Prateada
Polos de Navegação 55
O Galego-Português 55
Coitas 58
Ritos do Trovar
60
O Paço Real 60
Tomar, castelo 61
Mentalidade Cruzadística
61
Caminhos da Jerusalém Celeste
65
Exempla
66
Pensamento Sistemático
Virtudes Teologais
68
Cristãos do Oriente 69
Ruas de Mão Dupla 70
35
Interstícios /
Hall Freire 8
II.6_ Doces Amores 71
II.7_Conclusão
74
III_ CONTEXTOS 78
Constelações 79
Reformas Monásticas 80
Comunidades, alguns aspectos
84
Sertões
84
O Tempo dos Mosteiros
88
Gramática
90
Imaginação 90
Meditatio
92
A Lectio Divina
94
A Lectio Escrita
95
O Livro
95
Repertórios Auxiliares 96
Nominação 97
O Mosteiro e o Reino 102
A Ordem de Cister em tempos de crise
A “Badia” Florentina / D. Frei Gomes
IV_ ESPAÇOS INTERMEDIÁRIOS
104
105
109
Mapa Noturno
Símbolos
114
Temporalidades
115
Liminaridade e Communitas 116
Imediaticidade 127
Topos e Tropos
128
Ritos de Passagem 130
Processos de Criação 131
Bricolagem 134
Retórica
135
Ponte 137
A Língua dos Nomes Próprios
141
V_TEMPORALIDADES DISTINTAS
143
Honi, o Fazedor de Círculos, e o Plantador de Alfarrobeiras 144
Salmo 90 [89] 147
Uma Carta de Maimon 149
Uma Carta de Pedro 150
Hinos do Paraíso de santo Efrem
Máximo, Bonelo e Baldario
Interstícios /
Os Sete Dormentes de Éfeso
Isra e Miraj
Psicopompos
Lendas do Reno e Alhures
O Monge de Heisterbach
Schimpf und Ernst
Affligem
Um anjo passarinho
Pecopin e Baldur, Guntram e Liba
Um “Conte noir à Sevillana”
SANTO AMARO
Introdução
Um santo português
Entrelaçamentos
Um santo beneditino
São Mauro
São Mauro
Almendral
Os Santos Mártires
Mauron
Mouros
Santo Amaro Peregrino
ANEXOS
BIBLIOGRAFIA
Hall Freire 9
Interstícios /
Hall Freire 10
UM MAPA, UM PONTO OU DOIS 1
1Mappamundi
de Fra Mauro (1459) comissionado pelo rei Afonso V de Portugal: sul invertido, colocado em cima
Interstícios /
Hall Freire 11
Introdução _ Um mapa é uma representação visual de um determinado espaço, uma forma simbólica de apresentar as relações que se vislumbram entre os elementos desse espaço tais como objetos, regiões, conceitos, temas etc. Com esse objetivo, empreendo o mapeamento do percurso traçado na elaboração do presente estudo, que se quer não como uma leitura exaustiva do ‘Conto de
Amaro’, uma narrativa medieval manuscrita entre os séculos XIV e XV em Portugal, mas sim como
uma tentativa de localizar o texto num espaço-temporal que lhe julgo próprio, o das ritualidades.
O texto trata da viagem de Amaro ao Paraíso, num trajeto que percorre mar e terra. O conceito de
liminaridade desenvolvido pelo antropólogo Victor Turner (1967:2008) a partir da estrutura dos ritos de passagem é importante para a compreensão desses espaços “entre”. Nos ritos, a duração da
fase que está entre o antes e o depois, nas zonas liminares entre a partida e a chegada, varia conforme a cultura e a natureza do rito. Em alguns ritos de iniciação e festivais sazonais ela pode durar
muito tempo ou prolongar-se como se na verdade fosse um corredor comprido, um trem em meio a
uma floresta de símbolos; um túnel que pode se transformar na contemplação estática de um asceta,
de um eremita, de um monge num mosteiro ou nos passos de um peregrino - aspectos da religiosidade e da mente humana a que Turner aplica seu método de análise simbólica e comparativa. Percebo no Conto de Amaro que veio à luz no Mosteiro de Alcobaça, elementos de um ritual de passagem que transcorre em vários níveis.
O texto tem intitulação polêmica. Em algumas versões Amaro aparece como “santo” e em outras
ele é simplesmente “Amaro”. No início do século XX foram feitas pelo menos duas edições do manuscrito. Em 1906 José Joaquim Nunes apresentou um trecho selecionado para publicação numa
coletânea de uso didático [conto de Amaro, inserto no códice alcobacense n. 266]2, algum tempo
depois da edição empreendida por Otto Klob3, publicada na íntegra pela revista Romania com o título ‘Vida de sancto Amaro, texte portugais du XIVe siècle’. Adota-se aqui a perspectiva proposta
no título de Nunes, fiel ao original, a mesma que adota a edição de Elsa Branco da Silva, publicada
integralmente em 2002 4.
Além das mencionadas são conhecidas outras edições do mesmo manuscrito. Branco da Silva cita
a que Eugen Heinen, em 19735, fala da narrativa como “lenda” e a tese não publicada de Maria Luísa Meireles Pinto6. Hilário Franco Júnior7, autor de um artigo da obra, menciona ainda as de Eliza-
2
NUNES, José Joaquim (1967) ‘Crestomatia Arcaica - excertos da literatura portuguesa desde o que mais antigo se
conhece até o Sec. XVI’, 6a. edição, Lisboa:Livraria Clássica Editores
3
KLOB, Otto (1901) Vida de sancto Amaro, texte portugais du XIVe siècle. Romania, 30, 1901, p. 504- 518. Ms. Alcobaça 266.
4
BRANCO DA SILVA, Elsa (2002) Conto de Amaro -Edição de texto português medieval e introdução, pp 241 e sgs in
NASCIMENTO, Aires do, 2002, op cit
5
HEINEN, E.(1973) Die altportugiesische Amaro-Legende, éd. Eugen Heinen, Münster
6MEIRELES
PINTO, M.L (1961) O conto de Amaro. Leitura crítica do texto e glossário, tese de licenciatura, Universidade de Lisboa, 169 p.
7
FRANCO JR, Hilário (2010) Concepts of time in medieval Portugal: temporalities and simultaneities in the Conto de
Amaro', Journal of Medieval Iberian Studies, 2:1, 51 - 76, London/New York: Routledge
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Hall Freire 12
beth Zacherl8 (1979), e a tese de Laura Remartinez Paes de Vasconcellos (1997)9 . Entre as referências, há que destacar o trabalho de Néri de Barros Almeida, pesquisadora e autora do tema.
Na leitura do Conto, valemo-nos da edição de Branco da Silva. Quando nos referimos ao texto
“De Sancto Amaro” que consta do Ho Flos Sanctorum de 1513 em língua portuguesa, usamos a
edição reproduzida num ensaio de Maria Clara de Almeida Lucas, publicado em 198610.
Se a edição do Conto de Amaro não é tarefa simples, a interpretação do texto configura-se como
um ‘enigma no âmbito da literatura medieval’, considera Branco da Silva (ibid:244) ao notar que a
diversidade de opiniões que cerca sua leitura “não esconde a dificuldade de identificação da origem
do conto”. A observação de Branco da Silva nos anima a buscar, não a identificação da origem do
conto - ao qual Mário Martins 11 se refere como “uma aventura marítima digna dum Júlio Verne medieval” - mas sugerir os possíveis fios da trama em que ele se tece até a sua inclusão no códice 266.
De início, o título prendeu minha atenção. Dois têrmos o compõe, um gênero e um nome interligados pela preposição “de”, relacionando memórias seculares.
Entre aqueles dois termos situo a viagem propriamente dita, o “ritual de passagem” de Amaro no
capítulo “O Manuscrito de Alcobaça, um recorte fotográfico” e percorro o contexto de dois modos:
no plano interno da comunidade monástica e no plano externo a essa comunidade, o Reino portugues. Está no capítulo “Contextos”.
No Conto, a viagem começa quando o jovem homem menino Amaro - um homem pio - sai da
praia do desejo e embarca em alto mar. Dessas passagens, quase uma colagem dos textos que apoiaram a análise do texto (são textos bíblicos, salmos, belos.... merecem melhor serei breve) falaremos no capítulo “Espaços Intermediários”. O mar que Amaro atravessa no texto manuscrito em Alcobaça é por vezes coalhado, há monstros serpentes, pedaços de gente, naufrágios, ilhas enfim, tudo
aquilo que sempre cabe ali, mais a doce voz da Virgem conduzindo os marinheiros. Fora do mar há
ilhas e terra firme, pontilhada por mosteiros em cujos nomes se reconhecem sons ibéricos e mediterrâneos, até o vislumbre do castelo ao longe, suas torres e muralhas: o Paraíso.
A descrição das paisagens é generosa a seu modo, e regrada nos termos: limita-se aos floreios codificados que remetem a fórmulas fixas, de uso já na tradição homérica. A construção indicava na
oralidade uma “idéia essencial” - só há um modo de dizê-la - e à sua passagem abre-se um espaço
de imaginação para o receptor, mesmo que ele se situe a séculos de distancia. Através desses intervalos medianamente permissivos é possível perceber no Conto de Amaro uma pontuação distinta da
que foi introduzida pela letra - de certo modo relacionada às tais deixas formulares, uma construção
que persiste muito além da passagem irregular do oral para o escrito.
Percebi também um outro ponto, embora não com tanta concretude. Fica no episódio do castelo,
já no final - ouvem-se flores, frutos, perfumes dulcíssimos, clima ameno, dia eterno, cantorias, há
jovens belas ali, no Paraíso - e o porteiro que não deixa Amaro passar da soleira do sonho ou me8
ZACHERL, E. (1979) Conto de Amaro in col. Texte romanischer Volksbücher 5; Salzburg:Internationale Arbeitsgemeinschaft für Forschungen zum romanischen Volksbuch,
9
VASCONCELLOS, L. Paes de (1997) Conto de Amaro: edição e estudo de um texto do códice alcobacense no 266,
tese, Universidade nova de Lisboa, 192 p.
10
ALMEIDA LUCAS, Maria Clara (1986) A Literatura Visionária na Idade Média Portuguesa volume 105, in Biblioteca Breve, Lisboa:Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
11
MARTINS, Mario (1956) Estudos de Literatura Medieval, Braga, pp 24-27 apud Luciano Rossi “A literatura novelística na Idade Média portuguesa in Biblioteca Breve vol 38, 1979,Lisboa:Instituto de Cult e Língua Portuguesa, p 82
Interstícios /
Hall Freire 13
lhor, deixa-o entrar para uma vistoria guiada, porque reconhece nele um bom homem - mostra-lhe,
inclusive, a árvore dos frutos proibidos. Esse ponto marca a volta, um retorno de herói sem glória,
trazendo apenas um poucochinho da terra do Paraíso da Criação entrevisto, o mais próximo que lhe
foi permitido chegar da realidade que almejou. Viveu para isso, mas para isso havia que morrer.
O Amaro do conto manuscrito em Alcobaça não volta à terra em que nasceu - segundo algumas
versões, um vago Oriente que crê no Paraíso terreal - mas à uma outra, um Ocidente que reconta a
sua história.
Ocorre que naquele limiar do Paraíso, ele descobre que haviam se passado 276 anos entre a partida e a chegada. O conto termina - não com a vitória de praxe do herói clássico que enfrenta a morte
e os perigos do destino - mas com um Amaro mortal, vivendo vida santa mais de acordo com os
trabalhos e os dias, morrendo morte mais santa, uma dormição livre da esperança vã de um paraíso
terreno, um passaporte tranquilo para o paraíso dos anjos, no além. Menciona-se ainda que no tempo que lhe resta de vida no mundo, Amaro funda um monastério em Treville ou Troisville.
É preciso dizer que existem realmente locais conhecidos como Treville e Troisvilles no mapa da
Europa, referindo-se a senhorios reunidos no período medieval. Por exemplo, na Italia piemontesa,
na França ao norte do Passo de Calais, e um local de povoamento muito antigo, memória idem, na
região basca de Iruri que os franceses chamam Treville. Lá viveu o conde de Treville, Jean-Armand
du Peyrer, governador do Condado de Foix, nascido em Oloron-Sainte-Marie em 1598 e morto em
1672 nas suas terras em Iruri/Troisvilles/Treville onde era Señor de Elizabia (Castelo de Eliçabia y
Casamajor) na região ocidental dos Pirineus dos dois lados da fronteira entre a Espanha e a França.
O capitão dos Mosqueteiros do Rei na obra de Alexandre Dumas - publicada inicialmente como folhetim no jornal Le Siècle em 1844 - foi inspirada nesse personagem histórico.
Castelo de Elizabia - Construção
de 1660 na região basca de Iruri /Treville: povo descende da civilização pré-histórica responsável pelas
pinturas rupestres de Altamira [Cantabria], Santimamiñe [Biscaia], Ekain [Guipúzcoa] e Isturitz [Baixa Navarra]
Mas isso é uma outra história do Amaro que segue seu caminho irregular. O Conto de Amaro que
nos ocupa e ganhou letra bem antes, no final do século XIV, início do XV no Mosteiro de Sta. Maria de Alcobaça, em Portugal.
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Mosteiro de Alcobaça - Fundação em 1153, quando o estilo romanico
ainda era usado no norte de Portugal. Na construção, a igreja seguiu influências
do gótico inicial, adaptado à busca de monumentalidade, verticalidade e luz , ao estilo da Ordem
Planta atual da Igreja e Mosteiro de Sta Maria de Alcobaça: memória em construção.
Abaixo, o pórtico barroco da Fachada (1702~): do projeto primitivo, permanece apenas a grande rosácea e o portal
axial. No interior da Igreja, o gótico dos arco-butantes, as abóbadas de cruzeiro e a cobertura comum às três naves.
Estantes inclinadas (atris), bancos e suportes no Scriptorium: com o advento da imprensa, a sala passou a servir de
adega e celeiro - junto com o calefatório transformou-se na grande cozinha que, a seguir, celebrizou o mosteiro.
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Hall Freire 15
O Conto de Amaro é um conto cristão e mestiço. Mestiço porque na sua caminhada até a letra,
incorporou diversas tradições e continua. Cristão porque está inserido numa experiência mística do
cristianismo cisterciense. Falaremos desse conto como se fosse obra aberta num cone invertido, pois
continuadamente a história recebe adendos que preenchem vazios de início, a letra que em Alcobaça
omitiu o local da partida de Amaro e sua origem. Essas variantes, que permitem perceber que a narrativa respira viva fora da escritura, apontam insistentemente para o Oriente e é possível que assim
seja, entre outros motivos porque várias narrativas do mesmo códice12 apontam nessa direção.
Numa dessas versões, é um anjo quem aconselha os pais dele a chamá-lo assim. Essa variante começa na Anunciação. Na versão, ficamos sabendo que por sugerência divina o menino que vai nascer dali a nove dias em uma antiga cidade - Antioquia - será Amaro.
Esses acréscimos ampliam o alcance da história, sinalizam diferenciações, acrescentam identificações, carne e ossos ao personagem Amaro - ao mesmo tempo um igual a tantos outros aos quais se
atribui o mesmo nome e dos quais se diferencia por ser ele, Amaro, um singular que se chama assim
- igual a tantos outros singulares etc. No condão dessa circularidade, o Amaro do conto também é
reconhecível, em todas as versões da história, pela vontade tamanha de um Paraíso Terreal - uma
característica geral que o distingue do conjunto dos demais “amaros”. São “esses Amaro” quem
parte em busca do Desejado, um lugar que ele sabe só de nome, mas não onde é, onde fica.
Nesse conjunto de “amaros”, a versão manuscrita em Alcobaça não faz referência a anjo algum,
mas menciona uma voz anunciando certa noite que Deus ouviu-lhe a prece e quer cumprir seu “rrogo e desejo”. Essa voz incorpórea marca o início do Conto manuscrito como se fosse um recorte de
fotografia. Em obediência a essa voz, o Amaro manuscrito inicia os preparativos da viagem.
vendeo e desbaratou todollos bees que avya, e deu muito dello aos pobres e o al guardou per sua despesa, e levou cosigo dezaseis mãcebos grandes e arryzados. E chegou com elles a huu porto e mercou
hua nave, e meteo‘sse em ella cõ sua conpanha (...) per onde o Deus quisesse guiar. E a cabo de onze
semanas chegaram a hua insola pequena que nõ era povorado se nõ de huu moesteiro de irmitaães (...)
E foy sse entom aa inssoa e topou com huu irmitã (...) E elles indo pera o moesteiro, virã jazer acerqua
do moesteiro gram cõpanha de lyonees e outras bestas maas, tantas que era maravilha.
A viagem pelo desconhecido será longa e perigosa mas Amaro é precavido e rico de bens que o
situam vagamente, não entre nobres pois não há referência a títulos, mas mercadores marinheiros
12
Vida de Tarsis, Vida de Santa Pelágia, Santa Eufrosina, Santa Maria Egipcíaca, Sto Aleixo, São Barlaão e São Josafá
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Hall Freire 16
talvez. A situação social de Amaro também é vaga no recorte cristalizado no Flos Sanctorum impresso em 151313 - a primeira recolha de hagiografia medieval em língua portuguesa - que, como o
manuscrito de Alcobaça, está guardado na Torre do Tombo. No Flos Sanctorum de 1513, o texto
copiado de um original castelhano anônimo assegura que Amaro partiu
muy bem com os proves e com os mingoados e o outro levou consigo pera a barca e pera sua despesa
e pera sua companha, e seus criados que aviam de hyr com elle: e foy se pera hũa çidade que era ribeyra do mar e ally esteve hũus dias hatee que fez fazer hũa nave muy boa. e forte o mais que pode. e
como foy de todo cõprida: ha guarneçeeo muy bem de viandas e de todo o que lhes fazia mester.14...
Alçaram vela dali, continua a edição do Flos Santorum de 1513, e “andarom pollo mar sete dias e
sete noctes que nom folgarom” ao fim dos quais chegaram a uma ilha viçosa em que havia sete cidades e outros castelos e onde os homens “erã muy feos e cruees: e has molheres muy fremosas”...
Ho flos sanctõrum em lingoajem portugues (BNL Ans. 443): consta do cólofon (f. 267r.)
que foi impresso em março de 1513 por Hermão de Campos & Roberto Rabelo, em Lisboa
Impressora de madeira de 1568: capacidade para imprimir 240 cópias por hora
Aqui, os dois manuscritos diferem. No266, Amaro e seus companheiros chegam primeiro à uma
“inssoa pequena” habitada por ermitãos e feras, onde os animais s travam misterioso torneio no dia
de São João
13
14
O início da vida de Amaro falta na compilação do Flos Sanctorum, nos diz Almeida Lucas (1986, op cit, p 22, nota 9)
Flos Sanctorum de 1513 apud Maria Clara de Almeida Lucas (1986) A Literatura Visionária na Idade Média Portuguesa volume 105 in Biblioteca Breve, Lisboa:Instituto de Cultura e Língua Portuguesa
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Hall Freire 17
E Amaro pregutou ao irmitão que fora aquello. E el disse que oyto dias avya que aly jaziã (...) E
cad’anno e cada dia de San Johã que se ajuntavã e faziã huu torneo e que pereciã muitas dellas. E des
que lhe deu aquello que lhe cõpria [pão e água doce] disse lhe que se fosse daly e nõ estevesse hy
mais. 15
Só depois o manuscrito se refere à “inssoa grande que era povorada de cinquo castellos” onde “os
homẽes daly erã muito longos e grandes, luxoryosos e d’outras maas condicções” - sem mencionar,
entretanto, as “sete cidades” de que fala o Flos Sanctorum e tampouco as mulheres “fremosas” que
diz existirem ali. Mas há discrepâncias de outro nível entre as edições do Flos Sanctorum português
e o manuscrito alcobacense. A principal, é que versão impressa do Flos estabelece de início a santidade do personagem-título, que inexiste na versão portuguesa manuscrita.
Embora conste do original castelhano do qual foi traduzido o Flos Sanctorum português, a Vita
‘De Sancto Amaro’ 16 não consta da compilação das Vitae feita no século XIII pelo dominicano Jacopo da Varazze, “Flores seu Legenda Sanctorum” que, completada por outros materiais, está na
origem da versão castelhana17 - favorecendo a hipótese de acréscimo na edição espanhola18 .
Monge trabalhando em Scriptorium (Jean Miélot, 1472)
15
Conto de Amaro, Lisboa B.N. Alc. 462 apud edição de Elsa Maria Branco da Silva (2002 op cit)
16Para
mais informações dessa complexa trajetória editorial remete-se ao ensaio de José Aragüés Aldaz “De la Leyenda
de los Santos: primeros apuntes” in “À tout seigneur, tout l’‘honneur, mélanges offerts à Claude
Chauchadis” Ed. Mónica Güell/Marie‐Françoise Déodat‐Kessedjian, Toulouse, CNRS‐Univ. de Toulouse‐
Le Mirail (Collection Méridiennes), 2009, pp. 81‐98.
17
Valemo-nos aqui de duas traduções da Legenda Dourada de Jacopo da Varazze: uma em portugues, com apresentação
e notas do prof. Hilário Franco Júnior (‘Legenda AureaVidas de Santos’, São Paulo:Companhia das Letras, 2006) e outra em francês, com introdução, pesquisa de fontes e notas do abade J.-B.Roze, cônego honorário da Catedral de Amiens
(La Légenda Dorée de Jacques de Voragine, Paris:Rouveyre Editeur, 1902, digitalizada na Abadia de St Benoît de PortValais em 2004)
18
Pelo menos três outras antigas edições espanholas assumem Amaro como santo. Dessas edições em castelhano, duas
são quinhentistas - uma de Toledo, datada em 1520, ‘e outra de Burgos, de 1522, ‘La Vida del bienaventurado Sant
Amaro e de los peligros que passo hasta que llego ao Parayso terreal’. Vamos encontrar ainda um fragmento incompleto
da narrativa acrescentado ao final e “encadernado junto com outra obra de caráter cientifico e geografico, o Lucidário
de Sancho IV”, nos diz Richard Kinkade (1974:516; nota 14), responsável pela localização do texto num códice em
letra gótica do final do século XIV, arquivado na Biblioteca da Universidade de Salamanca, na Espanha (Ms 1958, antigo 217 da Biblioteca do Palacio Nacional). Segundo Kinkade, o Lucidario (ed. R. Kinkade [1968, Madrid: Gredos],
termina no folio. 99r e a ‘Vida de San Amaro’ começa no fol. 101r e termina, incompleta, no fol. 106r)
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O que surpreende é que nas edições posteriores a 1513 do Flos Sanctorum português houve uma
diminuição sensível no número das hagiografias porque algumas, como a Vita De Santo Amaro, desapareceram19, sugerindo uma possível reavaliação dos critérios de seleção.
Consta também que em terras onde se falava o idioma espanhol a narrativa corre de mão em mão
em livretos de cordel, e é tão popular no início do XVII que o poeta e antologista Pedro Espinosa
citado por Jaime Sanchez Romeralo (1971), coloca-a entre as crenças mais difundidas e as verdades
mais duvidosas da época
sabemos que el ave fénix, el canto del cisne, los granos de helécho, la sirena de la mar, los duendes, la
verdad, la sombra del Marqués de Villena, y Juan de Espera en Dios es lo mismo que la fortuna, la
historia de San Amaro, y el cuentecillo del ánima de Trajano
A qual historia de San Amaro ele se refere?
Devoção antiga, profundamente arraigada na cultura popular, a figura de Santo Amaro é uma
mais queridas do santoral hispânico. Após os Descobrimentos, a devoção propagou-se pelas colônias ibéricas de além-mar, independentemente do fato de santo Amaro não ter registro na Acta Santorum nem tem dia fixo marcado no Calendário Litúrgico. Mas, dizem, tinha sepultura no Almendral.
19 apud
Maria Clara de Almeida Lucas (1984) Hagiografia Medieval Portuguesa (volume 89) in Biblioteca Breve,
Lisboa:Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, pg 56. Para outros detalhes remete-se à obra citada.
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Reliogiosidade: abstração e arte primitiva nas iluminuras de um Beatus português.
Uma das mais importantes cópias do Beatus de Liébana, esse Comentário ilustrado
ao Apocalipse de São João foi realizado por um monge de nome Egeas ou Egas por encomenda do rei
Afonso Henriques (1109-1185). Posteriormente, o beatus foi
doado em agradecimento ao Mosteiro de Santa Maria de Lorvão (Penacova) por Sancho I, filho e herdeiro.
No século XIII, a infanta Teresa, filha de Sancho I, e suas companheiras ingressaram no mosteiro, que passa para mãos
femininas sob a Ordem de Cister.
Fundado por volta do século IX, dedicado a São Mamede e tendo como patrono secundário o mártir São Pelágio, o
mosteiro evidencia no nome do padroeiro e na sua iconografia antiga as influências moçárabes, vinculando-se à uma
tradição ibérica construída a partir de contribuições dos Orientes, Nortes e Setentrionais
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Alcobaça, antiga biblioteca e scritorium dos monges
O MANUSCRITO, um recorte fotográfico
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A versão manuscrita do Conto de Amaro é encontrada num códice datado do final do século XIV/
primeira metade do XV. A narrativa é redigida por mão única em letra gótica, português arcaico:
suspeita-se que possa haver, mas não se conhece versão escrita anterior a essa. O códice possui delicadas iluminuras nas iniciais dos capítulos, tem capa em pele sobre madeira, apresenta aqui e ali
algumas manchas de umidade: são 171 fólios em pergaminho, obra do scriptorium do Mosteiro Cisterciense de Santa Maria de Alcobaça; atual distrito de Leiria.
Da esquerda para a direita: Península Ibérica; Portugal: em destaque, município de Alcobaça;
Freguesias (divisões administrativas) de Alcobaça
Na Biblioteca Nacional de Lisboa (Torre do Tombo), onde está, a obra atende pelo código ALC.
462 mas é mais citada pelo número da antiga marcação conventual, 266, que recebeu a denominação tardia de “Colecção Mystica de Fr. Hylario da Lourinhãa, Monge Cisterciense de Alcobaça”. O
mesmo número da marcação conventual consta à página 118 do ‘Index Codicum Bibliothecae Alcobatiae’ publicado pela Typographia Regia de Lisboa em 1775, vinte anos depois daquele terremoto seguido de tsunami e incêndio que devastou a cidade.
Em 1834, com a extinção das ordens religiosas masculinas e a nacionalização de seus bens em
Portugal – medidas que valeram a alcunha ‘Mata-Frades’ ao então ministro da Justiça Joaquim António de Aguiar – o códice 266 foi retirado de seu lugar de costume, uma estante preta na Sala dos
Indices do mosteiro, e remetido junto com outros documentos para Lisboa, via Peniche, em dezenas
de caixotes de livros e manuscritos numa viagem por terra que pareceu bem mais longa e mais acidentada que seus 95 quilômetros. No século XIX o códice foi redescoberto pelo filólogo suíço Jules
Cornu (1849-1919) nos arquivos da Torre do Tombo.
Professor em Praga e depois em Gratz, estudioso das línguas românicas, Jules Cornu ou “doutor
Julio” como o chamava José Joaquim Nunes, lingüista do Algarve e futuro diretor da Faculdade de
Letras de Lisboa, visita Portugal em 1878, 1880 e 1891. “Ao mesmo tempo que estudava a língua
nos textos, aprendia-a também no uso vivo, e isto facilitava-lhe imenso as investigações literárias”,
lembra Nunes.
Das investigações do “doutor Julio” na Torre do Tombo resulta a ‘Grammatik der Portugiesischen
Sprache’: parte do ‘Grundiss der Romanischen Philologie’ de G. Gröber, que veio a ser a primeira
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Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Além da obra, Jules Cornu publicou estudos de partículas arcaicas, da métrica do ‘Cancioneiro Geral’, etimologias e editou alguns textos do manuscrito
266: entre eles, um Tratado de Devoção (1882:381-390), a Vida de Eufrosina (1882:357-365) e a
Vida de Maria Egípcia (1882:366-381), de tradição oriental - mas não aquele de que falamos, o
Conto de Amaro, manuscrito nesse mesmo Códice aos fólios 111r – 123v.
Quem o faz, e publica na revista Romania XXX de 1901 com o título “A Vida de Sancto Amaro,
texte portugais du XIV siècle”, é o lingüista Otto Klob (1909:504-518). Num artigo da Romania,
entre as páginas 504 e 518, Klob assinala a inexatidão do título em latim no catálogo de 1775, “Historia cujusdam Uauri qui concupivit videre paradisum terrestrem”; e sugere que o mesmo é tirado
da rubrica do próprio manuscrito: "Hystoria de certo homem pio chamado Mauro, o qual depois de
perigozos e quazi impraticáveis trançes, conseguio o desezo que tinha de ver o Paraizo terrestre".
Ao concordar que o texto é de intitulação polêmica e sugerir uma análise mais atenta, Néri de Almeida (2001:197-216) assinala que a “Vida de Santo Amaro é um exemplo de como a composição,
o significado e a atuação histórica da hagiografia podem ultrapassar” os limites deste gênero literário. Entre as reflexões que a obra permite, destacam-se o ensaio recente do professor Hilário Franco
Júnior (2010) que nos fala da confluência do mental, do religioso, do cultural e do social nos conceitos de tempo presentes no Conto de Amaro. Richard Kinkade (1974:525), que associa-o aos
‘immrama’ irlandeses, avançando a hipótese que a “Vida de San Amaro” talvez seja o primeiro romance hagiográfico da Espanha. Nesse caso, pensa Kinkade, não seria interessante investigar os
méritos da tese levantada por Teófilo Braga (1843-1924) - prontamente rechaçada por Marcelino
Menéndez y Pelayo (1856-1912) - sugerindo que “os romances de cavalaria devem sua gênese às
novelas hagiográficas? ”.
Viagem de São Brandão: imagem
dos imrama celtas presentes numa narrativa cristã (Cod. Pal. Germ. 60, fol. 179v
in Biblioteca da Univ de Augsburg,Alemanha, ca 1460) 20
Da Estrutura do Texto _ Sem entrar no mérito da sugestão de Kinkade, reconheço que o fato da
travessia de Amaro dar-se numa sucessão de ilhas pode sugerir uma aproximação com a estrutura
narrativa dos ‘immrama’, viagens iniciáticas com raízes na mitologia céltica. Mas a complexidade
da história de Amaro sugere-me outras associações, a partir dessa mesma estrutura.
Voltando ao texto de Amaro, nos é dito que ao deixarem aquela ilha “maldicta que Deus maldisse
por muitos maaos pecados” ele e os seus companheiros atravessam o “Mar Ruyvo por hu Deus
guyou os filhos de Israel” e chegam a outra ilha grande e bela, de nome Fonte Clara, cujos habitan20
Freire, Norma (2000) Navigatio Brendani Abbatis, PUC/SP, tese de mestrado não publicada.
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tes, “das mais fremosas criaturas que avy[a] no mu[~]do”, jamais morriam de nenhuma dor - “se nõ
de vilhice e vivya hy o home treze[~]tos annos comunalmente”. Sete semanas ficaram naquela “terra tam saborosa e tam sãa” e talvez ficassem para sempre se Amaro não escutasse o conselho de
uma “dona”, só isso sabemos dela, que o desperta daquele torpor. Partem naquela mesma noite.
Depois de muito tempo, tanto mar que já não sabiam dizer qual parte do mundo era, avistaram
sete naves ancoradas. Aproximam-se , crendo ser notícia de terra por perto.
Mas não. Ficam retidos num “mar quoalhado”, tal como estavam os barcos que avistaram
e viram belfas21 marynhas que eram fortes e esquivas e eram mayores que cavallos e e[~]travam dentro e aquellas sete naaos e tiravã de dentro dellas os hom[~]ees mortos que hy jaziam, que morryã cõ
fome, e comyã nos. E eram tantas que nõ ha home que as possa cõtar.
O Mar Coalhado_Transidos de medo, começam a chorar “muy fortemente e a chamar “polla
gloriosa Virge Maria madre de Jhesu Christo”, a quem se dirigem como “estrella do mar”, “castello
forte e basticido de todo bem”, protetora dos “mizquinhos filhos de Eva maldicta”. Quando adormecem, surge “uma donzella muy fremosa vestida muy nobreme[~]te” - muito bem acompanhada
de um cortejo de “fremosas donzellas” e uma “proçissom de donzees menynos, e erã todos de hua
hidade”. A Virgem conforta Amaro dizendo-lhe que lhe daria entendimento para sairem dali.
E parecia a Amaro que todallas lumieiras do mu[~]do eram aly e que todo o mu[~]do acendiã.
O entendimento recebido foi ciência digna de velho marinheiro. Amaro mandou buscar todos os
odres de vinho, água e vinagre do barco, “como he de costume de trazere[~] home[~]es que andam
sobre o mar”, e os enchessem “de ve[~]to”. Bem amarrados à embarcação, os odres foram então
jogados na água e, com a ajuda deles, o barco flutuou. Os companheiros partiram. O narrador nos
diz: “e bem parece que este mu[~]do anda em roda e corre”, o que remete à uma visão de mundo
vinculada à imagem da Roda da Fortuna, que ressurge com força no Ocidente a partir do século XII
.
Roda da Fortuna
A Idade Média recebeu esta imagem - símbolo de mutação, das alternâncias - como herança de Boécio
(ca. 480- 524) autor de ‘Consolatio Philosophiae’ 22. No século XIII, Ramon Llull usa a
metáfora para criticar os valores sociais da burguesia urbana (iluminura do Codex Buranus - Carmina Burana, ca 1230)
21
Do latim bellŭa-, animal corpulento; coisa monstruosa.
22Ricardo
da Costa e Adriana Zierer nos dizem que o tema da Fortuna percorre toda a ‘Consolatio Philosophiae’: depois
da Bíblia e da Regra de São Bento, foi a obra mais lida na Idade Média. A idéia de fugacidade da existência humana,
visualizada nas figuras da roda, comandou o real através de um imaginário em que a vida era percebida como um ritual,
cheio de significação teológica, mística e carismática. Para maior detalhamento remete-se a “Boécio e Ramon Llull: A
Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens”, OnLine ://www.hottopos.com/convenit5/08.htm
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Boécio preso: matemático, filósofo e cônsul romano junto aos
ostrogodos, Boécio foi acusado de conspirar a favor do Império Bizantino.
Na prisão, onde é torturado e morto, escreveu a ‘Consolatio Philosophiae’. Nessa obra final, Boécio dialoga com a
Filosofia e utiliza a metáfora da Roda para explicar o sentido do interminável movimento da Fortuna:
nem boa nem má, pois a vida na Terra, gira.
(detalhe de miniatura em cópia manuscrita da ‘Consolatio Philosophiae’ de 1385 (Itália, MS Hunter 374, folio 4r)
Doutrina de Ramon Llull (ca.1232-1315), condenada: a hierarquia
católica não viu com bons olhos a identificação da fé com a razão (miniatura do séc XIII-XIV da ‘Ars Magna’
de Ramon Llull, fonte Societat Catalana d'Estudis Històrics).
Segundo o maiorquino23, a teologia e a filosofia eram uma só coisa, assim como como a ciência e o estudo deviam estar
a serviço da contemplação divina. Essa idéia percorre sua extensa obra, da ‘Ars Magna’ à ‘Doutrina Para Crianças’,
em que finaliza o capítulo das sete Artes Liberais com a metáfora da Roda da Fortuna 24 .
23
Umberto Eco considera o lugar de nascimento determinante na trajetória de Llull, pois Maiorca era “à época, encruzilhada das três culturas, cristã, islâmica e judaica, a ponto que a maior parte das suas 280 obras reconhecidas terem sido
escritas inicialmente em árabe e catalão” in La búsqueda de la lengua perfecta (1994) Barcelona: Critica, p. 42
OnLine:://www.uruguaypiensa.org.uy/imgnoticias/959.pdf
24“Filho,
assim como a roda que se move gira, os homens que estão nos ofícios ditos acima se movem. Logo, aqueles
que estão no mais baixo ofício em honramento desejam se elevar cada dia até chegarem à cabeça da roda soberana, na
qual estão os burgueses. E como a roda está sempre a girar e a se inclinar para baixo, convém que o ofício de burguês
também caia”. (Ramon Llull. Doutrina Para Crianças LXXIX, 10 apud Da Costa “A Educação na Idade Média. A busca
da Sabedoria como caminho para a Felicidade: Al-Farabi e Ramon Llull”
OnLine ://www.ricardocosta.com/univ/felicidade.htm
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A Roda da Fortuna_ A situação que é descrita na sequência do episódio do Mar Coalhado, reforça essa percepção de movimento em roda. Enquanto o narrador nos fala de um tempo de mundo em
que o homem “ora he pobre, ora eh rryco, ora exalçado, ora abayxado, ora eh viçoso, ora sem viço”,
a navegação prossegue. Depois de três dias e três noites, Amaro e seus companheiros avistaram terra e, nela, uma grande abadia cercada de muros altos. Aqui fecha-se um ciclo na narrativa - não no
mesmo ponto, um pouco mais acima - pois Amaro, descendo à terra em busca de água e alimentos,
como já o fizera antes, ouve de um ermitão que aquele lugar chama-se “Inssoa Deserta”, despovoada de gente “por muitos lyoões e serpentes e otras muitas maas alymarias”. Por isso, mas principalmente porque “ora em dia de Sam Johã Bautista ouverõ antre sy grande batalla e cada huu anno
lydam assy em aquel dia” - Amaro deve partir: “nõ poderás sofrer o fedor dellas”. Assim, somos
reconduzidos ao episódio daquela primeira ilha, a “inssoa pequena”, e lembrados que a natureza
caprichosa do destino humano, da qual se falara pouco antes, relaciona-se na sua circularidade a
algo que também ocorre na estrutura espaço-temporal da narrativa.
Nesse desenho, a data chama atenção por outros motivos: primeiro, porque o dia de São João (24
de junho no calendário juliano) corresponde na Idade Média à forma cristianizada de um rito milenar, presente em culturas distintas. Celebrado nos solstícios de verão (Hemisfério Norte) ou de inverno (Hemisfério Sul) aparece associado ao culto do fogo e do sol - do qual as características fogueiras e danças circulares, como a quadrilha, são reminiscências rituais. Segundo, porque nessa
mesma data, 24 de junho, celebravam-se na antiga Roma e em vastas porções do império as festas
da deusa Fortuna.
Divindade de passado arcaico, anterior à fundação da cidade, a Fortuna romana era invocada na
proteção dos amores e das empresas, sempre presos às revoluções dos dias e dos anos, ora associada
a deuses do panteão etrusco; ora à memória de Tiquê, a tutelar grega; ora a Kairós, uma das dimensões de Cronos; ora a divindades marinhas. São tantos seus atributos e suas faces que, superpostas
num plano vertical, poderiam vislumbrar-se numa torre totêmica quase alcançando o céu. Na Idade
Média, a Fortuna surge associada às transformações às quais a precariedade humana está sujeita e
está representada nas figurações da Roda.
Val de Flores_ Amaro ficou ali aquela noite. Mas ao ouvir os “grandes braados e muy medrosos
daquellas allymarias” não conseguiu conciliar o sono: “colheo suas ancoras e alçarõ sua vela e começarõ a singrar”. Quando nasceu o sol viu muito perto outra terra, “a mais fremosa e mais avõdada
do mu[~]do”. Ali havia um mosteiro, perto de uma serra: “un moesteiro de frades brancos e home[~]es de bõoa vida”. O nome do mosteiro era Val de Flores: e ali haviam grandes rios, muitas
fontes, muitos jardins, muitos prados e muitas virgens.
A caminho do mosteiro, encontra um “velho que toda sua cabeça era cãa”, e a quem “os leoões e
outras alimaryas” vinham pedir que os benzesse e beijavam seus pés e mãos humildemente25 . Daí
25
Na literatura medieval os monstros têm conotação de advertência, de previsão de um futuro possível que se mostra
nublado para os que não interpretam corretamente o sinal - haja visto os marinheiros que são devorados no episódio do
‘Mar Coalhado’, em que Amaro, com ajuda divina, consegue transformar monstros marinhos em aliados: as ‘belfas’,
afinal, ajudam empurrar os odres que flutuam no mar, cheios de vento. No início do século VII esta conotação está explicita nas ‘Etimologias’ de Isidoro de Sevilha (terceiro capítulo do livro XI, De portentis). Na obra, Isidoro nos diz que
monstros não são contra a Natureza, pois criaturas de Deus, e sua aparição deve ser tomada como sinal divino que não
deve ser ignorado. Essa situação de deciframento remete para o tema da Esfinge, tratado por Sófocles em ‘Édipo Rei’
(ca 427 aC): na peça, o herói desvenda o mistério do monstruosa esfinge, representada na iconografia por um leão com
cabeça humana, que aterroriza Tebas. No ‘Conto de Amaro’, a espiral ascendente que se percebe em ação na narrativa
traz agora a figura de um ermitão que, diferentemente dos demais, transforma feras em animais domésticos.
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seu nome, Leomites, um frade que “fora natural de Babylonya, a deserta26”. Leomites reconhece
Amaro imediatamente, como se o esperasse, e chama-o pelo nome. “E sabe, amigo”, disse-lhe
“que esta tua viida me foy mostrada pello anjo de Deus. E nõ me digas mais da tua faze[~]da ne[~] da
tua viida, que eu o sey bem, e per quantas coytas passaste. E eu te direy como faças e[~] guisa que tu
acabes o que demãdas”
Babilonia, a Deserta: no olhar da figura sentada, o passado à frente
(Detalhe do capitel em estilo românico de meados do século XII na Igreja de St. Pierre em Chauvigny, na França)
No Apocalipse de São João um anjo anuncia a queda da Babilonia em versos de grande beleza que nos falam
daquela cidade “vestida de linho fino” que será chorada por reis, negociantes, marinheiros:
“Ay, ay da grande cidade! (...) Nunca mais se ouvirão em tuas ruas a música das harpas, flautas e trombetas (...)
nem se ouvirá em ti o ruído da pedra do moinho” (Rev. 18:1-24)
26
Situada numa região povoada há três mil anos, a Babilônia esplendorosa
dos dias de Nabucodonosor (632-562 aC.) declinou até o segundo século depois de Cristo,
quando ficou deserta (reprodução dos Jardins Suspensos da Babilônia, Petit Larousse, edição de 1912)
Babilonia, 1932: soterrada em areia por
mais de mil e setecentos anos, a reconstrução da cidade teve início em 1983 quando Sadam Hussein,
então presidente do Iraque, decidiu erigir ali um palácio. Evocando Nabucodonosor,
de quem se declarava filho,Saddam Hussein mandou escrever seu nome nos tijolos da obra.
(foto Arquivo Eric &Edith Matson, Bib. do Congresso Americano)
Interstícios /
Hall Freire 27
Leomites_ A precognição de Leomites, como se ele fosse capaz de memória do futuro, é traço
insistente e de aspecto formular na tradução cristã dos ‘immrama’. Remete à tradição oral dos antigos celtas da Irlanda e da Escócia gaélica, em que os estados liminares de percepção eram aceitos
como coisa natural. Nessa cultura, o ‘outro mundo’ ficava logo ali e de certo modo os respectivos
habitantes frequentavam-se cordialmente em determinadas situações. As situações de passagem destacam-se como momentos especiais - fossem elas no solstícios do inverno, celebrados no Samahin,
à beira de uma fonte, na soleira de uma porta, na voz dos poetas. Denominados ‘fili’ (do proto-celta
*widluios = visionário, aquele que vê) os poetas eram figuras respeitadas nessa tradição, tal como o
foram os poetas gregos aos quais se também se atribuiu saber mântico, memória divinizada. Na Irlanda céltica pré e pós-cristã, o treinamento da memória de um poeta podia levar muitos anos e incluia, como prêmio, o saber divinatório.
A precognição também é celebrada na tradição cristã como um traço peculiar dos santos Padres
que habitaram o Deserto nos primórdios do Cristianismo, assim como o foi, antes deles, dos profetas que habitaram os tempos bíblicos: a previsão da morte de Saul e sua sucessão por Davi (I Samuel 28:7), a interpretação dos sonhos do faraó por José (Gênesis 37:6,7), as profecias de Daniel (Dn
2:1-49) ou, ainda, a visão de Ezequiel junto ao rio Quebar na terra dos caldeus - a Babilonia esplendorosa da época de Nabucodonosor para onde ele foi levado prisioneiro em 597 aC.
Imagens belas e fortes como as da Bíblia povoaram como realidade viva o imaginário da Idade
Média. Nos monastérios não podia faltar o livro das Sagradas Escrituras, o Novo e o Velho Testamento, essenciais à meditação dos monges. Um deles, Joaquim de Fiore (ca 1130-1202), que já estivera em viagem na Terra Santa, foi tocado especialmente pela visão de Ezequiel junto ao rio em
que se destaca, mais uma vez, a imagem da roda e uma noção especial de movimento 27.
Joaquim de Fiore_Figura central do milenarismo medieval, sem que ele mesmo possa ser considerado milenarista ou quiliasta28, o abade calabrês tomou o hábito sob a Ordem de Cister antes de
desligar-se dela e fundar sua própria ordem Florense. Jamais profetizou um reino de mil anos, tam27
De uma nuvem, um vento forte e um fogo com labaredas Ezequiel viu surgir três seres vivos semelhantes ao homem.
Cada um deles tinha quatro rostos e quatro asas, mãos de homem sob as asas, pernas retas, pés de bezerro. Um dos rostos era de homem, o da esquerda era de touro [ou bezerro], outro de águia e o de leão à direita. Eles não se viravam
quando andavam: cada qual andava para adiante de si. E junto aos seres Ezequiel viu também rodas altas, formidáveis,
uma para cada um dos quatro rostos. Quando os seres andavam, as rodas andavam e se levantavam junto a eles porque,
narra Ezequiel, “o espírito dos seres viventes estava nessas rodas” (EZ 1, 5-20).
28
O têrmo ‘quiliasta’ vem do grego arcaico khilioi, khiliasmos e é encontrado nos versos do Apocalipse de São João
(Rev. 20:1-7), traduzido como “mil”, ou muitos. Desses versos surgiu todo um sistema de doutrinas, entre as quais a que
prevê duas ressurreições físicas da morte por ocasião da segunda vinda de Cristo: uma para os fiéis, antes do período de
tribulação que antecederá os mil anos do reinado de Cristo na Terra, e outra para o restante da humanidade no final do
milênio. Esse corpo doutrinário, conhecido como quiliasta, prevaleceu nos primeiros séculos depois da morte de Cristo
e inclui a idéia de que os fiéis vivos seriam “arrebatados” junto com os mortos e permaneceriam mil anos num paraíso
na Terra, desfrutando aqui e agora, num presente absoluto, das suas maiores delícias. A noção de “arrebatamento” como
uma situação em que se é tomado em corpo físico pelo espírito divino, tem larga e longa tradição na história da humanidade. Como fenômeno, está presente tanto na tradição profética quanto em textos mitológicos de procedência diversa.
Por sua vez, o têrmo ‘milenarismo’ tem origem no vocábulo latino millennium, mil anos, e não aparece nas Sagradas
Escrituras. No entanto, a idéia de períodos de tempo marcados por determinadas características e/ou figuras ideais já
está presente na Grécia arcaica. Hesíodo (ca século VI aC), por exemplo, nos fala de uma ‘Idade Dourada” vivida pelos
homens, a primeira de uma sequência de cinco (Idade de Prata, de Bronze, Heróica e de Ferro) caracterizada, ao contrário das que a seguem, pela paz, pela harmonia, por estabilidade e prosperidade material (Os trabalhos e os Dias, 109126). Convicções semelhantes podem ser encontradas no Oriente, o Extremo e o Próximo, e por todo o mundo antigo.
Durante a Idade Média, por volta do século IV, o teólogo donatista Ticônio, cristão do norte da África, rejeitou a interpretação quiliasta do Livro da Revelação, afirmando que o milênio já havia começado com a história da Igreja e que as
imagens do Apocalipse não podiam ser entendidas literalmente. De acordo com a interpretação, revista e adotada por
Sto. Agostinho de Hipona (354-430), e através dele popularizada no Ocidente, a primeira ressurreição refere-se à transformação espiritual que se concretiza no homem por ocasião do batismo.
Interstícios /
Hall Freire 28
pouco atribuiu natureza terrena e social ao paraíso. Entretanto, poucos autores de comentários ao
Livro da Revelação 29 se preocuparam como ele em por ordem na história e pouquíssimos, se algum
antes dele, enfatizaram de modo tão original o elemento visionário como uma forma de continuidade entre o Velho e o Novo Testamento - continuidade essa de certo modo rompida pela tendência
das primeiras exegeses de começar, ou centralizar, a história do fim dos tempos no Apocalipse de
São João. Nesse sentido, a relação entre os elementos imagéticos da visão bíblica de Ezequiel30 , que
ressurgem tão poderosamente em João embora com significado e em contexto distinto31, podem ter
fornecido uma chave para que Joaquim de Fiore vislumbrasse através deles uma ponte entre o passado e o futuro e, nessa ponte - “figuras do mundo’”32 - reconhecesse o próprio presente.
Um Códice Iluminado_ A descoberta de um códice iluminado contendo imagens esquemáticas
possivelmente destinadas a sensibilizar ou tornar mais claro o pensamento, seja para uso próprio de
Joaquim de Fiore ou para transmissão entre os discípulos, reforça essa hipótese. Segundo fontes do
século XIII, De Fiore teria sido o autor dos desenhos, produzidos em diferentes épocas e reunidos
por discípulos após a sua morte. Séculos depois, a descoberta desses esquemas acrescentou entendimento à obra do abade calabrês e demonstrou, entre outras coisas, o uso da imagem como mediação estética entre o sensível e o inteligível durante a Idade Média. Identificado como ‘Liber Figurarum’ (Livro das Figuras), o códice foi encontrado e traduzido em 1936 num seminário na província
italiana de Reggio Emilia33 por Ms. Leone Tondelli. Duas medievalistas, Marjorie Reeves and Beatrice Hirsch-Reich, dedicaram-se junto com ele ao estudo34 e divulgação da obra.
A leitura que De Fiore propõe ao Apocalipse não segue um modelo profético linear, isto é, não se
aproxima do texto como um relato sequencial do que irá acontecer entre uma determinada época e o
próximo fim dos tempos. Tampouco aproxima-se dele como se fosse um tratado teológico organizado conforme algum padrão a-histórico, tendência dos intérpretes pós-agostinianos, nota Bernard
MacGinn (1992:14). Ao contrário, a abordagem de Joachim de Fiore se dá através de uma “leitura
cíclica ou recapitulativa do texto, percebido como um relato profético do que virá antes do fim, mas
sob a forma de repetições complexas, ou relatos alternados da mesma mensagem” (MacGinn, ibid).
29
O Livro da Revelação, o último do Novo Testamento, também conhecido como Apocalipse (do grego apokalypsis,
"revelação") foi escrito à época do imperador Domiciano (final do século I), quando a perseguição dos romanos aos
cristãos se tornou mais feroz. No texto, o único verdadeiramente profético do Novo Testamento, o autor se identifica
como João desterrado na ilha de Patmos, mar Egeu (Rev. 1:9) e é atribuído ao apóstolo São João,
30
O Leão, o Touro, a Águia e o Ser com Rosto Humano - ver nota 17 do presente estudo e trecho do texto em anexo
31
No Apocalipse 4 e 5 (ver anexo) as figuras da visão de Ezequiel são destacadas, mas agora em relação ao Cristo.
32
No seu Comentário ao Apocalipse (Expositio in Apocalypsim, Veneza, 1527, reimpresso em Frankfurt, 1964) Fiore
associa os “seres viventes” da visão de Ezequiel a quatro ordens de homens que atuam na história: a dos apóstolos, caracterizada pelo Leão, a inteligência tipica das Escrituras; a dos mártires, pelo Bezerro, a inteligência histórica das Escrituras; a da Águia, pelos contemplativos, a inteligencia analógica das Escrituras e a do Homem, representando os doutores, a inteligência moral das Escrituras. No “Liber Figurarum” os seres viventes são representadas pelas Rodas. Para
maior detalhamento da questão remete-se ao artigo de Cláudio Reichert do Nascimento “Joaquim de Fiore: Trindade,
história e milenarismo” in Revista Mirabilia 14 , Jan/Jun 2012, pp 81-99 - org de Noeli Dutra Rossato.
33
Posteriormente descobriram-se outros dois manuscritos,em Oxford (1942) e em Dresden. O de Oxford é o mais antigo, produzido entre 1200 e 1230 em um monastério calabrês, provavelmente na Abadia de San Giovanni in Fiore.
34
Em 1972 publicaram “The Figurae of Joachim of Fiore” (Oxford/Warburg Studies) em que as figuras são percebidas
como o trabalho de um artista e místico que procurou expressar os mistérios da Santíssima Trindade e um modelo de
história através de formas visuais. Reeves escreveu várias obras a respeito de Joquim de Fiore e do joaquimismo, entre
as quais o pioneiro ‘The influence Of Prophecy In The Later Middle Ages: A Study In Joachimism’ (Oxford:Clarendon,
2000 [1969]), um clássico que influenciou profundamente os estudos posteriores, ao qual se remete.
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Liber Figuraram, pl XV: esquema da Carruagem que transporta o Trono divino. De Fiore designa as “Rodas” pelos
nomes dos seres viventes que surgem nas visões de Ezequiel e João. No espaço entre as rodas maiores
confrontam-se alegorias de Jerusalém, cidade celeste, figura da salvação e da Babilonia, caos, figura da perdição
(Codex Reggio-Emilia, sec XIII. Fonte: Centro Internazionale di Studi Gioachimitti).
Liber Figurarum, pl XI: esquema dos círculos trinitários. Para Joaquim de Fiore, a história do mundo transcorre entre
os tempos do Velho e do Novo Testamento, sob a dominância da Santíssima Trindade. A partir desse paradigma
transcendental e ponto de convergência (o ‘centro oval comum aos três círculos) a historia humana é dividida em três
Idades conectadas entre si e à Trindade (relações representadas nas letras Alfa e Omega). A primeira Idade (círculo verde) é a do Pai na qual os homens vivem de acordo com a carne. A segunda Idade é a do Filho (azul) visualizada como
uma transição entre a carne e o o espírito. A terceira Idade ou estágio é a do Espírito Santo (vermelho) e supõe, ao seu
término, uma volta ao estado espiritual de que nos fala a Biblia, vivido por Adão e Eva no paraiso antes da queda.
(Codex Reggio-Emilia, sec XIII. Fonte: Centro Internazionale di Studi Gioachimitti)
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Através dessa concepção de movimento circular em progressão constante rumo à salvação - ou,
para retomar a imagem de Ezequiel, rodas em que habita o espírito dos seres viventes - Joaquim
imprime dinamismo à interpretação do Apocalipse, resgatando o texto para a concretude de épocas
distintas da qual se deu a Revelação ou, dito de outro modo, abrindo a possibilidade de atualizar, no
cotidiano da fé, as realidades percebidas na profecia. Ao mesmo tempo que a interpretação do abade
de Fiore reforça a noção dos elementos simbólico e visionário como formas de autenticação das
mensagens divinas, ela permite vislumbrar, na estrutura e nos símbolos do Apocalipse joanino, uma
continuidade em relação aos momentos históricos em que a receptividade a tais símbolos, modificados pelo contexto, é mais pungente no plano humano. Na abertura do seu Comentário ao Apocalipse, Joaquim de Fiore escreve que a leitura do texto significou, para ele
a chave do passado, o conhecimento das coisas que virão, a abertura do que estava selado, o desvelamento do que estava oculto (Expositio in Apocalypsim, folio 3r apud Bernard McGinn, op cit , p 19)
O Apocalipse ao qual as obras 35 do abade e fundador do mosteiro San Giovanni in Fiore acrescentaram outra leitura, tiveram grande impacto e sabor de novidade em sua época - não imediatamente
após a morte dele, mas nos anos e séculos seguintes - e nos explicam uma certa concepção medieval
de tempo em progressão circular, subjacente à circularidade das celebrações e à percepção do tempo
linear. É possível visualizá-la, por exemplo, na espiral ascendente que norteia a estrutura narrativa
do ‘Conto de Amaro’ rumo ao Paraíso Terreal principalmente a partir do encontro com Leomites,
quando ele rompe o círculo vicioso da Roda da Fortuna e vai progressivamente abandonando os
elementos terrenos que o caracterizavam desde o nascimento e ascende a outro plano espiritual. Ao
final desse encontro, Amaro é e já não é o mesmo Amaro que nasceu talvez num Oriente, ou o capitão do barco que venceu o mar Coalhado, ou aquele ser humano que temia o urro das feras ou que
as delícias do mundo poderiam tentar. No mosteiro de Val de Flores36 quando vê os leões se aproximarem, ele treme pela última vez. Os animais vem de rastros, cabeça na terra, lambem-lhe os pés
e mãos e começam a gemer.
“E lhe disse aqell frade [Leomites]: Sabes porque jeme[~]? por tal que lhes deites a bençõ”. E Amaro
ergeo a maão e beenzê os e logo os lyoões forõ muy ledos e hyam trebelhando porque os bee[~]zera
aquell home[~] sancto, e forõ pera o mato.
A Despedida _À semelhança de algumas sociedades de que nos falará Claude Lévi-Strauss no
século XX, Amaro transforma-se para permanecer igual a si mesmo, em ciclos cada vez mais amplos de repetição e retorno cuja dinâmica implica num progresso gradual que consiste em curvar-se
35
As principais obras reconhecidas de Joaquim de Fiore, além do "Expositio in Apocalipsim", são: "Liber Concordiae
Novi ac Veteris Testamenti", "Psalterium Decem Cordarum". Entre os trabalhos que foram atribuidos a ele na esteira da
fama de profeta, estão “De Oneribus Prophetarum", "Expositio Sybillae et Merlini" e “Vaticinia de Summis Pontificibus”, que circulou à época conturbada do Conselho de Constance (1414–1418) ao final do Cisma do Ocidente.
36
Note-se a semelhança entre o nome do monastério de Leomites em “O Conto de Amaro”, Val de Flores, e o nome
escolhido por que Joaquim de Fiore para o monastério que funda no vale próximo à vertente oriental dos montes Sila, o
San Giovanni in Fiore dedicado a São João Evangelista (província de Cosenza, zona setentrional da Calábria). Numa
biografia escrita por um monge desse monastério, logo após a morte do abade (1202), o mosteiro de Fiore é descrito
como a “Nova Nazaré”, onde brotarão as sementes de um “Novo Israel”. Consta, inclusive, que Joaquim considerava o
mosteiro como o ‘locus’ de um novo florescimento do espírito que impregnaria gentios e judeus, motivo pelo qual chamou-o “in Fiore”, “em flores”, “florescente”, acreditando ser esse o significado hebraico da palavra ‘Nazerat’ (Nazaré, a
cidade da Galiléia onde Maria concebeu Jesus). Para outras informações remete-se a LERNER, Robert (2001) “The
Feast of Saint Abraham: Medieval Millenarians and the Jews”, Pensylvania: Univ of Pensylvanis Press, pp35-37).
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à inércia instalada ao mesmo tempo que aceita seletivamente as mudanças inevitáveis que não lhe
tocam o cerne. No processo de depuração espiritual indicado pela estrutura narrativa, é o desejo de
Amaro em ver o Paraíso Terreal que permanece e se depura, é esse desejo que progride. Gradualmente, Amaro transforma-se num desejo, o próprio. Por isso, e não por qualquer outro motivo,
Leomites aconselha-o a partir. Despedem-se “hu se anbos acharom quando hy vierõ os lioões”,
... chorãdo muy fortemente. E entom disse Leomites: Meu senhor e meu amigo Amaro grande saudade
me ora leixades; beijade me oura vez que nu[~]ca me ja mais veredes em este mu[~]do mas veremo
nos no outro e[~] no parayso se Deus quiser”. E Amaro partyo sse
Em grande desespero, “so aly aaquella arvor”, Leomites pede que o Senhor o leve, “pois me tolheste meu amigo e meu cõnforto qye me deste” e bate com a cabeça na terra, arranca a barba e os
cabelos, lamenta-se em altos brados
Ay coitado, ay despe[e]rado mizquinho, mal dia nado! Ay senhor Amaro porque me desenparaste? Ay
terra, minha madre, porque nõ abres e colhe me de[~]tro que ja mais nõ viva e[~] este mu[~]do?
A lamentação de Leomites não tem paralelo nas narrativas dos immrama embora seja tópico recorrente em outras tradições. A dor pela partida dos que alegres se vão poderia nos remeter, por
exemplo, ao Ciclo da Bretanha, especificamente ao lamento do rei Artur no episódio da Demanda
do Graal, pressentindo que nunca mais teria consigo nem veria à volta da Távola Redonda muitos
dos cavaleiros que partiam. Mas no “Conto de Amaro” o desespero de Leomites é narrado com tintas mais íntimas, como se o frade velho fosse um penitente de outra ordem e, ao final do pranto, ele
jaz estático na terra “tal como morto”. Nesse gesto, arrasta consigo não só as dores da despedida,
mas de todas as despedidas e das infinitas lamentações de corpos dispersos em arenas, diásporas,
abandonos, exílios, perseguições, a certeza do inevitável fim e a solidão da távola real.
Olhar mais doce_ Desse modo, embora reconhecendo a influencia cristianizada dos immrama na
estrutura do “Conto de Amaro”, distinguem-se outras, entre as quais a do pensamento joaquimita.
Ao contrário de muitos contemporâneos, Joaquim de Fiore exortava os cristãos a considerarem os
judeus como irmãos de fé, pródigos que voltariam à casa paterna, à “Igreja dos fiéis” que os receberia num futuro próximo. O abade, cujos empreendimentos foram favorecidos pelo beneplácito de
quatro papas, não só acreditava na conversão dos judeus - estabelecendo-a como o marco de transição da Era do Filho para a Era do Espírito Santo (apud Robert Lerner, 2001:31,38) - como admite
sua autoridade em certos assuntos. Por exemplo, quando fala dos seis dias bíblicos da criação, ele
cita Maimônides (1138-1204), filósofo sefaradita, e apoia-se no argumento de “verdade judaica”
para justificar a crença de que o mundo ia durar seis mil anos (Lerner, 2001:59).
De Maimônides, sabe-se que ele dedicou os sete capítulos iniciais da terceira parte do seu “Guia
dos Perplexos” à Merkaba (do hebr, Trono ou Carruagem37 ), um dos mais antigos temas da mística
judaica centrado nas visões e na contemplação divina, cuja origem está, justamente, no livro I do
profeta Ezequiel que nos fala das “Rodas” e dos “Seres Viventes”. Evidentemente Maimônides não
aceita Jesus como o Messias. Homem profundamente religioso, ele admite a vinda do Anunciado
num tempo futuro em que todos serão um (in ‘Mishné Torá’, cap 11,10-12). Mas, à diferença da
tradicional visão apocalíptica-utópica do messianismo judaico, Maimônides descarta os elementos
de catástrofe, milagre ou transcendência na instalação da nova era, insistindo na ininterrupta conti37
Cecilia Cintra CAVALEIRO DE MACEDO faz uma leitura das imagens místicas da Merkabah na obra poética do
filósofo andaluzi Ibn Gabirol (1021-10580) à luz das indicações provenientes da literatura mística e do imaginário judaico. Para aprofundamento da questão remete-se à ‘A imagem do trono em Ibn Gabirol e a mística da Merkabah’, in
Rev Mirabilia 14 , Jan/Jun 2012, pp 35-56 OnLine: ://www.revistamirabilia.com/nova/images/numeros/2012_14/02.pdf
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nuidade da história38 . Sua interpretação inaugura um nova etapa na leitura da Merkaba, sucedendo a
dos gaonim, os sábios do período talmúdico, cujos ensinamentos, centralizados nas academias de
Sura e Pumbedita na Babilonia/Iraque entre os anos 640 e 1048, prevaleceram na diáspora judaica
sob domínio muçulmano.
Em que pesem as profundas diferenças entre Joaquim de Fiore e Maimônides, dito o RaMbaM
(acróstico de Rabi Mosheh ben Maimon), a preocupação com a continuidade e o significado da história, assim como o descortinamento de uma nova era da humanidade, de certo modo os aproxima mesmo que esse tempo vindouro de paz e prosperidade, em que ambos acreditam, seja vislumbrado
sob a hegemonia da Fé Cristã, segundo o primeiro, e sob a luz da Lei Mosaica, conforme o segundo. Aproxima-os também o fato de ambos pertencerem a encruzilhadas culturais, a Hispania moura
e o sul da Itália39, de cujo cotidiano partilharam cristãos, muçulmanos e judeus. Pelo menos para
uns poucos, nesse período em que viveram e nos locais em que habitaram Maimônides e De Fiore,
o Apocalipse que se anunciava terrível mostrou uma face mais humana, como indício - ou esperança
- de um mundo melhor num plano mais terreno.
Farpas Apocalípticas_O ressurgimento desse olhar mais doce não implicou o desaparecimento
do anterior. A literatura apocalíptica de tendência catastrófica continuou a progredir, acrescentando
sinais cósmicos, sociais e nacionais atualizados ao repertório tradicional. Enquanto o mundo olhava
para os céus e vasculhava a Terra à procura dos indícios do seu fim, um rei - Frederico II, rei da Sicília, da Tessalônica, de Chipre e de Jerusalém, imperador do Sacro-império Romano-germânico -, e
um papa - Gregório IX (1148 - 1241) - adotaram em 1239 uma retórica especialísssima para resolver diferenças, trocando entre si farpas apocalípticas e colocando o tema na ordem do dia do discurso político. O papa chamou Frederico II de precursor do Anti-Cristo, “a besta que subia do mar”
(Rev,13:1)40 e o rei devolveu o insulto chamando-o de “aquele que montava o cavalo vermelho” e
tinha o “poder de tirar a paz da Terra, para que os homens se matassem entre si” (Rev, 6:4).
38
Para aprofundamento da questão remete-se ao capítulo sobre Messianismo Judaico in SCHOLEM, Gershom Gerhard
(1994) Gershom Scholem: The Man and His Work, ed Paul R. Mendes-Flohr; Albany, New York: State of New York
University Press, p 81
39
Na Calábria, terra natal de Joaquim, desenvolveu-se um centro comercial cosmolita que esteve sob o domínio de Bizâncio (sec IV ao XI) e onde encontraram-se povos gregos, árabes, normandos, lombardos e uma importante comunidade sefardita. No reinado de Frederico II da Suábia, que assumiu o trono da Sicília em 1198 assegurando o poder dos
Hohenstaufen no caldeirão cultural do sul da Itália, os judeus calabreses foram relativamente benquistos no reino e contaram com o apoio real para monopolizar a manufatura da seda. Orfão muito cedo esse rei e futuro imperador, neto do
célebre Frederico Barba-Ruiva e filho de Constança da Sicília, criou-se nas ruelas, mercados e jardins de Palermo ao
som dos minaretes, sinagogas e basílicas dessa “capital semi-africana aos pés do monte Pellegrino”, nos diz Ernst Kantorowicz (op cit abaixo, pg 27). Felipe II falava sete línguas e transformou a sua corte num lugar de encontro entre a
cultura grega, latina, sarracena e judaica que, pelo arrojo e brilho, espantou os seus contemporâneos. [Para aprofundamento da questão remete-se a KANTOROWICZ, Ernst Hartwig (1957) Frederick the Second - 1194/1250, New York:
Frederick Ungar Publishing Co.]. Mas o reino surpreendente de Frederico II não sobreviveu à vida dele, e o sonho de
Joaquim transformou-se em pouco tempo num inesgotável baú de profecias.
40
A acusação consta de uma encíclica promulgada por Gregório IX entre 21 de maio e 1 de julho de 1239 citada por
Philip Schaff (1997[1907]) History of the Christian Church, in The Interactive Bible, Oak Harbor, WA: Logos Research
Systems, OnLine ://www.bible.ca/history/philip-schaff/. A “Chronica Majora” do monge beneditino Matthew Paris
(1200-1259) editada por Henry Richards Luard (Matthaei Parisiensis, monachi Sancti Albani. Chronica majora. 7 vols.
London, 1872-1884,Rolls Series, vol III: 553 sq.) traz um relato do episódio.
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Frederico II: detalhe de miniatura feita pelo monge Matthæi Parisiensis na “ Chronica Majora”
Scriptorium da abadia de St Albans / Hertfordshire, Inglaterra, 1200-1259
Nessa bolha inflada por insultos e presságios, Joaquim de Fiore ocupou um lugar de destaque no
panteão oracular e no imaginário coletivo: profecias foram colocadas na sua boca e escritas em seu
nome, em boa fé ou a serviço de manobras políticas. Na construção dessa legenda, é possível vislumbrar a ação de grupos franciscanos e dominicanos (Ordens Mendicantes), mas também de alguns discípulos de Joaquim na Calábria e grupos cistercienses (apud Reeves, 2000:148). A decisão
do Capítulo Geral da Ordem de Cister de denunciar Joaquim de Fiore como trânsfuga - ele abandonou o mosteiro onde tomou o hábito branco dos cistercienses para fundar sua própria Ordem e viver
a regra de Cister na sua pureza original41- causou um abalo na organização contemplativa, deixando
à época um lastro de inconformados e abrindo brechas para a formação de congregações autônomas
no futuro, caso de Portugal a partir de 1567, ligado desde a fundação aos destinos do Reino.
Os Espirituais_ No espaço interno das Ordens Mendicantes, o embate com a hierarquia traduziuse no movimento conhecido como “franciscanos espirituais”. Membros dessa Ordem, descontentes
com os rumos tomados pela organização fundada por São Francisco de Assis (1182-1226), radicalizaram a interpretação joaquimita do Livro da Revelação e provocaram a reação da Igreja. O ponto
polêmico enfatizado pelos Espirituais tinha data e origem. Segundo eles, o terceiro período da humanidade regido pelo Espírito Santo ia começar em 1260 quando então, sob a regência de uma nova
espiritualidade em marcha desde o nascimento do santo “poverello d'Assisi”, o mundo já não necessitaria de instituições hierárquicas e disciplinares. Um deles, Fra Gerardo de Borgo San Donnino,
cometeu a ousadia de um tratado do Evangelho Eterno (Introductorium in Evangelium Aeternum),
que provocou “escândalo horrível” (Reeves, 2000:3): segundo o texto de Fra Gerardo, do qual só se
conhecem os trechos da Comissão de Cardeais encarregada de investigar o caso, os livros de Joaquim de Fiore, embora vindos do Evangelho de Cristo, não só transcendiam a letra, como a substituiriam nos anos próximos, em que Gregos e Latinos, Cristãos, Muçulmanos e Judeus prosseguiriam juntos e em paz até o fim do mundo. Apesar de evitarem-se os ataques diretos ao abade de Fiore,
sua doutrina - que já havia sido condenada como fonte de idéias heréticas no Conselho de Latrão
(1215) - também o foi no geral, “fundamentum doctrine”, pela Comissão de Agnani (1255).
41
O que estava de acordo com o sentimento geral da época e não impediu que no século XVII o nome de Joachim de
Fiore surjisse num Fascículo dos Santos da Ordem Cisterciense, redigido pelo hispânico Crisóstomo Henriquez (15941632) por incumbência de seus superiores (apud Reeves, 2000:3).
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Joaquim de Fiore: movimento suspeito.
Na época do Abade, para muitos, Babilônia é Roma
(miniatura do sec XIV, Codex Chigiano, que contem parte da ‘Expositio Apocalipsim’ /Biblioteca do Vaticano, Roma)
O Culto do Divino_De volta ao “Conto de Amaro”, estamos diante de Leomites prostrado, “so aly
aaquella arvor” onde costumavam vir os “lioões”. O texto nos diz que Leomites jaz ali, “tal como
morto”. Mas eis que surge uma “dona” de “muy grande castidade” e nome incerto. Aparece no texto
de “O Conto de Amaro” ora como Braliides, ora Baliides, Valydes, Valiides, Bajlides como um ouvido em que não se reconhece o som - embora saiba-se, desde essa primeira aparição, que ela foi
natural do “monte Sinay” e há 42 anos andava pelos desertos “fazendo muy estranha penite[~]cia”.
Tão amiga de Deus era, que Ele mostrou-lhe o Paraíso Terreal, “dando-lhe daquell paraiso vergas cõ
folhas que senpre eram verdes e fremosas”: uma da Árvore da Consolação e outra da “arvor a que
chamã Dulces Amores”42.
Brajlides “salva” Leomites e conforta-o, entregando-lhe o ramo da Consolação. Depois, despedese e parte cantando “vou àquele que me enviou”43, tão misteriosa quanto à chegada, como se tivesse
42
Jean Delumeau (2000:4) nos diz que à época do cativeiro dos judeus na Babilonia (VI aC) os elementos constitutivos
do paraíso terreal já estavam definidos. Por exemplo, na profecia em que Ezequiel (47:12) anuncia a reconstrução do
Templo de Jerusalém, há menção a um novo rio correrá do novo local e às suas margens crescerão todos os tipos de
árvores, cujos frutos nunca cairão e as folhas serão sempre verdes. A antevisão de um jardim paradisíaco (persa, paradeisos; hebraico, gan) numa região próspera, onde tudo é agradável, saboroso, perfumado e a água corre abundantemente conforta os filhos de Israel. Esses atributos edênicos da felicidade vindoura estão igualmente presentes no Apocalipse de São João ( cap 21 e 22), quando ele nos diz que os fiéis serão consolados de suas tribulações na Nova Jerusalém, a
Jerusalém celeste: no meio da praça do lugar que descreve, João vê a Arvore da Vida que conecta, de um de outro lado
do rio, todas as formas da criação (Rev 22:2). Nas duas passagens, os elementos simbolizados pela árvore (alimento,
saúde, imortalidade, fertilidade) associam-se às idéias de “Consolação” e conforto espiritual, presentes na ação profética. Em grego arcaico, a idéia de “consolação, conforto, ajuda” era expressa pela palavra “paraklesis” - de onde parakletor = mediador, intercessor, consolador, confortador. Com esses significados, o têrmo “Paracleto” aparece no Evangelho
de São João (14:16, 26; 15:26; 16:7) em referência ao Espírito Santo - signo da Idade de paz e harmonia conforme interpretação de Joaquim de Fiore. Quanto ao ramo da árvore dos “Dulces Amores” propõe-se aqui uma relação com o
tema místico da sublimação do amor carnal e terreno, fonte de conflito, através da realização do amor divino. Essa idéia
está presente em “De Vita Solitaria” de Francesco Petrarca (1304-1374) cuja tradução consta dos 70 capítulos iniciais
de “O Bosco Deleitoso”, ou Bosque Deleitoso, uma das obras místicas mais importantes produzidas no Mosteiro de
Alcobaça entre o final do século XIV e o início do século XV. Os últimos 46 capítulos são originais. O “Bosco Deleitoso” foi impresso em Lisboa em 1515 pelo mesmo Hermã de Campos que imprimiu o “Conto de Amaro”.
43
Evangelho segundo S. João 7:33
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missão a cumprir num tempo de encontros marcados. Quanto ao ancião, ele volta ao mosteiro dos
frades brancos, Val de Flores, e “a pocos dias foy finado, pello qual Deus fez muitos millagres”.
Brajlides, Valydes, Baliides... _As mulheres tem papel destacado no “Conto de Amaro”. Nele, é
Braliides/Valydes e apenas ela quem pode indicar a Amaro o caminho do Paraíso e alça-lo ao nível
espiritual que ela habita, como mensageira do Divino. A exaltação do elemento feminino caminha
junto com a consolidação do Culto do Espírito Santo, cujo auge ocorre em época próxima à que o
Conto foi transcrito em Portugal, no Mosteiro cisterciense de Alcobaça.
O Culto do Divino Espírito Santo - que evoluiu e passou a constituir a mística do ideal dos Descobrimentos e da ação missionária portuguesa no mundo - chegou ao reino em fins do séc. XIII através de diversos canais: Cister, os Templários e a Ordem de Cristo que lhe dá continuidade, os Franciscanos espirituais ou observantes44, continuadores de Joaquim de Fiore.
Isabel_No início do séc. XIV, um desses canais ganha nome próprio e singular no imaginário lusitano. Trata-se de Isabel de Aragão, Rainha Santa e consorte de Dom Dinis I (1261-1325), sexto rei
de Portugal. Isabel era a filha mais velha do rei Pedro III de Aragão e de Constança de Hohenstaufen, princesa da Sicília; bisneta pelo lado materno daquele rei Frederico II (1194-1250), imperador
do Sacro Império Romano-Germânico, que ousou comparar o papa Gregório IX ao cavalo vermelho
do Apocalipse. No tempo de Isabel, as relações dos Hohenstaufen com o papado continuavam sensíveis. Sensíveis também eram as relações de Isabel com o marido.
Detalhe do antigo túmulo da Rainha Santa Isabel, esculpido no séc. XIV por Mestre Pero
Coimbra, Mosteiro de Santa Clara-a- Nova
44O
movimento da Observância surgiu com as reformas da Igreja. Na Ordem Franciscana isso deu origem ao aparecimento de duas correntes, o conventualismo (os cronistas franciscanos usam o têrmo claustra) e a observância. No século
XIV, os conventos da Claustra eram concebidos com amplidão, geralmente em cidades onde mantinham escolas públicas, privilegiavam a vida em comum de estilo monástico e praticavam a Regra com muitos privilégios na questão da
pobreza. Os Observantes defendiam a observância integral da Regra. Os seus conventos eram simples e privilegiavam a
oração mental, a pregação popular e eram construídos em lugares afastados.
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Isabel casou-se aos 12 anos. O primeiro filho, o infante Dom Afonso, nasceu quando ela teria uns
19. Na corte de Aragão, em que foi criada, os franciscanos espirituais, assim como o médico e místico Arnaldo de Vilanova45 e Ramon Llull 46 tiveram trânsito livre. A influência arnaldiana sobre a
piedosa consorte de D. Dinis foi posta em relevo por Jaime Cortesão, entre os muitos que atribuiram a ela a organização da primeira celebração da festa do Império do Divino Espírito Santo, em
Alenquer - então, uma vila em terras de presença moura, na região portuguesa da Estremadura47 . À
época da instituição da Festa do Divino - festividades e procissões medievais que, por um lado, nos
remetem aos cortejos coloridos que desfilam no Conto de Amaro, mais exatamente nos encontros de
Amaro com o Divino e, de outro, à concepção do próprio Paraíso como uma festa permanente de
cores, sabores, cantares, alegrias - vamos encontrar a Rainha Santa retida e exilada da presença do
marido em Alenquer. Menciona-se que ali, naquele local à margem dos roteiros mais profanos, havia sido fundado o primeiro convento franciscano de inspiração joaquimita em Portugal48.
Naquele tempo, segunda metade de 1321, Portugal inteiro se preparava para a guerra, dividido
entre as facções de El-rei dom Dinis e seu herdeiro, dom Afonso, único filho varão dele e de dona
Isabel, embora fora do casamento houvessem outros. Na ocasião, Dona Isabel foi afastada da corte
salpicada de intrigas, suspeita de dar apoio ao filho tido como traidor do rei, pai dele e seu marido.
Além do paço de desterro da Rainha, onde consta que ela patrocinou a construção da igreja do Espírito Santo, menciona-se outro polo na expansão do Culto do Divino durante o reinado de Dom
Dinis, relacionado à atividade de Isabel. Trata-se de Tomar, na região do médio Tejo onde no tempo
45
Arnaldo de Vilanova, por ser dotado de talento fora do comum para o exercício da profissão médica conseguiu alcançar a posição de médico particular de reis e papas. Vamos encontra-lo na corte de Pedro III de Aragão, pai de Isabel, e
na de seus filhos: o primogênito Afonso, Frederico e Jaime, o irmão querido da Rainha; bem como dos Papas Bonifácio
VIII, Benedito XI e Clemente V. “Na corte de Pedro III de Aragão ele participou ativamente da vida política do reino,
tomando parte no conselho do rei”, nos diz Nachman Falbel (1989:122). A personalidade de Arnaldo de Vilanova, que
escreveu um Tratado do Apocalipse, é fascinante: “no fue albigense, insabattato ni valdense, aunque por sus tendencias
laicas no deja de enlazarse con estas sectas, así como por sus revelaciones y profecías se da la mano con los discípulos
del abad Joaquín. En el médico vilanovano hubo mucho fanatismo individual (...) que solía confundir las instituciones
con los abusos. (...).El estado calamitoso de la Iglesia y de los pueblos cristianos en los primeros años del siglo XIV,
fecha de la cautividad de Aviñón, precedida por los escándalos de Felipe el Hermoso, algo influyó en el trastorno de las
ideas del médico de Bonifacio VIII, llevándole a predecir nuevas catástrofes y hasta la inminencia del fin del mundo”,
comenta Marcelino Menéndez y Pelayo (2011:91). Para aprofundamento da questão remete-se aos autores citados.
46
Na corte de Aragão, Ramon Llull foi sucessivamente preceptor de Jaime II, senescal e mordomo real, um dos mais
altos cargos dignitários na medievalidade.
47
O nome da região da Estremadura, província portuguesa na Idade Média onde algumas Ordens religiosas erigiram
suas fundações, inclusive a de Cister, provavelmente deriva do latim Extrema Durii (extremos do Douro) por designar
os territórios adquiridos na esteira da Reconquista para o sul do rio Douro (tal é também a origem etimológica do nome
da região espanhola da Extremadura). Com a progressão da Reconquista cristã rumo ao sul, a extensão de Estremadura
como terra de fronteira também se expandiu. No século XV correspondia aproximadamente aos modernos distritos de
Aveiro, Coimbra, Leiria, Santarém e Setúbal.
48
A Crônica dos XXIV Capítulos Gerais da Ordem Franciscana, compilada em 1370 com base em documentação mais
antiga, refere o nome dos dois franciscanos italianos que primeiro vieram para Portugal, Frei Gualter que fundou um
convento em Guimarães e Frei Zacarias que fundou o convento de Alenquer. (C. dos XXIV Gerais, edição de José Joaquim Nunes pp. 15-20). Em 1272 haviam 14 conventos franciscanos em Portugal: o de Alenquer estava sob a custódia
da séde em Lisboa, e o de Guimarães sob a custódia da outra sede, em Coimbra. Em 1330 foi constituída uma terceira
sede em Évora, com os conventos existentes a sul do Tejo: Beja, Estremoz, Évora, Loulé, Portalegre e Tavira.
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dos romanos celebraram-se as festas de colheita em homenagem à deusa Ceres49 e à época de Dom
Dinis celebrou-se a Festa dos Tabuleiros. O ponto alto da festividade cristã é no Domingo de Pentecostes, 50 dias após a ressurreição de Cristo na Páscoa50 , lembrando a ocasião em que o Espírito
Santo desceu sobre os apóstolos, permitindo que falassem a língua uns dos outros. Atribuiu-se à influência da Rainha, inspirada pela mística de Joaquim de Fiore, o modelo organizacional do culto e
das festas que atravessaram séculos e mares apoiadas nas Irmandades ou Impérios do Divino 51, responsáveis pelos cortejos, pela conservação do rito e pela realização dos rituais em que sobrevivem,
transformadas, aspirações comuns a cultos agrários. Realizadas sob a égide de pacificação do Reino
no século XIV, as festividades do Divino comemoraram à época, a um só e mesmo tempo, o novo
que brota do antigo e a reunião do Homem com o princípio feminino da Natureza, e ambos com o
Divino, próximos do sentimento português de estar no mundo, cuja voz ressoa nas cantigas dos jograis e trovadores 52 - entre os quais Dom Dinis53, poeta como avô materno, Afonso X dito o Sábio
(1221-1284), rei de Castela e Leão e autor de composições das ‘Cantigas de Santa Maria’ 54.
49
Os festivais de Ceres (Ludi Ceriales), deusa romana da agricultura, das colheitas e da fecundidade associada à grega
Demeter, foram instituídos no século III aC em Roma e eram celebrados anualmente entre 12 e 19 de abril. Cultuada
nos campos, Ceres foi louvada pelo poeta Ovídio:“Primeira, sulcou Ceres o chão com o arado;/ primeira, deu à terra
grãos e moles frutos; primeira, deu as leis; tudo é dom de Ceres/ (Ovidio, Metamorfoses, Livro V: 345, trad Raimundo
Nonato Barbosa de Carvalho, 2010)
50
Pentecostes, do grego pentekosté, foi na origem uma festa agrária judaica, ocasião em o povo judeu se reunia para dar
graças, oferecendo a Deus os melhores frutos dos seus campos (Êxodo 23, 14) e, mais tarde, para celebrar também a
renovação da Aliança do Sinai, entre Deus e o povo judeu (Ex 19, 1-16). De acordo com o Novo Testamento (Atos 2, 113) Maria e os discípulos se reuniram naquela data para celebrar o Pentecostes conforme o costume judaico, mas eis
que ouviu-se um ruído, "como se soprasse um vento impetuoso" e línguas de fogo desceram sobre os apóstolos.
51
Vários elementos formais do culto, assim como o significado dos "Impérios", são atribuídos aos Reis de Portugal que
teriam concedido permissão aos festeiros para que se fizesse uma réplica da coroa portuguesa - a Coroa Real do Divino
Espírito Santo - no Cerimonial da Coroação, como símbolo da delegação de poderes ao homem comum.
52
O Trovadorismo português, embora relacionado ao movimento que surge em fins do século XI na Occitânia (compreendendo as regiões históricas da Provença, o Limousin, o Auvergne, a Gasconha, e o Languedoc ao sul da França),
possui características próprias e ocorre no mesmo período que desponta em Portugal o sentimento de nação independente. As composições - cerca de 1680 textos de assunto profano transmitidos por três Cancioneiros manuscritos e 420 textos de tema religioso (‘Cantigas de Santa Maria’, com uma tradição manuscrita autônoma) - abrangem um período que
vai de finais do século XII à segunda metade do século XIV. Foram escritas numa língua poética de características uniformes, o galego-português, um ‘romanço’ de matriz latina e veículo de um conhecimento mais emotivo que racional,
capaz de unir expressivamente não apenas galegos e portugueses, mas também castelhanos, leoneses e até extra-peninsulares, que a elegeram para cantar o amor ou ‘dizer mal de alguém’, isto é, para comporem cantigas de amor, de amigo,
de escárnio e mal dizer. Com excepção de alguns anônimos, os textos dos Cancioneiros profanos são atribuídos a 153
trovadores e jograis. Ao contrário dos trovadores, de estirpe nobre, os jograis eram na sua maioria gente do povo, burguesia e clérigos. Entre os primeiros destacam-se reis, filhos de reis, senhores de alta linhagem. Para aprofundamento da
questão remete-se a Elsa GONÇALVES, A Lírica Galego-Portuguesa, Lisboa: Editorial Comunicação, 1983.
53
Uma cópia das trovas de Dom Dinis encontra-se na Biblioteca Vaticana (códice 4803), “cujo papel é grosseiro e com
barbas, a lettra toda da mesma mão, vermelha a encadernação, e o formato in-4° com obra de dous dedos de grossura”,
nos diz Caetano Lopes de Moura (1780-1860), tradutor, médico e escritor baiano que viveu na França napoleônica. No
mesmo códice encontram-se, além das poesias de D. Dinis, as dos seguintes trovadores portugueses (secs XIII e XIV):
João d'Aboim, Diogo Lopes de Baiam, Affonso Lopes Baiam (filho de D. Diogo), Rodrigo Annes de Vasconcellos,
João Soares Coelho, Estevão Fernandes d'Elvas, Fernão Cogominho (contemporaneo d' ElRei D. Afonso III pai de D.
Dinis), Payo Gomes Charrinho, Pêro Gomes Barroso, Martim Peres d'Alvim, João Vaz, Estevão da Guarda (testamenteiro de D. Afonso III) e João Lobeira sendo esse último um dos confirmantes da carta de doação da vila da Lourinhã
(1278), passada por D Afonso III em favor de seu filho Afonso, irmão de D. Dinis. Prefácio de Caetano LOPES de
MOURA - OnLine: http://pt.wikisource.org/wiki/Cancioneiro_d'elrei_D. Diniz/Prefa%C3%A7%C3%A3o#cite_ref-0
54
As Cantigas de Santa Maria são um conjunto de 427 composições em galego-português abrangendo histórias, milagres e relatos relacionados à Virgem, quer pela sua intervenção direta, quer pelos amores místicos inspirados na sua
figura. Encontram-se repartidas em quatro manuscritos (Códice To, por Toledo, na BibliotecaNacionaldeEspanha; Códices E e T no Escorial e Códice F, na Biblioteca de Florença, Itália)
Interstícios /
Hall Freire 38
Primeira acima, iluminura do Cancioneiro da Ajuda, f 16 (séc. XIII, Biblioteca do Palácio Real da Ajuda, PT):
dos três cancioneiros conservados até hoje, este é o mais antigo, excluindo a vasta produção de Dom Dinis.
Acima, iluminura das Cantigas de Santa Maria, f 2 (sec XIII, códice de Florença)
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Hall Freire 39
Trovadores e Cruzados_ Como fenômeno estético e cultural, o trovadorismo está intimamente
ligado aos códigos de conduta que sinalizaram, a partir do século XII nas cortes occitânicas55, a
emergência dos novos padrões de sensibilidade que contribuiram para tornar os costumes guerreiros
um pouco menos rudes e a situação da mulher um pouco mais suave - embora não menos ambígua.
De início, ao idealizar a figura feminina, o “amor cortês” 56 colocou a mulher num pedestal inacessível. Ao poeta cortesão coube cortejar a dama como seu fiel vassalo, escravo obediente dos seus
caprichos, à espera de um sinal que o levasse a um Paraíso para sempre reluzente de delícias, ao
lado da amada. No entanto, já advertia André Capelão no final de um tratado do sec XII sobre esse
ideal de vida57 , é preciso estar alerta, pois as mulheres são naturalmente manhosas, falsas, hipócritas
- em suma, filhas da Eva maldita, causadora da expulsão do Paraíso.
Num segundo momento, a lírica sensual dos trovadores occitanos será superada por outra de contemplação à Virgem, especialmente a partir de 1209 - quando o papa Inocêncio III desencadeia uma
55
Nas cortes occitânicas as mulheres administraram seu corpo e sentimentos, seus bens, sua participação na vida pública com mais desenvoltura. Foram cultuadas pela primeira grande escola da poesia românica, elaborada numa língua
também chamada occitânica (em francês, langue d'oc; em occitano, lenga d'òc) - não exatamente uma língua uniforme
mas um descendente do latim que se falava no Império Romano, espraiado como um rizoma de tempo num continuum
dialetal ao sul da França e em alguns vales montanhosos na Itália e na Espanha. Nesse conjunto mutualmente compreensível, a função poética da língua - alçada a valor maior na lírica dos trovadores - atuou como foco aglutinador na oralidade da fala, organizando seus ritmos, sons, gestos e cores em torno do sentimento amoroso e do Culto à Mulher: não
apenas o elogio do amor puro, nobre, socialmente inatingível (a dama, objeto do amor será muitas vezes casada com
outro), mas também o apelo da carne, o desejo dos sentidos, o velado desafio do ilícito, a exaltação passional. Esses
traços alegremente pagãos irão configurar os primeiros modelos poéticos que se tornarão dominantes nas cortes e casas
aristocráticas européias durante os séculos seguintes, um movimento de adoção que transbordou os limites geográficos
do occitano, sem igualar-lhe a espontaneidade e brilho. No final do século XIII, a lenga d'òc será eclipsada pelo francês
falado ao norte do rio Loire, a langue d'oïl ou langues d’oïl, um ramo das línguas galo-romanas como suas parentes do
sul, mas possuidor de um substrato céltico mais importante e maior influência das línguas germânicas, que se desenvolveu nos territórios setentrionais da Gália romana, correspondentes aos atuais norte da França, sul da Bélgica (Valonia) e
as Ilhas do Canal do antigo ducado da Normandia, sob dependência britânica. Embora continuamente modificada pelos
falares locais, a langue d'oïl adotada em Paris será reconhecida como o francês oficial. Alguns linguistas distinguem
ainda um terceiro ramo entre as línguas galo-romanas, constituido pelo provençal, um dialeto occitânico de transição
falado exclusivamente na Provence e em grande parte da região do Gard, vivido como um elemento de herança cultural
principalmente por influência de Frédéric Mistral (1830-1914).
56
O amor cortês se expande na sociedade masculina da época como um código lisonjeiro ao feminino, regulador das
relações afetivas entre homens e mulheres no âmbito das cortes européias, notadamente entre os séculos XII e XIV. O
domínio dos princípios básicos da cortesia diante da situação de maior disponibilidade feminina, “o saber dizer e o saber fazer” na celebração do ritual amoroso fora do quadro conjugal, identificava o homem do mundo, o verdadeiro cavaleiro amante, capaz de seduzir a dama dos seus sonhos ou sublimar os sofrimentos causados pela rejeição.
57
Em “De Arte Honeste Amandi” (traduzido como “Tratado do Amor Cortês”) uma espécie de 'summa amatoria' redigida originalmente em latim e finalizada por volta do ano de 1186, André Capelão (Andreas Capelannus, possivelmente
um clérigo na corte de Marie de France, condessa de Champagne [1145- 1198], filha de Luis VII de França e de Eleonor
de Aquitânia) descreve esse ideal de vida - o bem conduzir-se nos jogos amorosos, de acordo com as maneiras estipuladas pelos costumes da corte e os usos a que esta camada social estava acostumada - à maneira de Ovídio, apoiando-se
em fontes clássicas (Horácio, Seneca, Cicero), cristãs (Biblia) e contemporâneas (Chrétien de Troyes, Escola de Chartres, etc). Ao seu amigo Gauthier, por exemplo, ele apresenta as doze leis essenciais do amor cortês: I. Foge da avareza
como de flagelo funesto e abraça o que lhe for contrário. II. Mantém-te casto para aquele que amas. III. Não tentes destruir o amor de uma mulher que esteja perfeitamente unida a outro. IV. Não busques o amor de nenhuma mulher que o
sentimento natural de vergonha te impeça de desposar. V. Lembra-te de evitar absolutamente a mentira. VI. Evita contar
a vários confidentes os segredos do teu amor. VII. Obedecendo em tudo às ordens das Senhoras, esforça-te sempre por
pertencer à cavalaria do Amor. VIII. Dando e recebendo os prazeres do amor, cuida de sempre respeitar o pudor. IX.
Não seja maldizente. X. Não traias os segredos dos amantes. XI. Em qualquer circunstância, mostra-te polido e cortês.
XII. Ao te entregares aos prazeres do amor, não excedas o desejo de tua amante. (CAPELÃO, 2000, p. 98-99).
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cruzada contra a heresia albigense58 que prospera justamente nas cidades meridionais da França - e
em 1230, com o estabelecimento da Inquisição papal em substituição aos tribunais episcopais de
inquisição que funcionavam no Languedoc desde 1184 59 .
58
A Heresia Albigense, cujo nome deriva da suposição que os cátaros tivessem sua sede na cidade de Albi, entre Toulouse e Lyon, no sul da França, imperava em toda a região do Languedoc, onde dominavam as casas de Toulouse e
Trencavel, relacionadas por laços de vassalagem, casamento e hereditariedade entre si e com o Reino de Aragão. Como
movimento religioso, o Catarismo (do gr katharos, puro) remete aos primeiros tempos do cristianismo e, como heresia,
às doutrinas sobre Trindade e Cristologia que floresceram no Oriente em desacordo com os posteriores Credo de Nicéia
(325) e Constantinopla (381). Entre essas, destacam-se as idéias de Paulo de Samosata, bispo de Antioquia, cujos elementos dualísticos e gnósticos teriam influenciado o paulicianismo na Armênia (650-872) e os bogomilas balcânicos
(sec X, na Macedonia), eventuais precursores do Catarismo. Os cátaros da Occitania consideravam-se apenas ‘bons
cristãos’. Celebravam rituais semelhantes ao da Eucaristia na Santa Missa: abençoavam o pão e dividiam entre si mas
provavelmente não acreditavam que fosse outra coisa além de pão que, por ser objeto material, não pertencia ao reino
do divino, mas ao do seu oposto. Nesse dualismo, o credo cátaro pode ser visualizado como elo de uma corrente antiga
que, no tempo de Cristo, fazia parte da religião mais comum entre o Oriente Médio e a China, o Zoroastrismo ou
Mazdeísmo centrado na Pérsia, cuja classe sacerdotal, os Magi - como aqueles que vieram de longe para homenagear o
menino que nascera numa manjedoura - era considerada por gregos e romanos profundamente sábia e misteriosa. Os
Magi persas eram dualistas que acreditavam no paraíso, na ressurreição, no juizo final e na vinda de um messias. Para
os cátaros, no século XI, o reino divino era o das Almas e Luzes, das coisas imateriais. O seu oposto, o reino das Trevas,
era o da matéria, incluindo o mundo, as coisas que existem nele e também os homens, através da captura e aprisionamento de suas almas em corpos matéricos, no processo da concepção. A morte não era exatamente temida entre os catáros mas até certo ponto benvinda, como o despir-se de uma roupa suja. Havia que preparar-se para esse momento, uma
vez que ao despreender-se do corpo a alma podia retornar vestida em outro corpo, humano ou animal. Sòmente os Puros
estariam livres do círculo vicioso de reencarnações. Como os pitagóricos, os cátaros acreditavam em metempsicose e na
transmigração das almas. Entre eles, não havia uma classe sacerdotal propriamente dita. Embora os seguidores não fossem todos iguais, eles não se diferenciavam por gênero nem discriminavam as mulheres: haviam os simples Crentes
(Auditore ou Credentes) e os Eleitos/as (Perfecti). Havia uma certa aura de santidade em torno deles. Eram leigos, homens e mulheres que viviam uma vida apostólica mais cristã que a do clero, elegiam seus superiores em cerimônias
simples, assistiam aos fiéis na celebração dos ritos e eram profundamente respeitados pela cristandade mais crédula
como receptáculos de uma sabedoria íntima em que o Espírito Santo parecia habitar do mesmo modo que a Terceira
Pessoa da Santíssima Trindade habitou entre os Apóstolos, no dia de Pentecostes. Viviam pobremente. Observavam
estrita castidade e ascetismo semelhante ao ideal monástico mais rigoroso, não aceitavam mentira alguma, não faziam
juramentos solenes, não matavam ou comiam qualquer tipo de criatura viva - o que incluía carne, ovos, leite, queijo
com exceção do peixe cuja reprodução se acreditava livre do ato sexual. Tornaram-se alvo fácil para os perseguidores:
um rosto macilento, uma pele amarelada e sem viço podia denuncia-los - ou incriminar um inocente, fez ver o bispo
Wazo de Liège na Bélgica aos mais afoitos, algumas décadas depois do ano 1000, conta seu biógrafo Anselmo (in Gesta
Episcoporum Leodiensium, citada por Richard LANDES in "The Birth of Heresy: A Millennial Phenomenon", Journal
of Religious History 24.1, 2000, pp 26-43). Nos séculos seguintes foram mortos aos milhares.
59
O ano de 1184 pode ser considerado como início da Inquisição medieval em função da bula ‘Ad abolendam diversarum haeresum pravitatem’ promulgada pelo papa Lucio III no Concilio de Verona com o objetivo de combater a heresia
cátara e controlar os movimentos heterodoxos surgidos na cristandade em torno do ano 1000. Aperfeiçoada como instrumento de contenção herética pelos papas sucedâneos Inocêncio III, Honorio III e Gregorio IX, a Bula de Verona previa, além da condenação de todos que pregassem em público ou em particular sem a autorização da Igreja, a excomunhão e o confisco dos territórios dos nobres e magistrados que não aderissem ao combate. Para implementação das medidas, foi estipulado que os bispos, sob pena de destituição eclesiástica, deviam reprisar o anúncio de excomunhão durante três anos consecutivos, na celebração das festas e feriados, assim como percorrer duas ou três vezes por ano suas
dioceses para detectar lugares suspeitos e interrogar os aldeãos, colocados sob juramento, a respeito de heréticos. Embora o Ad Abolendam tenha mostrado alguns resultados na Itália e em outras partes da Europa, teve pouco efeito na Occitânia e em particular no Languedoc onde a nobreza e o clero, com seus trovadores e poetas, mostravam-se mais liberais
em questões de fé que seus pares em Roma, Paris e no norte da França.
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Hall Freire 41
Lingua Occitânica:
correspondências geográficas no mapa da Europa
Cruzada Albigense, à época da batalha de Muret (1213): em destaque no verde, os domínios da Casa de Trencavel no
Languedoc, vassala simultânea do conde de Toulouse e do rei Pedro II de Aragão
Dominios da Coroa de Aragão (amarelo): Béarn, Comminges, Gévaudan e Provence.
Protetorado de Pedro II de Aragão (vermelho): condados de Toulouse e Foix.
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Hall Freire 42
Os Cátaros_Naquele período já eram conhecidos os laços entre a nobreza rural da região e a heresia. O lendário Raimon-Rogièr Trencavel (1185-1209), visconde de Albi, Bèziers, Carcassonne e
Ràzes no Languedoc60, por exemplo, embora não fosse cátaro, estivera dos nove anos até a maioridade sob a tutela de um nobre relacionado ao movimento, conforme pedido do pai dele no leito de
morte. Para escândalo dos ortodoxos, o que a Igreja considerava heresia não era apenas denegada
como tal nas Cortes do Languedoc 61 , mas em muitos casos aprovada, vivida e protegida por seus
nobres, motivo pelo qual se converteu em primeiro objetivo de inquisição e posteriormente dos cruzados do papa Inocêncio III, reunidos na região de Paris e norte da França inicialmente sob o comando de Arnau Amalric, décimo-sétimo abade de Citeaux, a casa-mãe da Ordem Cisterciense 62 cujos cronistas Pierre des Vaux de Cernay (Petrus Sarnensis)63 e Caesarius, abade de Heisterbach na
Alemanha64 , se encarregarão de dar interpretação, destino e colorido aos fatos em manuscritos que
circularam dentro e fora das comunidades cistercienses.
60
Como visconde de Albi e Bèziers, Raimon-Rogièr devia vassalagem ao conde Raimon VI de Toulouse. Por seus feudos em Carcassonne e Ràzes, ao rei Pedro II de Aragão (1174-1213), igualmente conde de Barcelona, Gévaudan, Roussillon e senhor de Montpellier. Com o recuo num primeiro momento de Raimon VI de Toulouse e Pedro II de Aragão
diante dos cruzados, Raimon-Rogièr tornou-se o campeão da resistência dos occitanos contra os barões do Norte e, segundo alguns, inspiração para o ‘Parzival’ do trovador Wolfram von Eschenbach (ca 1170-1220).
61
Antes das armas, a questão cátara foi enfrentada com palavras, ações e exemplos. Foram organizados debates entre
campeões da Igreja e teólogos locais, o último dos quais deu-se em 1204. Na ocasião, manifestaram-se Dominic de
Guzmán (Caleruega 1170-1221), fundador da Ordem Dominicana, e Diego de Asebes, bispo de Osma (Reino de Castela) enviados pelo papa ao Languedoc com o intuito de auxiliar os cistercienses incumbidos da luta contra a heresia. Do
lado dos defensores cátaros destacaram-se Benoît de Termes, da diocese de Razès, Arnaud Oth de Cabardès e Guilhabert de Castres a quem se atribuia a conversão de várias damas da nobreza occitana ao catarismo, entre as quais Esclarmonde de Foix, Aude de Fanjeaux, Fays de Durfort e Raymonde de Saint-Germain. Na sequência, por influência do
futuro S. Domingos, o papado instituiu a inovadora Pregação Santa, a cargo de monges itinerantes que iam ao encontro
dos dissidentes a pé, falando a língua deles, vestidos simplesmente e não mais acompanhados do prestígio de servos,
soldados e cavalos cujo luxo tornava risível, aos olhos da população, o discurso latino dos legados do papa.
62
A Cruzada contra os Cátaros - organizada nos mesmos moldes que as empreendidas na Terra Santa e contra os mulçumanos, um “negotium fidei et pacis” (negócio de fé e paz) - foi precipitada pelo assassinato do monge cisterciense
Pierre de Castelnau, natural de Montpellier, indicado por Inocêncio III em 1199 para a conversão dos hereges e confirmado como Legado Apostólico no Languedoc em 1202. Castelnau foi morto em 1208 na região do pequeno Rhône
(Ròse, em occitano, o braço menor do rio à caminho do delta da Camargue) por um escudeiro do conde Raimon VI de
Toulouse que, suspeito de ter dado a ordem, foi imediatamente excomungado.
63Historia
Albigensis, escrita entre 1212 e 1218 principalmente a respeito dos fatos ocorridos entre 1203 a 1208. Para
aprofundamento da questão remete-se à tradução francesa de Pascal GUEBIN et Henri MAISONNEUVE, Histoire Albigeoise, Paris: Librairie J. Vrin, 1951, OnLine
://books.google.com.br/books?id=FSkyK8mvCzkC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false
64
A obra de Heisterbach, Dialogus Miraculorum, nos interessa particularmente por se tratar de uma compilação de 746
milagres e histórias memoráveis organizadas pelo abade alemão entre 1219 e 1223 sob a forma de diálogos entre um
monge e um noviço, em 12 tomos que facilitarão seu emprego em sermões e justificarão a imensa popularidade da obra
entre os pregadores. Os tomos são organizados de modo a traçar itinerário espiritual que conduz o leitor / ouvinte ao
confronto com temas como conversão, contrição, confissão, tentação, demônios, simplicidade,Virgem Maria, visões,
sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, milagres, morte, castigo e glória pós-mortem.
_ Para conhecer o teor das histórias remete-se ao terceiro volume da Bibliothèque des Croisades, organizada por Joseph-François MICHAUD & Joseph Toussaint REINAUD (Paris:Ducollet,1829, p.273) OnLine in
://books.google.com.br/books/about/Bibliothèque_des_Croisades.html?id=d8oGAAAAcAAJ&redir_esc=y.
_ Para o capítulo referente à heresia cátara remete-se a Internet Medieval Sourcebook, site org. por Paul HALSALL
OnLine: ://www.fordham.edu/halsall/source/caesarius-heresies.html
_ Para uma apreciação crítica da obra de Heisterbach remete-se a ‘Exemplum et histoire : Césaire de Heisterbach (11801240) et la croisade albigeoise, de Jacques BERLIOZ In: Bibliothèque de l'école des Chartes. 1989, tomo 147. pp. 4986, OnLine ://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bec_0373-6237_1989_num_147_1_450530
Interstícios /
Hall Freire 43
Paratge_ Nessa guerra de cristãos contra cristãos no seio da cristandade, a par das motivações
econômicas e políticas vinculadas à anexação dos territórios, percebe-se uma questão de costumes.
No espaço occitânico visualiza-se a diferença não só no emprego tradicional de certas práticas agrícolas, na tolerância em relação às comunidades judaicas, na celebração do ‘paratge’65 , mas também
no poder atribuído às mulheres, seja na idealização do seu papel no comportamento amoroso, seja
na eventual possibilidade de participação feminina nos ritos vassálicos 66 - uma afronta, de um certo
ponto de vista ortodoxo, à sociedade masculina, viril e aristocrática, baseada no ritual simbólico da
homenagem homem a homem, entre vassalos e suzeranos. Vista do Norte, ainda que sob forma estereotipada, a imagem de liberalidade dos “meridionais” em relação às instituições, sua desenvoltura
face um poder central67 , a espontaneidade de suas mulheres constituía motivo de escândalo. Estimuladas a desenvolver a inteligência no ambiente das cortes consideradas as mais cultas da Europa,
não raro demonstraram espírito crítico e sagacidade política, apurado senso estético, gosto musical
e, a julgar pela lírica trovadoresca, os sagrados laços do matrimônio não faziam parte necessária dos
seus jogos amorosos; assim como o casamento, a julgar pelo que se dizia dos cátaros, havia sido
abolido e era condenado pelos crentes68. Simon de Montfort encarregou-se disciplinar os costu-
65
O conceito de ‘paratge’ parece tão intraduzível quanto o sentimento ‘saudade’. Em terras occitânicas, o significado do
código ia além de equidade, fidelidade, honra, brio, gentileza, cortesia, nobreza, valor, respeito às leis entre pares (pariato). Remete à um estado de espírito harmônico e em equilíbrio com a natureza, valorizado não apenas pela aristocracia:
o termo ocorre muitas vezes na segunda parte da “Cansó de la Crozada” que, ao contrário da primeira parte atribuida a
Guilherme de Tudela, é voz de um trovador anônimo, que lamenta a sua destruição do Paratge como quem lamenta o
Paraíso Perdido. Para aprofundamento da questão remete-se à “La Notion de Paratge des troubadours à la Chanson de la
Croisade Albigeoise” de Francesco ZAMBON, in L’Aristocratie dans le Languedoc, Carcassonne: Centre d’Études
Cathares, 1996: pp 9-27
66
Os ritos vassálicos envolviam, por parte dos do vassalos, o juramento de prestação de serviços militares e de aconselhamento ao suzerano. Embora não significassem necessariamente a exclusão feminina do direito sucessório, na prática
impossibilitavam as mulheres de administrar um feudo pois eram consideradas incapacitadas para prestar ou receber a
homenagem - um dos vínculos mais fortes que a época feudal conheceu. Entretanto, as fronteiras do masculino e do
feminino nas relações feudais parecem menos rígidas no Languedoc, o que faz supor a possibilidade de algumas exceções. A esse respeito remete-se à pesquisa de Hélène DÉBAX (Framespa - Univ.Toulouse II-Le Mirail, 2009) “Le lien
d’homme à homme au féminin. Femmes et féodalité en Languedoc et en Catalogne” (aceite para publicação in Études
Roussillonnaises, numéro spécial 2012 “Genre et pouvoir”, coord. Christiane KLAPISCH-ZUBER e Marie-Claire
ZIMMERMANN; OnLine in ://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00498793/en/
67No
espaço em que a língua occitânica se define em torno do ano 800, o latim introduziu-se mais cedo e de outro modo
que nas suas zonas vizinhas, ao mesmo tempo que uma certa ‘romanidade’ preservou-se ali por mais tempo, visualizável no uso prolongado do Direito Romano e nas maneiras de organização urbana. O território, salpicado de senhorios
amplamente autônomos e imponentes cidades fortificadas, nunca constituiu um todo cultural e politicamente homogêneo. A divisão entre o Reino dos Francos (ancestral da França) e o Império Germânico (caso da Provence) permaneceu
até o século XIII como letra morta, enquanto as fronteiras entre as unidades territoriais maiores - ducados, principados,
condados - variavam grandemente de titularidade e contorno. Nesse espaço mosaicado os feudos agrupados sob dominações diversas formaram uma rede complexa de direitos e deveres, movimentando-se através de sucessões belicosas.
68
Trata-se de uma visão simplista que propagando-se como verdade implicou em situações dramáticas. Por exemplo,
para defender-se da acusação de heresia um certo Jean Tessiere teria bradado, inutilmente: “Ouçam-me! Não sou herege
porque tenho mulher e durmo com ela. Tenho filhos. Como carne, minto e juro, sou um cristão piedoso!”(Crônica de
inquisidor Guillaume de Pélhisson, trad Walter WAKEFIELD in ‘Heresy, Crusade and Inquisition in Southern France
1100-1250’, Berkeley: Univ. of California Press, 1974: pp 213-14). Nesse contexto, é sugestivo o cisterciense Pierre de
Cernay (in Histoire Albigeoise, op cit, pp 41-42) afirmar que o fato de a população de Bèziers ter sido massacrada (22/
07/1209) no interior da Igreja da Madalena, onde se refugiara, constituiu uma manifestação da “suprema justiça da Providência” pois ocorreu justamente no dia da festa da santa que os hereges consideravam “concubina de Cristo” .
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Hall Freire 44
mes 69. Cruzado e cristão fervoroso da pequena nobreza dos arredores de Paris, foi escalado em
nome do papa pelo abade de Citeaux para ocupar e assumir os territórios conquistados. Cumpriu
com argúcia e violência a tarefa que outros nobres recusaram. Aos olhos da aristocracia, o contato
brutal promovido entre as duas culturas (a do Oc e a do Oil) pela Cruzada vencedora implicava
principalmente num precedente perigoso, ou seja, o reconhecimento do poder temporal da Igreja na
expropriação feudal de reis poderosos como o de Aragão, Pedro II, e do conde de Toulouse, suzeranos do visconde do Languedoc70 . As armas espirituais de Domenic de Guzman, canonizado São
Domingos, acompanharam Simon de Montfort na missão de converter os heréticos.
Inquietação e Heresia_ Desse outro modo também ouviu-se falar da campanha cátara, pouco
depois em Portugal. À época, reinava Afonso II (tio de D. Dinis) e o reino agitava-se em conflitos
internos protagonizados pelo rei, a quem não interessava o fracionamento do poder central, e suas
irmãs a quem o pai legara em testamento, com o título de rainhas, a posse de alguns castelos com
suas vilas, termos, alcaiderias, rendimentos etc. Uma delas, Dona Sancha, se interessou imediatamente pela proposta de um certo cavaleiro português que combatera ao lado dos cruzados. Ele
abandonara as armas ao conhecer o fundador da Ordem dos Pregadores, tornara-se amigo e discípulo do santo, queria trazer as boas novas. Frei Soeiro ou Sueiro Gomes, chamava-se, estivera entre os
primeiros 16 companheiros de São Domingos que fundaram em 1206 em Fanjeaux, nos confins do
Razès no Languedoc, o monastério feminino de Prouille destinado às reconversas 71. Antes do final
de 1217, ocasião em vamos encontrá-lo novamente em Portugal, ele descobre sua terra calada pela
peste, dividida pelas violentas disputas da família real e o “povo que via entristecido por tanta igreja
69
Cita-se, como exemplo, os Estatutos de Pamiers/Muret, promulgados pouco depois da morte do poderoso rei Pedro II
de Aragão na batalha de Muret contra os cruzados. Datados de dezembro de 1212 os Estatutos estabelecem, entre outras
providências :
- A obrigação de cada cidade construir uma igreja e uma casa paroquial (artigo 10).
- A obrigação durante 20 anos de os barões Franceses prestarem serviço militar apenas com soldados Franceses e não
com gente da terra (artigo 18).
- A proibição durante 10 anos de todas as viuvas, herdeiras e titulares de castelos casarem-se com outros que não Franceses, sem o acordo explícito de Simon de Montfort (artigo 46).
- Os clérigos ficavam isentos do pagamento de taxas de pedágio e impostos.
- Cada casa habitada devia pagar o dízimo para a Santa Sé.
- A missa do domingo era obrigatória. Nesse dia, as feiras estavam terminantemente proibidas.
- Excomungados e Judeus ficavam proibidos de receber bens em testamento e prestar juramento.
- Uma convenção feudal de três artigos entre Montfort e os senhores aos quais concedesse terras na região estipulava
direitos e deveres
Para aprofundamento da questão remete-se a Pierre TIMBAL, que apresenta o texto integral dos Estatutos no apêndice
do estudo ‘Un conflit d'annexion au Moyen Âge, l'application de la coutume de Paris au pays d'Albigeois’ (Paris: Marce1 Didier / Toulouse: Édouard Privat, 1950)
70
De acordo com os costumes feudais caberia a Pedro II de Aragão, suzerano do Languedoc, indicar, confirmar e dispor
de seus próprios vassalos mas a nova situação contrariava a regra e o papa Inocencio III havia se declarado suzerano do
rei. Nesse entendimento, o papa exilou Raimond VI, conde de Toulouse - o que provocou a entrada de Pedro II de Aragão na guerra cátara, em defesa de seu vassalo (e cunhado). Pedro II morre na batalha de Muret (setembro de 1913) e
Simon de Montfort assume todo o território como duque de Narbonne, conde de Toulouse, visconde de Béziers e de
Carcassonne. Ao mesmo tempo, mantem como refém o filho de cinco anos de Pedro II de Aragão, o futuro rei Jaime I
de Aragão (1213-1276) - avô de Isabel de Aragão, a rainha santa de Portugal - entregando-o um ano mais tarde aos templários de Aragão, para que o criassem.
71
apud Victor F. O’DANIEL, O.P. “The First Disciples of St. Dominic”, Washington:The Dominican House of Studies
/Catholic University of America, 1928. OnLine ://domcentral.org/sueiro-gomes/
Interstícios /
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fechada e pelo silêncio que pesava como chumbo”, escreve Julieta Araujo, citando Frei Luis de
Souza (1555-1632), cronista da Ordem Dominicana 72:
Foi então que a misericórdia divina permitiu a chegada do embaixador da nova Religião, D. Frei Soeiro Gomes. Começou este por dar as boas novas ao povo e sua maior alegria era falar-lhes dos grandes
bens que alcançariam por intermédio do Santo Rosário da Virgem puríssima, “recontando os maravilhosos feitos que por elle vira na guerra dos Albigenses ”.
Frei Soeiro Gomes instala-se primeiro na serra de Nossa Senhora das Neves em Montejunto perto
de Alenquer, terras de Dona Sancha, para depois dirigir-se à Santarém. Leva consigo o exemplo do
Rosário, em homenagem à Mãe Divina que o Filho foi coroado de espinhos. Para além de uma rosa
- a saudação do anjo à Virgem difundida até então na cristandade73 como meio poderoso para obter
as graças divinas, forma eficaz de se defender dos demônios, o melhor jeito de começar bem o dia e
terminar - ele pregava a oferenda de uma coroa de rosas à Virgem. Segundo alguns, uma inovação
importante no Culto Mariano, estabelecida pelo fundador da Ordem dos Pregadores à época do apostolado no Languedoc. Segundo outros, um ritual que surgiu dois séculos depois com a fundação das
primeiras Irmandades do Saltério da Virgem Maria, na França e na Alemanha, a partir da obra de um
dominicano bretão, o Bem-Aventurado Alain de la Roche, atribuindo a origem da devoção do Rosário à uma visão de São Domingos, naqueles tristes tempos em Toulouse.
Rosas, não Espinhos:
Xilogravura do saltério de Alain de la Roche (Le Psautier et le Rosaire de Notre-Dame, Augsburg: Anton Sorg, 1492):
Do mesmo modo que há 150 salmos no Saltério de Davi, recomendava-se ao penitente
a recitação de número idêntico de Ave-Marias, agrupadas de dez em dez, intercaladas por um Padre-Nosso,
repartidas em três mistérios, acompanhadas da meditação de passagens da vida de Cristo e da Virgem.
À direita, frontispício de ‘Le Triple Rosaire augmenté : sçavoir, le grand rosaire, le perpétuel et le quotidien’,
do dominicano Jean-Vincent Bernard (1676)
72
Frei Luís de SOUZA. História de S. Domingos. Introd. e rev. de M. Lopes de ALMEIDA. Porto: Lello & Irmão Eds,
1977. In: Tesouros da Literatura e da História , vol. I, cap. IX, p.59-61. Apud ARAUJO, Julieta (2011) “Aspectos da
Espiritualidade Dominicana em Portugal na Época Medieval. Notas sobre Frei Soeiro Gomes” in ‘A Idade Média Portuguesa
e o Brasil: reminiscências, transformações, ressignificações’, org José Rivair MACEDO, Porto Alegre:Vidráguas, pp 45-57
73
Textos como a Homilia Missus est, de Bernard de Clairvaux em 1120 indicam que a saudação “Ave Maria”, tal como
é ouvida no episódio da Anunciação no Evangelho de S. Lucas (1,28-42), já era conhecida pelos fiéis como prece e invocação e teve seu uso estimulado pelos cistercienses, profundamente devotos da Virgem.
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De acordo com o relato de Alain de la Roche74, São Domingos embrenhou-se numa floresta perto
de Toulouse em dia de grande angústia, pedindo à Mãe Divina que viesse em seu auxílio. E eis que
apareceu-lhe a Virgem acompanhada por três nobres damas e um cortejo de 150 donzelas do Paraíso, e ofereceu-lhe o seio, deu-lhe o leite do consolo, e explicou: as três damas principais representavam as três pessoas da Santíssima Trindade (os Mistérios) e as princesas eram as 150 Ave Marias
que compõem o Rosário. Em seguida, a Virgem recomendou a Dominic que propagasse a recitação
do Rosário, uma outra visão das delícias Paraíso, como meio eficaz de combater a heresia. Voltando
à igreja onde estavam reunidos os habitantes de Toulouse, Dominic lhes falou dessas maravilhas e
eles foram salvos espiritualmente.
Imagens do feminino que remetem ao Paraíso - à alegria dos cortejos, à pureza das donzelas, ao
leite e ao mel, ao seio e ao útero - são recorrentes na tradição bíblica e neo-testamentária. Reaparecem de tempos em tempos muitas vezes relembradas junto com os momentos de aflição, de ameaça
de fragmentação da fé e acompanhando o surgimento de heresias. Essas sensações opostas de mundo, doloroso e luminoso, alegre e glorioso, não se opõem na récita do Rosário, ao contrário, se conjugam nos mistérios de Maria. Na atividade de São Domingos e na configuração no Rosário atribuida a ele, nota-se, de fato e desde o início, a preocupação de dar nova forma à memória e reconduzir
ao rebanho as ovelhas desgarradas da espiritualidade feminina.
Se pensarmos os séculos XII e XIII no Ocidente como um recorte na história vamos notar que a
religiosidade do período, marcada na Academia por discussões da eternidade do mundo, distinguese de um lado pela difusão de interpretações heterodoxas do cristianismo cuja extensão, variedade e
multiplicação tem paralelo escasso na Idade Média e, de outro, pelo extraordinário desenvolvimento
do Culto Mariano.
Os Rosários de Maria_Tais fenômenos, por distintos que sejam, podem ser percebidos no mesmo substrato de inquietação não profana que reemerge, tingido por particularidades nas tensões
temporais entre os reinos e o papado. Se, por um lado, a discussão escolástica do período relacionase diretamente com a situação de maior familiaridade dos teólogos com os textos de Aristóteles e
74
apud BERNARD, Jean-Vincent, ‘Le Triple Rosaire augmenté : sçavoir, le grand rosaire, le perpétuel et le quotidien’
Toulouse:Bosc, 1676: pp v-x - OnLine:
://books.google.com.br/books/about/Le_Triple_Rosaire_augmenté_sçavoir_le.html?id=AJFRfiK12dIC&redir_esc=y
_ Para uma discussão mais detalhada da origem do rosário remete-se à pesquisa de F. Denys MÉZARD, “Étude sur les
Origines du Rosaire” in Bibliotheque de St Libère 2008 [1901] OnLine://www.liberius.net/
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seus comentadores gregos, árabes e judeus através das traduções latinas75, por outro lado o desenvolvimento do Culto a Maria indica uma feminilização do sentimento religioso, um tempo íntimo
relacionado com “um conjunto maior de transformações, do qual faziam parte a revalorização social
da mulher e a redescoberta da Encarnação como ponto de inflexão da História”, lembra-nos Hilário
Franco Júnior (1996:54). Finalmente, a proliferação de heresias caracterizou-se “pelo seu cunho popular assentado sobre uma nova visão ética da instituição eclesiástica e do cristianismo como religião vigente na sociedade ocidental”, nos diz Nachman Falbel (1976:13). Dentre os movimentos heréticos, o cátaro foi o mais expressivo, e nele destaca-se a participação feminina.
Embora a heresia cátara não tenha repercutido de forma direta em Portugal, o apelo de idéias que
exteriormente se assemelham - não idênticas mas com o mesmo eco, abrigo, ressonância e lastro não era desconhecido na Península, especialmente nas regiões ao norte de Portugal e na Galícia que
guardavam, dormentes, marcas profundas das acusações de gnosticismo e maniqueísmo lançadas à
eclosão do fenômeno priscilianista no século IV76 , rastreado em suas ramificações cultas até a cidade de Bordéus (Burdigala), na região da Gália proto-occitânica. Ainda que reprimido, o priscilia-
75
É de especial interesse para o presente estudo o Livro VIII da Física de Aristóteles (op cit in FI VIII, 1908) em que o
Estagirita discute a natureza do tempo, a eternidade e o movimento, cuja leitura no Ocidente dos séculos XII e XIII, em
contradistincão com a doutrina da Criação da Igreja, foi motivo de tensão e diversas interpretações originais. Simultaneamente ao ressurgimento da imagem da ‘Roda da Fortuna’, a leitura de tradição neo-platônica de Aristóteles transmitida na transição da Antiguidade para a Idade Média por Boécio foi retomada, principalmente pelos teólogos dominicanos e franciscanos. Em ‘A Consolação da Filosofia’, Boécio (1998 op cit) havia mostrado a diferença entre os modos de
conhecimento de Deus e dos homens a partir da distinção entre tempo (tempus) e eternidade (aeternitas); constituindose esta última em ‘puro presente’ e no ‘agora divino’; definindo-se pela perfeita, total e imediata possessão de uma vida
sem fim, fonte do tempo mas não o tempo em si; contrastando-se com o conceito de perpetuidade (perpetuitas, sempiternitas) atributo de infinitude do mundo, sem começo nem fim no tempo, fluindo sucessivamente no agora, mas não
presente permanente e identidade constante, atributos exclusivos de Deus (apud Encyclopedia of time, op cit in ET_,
2009:101). Entre os seguidores dessa tendência - para a qual o mundo é perpétuo mas não eterno uma vez que a sua
infinitude é imagem daquela eternidade - destacam-se os dominicanos St. Alberto Magno de Colônia (ca 1195-1280) e
São Tomás de Aquino (1224-1274), discípulo do primeiro. Outra corrente de pensamento, à qual alguns mas nem todos
os escolásticos se filiam, é atribuida à influência de Sto. Agostinho de Hipona desde o século V (in Confissões, op cit),
para quem a percepção de tempo é uma experiência subjetiva e finita pois extensão da mente humana e da sua habilidade em compreender os eventos sucessivos (ao contrário da corrente anterior, que admite uma existência objetiva do
tempo, fora da mente humana). Dentre os seguidores da linha agostiniana destacam-se os franciscanos, particularmente
Robert Grosseteste (1168-1253) considerado um dos principais elos entre o pensamento do século XII e a teologia
escolástica. Sem recusar o desafio que as obras aristotélicas traduzidas do grego, do árabe e do hebraico trouxeram para
os da sua geração, ele manteve-se firme na tradição anterior, criticando a doutrina aristotélica da eternidade (apud DALES, R. “Robert Grosseteste’s Place in Medieval Discussions of the Eternity of the World” in Speculum 61/3, pp 544563, Medieval Academy of America, 1986). A posição de outro franciscano, São Boaventura de Bagnoregio (12211274) pode ser percebida a partir de uma combinação de elementos dos comentários do também franciscano Alexander
de Hales (ca 1185-1245) e Grosseteste. Não sendo objeto do presente estudo uma discussão detalhada desses desenvolvimentos remete-se às obras de Richard DALES (ver Bibliografia) para aprofundamento da questão.
76
O priscilianismo foi caracterizado como um movimento ascético que se aproxima do dualismo maniqueu pela contraposição da carne e do espírito, a afirmação da natureza única de Deus em confronto com a visão trinitária e elementos
de insubordinação perante a hierarquia eclesiástica no processo de institucionalização da Igreja. Aos seus seguidores
também se imputava a prática do vegetarianismo, a condenação do matrimônio e da procriação. Num dos poucos textos
que sobreviveram à ‘limpeza de memória’ promovida nos séculos seguintes, destaca-se o do cronista cristão Sulpicio
Severo (ca. 363 - 425) natural da Aquitânia. Apesar de contrário a Prisciliano, reconhece-o como articulado, leitor voraz, inteligente mas corrompido pelo estudo que lhe permitiu contato com as teorias do gnóstico Marcos de Menfis
(Chron., II, 46,6) através de certa nobre chamada Ágape e de um retórico de nome Helpidio (Chron., II, 46,2-3). Embora essas indicações sejam vagas, sabe-se que em determinada época Prisciliano esteve na Aquitânia, onde foi aluno dos
famosos retóricos da Escola de Bordéus, cuja ênfase na delicadeza e no virtuosismo literário sobrevivera à decadência
do Império Romano, garantindo aos alunos sucesso nas carreiras da oratória. Certo é que, tempos depois, Eucrócia e
Prócula, viúva e filha de um desses retóricos, Attius Tiro Delphidius, tornaram-se priscilianistas, defenderam e abrigaram Prisciliano no auge da polêmica e foram executadas em função da crença. Para aprofundamento da questão remetese, entre outros, ao clássico de Marcelino MENÉNDEZ PELAYO, Historia de los heterodoxos Españoles (1992, op cit)
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nismo sobreviveu a luz do sol pelo menos nos dois séculos seguintes à execução em 385 de Prisciliano, consagrado bispo de Ávila no decorrer da polêmica em torno das suas idéias.
A nomeação episcopal de Prisciliano, apoiada pela parcela do clero que lhe foi favorável não conseguiu salvar-lhe a vida, embora em sua defesa tenha argumentado, entre outros, o bispo Ambrosio
de Milão. Estopim de um movimento que atingiu todas as camadas da sociedade, com notável adesão de mulheres, Prisciliano tornou-se o primeiro cristão condenado à morte por heresia no Ocidente cristão e seus textos sumiram por completo ou quase dos arquivos.
No século XIII, apesar da repressão violenta, as heresias cátaras permanecem melhor documentadas. Sabe-se inclusive dos rituais praticados no interior dos grupos, em que se destaca o ‘Consolamentum’ ou ‘Batismo do Fogo e do Ar’. Através desse rito, resgatado pelos cátaros dos rituais do
cristianismo primitivo praticado no Oriente, acreditava-se receber a consolação do Paracleto ou Espírito Santo que transformava um simples Crente (Credente) em Eleito/a (Perfectum/a) - não exatamente um sacerdote, mas um ser integral, perfeito, livre dos pecados que levaram Adão e Eva à
queda do Paraíso. Sòmente os Perfecti podiam administrar o Consolamentum. Cada novo Perfectum/a tornava-se o elo numa corrente unindo-o/a aos antecessores e religando-o, na outra ponta, aos
Apóstolos e ao próprio Cristo. Através do poder de inversão que se atribuía ao rito, o crente tornava-se uma espécie de anjo encarnado, separado do céu apenas pelo tênue véu da morte77 .
O Ramo da Consolação _O ritual era simples, quase tão simples quanto o ramo da Consolação
que Brajlides/Baliides, a amiga de Deus em ‘O Conto de Amaro’, entrega a Leomites. Realizava-se
pela imposição das mãos, sempre em época posterior ao ‘Batismo da Água e do Sal’ comum a todos
os católicos, e em duas ocasiões: quando o fiel, depois de um longo período de provação e jejuns
rigorosíssimos, renunciava definitivamente às coisas deste mundo e entrava para as Ordens Cátaras
(Batismo dos Perfeitos) e quando um crente estava próximo à morte, conferindo-lhe a esperança de
que seus pecados seriam perdoados e ele vestiria novamente a túnica da imortalidade perdida (Batismo dos Consolados).
A sugestão de proximidade entre o Conto que nos ocupa e o antigo ritual do Batismo pelo Espírito
Santo no contexto dos movimentos populares heréticos dos séculos XI a XIII, vem da passagem em
que Braliide/Brajlides, “dona de muy grande castidade e amiga de Deus e serva da Virge[~] Sancta
Maria”, consola Leomites. O texto nos fala das características dessa intermediadora:
E avia quare[~]ta e dous annos que andava pellos desertos fazendo muy estranha penite[~]cia. E esta
dona viia muy grandes visoões per miutas vezes e[~] aquell deserto e al nõ comya se nõ das hervas e
da s chorumes das flores e destas cousas a taaes que nace[~] nas mõtanhas. E sabede que aquesta dona
mostrou Deus o parayso terreal (...). E esta dona salvou este Leomites, servo de Deus, e disse-lhe:
“Saude hajas e salvo sejas daquel senhor que te pode salvar”
E o Conto prossegue, dizendo-nos que Leomites, ao ouvir tais palavras, cai de joelhos e indaga:
“Senhora, que[~] és?”. E diante da resposta - “Eu som hua molher a que Deus fez e faz muito bem e
nõ lho sei servir”, de nome Baliides, ela diz, “que fuy natural de monte Sinay” - Leomites solta
grandes “braados: “Oo senhora, graças e merçees sejam dadas aaquell que me fez, pois te oje vejo
ante que saya deste mu[~]do, que muitas vezes te desejey de veer e nu[~]ca te vy se no agora”.
De acordo com Toni Bräm, autor de uma monografia que contraria a opinião dos occitanistas
Déodat Roché e René Nelli sobre a origem cátara de uma versão occitânica do “Barlaam e Jo-
77
Para aprofundamento da questão remete-se a Christine THOUZELLIER (1977) Rituel Cathare, Paris: Édit. du Cerf
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saphat”78 - narrativa que vamos encontrar, em versão diferenciada atribuida à recolha mística do
monge cisterciense Hilário da Lourinhã, na mesma coleção que inclui o “Conto de Amaro”79- há
cinco conceitos importantes da fé católica para avaliar se a maneira como aparecem num texto orienta-se pela ortodoxia católica ou pelo credo cátaro: a Trindade, o Batismo, a Virgem Maria, a Cruz,
os Olhos Espirituais.
A partir desses conceitos, apoiados em grande parte no depoimento de inquisidores do Languedoc
comentados por Monique Bonnier Pitts (1989: pp 235-253), descarta-se um parentesco direto com
o catarismo não porque inexistam ambiguidades nos elementos em comum mas justamente porque a
presença ambígua está em toda a parte.
Heterodoxias _Considerando os ‘olhos espirituais’, por exemplo - os huelhs espiritals de que fala
o texto do Barlaam occitano (Pitts 1989:246) e cuja idéia perpassa o ‘Conto de Amaro’, é preciso
reconhecer que esse é um objetivo de toda religião que implica em contemplação, em revelação e
em iluminação, inclusive a fé católica; que expressões como “amiga de Deus”, “santo homem” e
gestos como o “adoratio cátaro” (prostrar-se, ajoelhar-se diante dos Perfecti, como faz Leomites
diante de Braliides/ Vajlides) não eram de uso exclusivo da ideologia mas sinal de reverência amplamente praticado; que os hábitos de Braliides/ Valides/ Balides - tão frugais que ela alimentava-se
de ervas e do chorume das flores, como um anjo ou como uma Perfecta - eram comuns na vida ascética e entre os santos eremitas que inicialmente povoaram as lonjuras da cristandade; que a afinidade de comportamento de Brajlides, “serva da Virge[~] Sancta Maria” com o de uma apóstola da
Igreja, alegoria amplamente utilizada pelos Perfecti80 para definir sua irmandade feminina, não é
78Referencia
a um manuscrito do século XIV proveniente de Albi, no Languedoc (BN fr. 1049) comentado por Déodat
ROCHÉ no ensaio “A propos de Barlaam et Josaphat, Mission future de la Russie, Mission actuelle de l'Occitanie” (Cahiers d'Etudes cathares III, 1951: 38-49) e por René LAVAUD & René NELLI na obra “Les troubadours : Jaufré, Flamenca, Barlaam et Josaphat” (Paris: Desclée de Brouwer /Bibliothèque européenne, 1960:1227pp). Trata-se de uma
entre as muitas versões cristianizadas da história da conversão de Sidarta Gautama, o Buda. Popularíssimo na Idade
Média, o texto de “Barlaam e Josaphat” conheceu uma migração comparável àquela de “Kalila e Dimna” e outras histórias da milenar sabedoria indiana que foram traduzidas do árabe via o pehlevi e disseminadas no Ocidente a partir do
século VII. Nessa trajetória, que comportou a tradução para diversas línguas, o texto acumulou, além da herança budista, traços da sua passagem pelo zoroastrismo, islamismo, maniqueismo e gnosticismo no Oriente. Cristianizada, a lenda
foi incluida na “Legenda Aurea” de Jacobus de Voragine (sec XIII), dando origem ao culto dos santos Barlaão e Josafate, comemorados na Igreja Ortodoxa no dia 26 de Agosto.
79
“Vida do honrrado Iffante Josaphat, filho de elrrey Avenir”, manuscrito encadernado no Códice de n.o 266 do Mosteiro de Alcobaça, reclassificado como ALC. 462 na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa; ff. 1r-42r. Nessa versão,
a história foi reduzida aos episódios que tratam da conversão de Josafá. O texto aparece também no Ho Flos Sanctorum
de 1513, analisado por Maria Clara de Almeida Lucas (1986:23-25)
80
Embora não seja possível falar dos cátaros medievais como entidade única (além da divisão em simples crentes e
Puros os grupos variaram entre si no tempo e no espaço) de modo geral eles não aceitaram o mistério da Encarnação de
Cristo na Santa Virgem, acreditando que Ele desceu como Espírito Santo, dando a Palavra Divina aos apóstolos no Pentecostes. Nessa leitura - que exclui as interpretações posteriores dos Santos Padres das Igrejas Grega e Latina e as resoluções tomadas nos Concílios - o mistério da Encarnação Divina traduz-se como uma alegoria da Igreja dos primeiros
tempos, essa sim percebida como a Virgem encarnada pelo Espírito de Cristo, que se manifestaria a qualquer momento
nas palavras e nos exemplos dos “puros”. Segundo o testemunho de Pierre Clergué, que se disse doutrinado em Montaillou na região do Languedoc em fins do sec XIII pelos irmãos Authié, ambos Perfecti do sul da França que haviam
retornado do refúgio na Lombardia:“Les bons chrétiens ne croient pas que le Christ ait reçu une chair humaine de la
Sainte Vierge, ni qu'Il soit descendu en Elle pour recevoir une chair humaine. Car avant que Marie fut née, le Christ
était, et de toute éternité. Mais il s'adombra seulement en sainte Marie, ne recevant rien d'elle. Expliquant ce mot d'adombration, ce prêtre lui dit que de même qu'un homme qui se trouve dans un tonneau est à l'ombre de ce tonneau sans
en rien recevoir mais est seulement contenu dedans, de même le Christ habita dans la Vierge Marie, sans rien prendre
d'elle, et fut seulement en elle comme le contenu dans le contenant”(in “Registre d'inquisition de Jacques Fournier
(evêque de Pamiers), 1318-1325” a partir do MS 4030 da Biblioteca Vaticana, traduzido e comentado por Jean DUVERNOY/CNRS, Toulouse:Privat, 1978: 271).
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conclusiva de heresia; considerando, enfim, que a “estranha penite[~]cia” que Bajlides/Braliides
andava fazendo pelos desertos remete ao culto de Maria Madalena pecadora redimida em versão no
Languedoc 81 , cujos ecos são reconhecidos num relato popular entre a cristandade do Oriente no
século IX, em que uma prostituta, Maria do Egito, vaga 40 anos no deserto para se penitenciar de
luxúrias cometidas - narrativa essa também presente no códice alcobacense que reúne a coletânea
mística atribuida a frei Hilario da Lourinhã - é preciso reconhecer que essas mesmas tradições permaneceram em suspensão na religiosidade ibérica assinalando a persistência, em outros tempos e
outros espaços, de correntes espirituais e apostólicas verificáveis nos primeiros séculos do cristianismo, lado a lado com as que iam se formando.
Dessas temporalidades paralelas indaga-se, então, do culto a Maria de enorme apelo no cenário
ibérico. Elaborado desde os primeiros séculos no Oriente como a grande mediatrix do mundo cristão82 na configuração do Corpo Místico 83, o Culto Mariano permaneceu como principio feminino à
deriva no Ocidente, e só foi conhecer elaboração semelhante quando ressurge revigorado na intensa
devoção do cisterciense Bernardo de Clairvaux (1091-1153), que se identificava como “servo da
Mãe Divina”84 e em cuja doutrina os olhos espirituais podiam ser abertos pela meditação nos mistérios da Mãe Santíssima. Pelo que, o desenvolvimento do Culto Mariano e a eclosão de heresias nos
séculos XI-XIII são percebidas como duas faces do mesmo fenômeno, uma carência espiritual
imensa e um desejo igual que antes, ambiguidades que à época de São Bernardo cercavam a exterioridade da fé e o princípio feminino.
81
De início, as versões medievais do culto de Maria Madalena no Ocidente tomaram como única, ao contrário da Igreja
Oriental, várias figuras femininas relacionadas a Jesus nas Sagradas Escrituras: Maria, irmã de Marta e de Lázaro de
Betânia (João 11:1-2); a discípula amada que esteve ao lado de Maria, Mãe Santíssima, aos pés da Cruz no Calvário
(João 19: 25) e anunciou aos apóstolos a ressurreição de Cristo (João, 20:18 e Mateus 28:1-7); a adúltera que Jesus perdoou (João, 8:9-11); a pecadora que lavou com suas lágrimas os pés do Senhor e enxugou-os com seus cabelos (Lucas
7: 36-50) e uma das mulheres que seguiu-O, depois que o Salvador expulsou os sete demônios que habitavam-na (Lucas
8:1-2). Essas versões são referenciadas desde o século VI em leituras do papa S. Gregório Magno (Homilias XXV e
XXXIII, datada de 591), mencionadas no Martirológio do Venerável Beda (ca 720), veneradas em relíquias no monásterio de Chelles na França, e louvadas num sermão atribuído a Odon de Cluny em meados do sec X mas possivelmente
composto em data anterior (ca 860, segundo Dominique IOGNA-PRATT em ‘La Madeleine du Sermo in veneratione
sanctae Mariae Magdalenae attribué à Odon de Cluny’ in Mélanges de l'école française de Rome, 1992, Volume 104,
número 104-1, pp. 37-70 ao qual se remete para detalhes da questão). No sul da França, a intensa devoção a Maria Madalena adquiriu características próprias desenvolvidas na oralidade e na escrita em torno de quatro eixos principais que,
na sequência, formaram uma única narrativa: 1) Vita Eremítica, que remete à narrativa de Santa Maria Egipcíaca 2) Vita
Apostólica, corrente a partir do século X, cujo centro é o trabalho evangélico dos três irmãos da Betânia, Marta, Lazaro
e Maria Madalena, na região da Camargue, na França, onde teriam desembarcado para fugir das perseguições romanas.
3) Narrativa do século XI que explica como, 200 anos antes, o corpo de Sta Maria Madalena foi tresladado da Provence
para a Abadia de Vézelay na Borgonha, local escolhido por São Bernardo para pregar a Segunda Cruzada, em 1146 e
onde o culto, estabelecido nessa época, tornou-se especialmente poderoso; 4) Narrativa do século XII que conta como
as relíquias de Sta Maria Madalena voltaram para a gruta de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume (occitano: Sant Maissemin de la Santa Bauma), local onde ela passou o final da vida, reclusa e em oração. Construiu-se ali uma basílica, colocada sob a guarda dos dominicanos e Sta Madalena tornou-se patrona da Ordem. Para aprofundamento da questão remete-se à detalhada pesquisa de Victor SAXER, ‘Le Culte de Maria Madeleine en Occident des Origines à la Fin du
Moyen Age, 2 vols. Paris: Libr. Clavreuil, 1959.
82
Vamos encontrá-lo, por exemplo, numa oração de St Efrém da Síria (ca 306-376) em que ele canta "após o mediador,
vós (Maria) sois a mediatrix do mundo inteiro” (St Ephraem, Oratio IV Ad Deiparam apud Mark MIRAVALLE, STD,
Introduction to Mary: the heart of Marian Doctrine and Devotion, Goleta, CA: Queenship Publishing, 2006 [1992]: pp
102-104). Para Sto. Efrém, autor dos belíssimos Hinos do Paraíso, assim como não há redenção sem Jesus, não há a
encarnação sem Maria.
83
84
São Paulo (I Coríntios 12:12-24). Também Romanos 12:5; Efésios 3:6 e 5:23; Colossenses 1:18 e 1:24
apud Mark MIRAVALLE ‘ Introduction to Mary: The Heart of Marian Doctrine and Devotion, Goleta, CA/Queenship
Publishing, 2006:155. Uma profunda devoção à Virgem permeia os sermões, cânticos, cartas e tratados de São
Bernardo, cuja obra completa está OnLine in ://www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/bernard/index.htm
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Se, em Portugal, o alarme da Inquisição não soou oficialmente antes do século XIV85 foi porque
as energias do clero e da nobreza estavam canalizadas na direção do inimigo externo e a inquietação
religiosa, tensionada no espaço do sagrado, não se contraiu como um núcleo organizado capaz de
formulação de uma ideologia contrária à dominante, à exemplo das cátaras. Ao contrário, ela expandiu-se na formatação das fronteiras do Reino, ao lado de uma idéia de poder central. Nesse sentido, a atuação das Ordens Monásticas foi decisiva e a intuição real, decidida. O culto à Virgem,
profundamente arraigado na Península, foi reconhecido em Portugal junto com a reivindicação de
independência do Condado Portucalense, feudo de Afonso Henriques da Casa de Borgonha e vassalo do Reino de Leão, auto-proclamado rex contra os desígnios da mãe e reconhecido como tal pelo
papa Alexandre III em 1179. Do início, a nação como um todo foi colocada sob a proteção da Mãe
Santíssima, intensamente evocada nas manifestações populares como participante do corpus sagrado, embora nem sempre visualizada inteiramente singular na mediação redentora. Os monges de
Citeaux, vendo a si mesmos junto à Virgem, sob Manto que a cobria, e ao mesmo tempo profundamente identificados com o Reino desde a sua fundação, de certo modo incluiram os portugueses sob
a mesma percepção de véu sagrado. Portugal construiu-se sob a proteção mariana86.
Selo Cisterciense
Marca da identidade coletiva da Congregação utilizada pelo colegiado definitório da Ordem (primeira metade séc XIV).
Na Idade Média os selos constituiram a única imagem auto-representativa circulante de pessoa física ou jurídica,
uma maneira de proclamar aos quatro ventos “eis quem sou”, nos diz Michel Pastoureau87.
No caso das Ordens Monásticas era também a maneira de veicular a voz do espaço interno para fora dos muros dos
conventos. Naquele período, o selo cisterciense foi utilizado nas comunicações
enviadas pela casa-mãe, Citeaux, para as casas-filiadas, a exemplo de Alcobaça em Portugal.
85
A tese de que o Portugal cristão só conheceu a Inquisição ocidental tardiamente fundamenta-se numa bula do papa
Gregório XI a Agapito Colonna, bispo de Lisboa, datada de 1376. À falta de inquisidores, o papa encarregou o bispo de
escolher um franciscano para a função, o qual, revestido de todos os poderes que o papa lhe conferia, verificasse a existência das heresias e zelosamente as perseguisse e extirpasse. Frei Martinho Vasques foi o escolhido, “e é este o primeiro de quem consta que fosse, determinada e especialmente, revestido desse cargo”, nos diz Alexandre Herculano. Na
sequência, foram nomeados o dominicano Frei Vicente de Lisboa (1399) e o franciscano Frei Afonso de Alprão (1413).
A ação desses primeiros inquisidores parece ter sido, ao menos em relação aos cristãos, muito limitada.
86
87
Como referência à questão, remete-se a Moisés ESPIRITO SANTO (2004:87 e sgts)
M. PASTOUREAU (1986) Figures et couleurs, étude sur la symbolique et la sensibilité médiévales, Paris:Le Léopard
d’Or, p. 76 apud Dominique DONADIEU-RIGAUT “Les ordres religieux et le manteau de Marie” in La protection spirituelle au Moyen Âge, Cahiers de Recherches Médiévales et Humanistes (CRMH) 8 | 2001: pp. 107-134-xiv OnLIne:
://crm.revues.org/391
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Capitular do Salmo 52, Aparição de Cristo a Maria
Madalena (I Beaune, Bibl. Mun., ms. 39, f. 57)
Imagem barroca do padroeiro de São Gonçalo do Rio Abaixo (MG, Br)
atribuída ao santeiro português Francisco Vieira Servas (1720–1811).
Os atributos de São Gonçalo, festeiro e casamenteiro (imagem à direita), conhecido por sua profunda devoção a Maria
e defesa do amor nos laços sagrados do matrimônio 88,
transmitiram-se às colônias principalmente através de emigrantes do norte de Portugal e das Ordens Predicantes
que,
concentraram sua atuação no Rosário.
88
Nesse sentido, é sugestiva a origem atribuida ao ritual da ‘Dança de São Gonçalo’ celebrado em Portugal desde o
século XIII e no Brasil a partir do XVIII: conta-se que São Gonçalo para reabilitar as prostitutas, vestia-se de mulher e
dançava e cantava com elas a noite toda, num ritmo que ainda hoje leva à exaustão dos integrantes; por entender que as
participantes dos festejos de sábado na igreja, não cairiam em tentação no domingo. O documento mais antigo que temos de São Gonçalo é o ‘Ho flos sanctõrum em lingoajem portugues’ de 1513 (BNL Ans. 443), nos diz Maria Clara de
ALMEIDA LUCAS (1984:109-116). Nele, Gonçalo do Amarante (ca 1186-1259, beatificado em 1560) - um dos dois
santos ‘extravagantes’ portugueses (não incorporados às coleções canônicas) que receberam verbete no final do documento (o outro é Sta Iria, padroeira de Nabância na região de Tomar) - é descrito como um jovem de família rica ordenado sacerdote em Braga, que durante 14 anos ausentou-se em peregrinação à Palestina. De volta à terra não é reconhecido pela família e pelo bispo. Retirando-se para o interior, constrói um oratório dedicado à Nossa Senhora de Assunção
nos arredores da hoje cidade de Amarante, ao norte de Portugal. Numa visão, a Virgem aconselha que ele entre para a
Ordem religiosa que inicia o Oficio Divino pela récita do Rosário que, na sequência virá a ser a sua (Dominicana). De
volta à ermida, constrói com os homens uma ponte sobre o perigoso rio Tâmega, desenvolve intenso trabalho apostólico
com as mulheres e, na hora da morte é a própria Virgem que vem recebe-lo com um cortejo de anjos.
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Pastores _ Nos séculos XII e XIII não se registraram em Portugal varreduras semelhantes às que
ocorreram em terras sob o domínio de Aragão, notadamente nos condados da Catalunha89 e no Reino de Valência90 , onde se refugiaram evadidos da caça aos cátaros do Languedoc, através das pouco
conhecidas rotas da transumância 91 - possivelmente usadas por trovadores e jograis desprovidos de
senhores, ou pelos próprios senhores despojados dos senhorios.
Tais rotas de pastoreio, que continuadamente buscaram paisagens mais e mais remotas afastavamse, por força de ofício, do peso demográfico das cidades encasteladas, suas povoações, seus campos
de cultivo e suas vias de comunicação, formando bolsões de ocupação rala e descontínua desenhados em linhas quase imperceptíveis nos sertões da cristandade ibérica - eventualmente percorridos
por eremitas, penitentes, sonhadores e fugitivos, companheiros nessa forma de marginalidade.
Na Idade Média o gado transumante era basicamente ovino e caprino; os de outro tipo, destinado
ao abate e à produção de leite, permanecia estante nos pastos próximos ao urbano. Na sua mobilidade, os pastores de ovelhas mantiveram estreitos laços com um passado remoto ecoando, naquele
jeito quase nômade de existir, traços característicos dos berços no Oriente e também no norte da
África, mais vizinho da memória92 . É conhecida, por exemplo, a proximidade entre os hábitos dos
89
Depois da morte de Pedro II de Aragão na Batalha de Muret contra os cruzados, o poderio da França se estendeu às
regiões que anteriormente estiveram sob a Coroa de Aragão, notadamente Toulouse, uma vez que os condados da região
histórica da Catalunha, a nordeste da Peninsula Ibérica, eram mais difíceis de alcançar e manter. Finalmente, pelo Tratado de Corbeil (1258), Jaime I de Aragão, filho e herdeiro de Pedro II, abriu mão de seus direitos em Montpellier e nos
feudos do conde de Toulouse (Languedoc,Carcassonne, Razès, Béziers, Albi etc) em troca do reconhecimento francês
dos seus direitos na Catalunha (Barcelona, Urgel, Bésalu, Rossilhão, Ampurias, Cerdanha, Conflent, Girona e Aussona).
90
A pluralidade de fé e o multiculturalismo, marcas distintivas do Reino cristão de Valência - formado pela população
mudejar e muçulmana da Taifa de Balansiya conquistada por Jaime I (1208-1276), acrescida no repovoamento por elementos judeus e cristãos provenientes da Catalunha e de Aragão - foram levadas em consideração inicial por esse rei
que, contrariando parte de seus nobres, proclamou em 1239 os Foros de Valência (Els Furs), pelo qual os territórios
conquistados passaram a fazer parte da Coroa de Aragão, embora com uma administração própria.
91
Há uma relação profunda entre o catarismo e o pastoreio, através da atividade da tecelagem exercida por grande parte
dos fiéis no Languedoc. Os rebanhos de ovelhas que forneciam a lã para os panos das regiões sob domínio da Coroa de
Aragão no Languedoc e além eram criadas de dois modos: em regime familiar, isto é, nas pastagens próximas às cidadezinhas e vilas, ou em transumância, através do deslocamento sazonal para locais que ofereciam melhores condições
durante aquela parte do ano - o que significava o deslocamento a longa distância não apenas de grandes rebanhos, pastores e tropeiros mas, eventualmente, de populações inteiras - o que faz supor um íntimo conhecimento da paisagem,
suas passagens e abrigos, segredos seculares mantidos em família compondo uma geografia paralela, livre das fronteiras
artificiais. Através dos Registros de Jacques Fournier (op cit), que dão conta do desmantelamento dos últimos focos de
resistência cátara no início do século XIV, ficamos sabendo que ele fez questão de ouvir alguns fugitivos, cujo paradeiro
havia sido detectado na Catalunha e em Valência. Entre esses, Pierre e Jean Maury, pastores da transumância e filhos de
um tecelão de Montaillou acusado de catarismo. Os irmãos Maury foram presos no Reino de Aragão: Jean em Castelldans (Lérida) e Pierre em Flix (Tortosa) em 1323. Outro pastor, Guilhem Maurs, cuja mãe Mengarde teve a língua cortada, foi preso em Puigcerdà (Cerdania, próximo à Girona) e Guilhem Bayle, numa peregrinação de pastores à capela de
Sta Suzana, nos Pirineus - todos os quatro ligados ao também pastor Guilhem Bélibaste (capturado em 1321), considerado o último ‘Perfectum’. Pelo relato dos detidos, principalmente Pierre Maury, foi possível reconstituir os hábitos,
costumes e alguns caminhos percorridos pela diáspora cátara (trajeto de Bélibaste), entre os quais o que atravessa o
condado de Ampurias na Catalunha, passa pelas comunidades de Morella e San Mateo no Reino de Valencia - de onde
se exportava lã para os teares italianos - e chegam até Berga, atual província de Barcelona. Para aprofundamento da
questão remete-se ao estudo de Anne BRENON “Inquisition à Montailloll. Guillelme Maury et Pèire Maury, deux
croyants cathares devant l 'Histoire’(Cahors: L'Hydre 2004).
92
É sugestivo o fato de algumas famílias ligadas ao pastoreio na região do Languedoc utilizarem o patronímico Maur,
Maurus, Maure, Maury, Mory desde a época romana. De início designava, ao que parece, a proveniência de lugares
sombrios, pântanos e florestas (in ‘La Gaude au Fil des Jours ‘ de Benvenuto ALEX,1992, Paris: Serre). A partir da presença sarracena nos séculos IX e X, a designação teria se estendido às populações cujos traços refletiram a ocupação.
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pastores peninsulares e os dos povos bérberes, atestada não só pela semelhança de rebanhos 93. No
interior dessas culturas, identificadas nas vilas por longas ausências periódicas e revoadas do sertão
para o urbano em épocas de Festas, o ritmo é necessariamente lento e profundamente ligado ao ambiente, os hábitos são simples, econômicos, o trato é rude e solidário aos ciclos da natureza, e a
crença nela permanece. As fronteiras são mais fluidas não só no espaço, mas também no tempo.
Em Portugal a transumância foi favorecida pela oposição entre as terras altas do Norte e do interior e as do Sul e do litoral, mais baixas - ‘deságue’ natural de migrações sucessivas, não necessariamente de populações inteiras, mas também de grupos e indivíduos - que se prolongou até épocas
tardias. No princípio do inverno os rebanhos serranos, vindos principalmente da Serra da Estrela, de
Castela e da Galícia, acompanhando o entre-rios do Tejo e do Guadiana, abandonavam suas pastagens de verão e iniciavam uma longa marcha em várias direções, buscando principalmente o Alentejo, o Campo de Ourique e Idanha, tradicionais locais de invernada segundo os foros e forais do
século XII. Os campos de Soria e Castela na Espanha, também foram frequentados por rebanhos
portugueses 94.
Essa liberdade do pastor em relação ao institucional de fronteira tem tradição na literatura sacra e
profana, em que ele é percebido como uma espécie de ponte terrena com a qual o divino se comunica para difundir as mensagens. Quase sempre miseráveis pela recusa sistemática de sedenterização,
os pastores dos séculos XII e XIII no Ocidente, à semelhança de seus antepassados, prezavam o direito de ir e vir duramente conquistado na intimidade com a terra, a grande mãe de muitos nomes.
Nessa espécie de nobreza, que se curva mas escapa, eles se impõem no imaginário como anfitriões
dos anjos mensageiros - e são reconhecidos como tal no Novo Testamento. Em Belém, naquela gruta que foi fuga de Maria na hora da luz
(...) havia naquela mesma região pastores que estavam no campo, e guardavam durante as vigílias da
noite o seu rebanho. E um anjo do Senhor apareceu-lhes, e a glória do Senhor os cercou de resplendor;
pelo que se encheram de grande temor. O anjo, porém, lhes disse: Não temais, porquanto vos trago
novas de grande alegria que o será para todo o povo: É que vos nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos será por sinal: Achareis um menino envolto em faixas, e deitado em uma manjedoura (Lucas, 2:8-12)
Anunciação aos Pastores, escultura em pedra de um capitel em Chauvigny (Poitou, Fr, sec XI)
93
Para aprofundamento da questão, remete-se às considerações da prof. Julieta ARAÚJO no artigo ‘Relações de Fronteira na Idade Média: a Transumância’ in Revista da Fac de Letras/Historia II, série 15, Porto: Univ do Porto, 1998
[1968]:pp 232-233 ---- OnLine in: //ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id04id18id2107&sum=sim
94apud
Maria José LAGOS TRINDADE (1981) ‘Alguns Problemas do Pastoreio, em Portugal, nos séculos XV e XVI’
in Col.Tempo /Historia, Lisboa:Centro de Hist da Univ de Lisboa, vol I, 1965: pp 115-118
OnLine in ://ww3.fl.ul.pt/unidades/centros/c_historia/DoTempo%20e%20da%20Historia%20a.html
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Uma Risca Prateada - Fora das montanhas, os portugueses têm-se na conta justa de “voz da terra
ansiando pelo mar”95 . Pastores e marinheiros sabem que as visões noturnas no rompimento da aurora são reais à luz do sol. É a direção do levante que guia o Amaro do Conto, pois ele navega “contra
hu nace o sol”96, no lusco-fusco.
Com ampla costa e estuários de rio em que o peixe é fácil, o território onde é hoje Portugal favoreceu a intimidade com o mar, seu próximo e seu distante. Desde a pré-história formou-se ali uma
importante zona de navegação marítima. As costas de ria da Galicia irão constituir pontos de apoio
e ancoragem indispensável aos marinheiros que transitaram além dos seus mares conhecidos 97.
O Galego-Português_ No entremeio desses polos ficava a província a que os romanos chamaram
Gallaecia. No início da Idade Média ela compreendia os territórios a norte e noroeste da Hispania
(correspondendo às atuais províncias espanholas de Asturias, Leão e Galicia, e o norte de Portugal).
No canto noroeste da Península, abrangendo aquele antigo campo de pouso marinheiro, por volta do
século IX já se falava um vernáculo diferenciado, o Galego-Português.
Norte e Noroeste da Peninsula Ibérica: Gallaecia no final do século IX
Incluindo a diocese de Braga, fundada no sec III: sé dos primeiros santos portugueses
e região onde o priscilianismo prolongou-se
No processo de Reconquista a região noroeste será dividida em duas, uma ao norte e a outra ao sul do rio Minho:
início da desagregação do bloco político-cultural galaico
95
in Fernando Pessoa, Mensagem, II - Os Castelos / Dom Dinis (trecho no Anexo)
96
Na interpretação de Elsa Branco da Silva (op cit, p 246), a expressão “contra hu nace o sol’ traduz-se por “ir de encontro ao nascer do sol”, rumo ao Oriente, leste.
97
apud Barry CUNLIFFE “Facing the Ocean - The Atlantic and Its Peoples/ 8000 BC - AD 1500”, Oxford:Oxford University Press, 2001: 34-35.
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Visão de Mundo: mapa do Beatus de Osma,
feito na província de Sória, Castela (1086). Detalhe mostra as regiões de Asturias (norte) e Gallaecia (noroeste)
Reconquista (sec VIII): Astúrias, protegida do interior pela cordilheira cantábrica, foi a primeira região cristã
a libertar-se do domínio mouro. Desse pequeno território surgirão os reinos de Aragão, Navarra, Castela e Leão.
Esse último irá desmembrar-se em Galiza, ao norte (1090) e condado Portucalense ao sul (1093).
A reação contra os mouros na região do Porto determinou o surgimento em 1139 de um estado independente, Portugal:
“a nobreza da Alta-Galiza olhava para a da Galiza Portucalensis do mesmo jeito como os cristãos velhos, nas vilas
que iam sendo arrebatadas ao controlo muçulmano, olhavam para os cristãos novos”98.
Até o século XIV, Portugal estenderá seu domínio para o sul, inclusive o Algarve (ocidente, em árabe)
Línguas faladas na Península Ibérica nos séculos XI e XII, expansão do Castelhano, idioma das terras de Castela, e do
Galego-Português: evolução do latim modificado no contato com as invasões germânicas e suevas (411-585)
que antecederam a chegada dos visigodos (585-711) e dos mouros em curta permanência, o galego-português firmou-se
como o romanço mais ocidental nos territórios peninsulares do antigo império romano
98
in Alexandre BANHOS Comunicação apresentada no encontro “O Português língua da Galiza” Lisboa:06/1994. Publicado na Revista Agália, nº 39 (Outono 1994), OnLine Portal Galego da Língua, 2006: pp 4-5 (www.agal-gz.org)
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O galego-português será a língua poética à época do Rei Trovador e da Rainha Santa, D. Dinis e
Isabel de Portugal, mas aí as fronteiras já são outras. Durante a Reconquista, as cortes portuguesas
passaram de Braga para Coimbra e desta para Santarém, sendo finalmente instaladas em Lisboa por
D. Afonso III, pai de D. Dinis. No processo, em contato com as variantes faladas mais ao sul - em
que as influências árabe, moçárabe, hebraica, do occitano e do aragonês faziam-se sentir diferentemente nas praças, assim como os castelhanismos da Corte - o idioma corrente em Portugal afastouse do falar de além do Minho, essa “risca prateada” no dizer de Manuel Rodrigues Lapa99
Galicia (acima) e Portugal, hoje : Divisões políticas, topografia e densidades demográficas
99
Manuel Rodrigues LAPA, Conferencia “A política do idioma e as Universidades” publicada em “As minhas razões”,
Coimbra: Coimbra Edit, 1983:63 cit por Ivo CASTRO, ‘Galegos e Mouros’ A língua galega vista pelos filólogos portugueses - Conferência proferida no Congresso dos 25 anos do Instituto da Língua Galega, Santiago de Compostela, 1996,
Publicado: Lisboa, Colibri/Cátedra de Est Galegos da Univ de Lisboa, 2002
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Na Galicia submetida às ordens de Leão e depois Castela, o processo será outro. O poder central,
externo, absorveu parte da nobreza receptiva em suas cortes e repovoou postos importantes com a
substituição da hierarquia local pela castelhana. A língua galega falada nas ruas desapareceu da escritura, fechou-se em si mesma. De acordo com o cronista aragonês Jeronimo Zurita (1512-1580) a
Galicia se reduziu “às leis da justiça” 100. Na prática, o galego-português do além Minho reduziu-se
àquela época à uma língua ágrafa, implodida pela descentralidade interna. Outro olhar que vem do
século XVI, o de Duarte Nunes de Leão, linguista de Évora, acrescenta do idioma
de Galiza e Portugal, as quaes ambas erão antigamente quasi uã mesma, nas palauras, e nos ditongos,
e pronunciação, que as outras partes de Espanha não tem. Da qual lingoa Galega a Portuguesa se
aventajou tanto, quanto na copia e na elegancia dela vemos. O que se causou por em Portugal haver
Reis, e corte que é a oficina onde os vocabulos se forjão, e pulem, e donde manão pera os outros homens, o que nunca houve em Galiza 101
Coitas - À época que calou a lira sensual dos trovadores da Occitânia, dispersos pelo norte da Itália e nos reinos da Península; quando os antigos patronos do paratge foram submetidos, eliminados
e reduzidos à errância; enquanto o occitano na França iniciava um retrocesso ao patois; enquanto,
enfim, providenciava-se para que o galego fôsse varrido dos salões nobres da Galicia ou transferisse
seus cantos para outras cortes - o mesmo galaico se impunha mais ao sul, seguindo as pegadas da
expansão portuguesa na língua e na poesia.
Alguma coisa da poética occitânica prolongou-se nessa poesia vivida e transformada em outra
língua, que deixou rastros no ‘Conto de Amaro’. Um lamento inconfundível, a coyta ou coita, a
saudade do Paraíso na devoção à Maria.
E nõ me digas mais da tua faze[~]da ne[~] da tua viida, que eu o sey bem, e per quantas coytas passaste (Conto de Amaro, ed Branco da Siva, 2002:270)
O que é coyta? O que faz o poeta padecer de coita é um intraduzível sentimento de lacuna, de
falta, de ausência; a indefinível saudade da alma gêmea que abrigará, abrigou? silêncios. Incapaz de
preencher vazio algum, a coyta contempla um vazio sem tocá-lo. Melancolia? Não é o poeta quem
sente a coyta: ela o sente e não permite que ele se aproxime. Ansiedade? o amigo que tarda, sonhos
na praia, à beira de um caminho? Não somente. Amores impossíveis então? Mas não, se a coyta
transpassa. Esvai-se sem chegar a ser, instantâneo mesmo de imenso diapasão. Algo que se reconhece apenas, e se faz chamar pelo nome. A coyta surge quando não há consolo.
100
“Galicia se redujo a las leyes de la justicia, a donde el rey puso audiencias. En aquel tiempo se comenzó a domar
aquella tierra de Galicia, porque no sólo los señores y caballeros della pero todas las gentes de aquella nación eran unos
contra otros muy arriscados y guerreros, y viendo loque pasaba por el conde -que era gran señor en aquel reino- se fueron allanando y reduciendo a las leyes de la justicia con rigor del castigo. Volvió el rey de Galicia a Salamanca en fin
del mes de noviembre, y desde aquella ciudad se envió su audiencia real formada a Galicia, para que residiese en aquel
reino y con la autoridad de los gobernadores y jueces que allí presidiesen y con rigurosa ejecución se administrase la
justicia; y el arzobispo de Santiago les entregó su iglesia habiendo pasado por el estado del conde de Lemos y por todas
las otras tierras de señores que hay hasta llegar a su arzobispado sin ser recibidos los oidores: tan duros y pertinaces
estaban en tomar el freno y rendirse a las leyes que los reducían a la paz y justicia, que tan necesaria era en aquel reino,
prevaleciendo en él las armas y sus bandos y contiendas ordinarias, de que se siguían muy graves y atroces delitos y
insultos. En esto y en asentar otras cosas, se detuvieron algunos días el rey y la reina en la ciudad de Salamanca”. in
Jeronimo ZURITA, Anales de Aragón, Edição Ángel CANELLAS LÓPEZ/ Digit José Javier ISO (coord.), María Isabel
Yagüe y Pilar Rivero.Editado por Institución Fernando el Católico (IFC), 2003:Libro XX, Capitulo LXIX , à qual se
remete para questões de contexto. OnLine //ifc.dpz.es/publicaciones/ebooks/id/2448.
101
Duarte NUNES de LEÃO in Origem da Lingoa Portuguesa (Lisboa, 1606) apud Ivo CASTRO (op cit
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... e já é hora de partir 102.
Um trovador português, João Soares Coelho ( meados sec XIII- ca1279)103, nos fala do sentimento
Desta coita nunca eu vi maior: /morrer e nom lh'ousar dizer: "senhor"!
104
Em outro momento João Soares beira a heresia e dialoga com Deus, a quem confessa querer mal
A mia ventura quer'eu mui gran mal,/e quero mal ao meu coraçón,/e tod'aquesto, senhor, coitas son;/e
quero mal Deus porque me non val./Ca, senhor, moir', e vedes que mi avén:/se vos alguén mal quer,
quero-lh'eu mal,/e quero mal quantos vos queren ben105“
Mesmo quando João Soares se mostra abertamente obsceno, uma sombra daquele dito não profano surpreende, insinuando-se encoberto pela graça rude
Par Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,/ se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.106
A coita, vista desse ângulo, é uma forma de relacionar-se com o mundo opressivo do desejo imponente da ortodoxia oficial, um avesso. Traduz um sentir imediatamente compreensível no abranger da língua. Expressa-se na dor de amor sim, mas no galego-português escapou do formulário cortesão e tem outra ressonância: dissemina também as dores outras que absorve. Está onde se pressente um travo amargo, internalizado e dolorido ou seja, no corpo inteiro. É El-rei Dom Dinis de Portugal quem desafia, separando o sentimento convencional do autêntico, a coita sentida na carne107
Proençais soen mui ben trobar /e dizen eles que é con amor,/ mays os que troban no tempo da flor/ e
non en outro sey eu ben que non / am tam gran coyta no seu coraçon/qual m’eu por mha senhor vejo
levar.
Nas cortes de Portugal e Castela, dois centros do trovadorismo galego-português dos séculos XIII
e XIV, a poesia andou mão em mão com o poder. Não só porque jograis e trovadores dependiam de
patronos mas porque o paço real fez da música e da poesia da língua um instrumento de poder e coesão social mais profundo. Existe uma arte milimétrica e de grandes linhas no trovar. O oficio do
poeta, nos diz Paul Valery 108, “se exerce por meio do valor complexo das palavras, isto é, compondo
ao mesmo tempo som e sentido... como a álgebra operando com números complexos”. Oito séculos
de distância nos separam da voz e dos gestos, dos sons e das cores, do gosto e do clima em que
102
Em algum lugar li um texto que nos fala da “coyta”. O texto me impressionou, principalmente as palavras finais: “...
e já é hora de partir”. Perdi a memória do texto e do lugar onde encontrei esse texto. Quando quis e fui buscar, percebi o
que tinha perdido. Transmito assim, tropegamente, o que me resta: uma certa idéia da dimensão do efêmero.
103
A primeira notícia dele é de 1235, no Alentejo, como testemunha de um documento de um infante da Coroa Portuguesa que possivelmente acompanhou a Roma e depois a Castela, onde vamos encontrá-lo entre os trovadores e jograis
que fazem parte do círculo dos infantes castelhanos. A partir de 1249 João Soares aparece na corte portuguesa de Afonso III, e um de seus filhos aparentemente foi nomeado meirinho-mor de D. Dinis. Para outras leituras recomenda-se o
site do Projeto Littera organizado por LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Disponível
em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.
104João
Soares Coelho, As graves coitas a quen’as Deus dar, Cantiga de Amor, Mestria, A 167/168, B 319 Proj Littera
105João
Soares Coelho, Nunca coitas de tantas guisas vi, Cantiga de Amor/ Refrão, A 165, B 317bis Proj Littera (op cit)
(op cit)
106
João Soares Coelho, Luzia Sánchez, jazedes em gram falha, Cantiga de escárneo e mal-dizer / Refrão, V 1017, Projeto Littera (op cit)
107
Dom Dinis de Portugal, Proençaes soen mui ben trobar, Cancioneiro Bibl Nacional 524b, Vaticana 127
108
VALÉRY, Paul (1957) Oeuvres, ed Jean Hytier, Paris:Pleiade I:1414 (trad livre)
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eram entoadas as cantigas do Cancioneiro Galego-Português, nos rituais da apresentação. E nos
aproximam.
Ritos do Trovar_ Sabe-se que nas cortes de Dom Dinis de Portugal e Afonso X, de Leão e Castela, a voz era concedida a quem soubesse usá-la, isso é, quem conhecesse os limites que não podem
ser ultrapassados na arte do trovar. Havia, por assim dizer, um pacto não escrito entre reis e trovadores que remonta a um costume milenar. Mais exatamente, os hábitos que regulam a função do poeta
e da poesia na cultura e na sociedade, descritos com riqueza de detalhes em um estudo de Enrico
Campanile109 com foco nas culturas céltica e indiana, e que Marcel Mauss (2002), referindo-se às
culturas arcaicas, desvenda em um ensaio sobre o dom.
A doação sob forma de poesia é dom precioso, sujeito às regras do rito, e espera-se retribuição. No
paganismo acreditava-se que ele era conferido pela divindade ao poeta, para que a poesia louvasse
os deuses, anunciasse destinos, consagrasse reis e heróis. O pacto que Dom Dinis, rei, estabelece
consigo mesmo, poeta, vale para os outros trovadores. Na concentração ele não quer palavras, quer
sentimento, e não quer o sentimento oficial, quer o autêntico: coita, a dor feminina de que o rei se
afirma capaz e que é percebida na carne o tempo inteiro. Dom Dinis quer a dor do povo na ponta da
língua, aquela que fora do corpo dilui-se em muitos nomes, para que ele possa ouvi-la - ou morrer.
No final do século XIII, discutiu-se em Paris a influência da música e dos cânticos nos ânimos
guerreiros, sua possível serventia e instrumentalização. Citando um musicólogo contemporâneo Johannes de Grocheio ou Jean de Grouchy (sec XIII), mestre de artes e autor de um tratado de música110 - Paul Zumthor (1993:156) transcreve um comentário dele a respeito das canções de gesta
Este canto se destina a ser executado em presença de velhos, de obreiros, e do vulgo, quando eles repousam de seu trabalho cotidiano, a fim de que a audição das infelicidades experimentadas pelos outros os ajude a suportar as suas e de que cada um deles retome em seguida, mais alerta, sua tarefa profissional. Por isso, esse gênero de canto é útil à conservação do Estado
O Paço Real_O projeto que a dinastia de Borgonha e particularmente Dom Dinis coloca em prática é ambicioso. As cantigas que brotavam espontâneas das praças, tavernas, festas, feiras, casas,
procissões desafinadas ecoando as mil vozes milenares vindas das montanhas e do mar - fossem
elas insolentes, vagamente heréticas, toscas ou anticlericais - de certo modo eram toleradas porque
válidas e válidas porque humoravam um sentimento de orfandade e cisão profunda, minha senhor,
cujo compartilhamento disseminava uma noção vaga de pertença a dor mais arcaica, um exílio da
unidade pela qual o rebanho ansiava e servia aos objetivos reais.
Por meio de jograis e trovadores essa multidão de vozes díspares foram atraídas para uma espécie
de palco móvel, o paço real fixado em Lisboa mas que estava onde o rei e sua corte estivessem, arena das tensões do Reino em que nobres entre si e plebeus podiam manifestá-las em pé de igualdade,
não por armas e em torneios, mas desde que pudessem cantar. Citando Zumthor (1993:109), nos diz
Xoán Carlos Lagares 111 (2006:102): “A escrita, que, dado o rigor formal das composições, está na
própria elaboração das cantigas e que assegura a sua transmissão na voz de profissionais do canto,
interpõe os seus filtros, constituindo um processo de "formularização".
Tanto Dom Dinis de Portugal quanto Afonso X de Leão e Castela estavam comprometidos com a
construção de um ideal monárquico e com o fortalecimento do poder central. Nessa arena ressurge
109
Enrico CAMPANILE (1977) Ricerche di cultura poetica indoeuropea. Pisa:Giardini
110 Ars
111
musicae, ca 1300
Xoán Carlos LAGARES, ‘Uma aproximação à " língua" das cantigas galego-portuguesas’ in Revista Galega de Filoloxía, Coruña: Univ da Coruña, 2006,7: 95-116
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um nome ao mesmo tempo sexuado e não, que desde o início esteve ali, Maria, cuja devoção é um
ponto focal. Impõe-se porque era possível contemplá-lo/a sensível e sem fronteiras, divino e impalpável na sua pureza original. Disso ‘são testemunho’ as vivas manifestações de fé à Virgem, cuja
mediação desde muito cedo foi quase espontaneamente invocada pela cristandade ocidental nos
apelos ao Pai e ao Filho, e cujo culto, profundamente arraigado na Península, foi especialmente revigorado na Idade Média a partir do século XII pela ação e devoção dos Cistercienses.
Tomar, castelo - Espinhos e rosas tradicionalmente acompanham a imagem feminina. Na figura
de Isabel de Portugal, unida a Dom Dinis como rainha, mãe, mulher e santa112 , vislumbram-se essas
vozes contrastantes dialogando em harmonia com o ideal. Uma, reconhece na Rainha a capacidade
de atravessar barreiras, reunindo no percurso o que era antes heterogêneo. Nos textos medievais,
esse comportamento que aparentemente salta por cima de fronteiras - sócio-econômicas, culturais,
sejam quais forem - é marca do supra-humano no imaginário popular. Outra, exorciza a ambiguidade bíblica atribuída ao ser mulher, ou seja, à percepção do feminino como um elemento desencadeador de ações, para o bem e para o mal. A piedosa Isabel, à exemplo de Maria, afirma-se aos
olhos da cristandade como a esposa fiel, a mãe cuidadosa, a boa conselheira, socorro dos pobres e
dos aflitos - atributos reverenciados nos títulos de Consoladora, Advogada, Auxiliadora e, principalmente, Intermediadora, prestados à Virgem. Desse modo, Isabel transpõe de maneira admirável o
ideal feminino de transcendência, característico do Terceiro Milenio joaquimita, para a realidade do
Reino, reunido sob o Manto de Maria, instalando concretude na utopia.
Em alguns lugares inclusive, onde o Culto do Divino floresceu tardia e intensamente - caso, por
exemplo, das ilhas que formam o arquipélago dos Açores113 - admite-se a ocorrência de uma espécie
de transmutação feminizante na figura do Espírito Santo, através da identificação da Terceira Pessoa
da Santíssima Trindade com os traços idealmente femininos de sensibilidade, intuição, intimidade,
contemplação - valores predominantes na era de paz e prosperidade preconizada por Joaquim de
Flore114 onde avultam os Mistérios de Maria.
Tais situações permitem supor, se não exatamente um entrelaçamento entre o Culto Mariano e o
Culto do Paracleto em Portugal, ao menos uma complexa exaltação do feminino no período em que
as festividades do Divino tiveram seu apogeu no reino, na sequência da introdução do culto pelos
franciscanos, aliado às estações do Rosário dominicano, incentivados pela família real, apoiada pela
poderosa Ordem de Cristo cuja sede, a partir de 1357, foi justamente em Tomar.
Mentalidade Cruzadística_ O castelo de Tomar, porém, e a cidade abaixo, são mais antigos. Localizavam-se em vastos campos por onde passaram árabes e romanos e antes deles outros povos,
112
Santa Isabel foi canonizada pelo Papa Urbano VIII em maio de 1625.
113
Apesar da colonização dos Açores ter início a partir de 1432, quase 200 anos após o apogeu do joaquimismo, a doutrina e o culto do Espírito Santo floresceu de tal maneira nas ilhas do arquipélago que muitos consideram-no um traço
identitário da cultura local. Deve-se a introdução do culto aos franciscanos, por orientação da Ordem de Cristo, que
desembarcaram junto cm os primeiros colonizadores, vindos de todas as partes de Portugal. Ao descrever o primeiro ato
religioso nos Açores, o cronista Gaspar Frutuoso (1522/1590) nos diz que uma missa do Espírito Santo foi rezada ainda
a bordo da embarcação, antes do desembarque na atual Ilha de Sta. Maria (apud Antonieta Costa, durante o I Encontro
Luso-Maranhense Sobre a Memória Açoriana no Estado, em 2006 - texto completo da palestra, em anexo). Com a imigração açoriana,uma das correntes do culto chega o Brasil, onde já no século XVIII existia no Rio de Janeiro, na Bahia
e nas zonas de colonização açoriana de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco. No século XIX o culto foi
levado para o Havaí, Massachussets, Califórnia nos Estados Unidos e para o Canadá.
114
Autores, como a açoriana Natália Correia (1923-1993), defenderam a hipótese. Para aprofundamento da questão remete-se à FRANCO, José Eduardo & MOURÃO, José Augusto (2005) Influência de Joaquim de Flora em Portugal e
na Europa. Escritos de Natália Correia sobre a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo, Lisboa:Roma Editora.
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mas que foram doados pelo rei Afonso Henriques aos cavaleiros templários como recompensa por
serviços prestados à independência de Portugal no contexto da luta contra os mouros. Naqueles
campos, em 1160, o grão-mestre templário, Gualdim Pais, lançou a pedra fundamental do castelo,
uma construção que levou quase 50 anos.
O Balsão, gonfalão templário - as cores são elementos fundamentais na linguagem heráldica, um complexo sistema de
símbolos usado em escudos e estandartes medievais (gonfalões) para distinguir os adversários e orientar os guerreiros
em campos de batalha. O bipartido branco e negro, chamado Balsão, identificava os templários.
Acima, da esquerda para a direita: ilustração do beneditino Matthew Paris in Chronica Majora (ca 1215) e afresco da
Capela Templária de San Bevignate ( sec XIII), Perúgia, Italia ). Abaixo, Imagem do interior do Castelo de Tomar,
sede histórica da Ordem de Cristo em Portugal ( Livro 4 da Estremadura, 1509); A Rotunda (Charola), o oratório dos
templário; O Castelo e a Cidade; Planta baixa do Convento e Claustros
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A Ordem de Cristo surge em Portugal na continuidade da Ordem dos Cavaleiros do Templo115,
como uma instituição do Reino, sob a governança de Dom Dinis. Colocados sob a Regra de Cister e
a supervisão do abade de Alcobaça, vestindo o hábito branco da pureza com uma cruz vermelha, o
destino dos monges guerreiros entrelaçou-se dai em diante com os desígnios da Coroa. À época dos
Descobrimentos, o Reino confiou a tutela espiritual das novas terras ao prior dessa Ordem, incluindo os Açores e o Brasil. À época de D. Dinis coube aos templários cooperar no processo de afirmação da identidade nacional, inserida desde o início numa mentalidade de Cruzada.
Templários queimados em Paris.
Grandes Chroniques de France ou de St. Denis (British Library Royal 20 C. VII, f.48r / final do século XIV
A mentalidade cruzadística caracteriza-se pela afirmação do elemento sagrado que agrega a práticas e estratégias guerreiras relacionadas à concretização de um ideal116 , à implantação de um novo
código. Modificando-se ao longo dos séculos sem perder sua especificidade, as chamadas ‘guerras
justas’ tiveram um significado profundo na gestação de Portugal enquanto sujeito coletivo. Delas
fazem parte, como ideologia bem definida, a ocupação e a consequente ressignificação dos valores
nas terras conquistadas sob o signo da cruz 117, inseridas, a partir da entronização do símbolo, numa
115
A Ordem de Cristo em Portugal surge de um gesto de desafio e independência de Dom Dinis contra a crescente influência francesa no mundo cristão, aliado ao reconhecimento dos bons serviços prestados pelos cavaleiros templários
na implantação do Reino e ao desejo de preservar a imensa fortuna da Ordem em terras portuguesas. Assim, o rei português recusa a política de perseguição sistemática da Ordem Templária decretada em Paris e aceita pelo Papa; transfere o
patrimônio, as propriedades e os privilégios dos templários em Portugal para a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo,
criada para esse fim em 1319; acolhe em território português os refugiados do extermínio promovido pelo rei Filipe IV
de França, dito o Belo, que em 1314 manda queimar Jacques de Molay, Grão-Mestre templário, numa fogueira na Ilha
dos Judeus, hoje Île de la Cité. Recorde-se que, cedendo às pressões do rei de França, o papa Clemente V, de origem
francesa, havia promulgado em 1312 a suspensão da Ordem dos Templários sem entretanto condena-los por heresia,
declarando-se impossibilitado de acreditar na acusação baseada em confissões obtidas nos calabouços reais: o rei francês,entre outras coisas, acusava os templários de adorarem o demonio na figura de Baphomet (o termo surge pela primeira vez em 1195 no poema “Senhor, per los nostes peccatz”, do trovador provençal Gavaudan - tradução castelhana
em anexo). Recorde-se também que a eleição de Clemente V em 1305 foi por influencia de Filipe, o Belo, e significou
um aumento de poder da França nos assuntos da Igreja; que em 1309 o rei francês persuadiu o pontífice a deslocar a
sede papal de Roma para Avignon, na foz do rio Ródano, onde residiram sete papas consecutivos antes que Gregório IX
voltasse para Roma; que esse primeiro período (1309-1377) do que foi chamado Cisma do Ocidente associou-se no
imaginário medieval ibérico ao exílio bíblico de Israel na Babilônia, pelo que foi dito "cativeiro babilônico dos papas".
116
Embora, no caso, trate-se do ideário cristão, ela não se limita a ele e é verificável em outras situações. Visualizadas
no espaço ritual, as batalhas em nome da fé ocupam uma posição intermédia entre o passado e o futuro.
117
Para aprofundamento da questão remete-se ao ensaio de Ricardo da COSTA, “A mentalidade de cruzada em Portugal
(séculos XII-XIV)” in Estudos sobre a Idade Média Peninsular. Anos 90 - Revista do Programa de Pós-Graduação em
História; Porto Alegre: UFRGS, n. 16, 2001-2002, p. 143-178
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geografia sagrada cujos caminhos se cruzam no mapa mítico da Jerusalém Celeste118 - o reino dos
céus na terra, o Éden primordial ou Paraíso terrestre que o imaginário lusitano projetará no futuro
de si mesmo, como um outro povo escolhido, e associará ao Quinto Império119; proclamará na crença do retorno de um rei salvador que devolverá o povo ao seu destino120; manifestar-se-á, já no finzinho do século XIX início dos XX, em movimentos sociais que percorrerão o Brasil, norte e sul
121. Fazem parte, enfim, daquele alicerce através do qual a realidade portuguesa social e continuadamente se construiu no cenário medieval dos castelos europeus, na qual o filosófo Agostinho da
Silva (1906-1994) vislumbrou o que de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo e escapa à tradição cartesiana
... a idéia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir a ser é substrato do
que é, de que as coisas morrem à medida que são (...); de que a verdadeira força propulsora da vida
não é a inteligência, mas a reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição mas o pressentimento (...); de que, para se vencerem infiéis, só vale uma indefinível arma, que, espinosiamente, tenha
como um dos aspectos o da espada e como outro o da benção, como um, o do corpo, como outro, o do
espírito (Da Silva, 1959:15)
118
A Nova Jerusalém ou Jerusalém Celeste surge como promessa no Livro do profeta Ezequiel (48:35) e no Apocalipse
de São João (Rev cap 21), descrita como a cidade que descerá de Deus, “ataviada como uma esposa para o seu marido”
depois de um reino de ‘mil anos’, etapa final da história em que toda opressão será eliminada (Rev 20:1-4). Embora Sto.
Agostinho tenha recusado a interpretação literal dos textos testamentários (v. nota 29 do presente estudo) e, na sua obra,
não identifique a Civitas Terrena com o Estado nem equipare a Civitas Dei à Igreja, as sucessivas interpretações atribuiram ora à Igreja Romana ora ao Sacro-Império o papel de último reino, o quarto, que duraria até o fim dos tempos. A
essas interpretações Portugal acrescenta o Quinto Império.
119
O Quinto Império ou Reino consumado de Cristo na Terra, de que nos falará o Padre Antonio Vieira (1608-1697)
com base nas profecias do segundo capítulo do Livro de Daniel e no Apocalipse de S. João, refere-se à convicção de
que um futuro grandioso estaria reservado a Portugal numa era próxima, quando a nação se firmaria como potência do
mundo, não apenas no sentido material mas também no espiritual, dando continuidade aos grandes impérios que a precederam: o assírio-caldaico; o persa; o grego arcaico e o romano, segundo Vieira. Então, durante mil anos, esse novo
império governaria o mundo. No período em que se situa, a Restauração portuguesa de 1640, a obra profética do Pe.
Vieira impulsiona as esperanças da nação rumo a um futuro iluminado depois do prolongado estio marcado pelo desaparecimento do rei Dom Sebastião I (1554-1578) na batalha de Alcácer-Quibir no Marrocos, e a subsequente perda da
independência de Portugal pela anexação do reino à União Ibérica, sob o domínio dos Filipes da Espanha. As idéias que
tornaram Vieira o principal intérprete da mística do Quinto Império não eram exatamente novas e circulavam esporadicamente no Reino, trazendo à tona notícias profundas do material de que é feito o imaginário português. Ecoando na
voz do jesuita, vamos encontrá-las em a “História do Futuro”, “Esperanças de Portugal” e “Clavis Prophetarum”. Quando iniciou a “História do Futuro”, em 1649, o Pe. Vieira desenvolvia intensa atividade diplomática a serviço da Coroa
em nome do rei Dom João IV da dinastia de Bragança, de quem se tornara amigo e confidente. Nomeado pregador régio, angariou poderosos inimigos internos. Com a morte de Dom João IV (1656), o jesuita perdeu seu grande protetor: é
perseguido, preso e condenado pela Inquisição. Vieira morre na prisão, deixando incompleta a “Clavis Prophetarum”.
As idéias que animaram sua obra, no entanto, irão emergir ainda no século XX e encontrar novo alento com a publicação de “Mensagem”, de Fernando Pessoa, uma coletânea em que o poeta dá voz aos grandes personagens da nação (trechos em anexo).
120
À época do desaparecimento de Dom Sebastião na batalha contra os mouros acreditou-se que ele estava apenas escondido, em peregrinação a Jerusalém talvez, esperando o momento oportuno para retornar e devolver ao povo a sua fé.
No bojo desse movimento, conhecido como Sebastianismo, surgem vários “dom Sebastião” proclamando-se o Rei Esperado, entre os quais Marco Tulio, o Calabrês, reconhecido como o verdadeiro rei por Dom João de Castro (15511623), neto de um vice-rei das Indias e figura culta do sebastianismo. Em vários escritos, João de Castro mapeia a
tradição profética portuguesa a partir dos sonhos do Livro de Daniel. Entre suas obras destacam-se a “Sobre a Quinta e
Derradeira Monarquia Futura” (“De Quinta et ultima Monarchia Futura”, 1597, BNL/ Reservados/Códice 4371) e a
“Paráfrase de algumas profecias de Bandarra, sapateiro de Trancoso”, a respeito das trovas que circularam amplamente
entre 1520 e 1540 em Portugal, nas quais Gonçalo Annes Bandarra anuncia a vinda do Rei Encoberto.
121Entre
esses, o Movimento de Antonio Conselheiro (1896-1897) que profetizou a volta de Dom Sebastião para restaurar a monarquia no Brasil, descrito no clássico “Os Sertões: campanha de Canudos” por Euclides da CUNHA (São Paulo: Martin Claret, 2002) e a Guerra Santa do Contestado (1912-1916), em que os caboclos revoltados da zona fronteiriça
entre os estados do Paraná e de Santa Catarina proclamaram uma monarquia iluminada e comunitária.
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Nesse processo, o governo de Dom Dinis, rei poeta e trovador em Portugal não surge apenas
como um polo estabilizador para a errância dos cavaleiros da cruz e da espada depois que o movimento perdeu força na Palestina e a França lançou-se em perseguição aos templários.
Caminhos da Jerusalém Celeste_Ele é também o canal que cimentou a relação entre o reino
português e a tradição que atribuiu a guarda do Graal aos monges guerreiros122 e, extensivamente, à
nação que acolheu-os, continente e conteúdo, no contexto mais amplo dos desdobramentos do modelo explicativo da história proposto pelo abade Joaquim, aliado às contribuições pré-cristãs, judaicas e islâmicas que enraizaram o espaço peninsular. Nesse crisol de tintas trovadorescas - universo
do qual o próprio D. Dinis é nobre representante - tomou forma a idéia que, no dizer de Agostinho
da Silva (ibid), em Portugal “a intuição poética vale mais que o plano”.
O ‘Conto de Amaro’ pertence a esse complexo, alimenta-se dele, embora venha de um olhar que,
por assim dizer, situa-se fora do círculo mais mundano desse mundo, em substrato e muito antigo,
denunciado por uma vaga melancolia do futuro, coita que acompanha a narrativa como se ela, em se
122
O Graal e a busca do Graal são temas de enorme expressão no universo medievo. Enquanto objeto mítico intermediando a relação mortalidade/imortalidade, ou a essência do humano e a essência do divino, o Graal ecoa tradições arcaicas. Remete, pela interdependência que exibe entre continente e conteúdo, a receptáculos ou suportes de matéria ou
substância vital com capacidade de gerar, nutrir e regenerar a vida. Assim é, entre os celtas, o caldeirão generoso de
Dagda, capaz de saciar a fome do corpo e do espírito pois recipiente do saber e da inspiração com que alimenta todas as
criaturas; a taça da imortalidade de Jamshid, na qual os antigos persas acreditavam perceber os sete céus do universo descrita em outros termos mas com função semelhante nos Vedas indianos e nos textos sagrados do zoroastrismo reunidos no Avesta; a barca fúnebre de Osiris, entre os egípcios; o Vaso Djin dos sufis islâmicos; os ritos de fertilidade e os
mistérios de Eleusis; o útero gerador da mulher representado na natureza pela gruta sagrada. Na Idade Média surge
como uma demanda importante nas lendas do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda. Esse conjunto de relatos
que mescla elementos cristãos e pré-cristãos foi difundido nas vozes dos jograis e trovadores antes de passar à escrita,
em épocas distintas. Em comum, os relatos arturianos - parte substancial do que ficou conhecido como ‘matéria de Bretanha’ na tradição trovadoresca classificada por Jean Bodel (1165-1210) - relacionam o objeto mítico ao espaço poético
da Bretanha (compreendendo os territórios ao centro, sul e oeste da ilha inglesa e porções da Bretanha continental) e ao
período em que as legiões romanas abandonaram a região, pouco antes da queda do Império do Ocidente (fins do século
V). Popularizados na “Historia Regum Britanniae” de Geoffroy de Monmouth (uma crônica fantasiosa dos reis da Bretanha datada em ca 1136), os personagens do Ciclo Arturiano ganharam projeção literária na obra poética de Chrétien
de Troyes, o primeiro autor a mencionar o Graal entre 1181 e 1191, no romance “Perceval, o Conto do Graal” que dedicou ao seu patrono na época, Filipe da Alsácia, conde de Flandres. A obra, inacabada, apresenta-se como um texto tirado de outro texto mais antigo, narrando a trajetória do jovem Perceval cuja aspiração é ser cavaleiro na corte do rei Artur. A narrativa interrompe-se com morte de Chrétien de Troyes, antes que Perceval consiga voltar ao castelo de um
certo Rei Pescador onde havia visto o Graal pela primeira vez sem, entretanto, indagar e dar-se conta das propriedades
do objeto que poderia ter curado seu anfitrião, ferido nas pernas e na virilha. A relação entre o Graal e a tradição cristã em que é associado ao cálice sagrado usado por Jesus na Última Ceia, o mesmo recepiente utilizado por Jose de Arimatéía para recolher o sangue de Cristo na cruz - foi feita posteriormente por Robert de Boron no romance ‘José de Arimatéia’, publicado no século XIII. Episódios acrescentados na sequência dão conta da família de José de Arimatéia trazendo o Cálice Sagrado para a Grã-Bretanha, onde teria constituído uma dinastia de guardiãos que manteve o Cálice a salvo em seu esconderijo, até o advento do rei Artur e Perceval. Nessas versões, o ‘Rei Pescador‘ é o último daquela dinastia de guardiãos. No entanto, toda essa história aponta outros caminhos quando contada pelo cavaleiro e trovador bávaro
Wolfram von Eschenbach (ca 1170-1220), quase ao mesmo tempo que Boron.
Na versão do "Parzifal" de Von Eschenbach, um dos maiores épicos medievais, os guardiãos do Graal - que não é uma
taça, mas sim uma pedra - são os cavaleiros templários cujo manto traz, como emblema, a pomba do Espírito Santo. No
texto, a pedra, preciosa e translúcida, é denominada Exillis ou Lapis Exillis e sua existência, real aos olhos de Wolfram,
remete aos pequenos altares portáteis em uso no Oriente durante a Idade Média. Esses objetos consagrados para proteção nas travessias fazem parte da tradição das caravanas que percorriam distantes rotas de comércio e, no contexto ocidental cristão, das peregrinações rumo às Terras Santas e suas rotas guarnecidas militarmente por cruzados. No épico de
Von Eschenbach, a pedra do Graal é transportada até o salão onde se encontram os cavaleiros por uma rainha radiante,
sobre um tecido verde-esmeralda de fina seda, que ela deposita numa mesinha recoberta por delicada pedra vermelhosangue, diante do anfitrião enfermo, Anfortas, seu irmão e rei dos templários. A maravilhosa relíquia de iridescência
cósmica sacia os presentes com alimentos materiais e etéreos, difundindo um inefável desejo do Paraíso. Entretanto, tal
como na narrativa de Chrétien de Troyes (que Eschenbach rejeita como sua inspiração primeira, atribuindo o relato original a um certo trovador provençal de nome Kyot) o jovem Perceval emudece e nada indaga da doença de Anfortas,
que poderia curar-se com a formulação da questão.
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narrando, suspeitasse o final. A promessa de um porvir luminoso que no plano terreno anima a mística do Reino circunscreve-se, no ‘Amaro’, ao desejo dele - um desejo suficientemente honesto para
exigir que o personagem peregrine pelos mares em busca da materialidade dessa inquietação - mas
sentimento informal e espontâneo que, sendo plural, dialoga singular e paradoxalmente com
indivíduos único, e não promessa coletiva. Nesse sentimento, tão chão quanto a saudade, a antecipação do futuro dá-se em esfera existencial, no momento em que a decisão individual pela busca é
tomada e se converte em ação, necessariamente submetida à curta temporalidade de uma única vida
humana. O Conto de Amaro está mais próximo da coita que da cruzada e a luz que busca está em
orientação contrária ao movimento do Sol, no Oriente Místico.
Os Exempla _ É desse modo, pontuando entre o eterno e o efêmero, o individual e o coletivo, que
o ‘Conto de Amaro’ se insere a meu ver na tradição da literatura mística cristã do Portugal medievo,
dando letra e voz a uma multidão polifônica de “Amaros” que compartilham um traço de inquietação espiritual que eventualmente se transforma em trajetória coletiva, pela qual são reconhecidos e
se reconhecem como um só indivíduos e que, talvez, possa nomear-se por meio de um abstrato indicando um elemento arcaico de propriedade aparentemente ilógica; que seria inexistente não fosse
ele a forma escrita de um gesto de travessia vital.
Certamente o ‘Conto de Amaro’ é produção conventual. O Armarium dos mosteiros não guardava
apenas textos sagrados, obras canônicas, comentários dos Santos Padres da Igreja Grega e Latina,
livros indispensáveis para o Ofício Divino, missais, breviários, saltérios, hinários, evangeliários,
epistolários, ou pontificais, sermonários, vidas de santos, etc. Embora o objeto de contemplação dos
monges fosse o mundo eterno do Espírito, algumas raras bibliotecas favoreciam seus usuários com
obras clássicas de história, anais, crônicas, compêndios de artes liberais, tratados médicos e de ciência escolástica. No Scriptorium os monges não elaboravam sòmente tábuas pascais123, costumeiros124, escriturações administrativas, cópias e traduções de textos emprestados ou doados ao mosteiro. Seu interesse pela história, patente nos cistercienses de Alcobaça 125 , tampouco se limitava à
conservação da memória das casas que habitavam, presente nos numerosos cartulários, livros de
123
A Península Ibérica foi, talvez, a primeira região do Ocidente a usar Tábuas Pascais, baseadas nas de São Cirilo de
Alexandria (c. 375- 444). Na Idade Média, quando se tornou hábito elaborar Tábuas Pascais marcando a data anual da
Páscoa nos calendários litúrgicos, os espaçamentos entre uma ocorrência e outra foram frequentemente usados pelos
monges para a elaboração de Anais, simples registros cronológicos dos eventos do ano julgados importantes, listados de
modo conciso. Os Anais distinguem-se de outras formas de produção, como as Crônicas, por não organizarem os eventos segundo um tópico específico (reinados, pontificados, períodos abaciais, batalhas, fundações, etc) e pela ausência de
comentários que detalhem, expliquem ou relacionem as informações, apresentadas como se todas tivessem igual valor.
124
125
Códices contendo orientações da Ordem, assim como usos e costumes da comunidade.
Interessando-se prioritariamente por uma história que pudesse explicar o sentido espiritual dos acontecimentos mundanos, os cistercienses de Alcobaça - cujo estabelecimento em Portugal se entrelaça com a fundação do Reino - tiveram
um papel fundamental não só nos fatos históricos do período monárquico, mas na concepção dos primeiros ensaios da
história nacional portuguesa. Haja visto a monumental ‘Monarquia Lusitana’, escrita pelos monges e publicada do final
do século XVI ao XVIII, composta por 38 livros em oito volumes. Projeto de Fr. Bernardo de Brito, as duas primeiras
partes - das quais ele é o autor - foram publicadas em 1597 e 1609 e se estendem do surgimento do mundo até o reinado
de D. Henrique (1093 – 1112). Fr. Antonio Brandão deu prosseguimento ao projeto, abarcando o período de 1248 a
1279 a partir da constituição do território português até o reinado de D. Afonso III, publicado em duas partes em 1630 e
1632. Fr. Francisco Brandão é o autor da quinta e sexta partes, publicadas em 1650 e 1671, que tratam apenas do reinado de D. Dinis (1279 – 1325). Fr. Rafael de Jesus produziu a sétima parte, publicada em 1683, relativa ao reinado de D.
Afonso IV (1325 – 1357). Por fim, Fr. Manuel dos Santos produziu a oitava parte, publicada em 1727, que vai da morte
de D. Pedro (1357 – 1367) à eleição de D. João I (1385 – 1433).
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lembranças, martirológios, necrológios que povoam as bibliotecas. Eles também compilavam 126 ,
adaptavam textos de outros manuscritos 127 e não raras vezes transcriavam-nos.
Pensamento Sistemático_ Muitos textos assim produzidos, de modo mais livre em relação aos
textos canônicos, possuem elementos de origem difusa e não necessariamente cristã ou escrita. É
possível vislumbrar, na trama da sua tecitura, tradições arcaicas eventualmente peregrinando pela
cristandade e dialogando entre si na releitura - essa sim a expressão de um pensamento sistemático
que se manifesta na organização do conjunto como um corpo de fé.
Entre os elementos importantes que o século XIII incorporou à construção do pensamento cristão,
dando mobilidade ao conjunto, destacam-se os comentários que o dominicano Tomás de Aquino
tece da relação entre as três virtudes teologais128, até então sujeita a interpretações díspares do “Enchiridion” de Santo Agostinho de Hipona129. Tomada fora do contexto relacional, a noção de “esperança” em Agostinho, divulgada em inúmeros tratados publicados ou não na alta Idade Média, havia induzido muitos autores a limitá-la, conforme mostra Hans Urs von Balthasar130, à esperança de
salvação individual no seio da cristandade. De acordo com Balthasar (1988:73) a frase agostiniana
que deu margem ao equívoco está na oitava seção do Enchiridion onde se lê: “em contraste [com a
fé, que pode estar relacionada a coisas boas e más, passadas, presentes e futuras], a esperança apli-
126
Por exemplo, as grandes compilações de caráter cíclico organizadas por títulos, de autoria anônima e possivelmente
coletiva que marcaram o processo de prosificação das lendas arturianas no início do séc. XIII, nas quais o medievalista
Albert Pauphilet reconheceu um tratado de espiritualidade monástica cisterciense. Da versão portuguesa, que surgiu na
sequência do aparecimento da tendência na França, há duas cópias: uma na Torre do Tombo em Lisboa (Livro de José
de Arimatéia, ms 643) e outra na Biblioteca Nacional de Viena (Demanda do Santo Graal, ms. 2594), considerada a
mais fiel e mais completa daquele ciclo. Para aprofundamento da questão remete-se à introdução da obra editada pelo
prof. Heitor MEGALE (Demanda do Santo Graal, São Paulo: T.A.Queiroz/Ed da Univ de S. Paulo, 1988).
127
Por exemplo, o “Castelo Perigoso”, adaptação livre de uma longa carta escrita no século XIV por Frei Robert, monge cartuxo, para sua prima, Soeur Rose, monja da Ordem Fontevrault. Compilada e ordenada por outra monja da mesma
Ordem que a destinatária inicial, essa epístola chegou ao Mosteiro de Alcobaça, em Portugal, onde foi adaptada. Fazem
parte do texto português, datado do século XV, sete tratados de espiritualidade, o primeiro dos quais dá título ao códice.
Conservam-se dele dois manuscritos, hoje guardados na Biblioteca Nacional de Lisboa (mss. 199 e 214). Para aprofundamento da questão remete-se a João Antonio de SANTANA NETO (Duas leituras do tratado ascético-místico Castelo
Perigoso: Tese de Doutorado – São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 1997)
128
As três Virtudes Teologais cristãs - Fé, Esperança e Caridade - distinguem-se das quatro Virtudes Cardeais (Justiça,
Fortaleza, Prudência e Temperança) reconhecidas pela Igreja Católica Romana. Segundo o Compêndio do Catecismo da
Igreja Católica (resumo dos principais elementos da doutrina católica, elaborado por uma comissão instituída em 2003
sob a presidência do então cardeal Joseph Ratzinger e aprovada por ele já como papa Bento XVI em 2005, OnLine
http://www.ecclesia.pt/catecismo/), as Virtudes Teologais "têm como origem, motivo e objeto imediato o próprio Deus.
São infundidas no homem com a graça santificante, tornam-nos capazes de viver em relação com a Trindade e fundamentam e animam o agir moral do cristão, vivificando as virtudes humanas. Elas são o penhor da presença e da ação do
Espírito Santo nas faculdades do ser humano". Juntas, as virtudes teologais e cardeais englobam o que é conhecido
como as virtudes celestiais ou Sete Virtudes Cardinais, que polarizam todas as demais virtudes humanas.
129Enchiridion
é um termo que o latim tardio derivou do grego para significar manual, obra de referencia, vade-mécum.
O “Enchiridion” de Agostinho, escrito em ca. 420, é um tratado compacto das três virtudes teologais que se apresenta
como resposta às indagações de um personagem denominado Laurentius. Como tal, serviu de modelo para instrução dos
discípulos, na catequese.
130
Hans Urs von BALTHASAR (1905-1988) foi um sacerdote e teólogo suiço, autor de “Dare We Hope "That All Men
Be Saved"?: With a Short Discourse on Hell , San Francisco:Ignatius Press, 1988:73 obra à qual se remete.
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ca-se sòmente às coisas boas e futuras e, de fato, sòmente ao homem que tem essa esperança”131 ,
pelo que é possível concluir não só que a esperança de salvação é um caminho solitário mas também lançar dúvidas sobre o significado universal ou possibilidade de realização do segundo mandamento cristão, “amar o próximo como a si mesmo”. Como amar alguém de quem não se sabe a
esperança?
Virtudes Teologais_ A interpretação de São Tomás estabelece outros parâmetros a partir do final
do século XIII funda-se, ao contrário de anteriores, na dependência mútua das três virtudes teologais que o próprio Santo Agostinho acentuara na conclusão daquela passagem polêmica: “não há
amor sem esperança nem esperança sem amor, nem amor nem esperança sem fé” (nec amor sine
spes est, nec sine amore spes nec utrumque sine fide132). A leitura do Aquinata dessa conjunção que
movimenta as virtudes teologais uma em direção à outra133, implica no reconhecimento de uma possibilidade do ser humano de se aproximar do próximo e do conhecimento de Deus pelo amor divino, a caridade - e esperar que outros também o façam.
Nesse aspecto, o “Conto de Amaro” interessa-nos pelo fato de surgir e integrar-se à livraria de Alcobaça como um texto em vernáculo, formando um fundo de produção cultural até certo ponto própria, um diálogo intra-muros em que se percebem modelos de espiritualidade comunitária que refletem a orientação da Igreja, de um lado, e interagem com a realidade do Reino, de outro, visando
prioritariamente o público interno dos conventos. Como tal, supõe-se que estivessem à serviço de
uma pedagogia de claustro destinada ao esclarecimento espiritual dos monges e noviços através da
prática ritual de leitura meditativa em voz baixa, a lectio divina, pela qual a Ordem contemplativa
construía pontes entre Deus e o Mundo, não só nos caminhos singulares da beatitude, mas também
na incorporação dos ensinamentos da Igreja Católica Romana ao seu tecido orgânico.
A esse corpo na fé São Tomás trouxe a idéia de que é possível esperar pela salvação eterna do outro de um modo diferente do absoluto, em que o objeto da esperança, sempre árduo e pertinente à
pessoa que espera, diz respeito ao seu próprio bem e não ao que pertence a outro. A teologia do
Aquinata abre uma brecha nessa compreensão quando nos diz que a esperança prospera quando vivificada pelo amor que une o que ama ao que é amado, permitindo que se deseje a salvação do outro
tanto quanto se deseja a própria134. Considerando esse “locus” amoroso que permite o diálogo das
virtudes - o aprendizado do amor que percebe a realização de si na realização do outro e implica no
reconhecimento do que é lhe é estranho como parte de si mesmo - a Igreja estimulou os religiosos a
perseverarem no caminho de salvação na vida eterna, incluindo nessa busca a salvação do Outro.
131
A frase, em tradução livre a partir do ingles, encontra-se na oitava seção do segundo capítulo do Enchiridion (The
Creed and the Lord's Prayer as Guides to the Interpretation of the Theological Virtues of Faith, Hope, and Love in Albert OUTLER (1955) Enchiridion: On Faith, Hope and Love / disponível OnLine
http://www.tertullian.org/fathers/augustine_enchiridion_02_trans.htm): “But hope deals only with good things, and only
with those which lie in the future, and which pertain to the man who cherishes the hope. Since this is so, faith must be
distinguished from hope: they are different terms and likewise different concepts”.
“What, then, shall I say of love, without which faith can do nothing? There can be no true hope without love. Indeed,
as the apostle James says, "Even the demons believe and tremble." Yet they neither hope nor love. Instead, believing as
we do that what we hope for and love is coming to pass, they tremble. Therefore, the apostle Paul approves and
commends the faith that works by love and that cannot exist without hope. Thus it is that love is not without hope, hope
is not without love, and neither hope nor love are without faith” na tradução inglesa de OUTLER, 1955, op cit 33
132
133
AQUINAS, Thomas - Summa Theologica, On Hope (Questions [17]-22) trad Fathers of the English Dominican Province New York : Benziger Bros., 1947-48.OnLine http://www.ccel.org/ccel/aquinas/summa.titlepage.html
134
Summa Theologica (op cit) Questão 17, artigo 3, p 2798
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Cristãos do Oriente_ A reflexão parece-me presente no ‘Conto de Amaro’ de dois modos. No
final do século XIV esse “outro” incluia os fiéis da Igreja Católica Bizantina, separada da Romana
desde o século XI quando o legado papal na corte de Constantinopla excomungou o patriarca Miguel Cerulário, um ato estendido como anátema à toda a Igreja Bizantina (1015) e ao qual Cerulário
respondeu do mesmo modo, excomungando o papa Leão IX e toda a Igreja do Ocidente. Além de
questões políticas, diferenças de fé e liturgia determinaram o afastamento oficial das duas Igrejas.
Ao contrário dos ocidentais, por exemplo, que defendiam o Espírito Santo como uma força que
emanava tanto do Pai quanto do Filho, determinando uma condição de igualdade entre Eles, os orientais acreditavam que o Espírito Santo emanava somente do Pai, em detrimento do Filho. Entre as
tentativas de reaproximação da Igreja cindida destacam-se as do Segundo Concílio de Lyon (1274),
e as que tiveram lugar em Florença, em 1439, ambas sem apresentar os resultados esperados.
O dominicano Tomás de Aquino foi convocado para Lyon pelo papa Gregório X. Infelizmente
morreu a caminho do encontro, em Frosinome (1274)135. Outro expoente da Igreja, o franciscano
Boaventura da Bagnoregio (ou Bagnorea) assumiu a defesa da aproximação entre Ocidente e Oriente e conseguiu encaminhar um acordo com os delegados gregos. Morreu pouco depois, em 15 de
julho, poupado do desgosto de ver Constantinopla rejeitar o acerto duramente trabalhado.
A pauta não foi abandonada e no século XV o Concilio de Florença atraiu para a cidade cristãos
da Armênia, de diferentes partes da Grécia, da Russia, da África do Norte e do Leste, coptas e etíopes136 que atenderam ao apelo do papa Eugenio IV, empenhado em reunir um grande número de
orientais no Concilio e manter acesa a chama de reunificação no Ocidente. Apesar dos avanços obtidos, as tratativas não frutificaram 137 . A importancia do evento, no entanto, pode ser avaliada pela
repercussão dos seminários, encontros e palestras que ocorreram paralelamente à discussão religiosa, funcionando como catalizador de notáveis trocas intelectuais entre gregos e latinos.
Florença: em 1439, cidade vive no compasso de línguas,
roupas e costumes exóticos. O afresco “Viagem dos Magos” de Benozzo Gozzoli (1421 - 1497) é uma testemunha
sensivel da impressão causada pelo encontro ( in palácio Medici-Riccardi, Firenze)138
135
The Catholic Encyclopedya (1913) OnLine http://www.newadvent.org/cathen/09476c.htm
136
O cristianismo tem raízes no Oriente. Dos quatro focos principais de divulgação da religião, três (Jerusalém, Antioquia e Constantinopla) localizavam-se no Império Romano do Oriente (cujos povos consideravam-se romanos e herdeiros da cultura grega, sendo que o termo “bizantino”, uma criação ocidental do sec XVII, lhes era estranho). Bizancio,
enquanto conjunto multi-étnico que emergiu como estado cristão, tornou-se foco espiritual do cristianismo no Mediterrâneo Oriental, influenciou profundamente as igrejas Copta, Etíope e Armenia, foi ponto de partida para a evangelização
dos povos eslavos que adotaram o alfabeto cirílico. O alfabeto latino, usado inicialmente na administração desse império, cedeu lugar ao grego falado nas ruas e veiculo de expressão religiosa e literária, ao lado de línguas como o aramaico
e o siríaco dominantes na Siria e na Palestina, e o copta no Egito. Esse amálgama levou o escritor Robert Byron perceber Bizancio como resultado de uma tríplice fusão: um corpo romano, uma mente grega e uma alma mística e oriental.
Para aprofundamento da questão remete-se a BYRON, Robert ([1929] 2011) The Byzantine Achievement (Routledge
Revivals): An Historical Perspective, AD 330-1453, New York: Routledge&Sons, Cap IV The Triple Fusion, pp 46-75
137
138
apud NICHOLS, Aidan (1992) Rome and the Eastern Churches, Edinburgh:T&T Clark, pg 303 e sgs
apud TREXLER, Richard C. (1997) The Journey of the Magi: Meanings in History of a Christian Story, Princeton:
Princeton Univ Press, p128
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O Conto de Amaro situa-se entre esses dois Concílios e é cronologicamente próximo do encontro
em Florença. Reflete a orientação pontifícia e as discussões teológicas no plano interno do texto e
no conjunto do códice (a mística cristã oriental acentuada na recolha) ao mesmo tempo que dialoga
com um desejo que toma forma no Reino, o de assumir o futuro para o qual se quer predestinado, na
liderança da cristandade rumo aos campos do Senhor. Mas, nesse diálogo, as posições se invertem:
enquanto o Reino lança olhares de travessia para esse Oriente, que o Amaro do conto parece conhecer de origem, ele estanca, pois já voltou da sua particular travessia.
Essa conjunção faz pensar num destino pontual para o texto em questão. Mais precisamente para a
situação de uma iminente navegação marítima, em que os experientes marinheiros convocados para
a travessia necessitam ou necessitarão, antes do embarque ou a bordo, do conforto e assistência espiritual de um capelão. Para a tarefa é necessário preparar textos e religiosos. É necessário também
preparar os que, em terra, suportarão o afastamento e a longa espera de seus entes queridos. Nesse
sentido, o Conto de Amaro situa-se como uma forma coletiva de oração.
Ruas de Mão Dupla _Se assim for, é preciso considerar que o aglomerado de resíduos de natureza diversa que estão entrelaçados na matéria-prima do ‘Conto de Amaro’ situam-se em ruas de mão
dupla em que o oral e o escrito, alimentam-se mutuamente e organizam a espiritualidade em outra
esfera, extra-letras, extra-corpo e extra-muros. De um lado, sabe-se que os monges e noviços foram
incentivados, em várias épocas, a trocar cartas com amigos e familiares comentando passagens de
leitura, experiências próprias, relatos ouvidos de peregrinos e fiéis que tivessem contribuído na iluminação do caminho. Textos saídos do claustro, tingidos desse coloquial e com destinatários definidos, alcançaram um público indefinido e mais amplo, ávido desde sempre por notícias do paraíso
mas não necessariamente conventual e letrado. Por outro lado, sabe-se também que obras de devoção, reflexões espirituais e de orientação moral, relatos piedosos e exemplos de conduta foram fornecidos pelos monges aos sacerdotes para que eles os lessem ou recitassem em voz alta nas paróquias, ilustrando os sermões da missa, em preleções para grupos de estudantes, em eventos de família, nos cuidados do rebanho. Nessas travessias os textos tornavam-se por assim dizer outros textos,
transformados pela corporeidade da voz que transmite, do gesto que acompanha, no contexto dos
corpos que recebem e acolhem e eventualmente voltaram aos conventos, acrescentando um tempo
próximo àquele mais antigo.
Os franciscanos, nos diz Jacques Le Goff (1994:125), foram especialistas desse tempo próximo.
Ele se dará em afinidade com um cotidiano de fácil tradução para o ouvinte, localizável em suas
paisagens de memória e nos conhecimentos que dispõe. O caminho da salvação, que no caso português se confunde com os caminhos do Reino, não mais se descreverá em têrmos de uma esquecida
história antiga, em letra ignota e restrita ao conhecimento de eruditos, mas no aqui e agora de uma
experiência reveladora da própria intimidade amorosa com o céu através do outro. Nesse tipo de
pregação, que situa o passado e o futuro no presente, o exemplum - basicamente, um relato curto ou
longo, verídico ou fictício, de grande serventia aos oradores para adornar suas falas, esclarecer pontos obscuros da argumentação, aproximar universos conceituais distintos e prender a atenção do ouvinte - funciona como um poderoso recurso de retórica para promover a conversão e disseminar
idéias, encontrando eco na profunda religiosidade do português da Idade Média, no seu cotidiano
que apela à união com a Natureza e com o Divino.
Não por acaso, a produção de exempla torna-se mais frequente nos mosteiros portugueses a partir
do final do século XIII, talvez um pouco tardiamente em relação ao resto da Europa, mas coincidindo com a chegada dos primeiros franciscanos e dominicanos a Portugal. Empregado na antiguidade
greco-romana como “fábula de caráter histórico apresentada como argumento num discurso persua-
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sivo”, nos diz Jacques Le Goff (1994:123), o exemplum constituiu-se na Idade Média como história
edificante relacionada, em particular, “à moda do narrativo breve, na literatura, na qual tem parentesco com o lai139, o fabliau 140 e o conto” (Id ibid).
Seja em sintonia com o processo que vinha se operando em círculos cristãos para fazer frente às
heresias, seja pelo reconhecimento da eficácia da estratégia usada como recurso de pregação pelas
ordens mendicantes, seja para servir aos interesses de unificação do Reino encaminhando-o à glória,
seja para servir aos interesse de unificação da Igreja cindida em duas metades, esse gênero de narrativa ligeira - de amplo uso na Idade Média mas anterior a ela - alcançou sucesso na Península. “Vem
ao encontro da tradição mediterrânica transmitida pelos árabes, e acolhida com tanto interesse pelos
clérigos e leigos nas cortes senhoriais e régias ” sugere José Mattoso (1995, 218).
Desse ponto de vista o ‘Conto de Amaro’ se inclui na tradição galaico-portuguesa dos exempla,
uma vez que a narrativa se constrói para demonstrar um objetivo edificante. O aspecto mosaicado
do texto, que sugere tradições diversas convivendo no espaço textual, explica-se pelo esforço de resignificação promovido pelas ordens religiosas, e manifesta-se no hábito de copiar, adaptar, compor
ou transcrever exempla a partir de fontes diversas, orientais ou ocidentais, de origem sagrada ou
profana, indicando um modo operacional - uma estética de bricolagem - diante de um social fragmentado e um desejo de memória. Para isso e desde ha muito, nos diz Albert Pauphilet (1923)
os autores religiosos e particularmente os comentadores da Bíblia, haviam criado uma espécie de vasto repertório de correspondências entre as coisas espirituais e as aparências concretas dos fenômenos.
As formas e as cores, as pedras preciosas e os animais selvagens, tudo possuía um significado oculto,
tudo era símbolo e equivalente místico.
Doces Amores - Assim é que depois de entregar a Leomites o ramo da árvore da Consolação e
guardar consigo o ramo da “arvor a que chamã Dulces Amores” para entregá-lo a Amaro, a quem
ainda não conhece mas pressente, Baliides/Valides/ Brajlides parte.
Quanto a Amaro, depois de permanecer um mês ao lado de seus companheiros num porto que
Leomites lhe indicara, dotado “de muitas auguas e de muitas fruytas, e era terra muy saã e muy
te[~]perada” - quase uma ante-câmara do Paraíso - despede-se deles e parte sòzinho: “foi sse chorãdo e nõ levou cõsigo se nõ quatro paães”. Já não era marinheiro. Toma o rumo de um vale grande,
também indicação de Leomites, e pernoita na casa de uns ermitãos. Ali, os anfitriões mencionam a
existência de uma “dona”141 que peregrinava solitária nas montanhas. Quando dizem a Amaro que o
nome dela é Valides/Baliides, ele suplica: “Por Deus vos rrogo senhores que me digades se sabedes
hu he aquel parayso terreal” - pois dela já ouvira falar. O ancião mais velho responde-lhe: “E esse
139
O ‘Lai’ é uma narrativa curta e ritmada (entre 600 a 1000 linhas) relacionada ao amor e à cavalaria que surge sob
forma literária em dialeto arcaico na França e na Inglaterra, envolvendo frequentemente figuras da mitologia celta e da
‘Matéria da Bretanha’. Os mais antigos lais bretões conhecidos são os de Marie de France compostos em torno de 1170.
140
Os ‘Fabliaux’ são narrativas cômicas, rápidas, vivazes, não raro de forte conteúdo escatológico e sexual escritas por
menestréis anônimos, clérigos vagantes e goliardos. Como crítica social foram extremamente populares entre ca. 1150 e
1400 e sua difusão é atribuida aos cruzados que voltavam do Oriente. Ao contrário do exemplum, o fabliau não visa um
sentido edificante. Embora seus temas sejam relacionados aos das fábulas e apólogos o objetivo do fabliau é provocar o
riso ao inverter, por meio de jogos de palavras, o sentido da moral vigente.
141
É comum os textos medievais portugueses referirem-se às monjas como “dona” e aos conventos femininos como
“casa das donas”. Por exemplo, na carta em que D. Dinis coloca o Mosteiro de Santa Maria de Cós (sec XII) sob sua
proteção, escreve-se: ... faço saber Que eu recebo em miha guarda e em miha encomenda e so meu defendimento Abadessa e Convento e o Moesteyro das Donas de Qod etc” (CR, Mosteiro de Cós, ms unico n. 25, de 1298, fevereiro 15
apud Marie Louise BASTIN p 142 in Carlos Alberto Ferreira de Almeida in memoriam (1999) Porto:Fac de Letras da
Univ do Porto, vol 1 p 142.
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parayso que tu dizes em esa terra está, mas nõ o sabe nenhu[~]u hu he, se ño aquella dona Valiides e
se mostra se nõ a muy sancto home[~]”. À primeira luz Amaro partiu.
Dulces Amores
O tema místico da sublimação do amor carnal e terreno, fonte de conflito, através da realização do amor divino,
aquele transcende o corpo físico e se expressa no intenso desejo de união espiritual,
é antiquíssimo e está presente em diversas tradições.
Na hindu expressa-se no amor da pastora Rada e do deus Krishna, ao mesmo tempo soma e substância da vida
espiritual ( “Radha/Krishna cobertos de Pétalas de Lótus”, guache em papel, Mankot/ Punjab, India ca 1700).
Na literatura portuguesa o tema ressurge no século XVI nos Lusíadas142,
quando Luis de Camões (1524-1580) nos conta da Ilha dos Amores, a “ínsula divina”, que Venus faz emergir
das “entranhas do profundo / Oceano” (IX, 40; 21) , levada até eles “como o vento leva
branca vela” (IX, 52), fixando-a apenas no instante em que é vista e demandada (IX, 53).
Na leitura da passagem, Agostinho da Silva (1994:49-90) identifica a Ilha dos Amores com o império do Espírito Santo
entre os homens - um estado de consciência que apaga as dualidades todas,
carnal e espiritual, homem e mulher, humano e divino etc.
Tal estado de transcendência, previsto por Joaquim de Fiore para a humanidade toda e discutido por São Tomás de
Aquino no contexto da virtude teológica da esperança,
Portugal coloca em seu caminho terreno através da mística do Quinto Império.
No poema de Camões os marinheiros regressam ao mundo depois da passagem pela Ilha.
“Bem mais fácil e rapidamente do que na viagem de ida (X, 143-144)”, nota Paulo Borges (2003:339-350)
“porque agora sabem que o mundo, visto à luz da verdade do Amor,
é inseparável da própria Ilha, ou seja,
é Paraíso e lugar divino”.
.
142
Edição OnLine disponibilizada pelo Instituto Camões, Lisboa in ://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/literatura/lusiadas/
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Em meio ao “valle grande” Amaro avistou um mosteiro “ao pee de huu mõte muy alto” - um mosteiro feminino de nome Flor de Donas, esclarece-nos o texto, cercado de muros altos. Trata-se de
um lugar nobre pois as donas que ali estavam eram de “muy gram linhaje[~] d’emperadores e de
rrex e de iffantes e de condes” e ali “jaziam soterrados dez emperadores e treze rrex e muitos principes e condes e arcebispos e bispos e senhores e muitos boõs cavaleiros e donzellas e donas de
muy sancta vida”. Valides/Baliides também estava a caminho do mosteiro.
Três vezes por ano a peregrina ia até lá - no Natal, na Páscoa e no dia do Espírito Santo (50 dias
depois da Páscoa, em geral 31 de maio) - o texto não nos diz em que época estamos. O que nos diz
é que “todallas donas sayrõ a ella e rreceberõ na muy bem”. Quiseram beijar-lhe pés e mãos mas
Valides/ Brajlides não permite. Em vez, anuncia a vinda de “hu[~]u bõo ospede e de muy sancta
vida”, ao qual conhece apenas dos feitos e de nome. “Sayde aca que agora sera elle aqui” aconselha,
dizendo às “donas” que beijassem a terra que os pés de Amaro vem trilhando.
Amaro chega “muito canssado” e a pedido de Valides logo benze “as donas que som servas de
Deus”. Em seguida, é levado para uma câmara e dois frades são colocados à sua disposição para
que o sirvam e “senpre lhe faziam bõo leito”. No entanto, mal se apagavam as luzes, Amaro “erguya
sse daquelle leyto e deytava sse em terra e aly dormia”. Esteve naquele mosteiro “dez e seis dias”,
durante os quais a jovem Bryzida, “menina muy sancta dona” e sobrinha de Valides, recebe o hábito
monástico da “mãao sancta” de Amaro, toque indicial do caminho.
Quando finalmente Amaro se despede - pois durante todo aquele tempo não cessara de “rrogar
aquella dona que o guiasse pera aquella cousa que elle mais desejava”- Valides/etc lhe entrega
“huu[~]a vestidura muy rica, branca como a neve” tecida por sua sobrinha, para que ele a vista à
caminho do Paraíso. Estavam os dois numa serra “muy alta” à beira de um rio “muy grande” que
vinha do “parayso terreal”. Dali Valides volta ao mosteiro e depois se encaminha ao “porto hu estava a cõpanha de Amaro”. Encontra-os chorosos, a voz rouca, os panos rotos por “seu senhor Amaro” e os “salva”, dizendo
“Amigos, se souberdes o seu bem e a sua honrra muito vos prazerá; mas ell vos mãda por my saudar
e mãda vos dizer que a nave e quanto hy vem que o partades antre vos e pavoredes em esta terra”.
“Amigo, colhe me dentro!” rogou Amaro ao porteiro do paraíso. Do alto daquela serra onde se
despedira de Brajlides, ele avistara um castelo muito grande e formoso, todo de mármore - algumas
pedras eram brancas, outras verdes, outras vermelhas e outras pretas - e de cada uma das suas cinco
torres saia um rio e entrava no mar, cada um por si. E antes que chegasse ao castelo avistou uma
tenda enorme “tam grande que bem caberya so ella quinze mill cavallos”, coberta de pedras preciosas. Dentro dela estavam quatro fontes de onde jorrava água pela boca de leões.
À porta do castelo Amaro disse ao porteiro
Rrogote por Deus que me digas cujo he este castello tam rryco etam fremoso, que andey per muitas
terras e vy muy nobres castellos e nu[~]ca vy tam nobre ne[~] tam fremoso como este ...
E o porteiro, entendendo que Amaro era “home[~] de sancta vida”, ao qual Deus quis mostrar esse
lugar, respondeu-lhe
Amigo sabe que este he o parayso terreal em que Deus fez e formou Adam
Aos prantos, Amaro agradece e louva aos céus por haver realizado seu maior desejo, tudo quanto
cobiçara na Terra e roga ao porteiro que o deixe entrar
Amigo non trabalhes que ainda nõ as tempo de entrar dentro mas farei te hua cousa: quero te abrir a
porta e veeras algua cousa do bem e do sabor que aqui ha
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Abertas as portas - “tamanhas como corredura de hu[~]u cavalo” -, o porteiro mostrou primeiramente “a poma de que Adam comera” e depois as maravilhas todas, árvores, frutos, flores, dia eterno sem chuva nem frio nem quentura, grupos de jovens de mesma idade coroados com flores vestidos de panos brancos, vermelhos e verdes, tangendo guitarras, violas. Um cortejo de virgens coroadas com flores acompanhava uma senhora “muy grande e muy fremosa”, a mais linda do mundo, a
quem davam de beber e estendiam toalhas “tan brancas como a neve” para que limpasse as mãos;
aves com plumas de anjo acompanhavam o canto das virgens, dulcíssimo.
“Amigo, colhe me dentro!”. O porteiro recusa, não há tempo diz
“Eu bem sei que tu nõ vieste aquy se nõ pello sprito sancto, ca tu nõ comeste, ne[~] bebeste, ne[~]
mudaste teus panos, que som muy fremosos, ne[~] envelheceste”
Amaro afirma que antes que ali chegasse, naquele mesmo dia, havia comido e bebido “aa hora de
terça”. Mas não, retruca o porteiro: “... som passados duze[~]tos e seseenta e sete ãnos que tu estas
a esta porta e nu[~]ca te partiste dela...”.
“Amigo, da-me dessa terra hua pouca”.
E o porteiro deu-lhe “hu[~]a escudella” da terra do paraíso.
Conclusão_ O moral desse ‘Conto de Amaro’, considerando a função de exemplum que eventualmente lhe coube à época e no lugar da sua produção, encerra-se assim na constatação, algo melancólica, da impossibilidade terrena de vivenciar concretamente o Paraíso desejado, presente e real na
imaginação humana e em construção paralela na mística do Reino, mas cujo tempo, nos diz o texto,
é outro, suas leis são diferentes das leis do tempo terreno e também das leis do sonho e das visões,
em que as sequências se alteram na memória.
A temporalidade distinta da terra e do paraíso, a diferença entre o tempo físico dos homens e o
tempo do divino, é tema de larga tradição entre os Povos do Livro mas não só. Percorre toda a cultura monástica a perder de vista. Para essa dor, essa dualidade sem apelação entre o que é mortal,
pois humano, e o que não é, não há consolação possível no curto espaço da vida - uma coita inseparável da situação de estar, nascer na Terra. Trata-se de um tema central das indagações que beiram o
sagrado na dualidade vida/morte.
Na atualidade a questão dos paraísos terrenos talvez pareça resolvida e óbvia mas do nosso ponto
de vista não é porque traz a questão das temporalidades distintas que convivem na memória e remete à construção dos espaços mitológicos que co-existem na percepção da realidade. Essa, talvez, a
justificativa básica da pesquisa sabendo-se, de antemão, que não existem conclusões fechadas.
O pensamento mitológico pode parecer paradoxal e longínquo do ponto de vista da atualidade, do
mesmo modo que o pensamento descritivo da atualidade pode parecer estranho às manifestações
concretas do que é possível vislumbrar do pensamento mitológico, em seus modos operacionais não só em culturas ditas arcaicas mas na percepção de mundo da criança bem pequena.
De qualquer modo, não se trata de um pensamento que caiba no termo ‘primitivo’. Antes, é um
tipo de raciocínio próprio a um fenômeno de consciência que consegue resolver complexos problemas de classificação e propicia saltos temporais não cabíveis no pensamento cotidiano, afeito à continuidade do mundo. Os resíduos deste tipo de raciocínio ou seja, o que resiste aos processos de
domesticação cultural, estão presentes na heterogeneidade que caracteriza a consciência humana.
Se, de um lado, eles se prestam a mistificações, por outro são fundamentais nos processos de criação artística e científica, cada qual na sua especificidade.
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Hall Freire 75
Vislumbra-se assim algo mais no plano interno do Conto de Amaro, soando silenciosamente na
organização da narrativa que chega até nós como Raconto143. Remete, de um lado, para o modo de
funcionamento dos ritos de passagem e, de outro, exige nossa atenção para os interstícios, essa poética que se entranha na noturnidade dos processos mitológicos.
Na simplicidade cristã e monástica da sua rememoração, o Conto de Amaro pertence à mesma
tradição literária que, na construção do sentido, faz uso de figuras da linguagem que agem por anacronia, à qual pertencem épicos como o Maabárata e o Ramáiana na India, a Ilíada e a Odisséia, os
Lusíadas em Portugal 144 . Na vizinhança de notáveis, o interesse pelo Conto de Amaro se amplia.
Quando menos, estabelece uma antecedência, no mesmo caldo cultural, de um lamento consideravelmente semelhante àquele que uma leitura atenta faz indagar dos Lusíadas de Camões 145.
143
Entende-se por Raconto ou narração pré-ativa uma maneira particular de se contar uma história, caracterizada pelo
fato de a ação desenvolver-se em temporalidades paralelas, e onde se instala uma espécie de rememoração do ocorrido.
Assim, uma extensa retrospectiva do passado desenrola-se no plano interno da historia pela voz ou vozes do narrador,
como se elas dialogassem entre si em busca da memória, revistando seus arquivos por fatos diversos que, despercebidos
na ocorrência, nessa nova aproximação mostrem-se relevantes; desse modo, a narrativa progride lentamente de forma
linear até chegar ao momento inicial da rememoração, ou seja, quando encontra-se com o ponto de partida do ocorrido
que se quer narrar. Trata-se, sob um certo ponto de vista, de uma performance do narrador - um subjetivo que não se
exclui da realidade. O ouvinte ou leitor, de seu lado, percebe a tensão que se instala internamente na narrativa: um certo
clima de suspense ou mistério, a sensação de que há algo oculto, além da sua compreensão imediata. Histórias que contam histórias constituíram um gênero popular a partir do século XIX através dos romances policiais. Diz-se do gênero,
em italiano, Letteratura Gialla, um termo que possivelmente só se encontra nessa língua e coincide com a publicação
em 1841 de “Os Assassinatos da Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe. Neste Giallo, Poe dota seu personagem, o detetive
Auguste Dupin, de enorme capacidade dedutiva - o que lhe permite resolver crimes complicados só pela leitura dos
jornais, sem ao menos deslocar-se para os lugares do delito. Outros personagens memoráveis surgiram desse modelo:
Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Miss Marple.
Embora tenha ressurgido nos novecentos, a rememoração dos fatos, como Techne, é antiquíssima e na atualidade não se
limita à literatura: existe como linguagem do Cinema, nas Histórias em Quadrinhos, na Televisão, em Serializações.
distribuindo-se irregularmente nos veículos de Comunicação de Massa através de um padrão conhecido como ‘pintas de
leopardo‘, um aglomerado de aspectos que, tomados isoladamente, são pouco significativos mas no contexto sinalizam
a possível emergência de um fenômeno.
144A
não coincidência da ordem dos acontecimentos contados na trama de Os Lusíadas é enfatizada por Paulo Borges
(op cit) no comentário que faz do episódio da Ilha dos Amores: “Camões fala da “Ilha namorada (IX, 51), o que entendemos no sentido activo, como a Ilha que namora os nautas, antes mesmo que eles a vejam e desejem, sendo até eles
levada como pelo “vento”, esse mesmo “vento” que, na medieval Navegação de São Brandão, impele os nautas, “através da cerração”, para a Ilha do Paraíso, metáfora do livre movimento do espírito divino, que, sem que ninguém saiba
de onde vem nem para onde vai, imprevisivelmente sopra onde quer (João, 3, 5-8). Mas o mais importante é que, quando Vénus ordena a seu filho, Eros, que fira de amor as ninfas, para que na simbólica alteridade do mar, não na terra,
tenham esse “prémio e doce glória / Do trabalho, que faz clara a memória” (IX, 39), ou seja, o conhecimento, Eros está
a reunir um exército de Cupidos para promover uma “expedição / Contra o mundo rebelde, porque emende / Erros
grandes que há dias nele estão, / Amando coisas que nos foram dadas, / Não para ser amadas, mas usadas” (IX, 25).
145
Logo após a estrofe que descreve o regresso à pátria dos nautas camonianos depois da estadia na Ilha dos Amores,
onde desvanece a dualidade fundamental entre o que está abaixo e o que está acima, vem o célebre “Não mais, Musa,
não mais”, nota Paulo Borges, como se o poeta, Camões, “ele mesmo fosse o Gama tragicamente regressado a uma pátria onde ninguém pode reconhecer nem compreender um emissário da Verdade e do Amor”, ironicamente rejeita a inspiração por constatar como o que canta apenas encontra gente surda e endurecida (Lusíadas X, 145). “Gente surda e
endurecida” apenas por não compreenderem o superior destino histórico da nação ou “gente surda e endurecida” por,
recusando passar da letra que mata ao espírito que vivifica [a interpretação literal dos textos sagrados] apenas referirem
aos portugueses, a Portugal e à expansão da Fé e do Império, a alegorias moralizantes e patrióticas, a figuras de retórica
ou a estruturas narrativas, uma mensagem que vem afinal do Infinito e se destina a todos os homens, para que sejam
nauta e ninfa e renasçam da experiência do Amor pleno, corporal, anímico e espiritual, que é já regresso ao Paraíso,
experiência do Infinito e infinita visão da totalidade, condição para que o mundo se revele ou torne um Império do
Amor?”pergunta Paulo Borges (op cit)
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O parentesco aludido ecoa na organização do texto pelo emprego da analepse, essa figura retórica
que age por transposição 146 , não se confunde com os tropos 147 e constitui, segundo o escritor Mario de Carvalho “a figura de estilo mais antiga da literatura vastamente utilizada pelo bom do Homero, quando não dormia, e não sei mesmo se pelo autor do Gilgamesh”148 .
Se assim for, nesse relance de eternidade entrevisto na frase humorada do poeta (a imensidão do
contexto), também se reconhece um modo operacional do mito em definição de Claude LéviStrauss149. No Conto de Amaro, a visão do paraíso - um relance - transporta-nos para o linguístico e
literário.
A eternidade que o personagem evoca, que esteve sempre ali e que veio visitá-lo naquele seu presente - temporalidades distintas que, no linguístico são resolvidas num mesmo texto por meio da
analepse - estabelecem uma sensação de continuidade com um passado remoto, uma esperança possível, uma pertença que conforta as “rodas que movem os seres viventes” de que falava o profeta
Ezequiel junto ao rio Quebar. No entanto, ao mesmo tempo que acena com a esperança possível e
toca no sagrado - um desejo de transcendência que, entre humanos, se estende - o Conto de Amaro
146
Figuras de construção de linguagem que agem por transposição e complementaridade entre si: a Analepse e a Prolepse (Flash Back). “Designam a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela interpolação de eventos ocorridos anteriormente. São, portanto, uma forma de anacronia ou seja, uma mudança de plano temporal”, nos diz Nilza
Aparecida Hoehne Rigo, escritora e poeta campineira que assina suas obras como Nilza Azzi e continua: “Ao contrário
de Analepse, a Prolepse é um recurso narrativo através do qual se pode descrever o futuro; um acto futuro; prever o
futuro, etc. Aparece em Os Lusíadas, no plano da história de Portugal. O livro "Cem anos de solidão" de Gabriel Garcia
Marques abre com prolepse analéptica, isto é, o que o narrador conta são, na verdade, recordações. Por analepse ele
'volta' no tempo para antecipar, por prolepse, o acontecimento narrado”
Online in //www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1608259
147
O professor Latuf Isaias Mucci indica a diferença: “Desde seus primórdios, a retórica, sobretudo sob a rubrica (ou
figura) da elocutio, distingue as ‘figuras de palavras’, ou tropos, das ‘figuras de pensamento’, que intervêem mais diretamente na organização do conjunto do discurso. Em seu constantemente reeditado Dicionário de termos literários,
Massaud Moisés retoma, citando Heinrich Lausberg, a distinção entre figuras de palavras, “que dizem respeito à formação lingüística e consistem na transformação desta, por meio de categorias da adiectio, detractio, transmutatio, e figuras
de pensamento, que dizem respeito aos pensamentos (auxiliares), encontrados pelo sujeito falante para a elaboração da
matéria e, por conseguinte, são, em princípio, objeto da inventio. Integrando o capítulo da linguagem figurada, distinguem-se dos tropos, visto que estes implicam a mudança semântica dos vocábulos. Com base nas regras formuladas por
Aristóteles, aos retores cabe, mais do que ensinar a maneira de elaborar um discurso (falado ou escrito, mas, sobretudo,
escrito), trabalhar os processos do discurso e os processos do estilo, conhecidos sob o nome de figuras. Nessa pauta, o
estatuto da retórica varia conforme se considerem as figuras como um ornatus adjacente ao pensamento que se exprime
no texto ou como tópica de um trabalho específico sobre a própria significação (signifiance, na clave de Barthes); em
todo caso, a retórica manifesta-se, sempre, como um código segundo, que se junta e eventualmente contradiz as prescrições do código lingüístico” Latuf Isaias MUCCI in E-Dicionário de Termos Literários, verbete Figuras de linguagem
148
149
apud Carlos CEIA in E-Dicionário de Termos Literários, verbete Analepse.
Na tradição saussuriana, a língua e a fala, langue e parole, são semelhantes embora opostos. Apoiando-se nesta distinção, Claude LÉVI-STRAUSS remete aos referenciais de tempo que estabelecem a diferença entre estes opostos semelhantes: de um lado, o tempo reversível ao qual pertence a língua e, de outro, o tempo não-reversível da parole. “Se
estes dois níveis já existem na linguagem, é possível conceber um terceiro”, nota ele (1955:430,2.3), ao distingüir um
outro referencial do tempo “que combina as propriedades dos dois primeiros” (op cit, 430:2.4) e está presente no mito.
Segundo Lévi-Strauss, o valor operacional do mito é esse terceiro nível, um “padrão específico descrito como atemporal: explica o presente e o passado assim como o futuro” (id ibid). Presentifica-se na narrativa e na percepção do narrador. Políticos de diversas tendências têm sido especialmente gratos a esta dimensão atemporal do mito. Jules MICHELET (1798-1874), citado por Lévi-Strauss como um historiador “antenado” politicamente, descreve da seguinte forma a
percepção da Revolução Francesa, na ocorrência : “Naquele dia … tudo foi possível… O futuro tornou-se presente…
isto é, não mais tempo, um relance de eternidade” (Michelet, 1979). É esta estrutura dúplice, “ao mesmo tempo histórica e a-histórica”, conclui Lévi-Strauss (ibid) “que explica como o mito, pertencente ao domínio da ‘parole’ e solicitando
entendimento como tal, assim como àquele da ‘langue’ em que é expresso, também pode ser uma entidade absoluta num
terceiro nível que, embora permaneça de natureza linguística, é apesar disso distinto dos outros dois”.
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tensiona-se e impõe a sua razão mais dura ao desejo de espaços que se manifestam contraditoriamente na consciência humana, heterogênea.
É possível, parece-me, vislumbrar-lhe a voz. Desde a Grécia dos aedos - cantadores como Homero, ‘poietés’ aparece bem mais tarde (sec V aC) - sabe-se que nenhum ser vivo consegue evitar a
morte. No entanto, àquela época existiu uma palavra, um som longínquo e quase impronunciável
que nos chega do proto-indo-europeu, *Hnekh-thrH ou ‘vencedor da morte’ nos dizem Thomas
Gamkrelidze e Vyacheslav Ivanov (1995:721-722 #47 e #48) do termo que nomeia uma bebida especial dos deuses - néktar, dirão posteriormente os gregos homéricos desta ‘fragrante beberagem
vermelha’, o impronunciável *Hnekh-thrH servido pela deusa Hebe, filha de Zeus e Hera, em banquetes com seus pares (Iliada 4.1-3). Sòmente quem tomava dessa bebida podia evitar a morte (Paul
Thieme 1952, 1968a apud Gamkrelidze e Ivanov). No proto-indo-europeu, os que bebiam esse néctar eram chamados *n-mrtho- (imortal) em contraste com os comuns mortais, *mrtho- (Gamkrelidze e Ivanov 1995:721-722 #47 e #48). Gosto de pensar que o termo “amaro” do raconto veio dessa raiz triconsonântica, arcaica e impronunciável, *mrtho-.
O significado da relação mortal/imortal na cultura indo-européia é bastante conhecido por uma
passagem da Ilíada, aquela do nono livro que nos conta a decisão de Aquiles em seu momento, a
escolha entre a vida e seu oposto. Aos que querem seu retorno à luta contra os troianos, ele responde ecoando a profecia da deusa Tétis: se voltar, sabe, morrerá. É este o preço da glória eterna, da
“fama imperecível que sobrevive à morte” reservada aos impronunciáveis *n-mrtho-.
A mãe déia argentípede o meu duplo / fado abriu: se debelo a grã cidade, / não regresso mas compro a
glória eterna;/ se torno ao doce ninho, murcha a glória, / terei velhice longa e fim tardio (Homero,
Ilíada, 1952:9-410)
Talvez, como propõe Calvert Watkins (1995:176), esse seja “o tema central” da poética indo-européia: dois futuros, dois valores que se contrapõem e balançam no ritmo de dois verbos.
Perder (‘doce ninho’, vida tranquila)
Ganhar (fama eterna)
Perder (fama)
Ganhar (vida longa)
.
Nessa poética, o ‘Conto de Amaro’ definido como fruto de uma cultura monástica sugere um encontro ritual de conteúdos semelhantes e diferentes na balança. A diferença e a semelhança entre
ambos, o tecido que determina o significado da ação e da escolha, situa-se assim na fusão da
tradição heróica com a monástica, de mesma fonte e tão antiga quanto, mas que dá um significado
algo diferente aos verbos
Perder (ambições mundanas)
Ganhar (vida eterna, “doce ninho”)
Perder (vida eterna, “doce ninho”)
Ganhar ( fama, ambições mundanas)
No enquadramento, o “Conto de Amaro” se contrapõe às ambições puramente materiais do Reino,
ou melhor, faz valer as suas nesse delicado equilíbrio.
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”La pluralidad de los contextos y la materialidad de los soportes
determinan la sustancia de la
obra medieval en una proporción que apenas tiene nada que ver con nuestra experiencia actual”.
Francisco Rico Manrique, 150
CONTEXTOS
150in
151
151
Notas sobre los paradigmas misceláneos y la literatura del siglo XIV
Ho flos sctõrum em lingoajem portugues, de 1513 (Ans. 443): Esta obra foi acabada de imprimir em Lisboa, por
Hermão de Campos & Roberto Rabelo, a 15 de Março de 1513, como consta do cólofon (f. 267r.)
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Constelações_ O ‘Conto de Amaro’ é um texto selecionado e produzido para uma coleção que se
diz mystica. Supõe-se que o objetivo dessa produção tenha sido a edificação espiritual dos monges e
dos que viviam à sombra do Mosteiro de Alcobaça, sede da Ordem Cisterciense em Portugal: por
trás do manuscrito há um projeto e uma comunidade com uma tradição - imagem de mundo, valores, práticas em comum configurando o que Thomas Kuhn (1970) chama ‘constelação’. Em Portugal, essa ‘constelação‘ esteve sempre muito próxima dos centros de poder, e de certo modo foi um
deles, entrelaçando seus próprios objetivos com os destinos e as ambições do Reino.
Um universo ritualizado, codificado. Os cistercienses eram reconhecidos pelo hábito monástico
inicialmente confeccionado em lã não trabalhada de ovelha, fiada e tecida sem nenhum tingimento,
que os distinguia pela coloração natural mais clara dos beneditinos, caracterizados pelo hábito negro. À época de São Bernardo (1090-1153) o guarda-roupa da Ordem de Cister (Citeaux) obedecia
estritamente o que o Capítulo 55 da Regra de São Bento recomendava como suficiente a cada monge: uma cogula (a clássica túnica de mangas largas e compridas, com capuz), uma túnica mais leve
ou mais usada, permitindo troca para lavagem ou vestida como roupa de dormir; um escapulário
(espécie de capa ou pedaço de pano envolvendo integralmente os ombros usada no trabalho); para
os pés: meias e calçado. Os noviços só recebiam a cogula no dia da profissão de fé, de acordo com
um ritual ainda hoje observado. Até a profissão de fé, vestiam uma capa ou manto com capuz sobre
a túnica mais leve e basta.
Se a cor do hábito distinguia os beneditinos dos cistercienses, o hábito em si os aproximava pela
tradição milenar de que eram herdeiros e cujas raízes se vislumbram no Oriente; distinguindo-os da
hierarquia organizada pela Igreja para os cuidados do rebanho - o clero secular composto de diáconos, presbíteros, padres e bispos nas paróquias e dioceses - de cuja fé o monasticismo cristão naturalmente compartilha, de cujas mãos recebe os sacramentos, mas de cujo consentimento para agrupar-se ou isolar-se, em princípio, não depende. Para ser monge não era necessário ordenar-se sacerdote, bastando jurar castidade, pobreza, obediência ao abade e às regras da Ordem Monástica.
O Oriente do qual a Cultura Monástica se aproxima não é apenas um Oriente externo, é um Oriente interno que se relaciona ao processo de íntima descida de que nos fala Gilbert Durand (1969) nas
estruturas antropológicas do imaginário. Nos mosteiros, os textos da Tradição Patrística - de cuja
cultura a monástica se aproxima como um prolongamento em outra época e em outra civilização não eram apenas lidos, copiados, admirados, comentados. Eram vivenciados na carne e de tal modo
que nos permite distinguir, como o faz Jean Leclercq (1982:106), entre duas Idades Médias, a
escolástica e a monástica, que tendo brotado no mesmo solo e na mesma época - o Ocidente entre
os séculos VIII e XII - diferem na respectiva evolução.
Embora não se verifiquem choques de monta entre o poder eclesiástico e o poder abacial durante
a Idade Média, não é possível falar de relações tranquilas. Do mesmo modo, não foram tranquilas as
relações entre o poder espiritual e temporal dos papas, dos cardeais e o dos reis e imperadores que
reivindicaram o direito de instituir bispados e abadias. Por volta do século IX a secularização das
instituições religiosas, fossem monásticas ou eclesiásticas, havia atingido um ponto crítico, dando
início a um movimento de reforma religiosa que culminou no papado de Gregório VII (1073-
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1085)152, prolongando-se em períodos posteriores. A reforma do movimento monástico ocidental se
imbrica nesse contexto como estopim e extensão do poderio dos papas, notadamente nas regiões
reconquistadas na Península Ibérica e recém-cristianizadas no Báltico Norte.
Reformas Monásticas_O movimento teve início na abadia beneditina de Cluny na Borgonha em
909. O modelo da Reforma Cluniacense153 - cuja originalidade legal está em que o monastério passa
a depender formalmente do papa - foi adotado por outros mosteiros na França (Vézelay, St Marie
d’Autun, Brogne). Não tardou para que Cluny espalhasse abadias “filhas” pela Europa. No século
XII os cluniacenses formavam um império de 1.200 monastérios, alguns dos quais eram poderosos
senhorios monásticos onde a liturgia era a principal ocupação dos monges154.
A participação no Coro era obrigatória e o canto era forte, contínuo e belo: os monges quiseram
que a música, a arquitetura e a arte contribuissem para o esplendor e a solenidade dos ritos. O Ofício Divino (Divinum Officium) a que os monges de Cluny se dedicaram integralmente baseava-se
na Liturgia católica e determinava a divisão dos dias e das noites em Horas Canônicas, cuja frequência já estava padronizada por volta do século IX conforme a Regra de São Bento, seguindo o
verso do salmista: "Louvei-vos sete vezes por dia" (Salmo 119 [118]). Eram chamadas Matinas,
Prima (hoje, Laudes), Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas e seu objetivo era servir de diretriz
para orações a intervalos regulares que os de Cluny alongaram em louvação permanente.
Celebravam-se as Matinas ao romper da aurora. As Laudes, a oração da manhã, e as Vésperas, a
oração da tarde, constituiam os dois polos cotidianos do Ofício Divino, horas principais intercaladas
pela Terça (9h00), a Sexta (12h00) e a Noa (15h00). Rezavam-se as Completas antes do repouso da
noite interrompido pelas Vigílias durante a madrugada.
O cuidado especial dedicado por Cluny à celebração das Horas, ao canto dos Salmos, às procissões tão devotas quanto solenes estendia-se, naturalmente, à celebração da Santa Missa, quando
muitas intercessões junto do altar eram feitas em nome dos vivos e dos mortos, para os quais os
cluniacenses instituiram um dia especial de Finados no Calendário Litúrgico, através das súplicas
152
Embora se atribua a Reforma Gregoriana ao papa Gregório VII (1073-1085) ele mesmo atribuía a iniciativa a São
Gregório Magno I (590-604), reforçada pelos tímidos avanços em torno de uma autonomia do poder papal alcançados
por Nicolau I (859 – 867) e colocados em prática por Leão IX (1049 – 1054). Além de condenarem a simonia (compra
e venda de bens espirituais), o nicolaitismo (concubinato ou matrimônio dos clérigos), a usura (cobrança de juros sobre
valores emprestados) esses papas manifestaram-se contra as investiduras leigas – prática corrente uma vez que a função
episcopal implicava em autoridade temporal e lucros consideráveis para os investidos, tornando-se assim objeto de desejo dos nobres e moeda de troca de fidelidades. Em seu pontificado Gregório VII montou uma estrutura de poder no
qual ele, Summus Pontifex, se instituía como autoridade máxima, acima de quaisquer outras no papel de chefia da Cristandade, definindo a idéia do poder universal do Papado semelhante a dos poderes terrenos, cuja legitimidade advinha
da idéia de potestas e supunha a utilização de uma práxis hierocrática, superior aos demais poderes instituídos.
153
Na carta de doação de terras à Abadia de Cluny o duque Guilherme da Aquitânia faz constar uma cláusula para que
no mosteiro beneditino a ser fundado ali o abade fosse eleito livremente pelos monges e o convento permanecesse imune a toda autoridade laica ou do bispo diocesano: “ Nous avons voulu insérer dans cet acte une clause en vertu de laquelle les moines ici réunis ne seront soumis au joug d'aucune puissance terrestre, pas même la nôtre, ni à celle de nos
parents, ni à celle de la majesté royale. Nul prince séculier, aucun comte, aucun évêque, pas même le pontife du siège
romain ne pourra s'emparer des biens desdits serviteurs de Dieu, ni en soustraire une partie, ni les diminuer, ni les
échanger, ni les donner en bénéfice.Je vous supplie donc, ô saints apôtres et glorieux princes de la terre, Pierre et Paul,
et vous, pontife des pontifes, qui trônez sur le siège apostolique, d'exclure de la communion de la sainte Église de Dieu
et de la vie éternelle, en vertu de l'autorité canonique et apostolique que vous avez reçue, les voleurs, les envahisseurs et
les morceleurs de ces biens que je vous donne joyeusement et spontanément. Soyez les tuteurs et les défenseurs de ce
lieu de Cluny et des serviteurs de Dieu qui y demeurent” in Recueil des chartes de l’abbaye de Cluny, t. 1, A. Bernard,
A. Bruel (éd.), Paris, 1876, p. 124-128
154
A liturgia adquire especial solenidade em Cluny uma vez que os monges acreditavam que ela fazia parte da liturgia
celestial. O monastério, convertido em símbolo do amor divino, transformou-se em réplica terrestre da “Jerusalém Celeste” pela qual a cristandade ora e espera a chegada, próxima aos terrores do ano mil.
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enviadas pelas famílias que aguardavam o reencontro próximo no Dia do Juizo. Desse modo, a liturgia absorvia todo o tempo dos monges. Embora o trabalho manual fosse previsto nas “Consuetudines” (o código religioso que regia a vida comunitária, apoiado na interpretação de Bento de Aniane da Regra de S. Bento), pouco ou nenhum tempo sobrava para ele.
Fiel à centralização em Roma, a Ordem tornou-se muito rica e temida, organizou peregrinações,
cruzadas, construiu belas igrejas, puniu com a excomunhão, aconselhou reis e nobres - função que
os bispos acreditavam sua. Com a grandeza veio a lassidão dos costumes, denunciada em 1112 pelo
jovem Bernardo, monge cisterciense borgonhês.
À época de São Bernardo, o mundo ansiava por outra espiritualidade e o papa precisava de outros
aliados. O objetivo do pequeno grupo que iniciou a caminhada Cisterciense 155 na nova onda reformista que se ergueu às vésperas do século XII, pouco depois da separação formal entre as Igrejas de
Roma e de Constantinopla156 , era restaurar a simplicidade e a austeridade da Regra instituída por
São Bento (ca. 480-547), claustrum et heremus157, comprometida pelo luxo e fausto que cercou os
de Cluny. Em 1115, São Bernardo, então com pouco mais de 25 anos, fundou em obediência e sob
orientação de St. Stephen Harding, terceiro abade-geral da Ordem de Cister, a abadia de Claraval
(Clairvaux), de estrita disciplina, rigor litúrgico e valorização do trabalho manual como forma de
oração. Grande parte dos ramos que brotaram de Citeaux nos anos seguintes vieram de Claraval:
341 casas, das quais 80 filiadas diretamente, dispersas por toda a Europa. A Abadia de Alcobaça, em
Portugal, descende desse tronco.
Fundadores de Cister
(in Ordo Cisterciensis Strictioris Observantiae, 2010)
Em termos litúrgicos, a reforma da Ordem de Cister pautou-se por uma concepção de tempo mais
elástica do que a praticada anteriormente. O Saltério de 150 salmos era recitado no decorrer da semana à diferença de Cluny em que era todo ele era cantado num único dia. De início, o Oficio Divino, ocium laborosissimus dizem os textos, foi centrado em oito horas canônicas e uma missa conventual diária. Posteriormente, uma segunda missa foi adicionada aos domingos e nos dias de Festa;
na sequência outras missas: para os mortos, para os benfeitores e para a Virgem, patrona da Ordem.
155
Em 1098, St Robert - abade do mosteiro beneditino de Molesme (França) - partiu com 21 de seus monges para as
terras desertas da antiga Cistercium romana (Citeaux, perto de Dijon, Fr) para fundar um mosteiro onde se praticasse
com alegria o áspero caminho da perfeição espiritual. Em 1100, depois da volta de St Robert para Molesme, St. Alberic
substituiu-o como abade da pequena comunidade que conheceu grande expansão no período abacial de St. Stephen
Harding (1109-1133) quando o movimento desdobrou-se nas abadias filiadas em La Ferté (1113), Pontigny (1114),
Clairvaux e Morimond (1115) que constituiram, juntamente com o centro em Citeaux, os troncos em torno do quais se
desenvolveu a Ordem, reconhecida (1119) pelo Papa Calixto II apesar do combate movido pelos cluniacenses.
156
157
Grande Cisma do Oriente-Ocidente (1054)
A opção pela pobreza e um lugar afastado para localização do mosteiro, a obrigatoriedade do trabalho para garantir
sustento próprio, a renúncia aos dízimos, aos benefícios eclesiásticos, às recompensas pela oração privilegiada
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São Bernardo não negava a beleza e a importância da beleza nos rituais. Ele a reconheceu nos ornamentos de Cluny, e de maneira tão forte que percebe-os como veículos de um poder que contamina os sentidos e desloca a atenção do que é “verdadeiramente Belo”, para o que poderíamos chamar,
talvez, simulacros158 da beleza eterna. Ao amigo Guilherme, abade de St-Thierry, ele escreve
... Enfim, o número dessas representações é tão grande e a sua diversidade tão sedutora e tão variada
que prefere-se contemplar esses mármores que ler os manuscritos, e passar o dia a admira-los em vez
de meditar na lei de Deus (São Bernardo, Apologia a Guilherme, abade de St-Thierry) 159
O que São Bernardo rejeita não é o “Belo”, o bem supremo que tanto os de Cister quanto os de
Cluny situam no amor divino que fez o homem à imagem e à semelhança de Deus, mas o apelo excessivo aos sentidos externos na busca da semelhança perdida. Toda a espiritualidade cisterciense e
a estética que a acompanha vai em sentido contrário, para o despertar dos sentidos internos, o que
vislumbra-se possível quando se calam os outros, nos quais já não percebe-se, na voz que ecoa, a
semelhança entre Deus e os homens antes do pecado original, mas apenas a imagem que conservouse dela, de certo modo simulacros que sugerem paradoxalmente não a vida da alma, mas a morte.
Amor, nos diz São Bernardo, “para aquele que não ama é uma linguagem bárbara” 160
(iluminura, capitular sec XIII)
158
Autores da atualidade, como Jean Baudrillard (1929-2007) e Giles Deleuze (1925-1955), refletindo a respeito do
têrmo acrescentam possibilidades de leitura no contexto do pensamento cisterciense e em particular o de São Bernardo.
Baudrillard, por exemplo, usa o têrmo “simulacro” para identificar não uma cópia do real, mas a sua “meticulosa reduplicação” num hiper-realismo em que o real se volatiza, “não mais o objeto da representação mas o êxtase da negação e
seu próprio ritual de exterminação...”. in POSTER, Mark (2001, ed) Jean Baudrillard : selected writings, Standford:
Standford University Press, p 147-8. Giles Deleuze, por outro lado, nos diz que simulacra “não são simplesmente cópias de cópias, icones degradados envolvendo relações de semelhança infinitamente relaxadas” mas, em contraste com os
ícones, “possuem uma semelhança externalizada e habitam, em vez, numa diferença. Se produzem um efeito externo de
semelhança, isso toma a forma de uma ilusão, não de um princípio interno; é construida na base da disparidade, tendo
interiorizado a dissimilitude das suas séries constituintes e a divergência de seus pontos de vista até o ponto em que
mostra várias coisas ou conta várias histórias ao mesmo tempo” in Giles DELEUZE, Paul PATTON (trad 2004) Deleuze: difference and repetition, London: Athlone Press, p 155.
159CLAIRVAUX,
Bernard (ca 1132) Apologie Adressée a Guillaume, abbé de Saint-Thierry: “Mais que signifient dans
vos cloîtres, là où les religieux font leurs lectures, ces monstres ridicules, ces horribles beautés et ces belles horreurs? A
quoi bon, dans ces endroits, ces singes immondes, ces lions féroces, ces centaures chimériques, ces monstres demihommes, ces tigres bariolés, ces soldats qui combattent et ces chasseurs qui donnent du cor? Ici on y voit une seule tête
pour plusieurs corps ou un seul corps pour plusieurs têtes : là c'est un quadrupède ayant une queue de serpent et plus
loin c'est un poisson avec une tête de quadrupède. Tantôt on voit un monstre qui est cheval par devant et chèvre par derrière, ou qui a la tête d'un animal à cornes et le derrière d'un cheval. Enfin le nombre de ces représentations est si grand
et la diversité si charmante et si variée qu'on préfère regarder ces marbres que lire dans des manuscrits, et passer le
jour à les admirer qu'à méditer la loi de Dieu. Grand Dieu ! si on n'a pas de honte de pareilles frivolités, on devrait au
moins regretter ce qu'elles coûtent.” (trad livre do trecho grifado em itálico)
OnLine: http://www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/bernard/tome02/guillaume/guillaume.htm
160
Sermão LXXIX,1 OnLine: http://www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/bernard/tome04/cantique/cantique079.htm
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Em tratados doutrinais como o “Amor de Deus”161 ; nas considerações que envia ao papa cisterciense Eugenio III (1145-1153) 162, antigo discípulo; em vários sermões do Cântico dos Cânticos163,
São Bernardo exalta o despojamento, o rigor, a importância da meditação pela palavra, pelo recolhimento que desvenda o engano e da precedência dos ouvidos em relação aos olhos: “A aparência
enganou os olhos e a verdade entrou pelos ouvidos” (XXVIII,5)164 escreve, da relação da alma
aprendiz com a palavra divina. Em nenhum momento seus escritos negam o que é, segundo Georges Duby 165, o sonho maior de Cister: estimular a cristandade inteira a desenvolver a interiorização
do amor divino e, a partir daí, iniciar a travessia para a salvação. Não há, nessa espiritualidade direcionada para a palavra que ilumina dentro, lugar para o mundo externo dos sentidos. Toda ênfase
volta-se para o interior do ser, a alma que desperta. Desse ponto de vista soa estranho o elogio que
São Bernardo faz à Ordem do Templo “que não é a sua e, mais ainda, cujo ideal é bastante diferente
da vida monástica objeto do seu amor” nota Jean Leclercq166 - mesmo que se saiba hoje dos laços
de parentesco que ligavam o abade de Claraval ao fundador da ordem templária, Hugo de Payns, e
da insistência desse em obter uma palavra daquele.
A demora na resposta não se explica apenas pela modéstia bernardiana167 mas pela dificuldade que
ele expõe em articular a prática guerreira com a prática monástica, exigindo dele uma reflexão mais
profunda uma vez que nos seus primeiros anos colocara as duas atividades não como aliadas, mas
opostas. À época em que finalmente ele se pronuncia, os tempos eram outros. Aqui e ali, e mesmo
nas hostes guerreiras, erguiam-se vozes contra a religiosidade de Cruzada que florescia entre a aristocracia cavaleiresca, alimentada pela luta contra o avanço do Islã, na Península Ibérica e no Orien-
161
De diligendo Deo- Tratado Do amor de Deus de Bernardo de Claraval. In: CLARAVAL, S. Bernardo de (1953)
Obras Completas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos p. 743 - 776. OnLine (fr)Livre ou Traité de St. Bernard sur
L’amour de Dieu http://www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/bernard/tome02/amourdieu/amourdieu.htm
SERMON LXXI. Les lis sont les bonnes oeuvres, leur odeur est la bonne conscience et leur couleur la bonne réputation.
Comment l'Époux nous paît et se repaît en nous. De l'union de Dieu le Père avec le Fils, et de l’âme sainte avec Dieu.
162
De consideratione ad Eugenium papam, escrito por São Bernardo entre 1148 e 1153 a Bernardo Paganelli di Montemagno, eleito papa em 1145 com o nome de Eugenio III. Enquanto papa, Eugenio III enfrentou situações difíceis; pouco depois da eleição os senadores romanos exigiram que reconhecesse a autoridade das Comunas e renunciasse ao seu
poder temporal (in Enciclopedia Treccani dei Papi, 2000)
Tratado OnLine (fr) http://www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/bernard/tome02/consideration/index.htm
163
Sermones Super Cantica Canticorum
164
Sermão XXVIII. De la noirceur et de la beauté de l'Époux. Prérogative de l'ouïe sur la vue en ce qui concerne la
foi.OnLine : http://www.abbaye-saint-benoit.ch/saints/bernard/tome04/cantique/cantique028.htm
165
DUBY, Georges (1990) São Bernardo e a Arte Cisterciense. São Paulo: Martins Fontes, pg 59
166
in Jean LECLERCQ (1966) Recueil d’études sur saint Bernard et ses écrits, vol. IV, Roma: Ed di Storia e Letteratura, pg 88
167
“If I am not mistaken, my dear Hugh, you have asked me not once or twice, but three times to write a few words of
exhortation for you and your comrades. You say that if I am not permitted to wield the lance, at least I might direct my
pen against the tyrannical foe, and that this moral, rather than material support of mine will be of no small help to you. I
have put you off now for quite some time, not that I disdain your request, but rather lest I be blamed for taking it lightly
and hastily. I feared I might botch a task which could be better done by a more qualified hand, and which would perhaps
remain, because of me, just as necessary and all the more difficult” - Bernard of CLAIRVAUX, In “Praise of the New
Knighthood”, prologue-chapter five, translated by Conrad Greenia ocso, from Bernard of Clairvaux: Treatises Three,
Cistercian Fathers Series, Number Nineteen, © Cistercian Publications, 1977, pages 127-145. OnLine in
http://www.templiers.org/eloge-prologue-eng.php
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te. No “De Laude Novae Militiae”168 São Bernardo responde a esses adversários externos e internos (Lequercq, op cit pg 97): saúda a a originalidade e a beleza interior da nova espécie de cavalaria
que desponta (“novum militiae genus”). Seu modo de vida, de combater e morrer, diz, estão em
contraste absoluto com a mentalidade dos demais soldados do século, o que faz deles, ao mesmo
tempo, guerreiros pela coragem e monges pela doçura: praticam a obediencia, o celibato, a pobreza
e por conseguinte “nada lhes falta da perfeição angélica” (id ibid).
É sob o signo dessa palavra inspirada que abençoa o uso da espada, conciliando os ideais heróico
e monástico, que Portugal se funda. Uma das primeiras ações de D. Afonso Henriques, nobre galego
da Casa de Borgonha e primeiro rei de Portugal, consagrado com a derrota dos mouros na Batalha
de Ourique (1139), será dotar São Bernardo e seus ‘monges brancos’ das terras por onde correm os
rios Alcoa e Baça na região da Estremadura portuguesa. Segundo o costume e a observância cistercienses, um grupo de monges da abadia-mãe francesa veio à frente para construir igreja e cenóbio, a
segunda instituição plantada pela Ordem169 em solo português com carta de doação assinada em
1153, ano da morte de São Bernardo.
Comunidades, alguns aspectos _As comunidades monásticas cistercienses não eram formadas
exclusivamente por monges. Embora leigos participassem do cotidiano de monastérios anteriores a
Cister, a Ordem foi a primeira no Ocidente a nomea-los e incorpora-los através de um documento170
que delineava claramente o status e função dos chamados ‘frates conversi’ como parte integrante da
comunidade.
Os conversi não eram percebidos como um passo anterior ao noviciado, mas uma vocação diferenciada que se dirigia primariamente aos cuidados com a terra e o rebanho, prestava votos de obediência ao abade e de observância à Regra, ocupava um lugar específico nas dependências do mosteiro com dormitório e refeitório próprios, mas não usava tonsura, devia usar barba com no máximo
dois dedos de comprimento, era proibida de tomar o hábito monástico e, em alguns casos, ler dos
livros 171. Ao contrário dos monges, o aprendizado das letras não era considerado importante para o
desenvolvimento espiritual dos conversi. Embora a louvação do Senhor fosse entendida como o trabalho fundamental de uma vida terrena, o desenvolvimento da espiritualidade nessa vocação diferenciada não implicava em habilidades de leitura e escrita, exigidas para os monges.
Monges e conversi louvaram ao Senhor e trabalharam juntos os campos, principalmente na época
da colheita. Fora do período, os monges dedicavam-se principalmente aos trabalhos de cozinha, en168
A obra foi composta em 1128, quando Bernardo participa do Concílio de Troyes, convocado pelo papa reformista
Honório II (1124 - 1130) e presidido pelo legado Matthieu d’Albano, cardeal da Ordem dos beneditinos de Cluny, fiel
ao papado. Bernardo é nomeado secretário do Concílio, mas é contestado por uma parte do clero, que acusa-o de, sendo
monge, imiscuir-se em coisas que não lhe dizem respeito. Com a morte de Honório II, os cardeais se dividem em duas
facções que elegem, cada uma, papas diferentes. O grupo francês que havia decidido pela criação da Ordem do Templo
no Concilio de Troyes, elege o cardeal Gregório Papareschi que assume como papa Inocencio II (1130-1143) O outro
grupo, predominantemente italiano, elege Pietro Pierleoni, também consul em Roma, como o anti-papa Anacleto II. O
cisma é finalmente resolvido no Segundo Concilio de Latrão, do qual São Bernardo também participa.
169 A primeira
foi o mosteiro de S. João de Tarouca, em 1144
170
Usus Conversorum, redigido provavelmente nos anos 1120 por Stephen Harding, em uso até o século XIII . Edição e
tradução em WADDELL, Chrysogonus (2000) Cistercian Lay Brothers: Twelfth-century Usages with Related Texts ,
Brecht: Citeaux
171
George Joseph MCFADDEN (1952), ‘An edition and translation of the Life of Waldef, Abbot of Melrose, by Jocelin
of Furness’ , tese Ph.D. não publicada; New York:University of Columbia, 1952, p. 328 apud The Cistercians in
Yorkshire Project OnLine ://cistercians.shef.ac.uk/
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graxar os calçados, cuidar da portaria, dos sinos, dos arquivos, da cópia dos manuscritos - atividades executadas nos intervalos de louvar ao Senhor que ocupava a maior parte do seu dia.
O silencio era valorizado e exigido de todos os membros da comunidade, monges e conversi com
exceção dos ferreiros cujo ofício necessitava alguma comunicação oral. Os demais, se indispensável
fosse, utilizavam as mãos como veículo de uma linguagem codificada, feita de e por sinais.
O Oficio Divino dos conversi, mais curto e mais simples, geralmente era executado no local de
trabalho nos campos, nas granjas, nas forjas, nas padarias, nos curtumes, nas tecelagens, nos centros
de armazenamento e de preparo dos pergaminhos. Na celebração do Oficio Divino em local de trabalho os conversi podiam orar e cantar em voz alta. Quando participavam com os monges nos ofícios realizados na capela, deviam se manter silenciosos.
Alguns conversi habitavam as granjas mais distantes - que também serviram como pousadas dos
complexos. Esses, eram dispensados dos ofícios na capela. Em princípio as granjas cistercienses
não deviam ficar a mais de um dia de caminhada da séde, para que todos pudessem voltar ao convívio geral nos domingos e nas Festas do Senhor.
A mobilidade interna entre os grupos da comunidade não era permitida - conversi tornarem-se
monges e vice-versa. Ao prestarem os votos, uns e outros uniam sua existência à da Ordem e ao
lugar onde se erguia a edificação simbólica da Ordem. A estabilidade e a centralidade eram valorizadas ao máximo de acordo com primeiro capítulo da Regra de São Bento. Ao nos falar dos monges
em sua época, ela menciona além dos cenobitas e anacoretas, os sarabaítas (aos quais critica como
detestáveis pois “não tendo sido provados como o ouro na fornalha, por nenhuma regra”172 são conhecidos por mentir a Deus pela tonsura); de vida ainda mais miserável, sem um centro, fala também de monges giróvagos “sempre vagando e nunca estáveis” (ibid).
Os conversi tinham maior mobilidade que os monges no trânsito com o mundo externo aos mosteiros: eles eram encarregados de vender os produtos monásticos nas feiras das cidades e vilas e,
eventualmente, buscar bens e contratar serviços em mercados mais distantes. Alguns conversi foram
altamente considerados na Ordem e nos arredores das suas edificações, citados em documentos
como testemunhas confiáveis de milagres. Em geral vêm de famílias camponesas: embora não
conste referencia explicita à diferenciação por classe social nos documentos da Ordem, o Capítulo
Geral de Cister 173 desencoraja o desejo de cavaleiros e nobres entrarem para os mosteiros na qualidade de conversi, considerando que seriam mais úteis como monges.
Sertões_ Em sendo o “Conto de Amaro” um produto da Cultura Monástica, podemos pensar
numa especificidade da cultura monástica ibérica - não uma mas várias iniciadas precocemente e
amalgadas tardiamente sob o manto do beneditismo nas quais se nota, de modo forte e prolongado,
a influencia da Tradição Patrística Grega ao lado da Latina174 .
172
in Regra de São Bento, tradução e notas de D. João Evangelista Enout O.S.B On Line ://www.osb.org.br/regra.html
173
CANIVEZ J. (ed) in Statuta capitulorum generalium ordinis Cisterciensis ab anno 1116 ad annum 1786 (8 vols;
Louvain 1933-41), I, 1188: 8 apud The Cistercians in Yorkshire Project
174
O período patristico, caracterizado por imensa diversidade doutrinal, estende-se do encerramento dos escritos néotestamentários (ca 100) até o Concílio da Calcedonia celebrado em 451. Nesse período emergem duas correntes que,
apesar do fundo em comum, distinguem-se pelo contexto político-cultural que envolve o uso da lingua grega ou latina.
No pensamento patrístico grego nota-se de modo mais acentuado a influencia da filosofia grega que enfatiza o caráter
ontológico da concepção do homem, como se verifica no pensamento de Orígenes (século III) da Escola de Alexandria,
por exemplo, enquanto a latina é frequentemente hostil à influencia da filosofia. A famosa questão retórica de Tertuliano (ca 160-225) - “O que Atenas tem a ver com Jerusalém? ou o que a Academia tem a ver com a Igreja? ” - ilustra esse
ponto, esclarece-nos Alister McGRATH in Historical Theology: An Introduction to the History of Christian Thought,
London:John Wiley & Sons, 2013:18, a cuja obra se remete para aprofundamento da questão.
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Esse substrato religioso diversificado permaneceu ativo sob as fundações conjugadas do Reino e
do Mosteiro. De início e como em toda a parte, o monasticismo ibérico pautou-se pela busca de isolamento que afastou a vocação dos centros urbanos aproximando-a das populações dos lugares ermos; sertões menos atingidos pela romanização dos costumes e distanciados no tempo e no espaço
da vida política, cultural e social das sedes administrativas - os centros geradores de significado em
que situa-se o poder episcopal. Considerando-se que a dinâmica dos estratos que se movimentam na
cultura não é a mesma na cidade e no seu campo periférico, que dirá nos seus sertões, é preciso
lembrar que a base do que se chama Hispania Visigótica (séculos V ao IX) “permanece urbana” tal
qual no período romano, e continua assim “através dos séculos pós-Roma” nos diz Michael Kulikowski (2004:308), incluindo neste espaço a urbanidade da Ibéria Islâmica “em toda parte um
mundo modelado pelo controle político das cidades”.
Elegendo para si espaços à margem do sistema, a cultura monástica além de criar um polo de atração alternativo - um espaço distinto da dicotomia cidade/campo, cujas relações alterou num movimento inverso ao dos camponeses que se aglomeravam em torno das cidades - também funcionou
como um traço de união entre as fronteiras da cristandade, reativando e traduzindo no Ocidente, a
partir do seus sertões, memórias de tradições mais remotas, dormentes em outros espaços.
Nesse contexto, é preciso reconhecer que à diferença do resto da Europa - e seja qual for a importância que se atribua aos fatores que alavancaram definitivamente a adoção da Regula Benedicti instituída por Bento de Núrsia (480-547) e difundida por Bento de Aniane (750-821) no Ocidente, nos
diz Charles Julian Bishko (in LIBRO_ st.1175), “a oeste da Marca Hispânica a vitória beneditina foi
um processo lento, com teimosas resistências que influenciaram profundamente, através de linhas
cronológicas e regionais muito diversas, a história religiosa e cultural da Alta Reconquista”, sugerindo profundo enraizamento de valores heterogêneos e mais antigos.
Se a adesão ao beneditismo foi tardia na Iberia, a tendência ao ascetismo manifestou-se ali desde
cedo, não além do século III afirma José Ignácio Moreno Nuñez (1982: 80) - e as disposições relativas ao celibato num primeiro Concílio, o de Elvira entre 300 e 306, fazem crer que à época já devia existir uma florescente atividade ascética, evidenciada também nos cânones do Concílio de Zaragoza (ca 378/380) no qual se encontra pela primeira vez a palavra “monachus”. “É possível”, sugere Maribel Dietz176, “que a cristandade tenha migrado originalmente da África para a Espanha” com o que parece concordar Manuel Diaz y Diaz 177 ao admitir como possível fundamento para a
estreita ligação entre as comunidades hispanas e o conjunto das igrejas africanas, o fato que, de inicio, estas igrejas desempenharam um papel definitivo na expansão do cristianismo hispânico.
Nesse cenário, a Regra de São Frutuoso (?-665) acrescentou alguma uniformidade aos mosteiros
localizados numa ampla faixa do sul do Minho em torno de Braga rumo ao nordeste em direção ao
Bierzo, durante e depois do período visigótico. A Regra de Santo Isidoro de Sevilha (560-636) fez
o mesmo na região da Bética e a Regra de São Leandro (ca 534-601) dedicada à irmã de ambos,
Santa Florentina, organizou o cotidiano das comunidades de Virgens.
De modo geral, tais Regras foram adaptadas de matrizes cristãs do Oriente. Na sua aplicação, entretanto, surgiram inúmeras particularidades entre as quais os pactos diferenciados para a admissão
175
BISHKO, C.J (1984) The Pactual Tradition in Hispanic Monasticism; London: Variorum Reprints, pp 1-43
176
DIETZ, Maribel (1966) Wandering monks, virgins, and pilgrims : ascetic travel in the Mediterranean world, a.d.300–800,
Pennsylvania State University: Pennsylvania State University Press, p 157
177
apud José María BLAZQUEZ (1977) Imagen y mito: estudios sobre religiones mediterráneas e ibéricas, Madrid:
Ediciones Cristiandad pg 468
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nos monastérios que se acrescentaram aos costumeiros votos de permanência, mudança de estilo de
vida e submissão irrestrita praticados em todo Ocidente cristão. Entre esses, cabe mencionar a profissão pactual, um instrumento jurídico comunitário que surgiu na região galaico-portuguesa durante o período visigótico, comparável à fórmula usada pelos visigodos na coroação dos reis. Pelo documento, os monges signatários declaravam seu comprometimento com o estilo de vida monástico
e o sistema de escolha do seu superior. Ao mesmo tempo, retinham o extraordinário direito de, em
circunstâncias cuidadosamente estipuladas, rejeitar a autoridade abacial quando exercida arbitraria
ou injustamente. Nesse conjunto, os mosteiros fundados por São Frutuoso ao norte e a nordeste da
Península “constituiram uma verdadeira federação monástica, a Sancta Communis Regula” nos diz
Bishko (LIBRO, st III:#515)178.
A arquitetura primitiva destes monastérios visigodos teve na Hispania a mesma importância e estrutura mental daqueles erigidos pelos Padres e Madres de Deserto, lembra Ronaldo Amaral
(2009:231):
Como no Oriente, na Tebaida egípcia, essas se constituiram na grande maioria das vezes em covas
troglodíticas, escavadas na rocha ou grutas. Fôra este um tipo de construção que agradara fortemente a
Frutuoso, segundo seu hagiógrafo 179, pois o descreve habitando frequentemente covas e fendas.
À semelhança dos Padres e Madres do Deserto, a santidade buscada pelos primeiros ascetas cristãos, entre os quais os que localizaram na Hispania, implicava na rejeição do que era mais valorizado na cultura pagã, especialmente a relação tradicional entre paideia e santidade. Ao contrário dos
mestres admirados pelo mundo clássico, “que permaneciam próximos dos centros urbanos e faziam
parte do seu mundo social”, nota Douglas Burton-Christie 180 , os ascetas cristãos abandonaram literalmente a sociedade para viver nas suas margens com todos os demonios que habitam essas bordas: construiram para si outra paideia na solidão e no silencio do lugares mais inóspitos, mais temidos, mais agrestes do mundo conhecido, acompanhados apenas da fé na palavra do Senhor na qual
se incluiam como parte intrínseca.
Na recusa frontal de qualquer mancha estriada pela cultura anterior, a cultura monástica se aproximou das franjas de civilização menos atingidas na Hispania pela romanização dos costumes e distanciadas dos núcleos urbanos onde prevalecia o poder episcopal. Em tais lugares, povoados na sequência por discípulos e penitentes atraidos pela fama dos ascetas, a cristandade esparsa conferiu à
figura do ermitão uma autoridade própria, que muitas vezes se aproximava à do xamã: no século
VII, por exemplo, Valerio de Bierzo nos assegura que o sepulcro de São Frutuoso, mantinha intacta
a virtude de curar o enfermos e expulsar os demonios - idêntica àquela que ele exercera em vida,
exorcizando com nova religiosidade lugares que foram sagrados por culturas anteriores.
Com a difusão posterior do beneditismo essa religiosidade exacerbada se organizou nos mosteiros. No entanto, é importante notar que a chegada de uma nova Ordem não excluiu a anterior. Para a
cristandade laica ela se tornou menos visível, talvez, menos reconhecível nos signos externos, mais
profunda nas camadas da memória - mas não inexistente.
178
Bischko cita como fontes os estudos de Ildefons Herwegen e de Justo Pérez de Urbel: segundo estes autores era costume entre os abades das comunidades reunirem-se regularmente em sínodos presididos por um monge-prelado, o episcopus sub regula - originalmente o próprio Frutuoso na qualidade de metropolitano da Galícia, arcebispo de Braga e
bispo de Dume; posições eclesiásticas que ele assumirá num período tardio, quase à força.
179
Valerio de BIERZO (ca 630–c. 695) discípulo indireto, grande admirador e suposto autor da “Vita Sancti Fructuosi”
Douglas BURTON-CHRISTIE,(1993) The Word in the desert: scripture and the quest for holiness in early christian
monasticism, Oxford:Oxord University Press, p 54
180
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O Tempo dos Mosteiros_ A partir do século XV as torres das igrejas começam a ser decoradas
com relógios. A época em que foi feita a cópia do Conto de Amaro que hoje se encontra na Torre do
Tombo pertence a esse período de transição. No entanto, o tempo interno dos mosteiros - o tempo
religioso - continuou o mesmo, regido pelas Horas Canônicas e pela voz dos sinos que nos campos
ainda marcava o passar das horas.
Os Breviários, com a Liturgia das Horas, eram usados pelos clérigos. Entre os leigos, o chamado
Livro de Horas, manuscritos belamente iluminados, permitia à cristandade orientar-se pelo tempo
do sagrado. Essa relação privilegiada de Portugal com um tempo interno, de longa permanência,
pode ser percebida também na forma de contar os anos. Em 1422, quando o uso do Anno Domini181
já era comum em alguns lugares da Europa desde o século VIII182 e mesmo nos outros reinos ibéricos, Portugal continuava a contar os anos pela Era de César ou Era Hispânica, uma variante do Calendário Juliano. Sòmente por decreto de El-Rei D. João I, Lisboa alterou a datação dos anos.
Livro de Horas de El-Rei D. Duarte [1401–1433]. Portugal, Torre do Tombo.
Ordem de S. Jerônimo, Mosteiro de Santa Maria de Belém, liv. 65, f. 97.
181
Um sistema de datação que se baseia num conjunto de tabelas criadas pelo monge Dionísio Exíguo (470-544) para
calcular a data da Páscoa. O Anno Domini, ano do Senhor, padronizou a contagem dos anos a partir do nascimento de
Cristo. Na atualidade é referido também como Era Comum, nas abreviações aC e dC. Embora judeus e muçulmanos
continuem a usar calendários diferenciados, a datação é padrão internacional.
182
Primeiro na Itália, depois na Inglaterra graças à influência dos missionários romanos, vulgarizando-se na Gália em
torno do ano 1000. Fora do Império Carolíngeo, a Península Ibérica adotou-o a partir de 1180, primeiro com os catalães
e por último em Portugal.
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Livro de Horas de Dom Duarte [c. 1401–1433]: cenas da vida de Cristo e letra ‘D’ iluminada com as armas do rei.
Breviário (abaixo): detalhe do signo dos Peixes na iluminura do mês de fevereiro (Breviário de Isabel I de Castela, a
Católica. manuscrito da Biblioteca Britânica, Londres)
No tempo do sagrado, os cistercienses preocuparam-se especialmente com as qualidades musicais da liturgia: na formatação das cerimônias, nos primórdios da Ordem, foram procuradas as versões mais puras, de tradição não corrompida e livre de superficialidades, que fosse possível encontrar. No século XIV os monastérios ligados à Ordem de Cister iniciavam cada ofício com uma oração seguida por hinos (do Hinário), Salmos (do Salterio) ) e Cânticos Gregorianos (do Antifonário).
A posição do corpo era importante na recitação litúrgica, não só para a emissão da voz. Nas Vigílias, de madrugada, os monges cantavam em pé - uma maneira, talvez, de evitar que o sono impedisse a concentração: em alguns relatos do século XIII o cabecear durante o Oficio foi percebido
como a presença de um eflúvio serpenteado de Satã na coluna vertebral do sonolento.
Durante a semana um monge era indicado para presidir a cerimônia. Chamavam-no precentor183,
ficava à direita do coro e conduzia o canto. Juntamente com o succentor (sub-cantor), era encarregado de fazer com que a recitação dos salmos pelos monges e noviços não fosse apressada, sussurrada, engolida ou cuspida, e que fosse impregnada de devoção. O papel do succentor como vigilante destaca-se especialmente no oficio da madrugada, a Vigilia: na ocasião era ele quem cuidava
para que os cantores não sucumbissem aos demonios do sono e desvelassem o Senhor. Era necessário ao vigilante algum conhecimento médico: alguns Costumeiros monásticos do século XII nos dizem como lidar com narizes sangrando e acessos incontroláveis de vômito.
183Do
latim praecentor, de praecentus, particípio passado de praecinere, (prae=antes + cinere=cantar) = a voz que conduz o canto
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Gramática _ Embora muitos sacerdotes tenham tomado o hábito dos monges e monges tenham
se ordenado sacerdotes a partir da reforma gregoriana no século XI, a formação de um monge não é
semelhante à de um padre; uns e outros situam-se em ambientes diferentes, dois meios culturais
marcados pela reflexão cristã, identificados pela mesma fé, mas onde a tradição cristã se transmitiu
com ênfases e por veredas distintas. Nas cidades e vilas, as escolas catedrais, episcopais, colegiadas
e paroquiais destinaram-se em princípio à formação de jovens clérigos e enfatizaram preferencialmente “noções acerca da doutrina cristã que a escolástica da época ensinava, e dos esquemas mentais que depois os auxiliavam na pregação” nos diz José Mattoso (1969:7). Nas escolas monásticas,
criadas restritas inicialmente às necessidades internas dos mosteiros, os pequenos entregues pelas
famílias aos religiosos para que se tornassem monges no futuro também aprendiam as primeiras letras, a música, o latim: em Portugal foram chamados oblatos e os monges encarregados destas crianças, gramáticos (ibid).
A gramática, esqueleto da língua e do pensamento, ensinada nos mosteiros talvez fosse semelhante à ensinada nas escolas da cidade mas não é idêntica; ambas certamente eram aplicadas à leitura
das Sagradas Escrituras e consideradas importantes para a formação dos jovens. Mas enquanto o
ensino da grammatica nas escolas do clero secular orientava-se para o questionamento de si próprio
no entendimento do texto, quaestio e disputatio num movimento para fora, o ensino nos mosteiros
orientava-se primeiramente para a meditação e a oração, meditatio e oratio, nos diz Leclercq (op cit
72) dessas operações mentais que conduzem a camadas mais profundas da memória. Nas primeiras,
tratava-se de um modo de domínio de conhecimento a ser empregado na catequese; nas segundas,
um meio de chegar à sabedoria e, como objetivo final do ideal monástico, ao desapego do próprio
aprendizado em favor do temor de Deus que conduz à caridade, objetivo cisterciense.
Esse temor - não exatamente o medo do inferno ou o terror da culpa que se alastraram pela cristandade por volta do ano 1000 - e esta caridade - não unicamente a doação dos próprios excedentes
para os mais necessitados - têm significados importantes na cultura monástica: o primeiro relacionase a uma forma de respeito, reverência, entrega confiante e a segunda, charitas, ao amor a Deus, à
presença íntima de Deus, à intimidade iluminada pela presença divina, à presentificação do paraíso.
Nas escolas monásticas tais valores não se apreendiam apenas pela razão e pela informação. Antes, eram incutidos em espaços intermediados pela afetividade: desse modo, a solução do enigma
proposto pela Regra devia ser continuadamente redescoberto, reinventado, rejuvenescido de maneira espontânea em cada período, em cada meio, em cada lugar e quase em cada indivíduo. Neste caminho não só o corpo, não só o intelecto mas principalmente a imaginação deviam sujeitar-se a um
treinamento e à uma disciplina, o mais próximo que a Idade Média ocidental e cristã chegou de uma
filosofia do imaginário ou imaginal como prefere Henri Corbin.
Imaginação_Convém uma reflexão quando nos referirmos aos espaços do imaginário, território
movediço cuja paisagem está constantemente mudando em cada meio, em cada lugar e quase em
cada indivíduo etc; quem nos aconselha cautela é o próprio Corbin que tantas vezes se debruçou na
topografia destas paisagens que os textos árabes e persas, dos quais ele é interprete e tradutor, designam pelo termo 'alam al-mithal', o mundo da imagem
... tão ontologicamente real quanto o mundo dos sentidos e o mundo do intelecto, um mundo que requer uma faculdade de percepção que pertença a ele, uma faculdade que é função cognitiva, um valor
noético (Corbin, 1972:1-19).
Segundo Corbin, a “faculdade que percebe esta realidade” e à qual denomina consciência imaginativa ou imaginação cognitiva, não equivale à 'fantasia' que produz o 'imaginário', termo que na
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linguagem corrente se confunde com o irreal, “algo que é e permanece fora do ser e da existência em resumo, algo utópico”, precisa (ibid). Para marcar a distinção, Corbin propõe o termo ‘imaginal’ ou ‘mundus imaginalis’ designando o que não é nem o mundo empírico dos sentidos nem o
mundo abstrato do intelecto; antes, é um ‘lugar’ com dinâmica própria
... um universo mediano e mediador, um intermundo entre o sensível e o inteligível, intermundo sem o
qual a articulação entre o sensivel e o inteligível fica integralmente bloqueada (Corbin, 1996)
A função específica do mundo imaginal descrito por Corbin - que rompe a dicotomia corpo/mente
ao desmaterializar as formas sensíveis e ‘imaginalizar’ as formas inteligíveis, conferindo-lhes figura
e dimensão - é impor ao seu agente, a imaginação ativa, uma disciplina inconcebível àquela outra,
passiva e muitas vezes degradada pelo senso comum como fantasia capaz de todos os excessos.
Sem este mundo intermédio e o instrumento de ação que lhe é próprio, as coisas que têm o seu lugar nesse mundo - as visões dos místicos, dos profetas, os atos simbólicos nos ritos de iniciação, nas
liturgias, na tradição alquímica, nos gestos das epopéias etc - perdem seu campo existencial, seu
lugar de existir e sem este ‘lugar’ são sòmente imaginário e ficção. Com uma diferença porém: “O
imaginário pode ser inofensivo; o imaginal nunca o é”, nos diz Corbin (1996).
Com esses significados em mente é possível perceber a importância que a disciplina da imaginação adquire na cultura monástica, seja na uniformidade seja na diversidade da produção de seus
mosteiros, na abertura para a experiência visionária, na extraordinária adaptabilidade e na prolongada duração. Nesse enquadramento situamos o “Conto de Amaro”: não exatamente uma ‘visão’, mas
uma rememoração, fragmentos de um racconto.
O que se percebe ali é um filosofar cuja re-emergência se deu a partir da reforma que Cister promove no monaquismo cristão do século XI, um movimento que traz resquícios não exatamente do
tipo de filosofia que nos legaram os gregos clássicos (philosophia secularis ou mundialis) mas de
uma outra mais arcaica vivida na carne de um mundo que não é ou ainda não é manifestação (philosophia caelestis ou spiritualis ou divina).
No cristianismo, o expoente máximo dessa filosofia que se manifesta na consciência como um
relâmpago interior naturalmente é Cristo mas, segundo São Bernardo, é por intermédio da Virgem
Maria em cujo corpo se realizou o mistério da Encarnação divina que ele se comunica. É nessa
dramaturgia que os discípulos devem inspirar-se para meditar (philosophari in Maria) - e renascer.
Nesse aspecto, os mosteiros cistercienses podem ser percebidos como centros de formação,
“gymnasia’ que iniciavam os indivíduos nas disciplinas de uma filosofia celeste pelo caminho indicado por São Bento, nos diz Leclercq (op cit p 101), lembrando um elogio de época feito a São
Bernardo pela qualidade filosófica dos monges formados por Clairvaux, onde ele era abade.
Embora as imagens provenientes dos sentidos exteriores fossem decididamente rejeitadas nesse
modelo de estudos, as que eram atribuídas a uma imaginação ativa e poderosa, alimentada pela leitura e meditação contínua dos Textos Sagrados, ruminados não só na idéia do texto mas até o cerne
dessa trama de modo a incorporá-la à própria carne permitindo que brotasse espontânea da boca e
dos gestos - não foram apenas estimuladas, mas consagradas pelos monges. O fenômeno espontâneo da reminiscência, nesse sentido, não se reduz a associações ligeiras. Antes, é percebido no canal
de comunicação estabelecido com o divino, como fulgurações da própria fonte sagrada, a partir da
impregnação das palavras da Escritura no corpo e na mente do discípulo. Nesse contexto, “cada palavra”, nos diz Leclercq (1982:73), “é como um anzol que atrai uma ou muitas outras que se ligam
entre si expondo a trama do tecido”.
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Na leitura e na escritura medievais, essas “palavras-anzol” funcionavam de certo modo como detonadores de memória através do direcionamento da imaginação, orientando a composição dos discursos - não através de algum padrão lógico pré-definido mas por meio desses aglomerados. Daí a
percepção, no “Conto de Amaro”, de uma trama esburacada conduzindo a narrativa através desses
espaços marcados, o que justifica a interpretação adotada no presente estudo, na tentativa de compreender essa outra lógica. Daí também a percepção que o nome do personagem, Amaro, não é fruto
de uma escolha aleatória mas algo definido, consciente ou inconscientemente, por um aglomerado
de significados concentrados na palavra. Daí, finalmente, a aproximação que se vislumbra entre
esse modo de aquisição de conhecimento com o modo operacional da consciência mitológica, que
se apreende da leitura de Lotman e Uspenski184.
Meditatio_ Não há nenhuma recomendação específica de como meditar na Regra de São Bento
além da indicação das Escrituras copiadas em latim, no Ocidente, e em grego, no Oriente: a meditatio que propõe é marcada pela ausência de descrições precisas até porque qualquer aprendizado que
venha do mundo profano não faz parte do ideal monástico mas da realização desse ideal por parte
do discípulo.
O objetivo dessa meditatio, simbólica e afetiva, difere do objetivo teológico de São Tomas de
Aquino (1225-1274). Entretanto, segundo Jean Lauand185, o Aquinata dedica uma atenção cuidadosa aos insights, que percebe favorecidos pela linguagem comum186
Subjaz a toda a antropologia de Tomás aquela constatação, axiomática para os antigos: o homem é um
ser que esquece! No entanto, essas experiências não chegam a ser totalmente aniquiladas; escondemse, condensam-se, transformam-se, depositam-se... principalmente na linguagem. E o filosofar é, em
boa medida, uma tentativa de lembrar, de resgatar os grandes insights de sabedoria que se encontram
encerrados na linguagem comum. Por isso, Tomás sempre está atento à sabedoria escondida na linguagem do povo, buscando nela a transparência. Um exemplo entre tantos: já na primeira questão da
Suma Teológica, ao procurar caracterizar o que é a sabedoria, Tomás explica que a sabedoria não deve
ser entendida somente como conhecimento que advém do frio estudo, mas como um saber que se experimenta e saboreia (id ibid).
Difere também, pela “atenção cheia de curiosidade”, da meditatio recomendada por Cassiodoro
(490-581) aos seus discípulos em Vivarium, onde o cotidiano, tal qual nos mosteiros de São Bento
de quem foi contemporâneo, era concebido pela e para a meditação das Sagradas Escrituras (apud
Leclercq, 1982:20). A diferença ocorre, nesse caso, não apenas porque o projeto monástico de Cassiodoro foi pensado nas “Institutiones”187 como um programa especial de estudos para monges tais
quais eram e não tanto como deviam ser. Implica também que o olhar desenvolvido em Vivarium,
embora privilegiasse a salvação da alma, não desdenhava a observação do que ocorre no mundo,
184
LOTMAN, Iuri, USPENSKI, Boris (1981) Mito, nome, cultura, In: LOTMAN, I., USPENSKI, B., IVANOV, V. op cit
185
Tomás de AQUINO, Verdade e Conhecimento (Questões Disputadas sobre a Verdade e o Verbo e "A diferença entre
a palavra divina e a humana") - Tradução, estudos introdutórios e notas de: Luiz Jean LAUAND e Mario Bruno SPROVIERO, São Paulo:Martins Fontes, 1999:50
186
Tomás de AQUINO, Verdade e Conhecimento (Questões Disputadas sobre a Verdade e o Verbo e "A diferença entre
a palavra divina e a humana") - Tradução, estudos introdutórios e notas de: Luiz Jean LAUAND e Mario Bruno SPROVIERO, São Paulo:Martins Fontes, 1999:50
187
A “Institutiones divinarum et humanarum lectionum” foi escrita por Cassiodoro entre 551 e 562 depois que ele se
retirou da vida pública, quando serviu como conselheiro de Teodorico, o Grande (454-526) substituindo Boécio, a quem
o rei ostrogodo havia mandado matar. Como conselheiro, tentou criar condições para aproximar cristãos do Oriente e do
Ocidente, a cultura grega da latina, a ortodoxia cristã do arianismo da nobreza goda no poder. Em torno de 544, quando
decidiu dedicar-se a uma vida de contemplação e estudos, recolheu-se à sua terra natal na Calábria onde fundou o mosteiro e scriptorium de Vivarium, às margens do mar Jônio
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inclusive no aspecto literário do corpus sagrado. Nesse sentido, o “Institutiones” incentivava nos
leitores o desejo por estudos seculares que lhes permitissem transmitir corretamente o que fôra escrito pelos Santos Padres assim como os conhecimentos necessários para tratar da saúde para melhor servir ao Senhor. Admite, implicitamente, que o interstício terreno pode prolongar-se indefinidamente antes do Juizo e propõe um modo de oração pela meditatio de forma diferente188, que o
aproxima, enquanto projeto monástico, do olhar da Academia.
Certamente os beneditinos não desdenhavam conhecimentos úteis para o dia a dia. Também é improvável que ignorassem os escritos que nos falam do significado dos nomes das plantas, cores, pedras e animais - os bestiários, lapidários etc, conhecimentos preservados no medieval a partir de
memória cultural naturalista. No entanto, o aprofundamento no conhecimento profano não era a
preocupação maior da Regra. Quando ele se dá é de forma marginal que se agrega a um cotidiano
concebido para o serviço do Senhor e não como o exercício de um saber específico.
Mosteiros de tradição beneditina, como Cister, irão recomendar além das Escrituras, a meditação
dos Comentários feitos pelos Santos Padres, preferencialmente os do papa São Gregório Magno (ca.
540-604), o Doutor Desejo, esclarece-nos Leclercq (1982:18) - o que não exclui a presença de outros textos em seus “armaria”. As ‘Institutiones’ de Cassiodoro estão presentes com certa frequência nos armaria ibéricos e continuaram a ser copiadas mesmo depois que a experiência de Vivarium
extinguiu-se (ca 630).
Em Alcobaça, onde se localizava uma das melhores bibliotecas do Reino português, o tom geral
no século XV é dado pelo grupo de livros da espiritualidade tradicional (isto é, anterior ao século
188
Em Vivarium desenvolveu-se uma escola médica que utilizava fontes do saber profano para o desenvolvimento espiritual. Ao lado de textos religiosos os monges daquele scriptorium transmitiram textos gregos para leitores latinos, obras
de Dioscórides, de Hipócrates, de Galeno. Reforçando a idéia de temporalidades distintas convivendo no humano, restam também as palavras de elogio que Cassiodoro dedica a Dionisio Exíguo na ‘Institutiones’. Esse último, versado em
matemática e em astronomia, membro da chamada comunidade dos monges da Cítia em Roma, foi responsável pela
introdução no calendário cristão da idéia de contagem dos anos a partir do nascimento de Cristo. Esse ponto de inflexão
estabelecido pelo nascimento de Cristo no cristianismo encontra paralelo, entre os gregos, na representação de Kairós, a
divindade do tempo justo entre os romanos, em relação à eternidade do Aión. Na Grécia, Kairós - cuja tradição remonta
às fiandeiras e aos arqueiros do tempo arcaico - foi especialmente cultuado entre médicos e marinheiros.
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XII) nos diz José Mattoso (1997:118-119)189. Além das Escrituras e dos Comentários dos Santos
Padres à Escrituras, as “Etimologias” de Sto Isidoro de Sevilha também foram encontradas com certa frequência (id ibid). “Na Alta Idade Média serviram para o ensino do trivium190 e para dar a conhecer uma grande quantidade de palavras estranhas ou de noções que os clérigos e os monges manejavam frequentemente. No final da Idade Média já se podia considerar desatualizada depois dos
progressos da Escolástica mas continuavam a copiá-la muito frequentemente”, conclui (id ibid).
A Lectio Divina_ Era fundamental que os monges soubessem ler e escrever. Nos mosteiros, a leitura era incentivada no refeitório, no Coro, diante das visitas. Não se tratava de uma leitura para o
prazer, a informação, o conhecimento, a aquisição de ciência. Antes, era um exercício de transformação: um ritual próprio da Meditatio que consistia na lenta ruminação das palavras, feita geralmente em voz baixa ou murmúrio, raramente em silencio. Uma leitura acústica em que “as palavras
eram mastigadas, digeridas e absorvidas do mesmo modo que a comida é mastigada, digerida e absorvida” nos diz Terryl Nancy Kinder (2002:58).
A Lectio é inseparável da Meditatio, reforça Leclercq (op cit p 73) - uma prática que também pode
ser percebida como um exercício intenso de memorização: não só a memória visual do texto escrito
mas a memória muscular das palavras pronunciadas e a memória aural das palavras ouvidas. Do
ponto de vista monástico não se trata de modo algum de técnica. Antes, trata-se de gravar algo no
coração, aprender de cor no sentido integral da expressão: com todo o ser; o corpo, a boca que pronuncia, a inteligência que entende e a vontade que deseja a prática. Nesse sentido, meditar nos atributos divinos significa interioriza-los, incorpora-los. Do mesmo modo que a comida se transforma
189
Imprescindível é a Biblia, nos diz Mattoso (1997): todo mosteiro deve ter uma. Dada a importancia do Oficio Divino, alguns mosteiros mantem em seus armários livros separados para os tres graus de oficiantes: o Gradual para os cantores, com os salmos entoados pelo solista; o Colectário com as orações sálmicas; o Epistolário e o Evangeliário para
as meditações liturgicas. Mattoso inclui no estudo tres listas provenientes do inventário de bens do mosteiro de Bouro,
filiado a Alcobaça - uma de 1408 e outra de 1437 - e terceira do mosteiro de Seiça de 1408: organizadas em ordem conventual de época como liturgicos, biblicos, patristicos, de assunto espiritual, de cultura geral e eclesiástica, vidas de
santos e livros de milagres. Na sistematica adotada por Mattoso o material foi reorganizado em
a) Livros do Oficio Divino: antifonários (de canto para o Ofício Divino, a qualquer hora, reunindo as antífonas); os
Responsórios (canticos que incluem a intervenção de um solista ou coro e a resposta da comunidade) e hinos; os Diurnais ( textos liturgicos para o Oficio das horas canonicas, com exceção da Matinas), Hinários, Saltérios, Colectários do
missal (orações do início da missa ou do Oficio Divino), Lecionários (leituras recomendadas para um certo dia ou ocasião); Homiliários (reunindo homilias, preleções de carater explicativo dos elementos liturgicos feitas por sacerdotes
durante a missa); Breviários, etc
b) Livros Liturgicos de Missa: graduais, colectários, epistolários, evangeliários, missais
c) Outros Livros Liturgicos: calendários, livros de Ritual; sendo um deles de exor cismos
A sistemática adotada por Mattoso também nos fala em outras obras: de direito canonico com certo desprezo pelo
direito civil - um único exemplar nas bibliotecas, o da Primeira Partida de Afonso X, o Sábio; Vitae de santos e milagres _ Mattoso menciona um exemplar da narrativa Barlaão e Josafate que existia em Bouro em 1408 mas que já não
figura no catálogo de 1437 (no entanto, nota-se que está incluida no mesmo códice copiado pela mão que chama-se Hilário da Lourinhã monge de Alcobaça, onde se encontra o Conto de Amaro).
À respeito dos livros de milagres e de vidas de santos, uma observação de Mattoso é de grande interesse para a abordagem adotada no presente estudo: diz ele que tais Vitae constituiram generos em que as “narrativas iniciais cresciam,
evoluiam e se multiplicam como células de uma matéria viva” durante a Idade Média (ibid 133). Deste modo, mergulha-se a fundo nas correntes da religiosidade popular decerto mais fortes e profundas, para maioria dos monges, que as
distinções lógicas da Escolástica.
190
O Trivium (do latim tres=três e vía=caminho) designava o conjunto das matérias básicas ensinadas no início do percurso educativo: a gramática, a lógica e a retórica - e representa três das Sete Artes Liberais. As restantes quatro formam
o Quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música.
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em material do corpo, acreditava-se que a leitura ritual dos textos sagrados eram metabolizados em
substâncias da alma.
Aos conversi, era possível ouvir o murmúrio dos monges lendo ou cantando na capela, embora
uns e outros não pudessem ver-se no recinto: em geral há algum elemento como divisória e um lugar marcado. Restam alguns relatos das impressões acústicas provocadas pelo hábito da oração audível. Entre esses, um que se refere a St. Juan de Gorze (ca 900-974) abade beneditino, astrônomo e
embaixador do Sacro Império junto ao califa de Córdoba. Conforme nos contam, a presença do
abade era notada pelo som que a acompanhava, como se um suave zumbir de abelhas estivesse
constantemente ao seu redor191.
A Lectio Escrita_ A escritura é inseparável da Lectio, da Meditatio e, do mesmo modo, é veículo da oração contemplativa. O copista escreve no tom sussurrado da leitura, ditando para si o que
está escrevendo ou por intermédio do ditado de um terceiro; enunciando no espírito a paisagem
mental que a mão pacientemente desenha nos caracteres. Alguns manuscritos trazem uma contribuição mais ou menos original do escrevente, que insere entre os textos patrísticos, tema preferencial
da Lectio Escrita, pensamentos, aspirações, citações sugeridas pela própria Meditatio. Esse procedimento era permitido e tinha algo de sagrado. Se, na leitura, era o monge quem se comunicava com
Deus, acreditava-se que, na escrita, Deus podia falar-lhe nas entrelinhas. O ato de escrever foi percebido, assim, como um ritual de comunicação com o divino que, de início, deu-se numa língua
erudita, o latim, de e para poucos no Ocidente.
O relacionamento ritual que o monge manteve com a matéria escrita conferiu-lhe um poder diferenciado em relação ao comum dos homens. Se, aos olhos da comunidade leiga, ele era percebido
como o transmissor da tradição sagrada visualizada de forma mais concreta que na oralidade, o contato com a escritura organizou-lhe de modo diferente o pensamento.
O Livro_O texto em situação manuscrita é um universo marcado pela singularidade. “Cada livro
manuscrito é, efetivamente, singular e único”, nos diz Aires do Nascimento (2010: 6): “singular,
porque individualizado; único, porque irrepetível. Pertence a um mundo distante e próximo – vem
de um tempo revoluto e, na distância e na diferença, interpela-nos pela presença humana, irrepetível
e inconfundível, que o habita em segredo”.
Se a execução de cada manuscrito tem uma história, constitui um texto com entidade própria seja
ele original, cópia ou cópia de outras cópias, a produção de um códice não lhe fica atrás. O mesmo
principio que dota cada cópia de individualidade significativa, se estende para o códice manuscrito
que contem vários textos. “De certo modo, elimina as fronteiras entre as diversas obras que reúne e
se impõe como uma unidade e um modelo”, nos diz Francisco Rico Manrique (1997:151). Esse é o
caso que entrevemos no “livro” que contem o “Conto de Amaro”.
A produção desses “livros” fazia parte de um ritual coletivo de trabalho que envolvia a comunidade inteira na gestação do produto que se situa, também ele, entre o sagrado e o profano. Tal produção englobava uma série de etapas e procedimentos, em que o esforço conjugado dos copistas, calígrafos, tradutores e iluminadores se incorporava ao do preparo dos suportes, pergaminhos, pigmentos, materiais de escrita, organização nos fólios, encadernação, preparação das capas e até a organização espacial dos Scriptoria, dos Armaria etc. Eventualmente, também a compra de materiais, a
entrega da encomenda e a contabilização dos rendimentos.
191
apud Pierre RICHÉ (1984) Le Moyen Âge et la Bible, Paris: Ed Beauchesne, p 262
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A ritualidade que cercava a produção dos códices não era motivo para que os monges recusassem a
transcrição de coleções de sentenças, textos religiosos sob encomenda, traduções do grego e do latim para o vulgar
porque una obra en vulgar no se trasladaba si no era en respuesta al encargo de un aficionado o, más comúnmente, al gusto del mismo transcriptor, a quien, por el mero hecho de serlo, hemos de suponer singularmente interesado por la obra en cuestión, en condiciones en extremo similares a las del autor quer de
manuscritos originais, quer de outras cópias” (Rico Manrique, ibid)
O trabalho era lento mas o monopólio da produção de escrituras pertencia aos monges unidos pelo
labor sagrado aos monastérios que personificavam. O livro, um bem, era raro e caro. Lotman nos
diz que o valor das coisas é semiótico. Ele é determinado não só pelo valor intrínseco do objeto,
mas pela significação daquilo que ele representa. Esta ligação não é convencional. Por força da iconicidade das relações, sob o ponto de vista da moral ou da religião, um conteúdo valioso exige expressão valiosa (...). “A própria materialidade do signo torna-se objeto de adoração” (in Schnaiderman, 1979:37). Durante a Idade Média, o livro teve força própria. A devoção ritual que caracterizava sua feitura consubstanciou-se, não poucas vezes, em devoção ao próprio objeto.
Contrariamente à estética de Cluny, a de Cister privilegiou a simplicidade exterior como forma de
comunicação com o divino. Não tanto o aspecto externo, mas o conteúdo.
Repertórios Auxiliares_ Nos mosteiros, a interpretação dos textos sagrados não se apoiava apenas nos processos de reminiscência. Embora algumas exegeses monásticas possam validar-se por
analogia sonora, quando o som de uma palavra evoca imediatamente outra, existe nesse campo
toda uma tradição de interpretação que não é arbitrária, nota Leclercq (1982:77); que se desenvolve
em paralelo à escritura do Antigo Testamento e nos remete ao modelo estrutural das escolas rabínicas do Talmude, a Torá mais a Aggadá192. Durante a Idade Média os monges utilizaram algum tipo
de léxico como aliado e guia, um acervo organizado das palavras da palavra.
As “Etimologias” de Sto. Isidoro (ca 560-636) - monge e autor de uma das principais Regras Ibéricas no prolongado período anterior à implantação beneditina - é um exemplo desses repertórios
operativos auxiliares das meditações e ao mesmo tempo uma meditação em si. O sistema descritivo
baseava-se na compilação de significados vindos de uma variedade de fontes anteriores a Santo Isidoro - Plinio o Velho, poetas clássicos, Orosius, Jerônimo, Agostinho entre outros - e na convicção
de que a palavra pode conter, nela mesma, informações da sua trajetória. Desse modo, o texto incluia não apenas o significado filológico das palavras mas sua memória, os significados que gerações distintas atribuíram aos nomes de coisas, lugares, animais, pessoas, nomina sacra .
192
O Talmude consiste em duas partes separadas e inseparáveis, é um em dois - a tradição oral do povo judeu, chamada
Torá Oral, e os comentários rabínicos dessa tradição na situação em que eles se deram. Essa contextualização inclui
uma vasta coleção de anedotas, histórias, tradições, lendas, provérbios, homilias, ditos populares, cálculos matemáticos
e astronômicos e constitui a Aggadá, que ocupa cerca de um terço dos escritos.
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Nomina Sacra: linguagem formalizada em abreviações usadas pelos primeiros cristãos para as idéias sagradas
Retângulos marcados originalmente por um traço horizontal indicam as abreviações. O primeiro contem as letras ΚΣ, de
ΚΥΡΙΟΣ (kyrios = senhor) e o segundo, ΙΗ, abrevia ΙΗΣΟΥΣ (iésous = Jesus) / Papiro de Egerton:
fragmento de evangelho apócrifo, anterior aos de Marcos, Mateus, Lucas, João in Bibl. Britânica)
Nominação_ O processo de nominação, dar nome às coisas, remete à estrutura do próprio pensamento. Na meditação monástica era importante incorporar, internamente, o significado sagrado do
nome dos objetos, seus nomes próprios fora da esfera de aparências. O conhecimento dos repertórios auxiliares era importante nessa travessia. O fundamental, entretanto, estava no envolvimento da
esfera afetiva para propiciar mais que interpretação, entendimento.
No estudo do processo de nominação, Lotman e Uspenski (1981) trazem contribuições valiosas
para compreender o processo. De acordo com os autores, os nomes próprios que se dão às pessoas,
aos objetos, aos animais e aos lugares das coisas funcionam de acordo com uma semiose típica, na
qual os signos não são atribuídos mas reconhecidos e através da qual é possível distinguir a consciência em dois modos lógicos de funcionamento. Quando o Upanishades nos diz por exemplo, ‘O
Mundo é um Cavalo’ o signo é análogo ao do nome próprio e através dele somos orientados para
uma identidade imediata, o próprio objeto da nomeação “situado de qualquer modo no escalão hierárquico mais alto, para o objeto primário, para o arquétipo do objeto” esclarecem-nos Lotman e
Uspenski (1981:131). Embora o texto do “Upanishades” tenha se conservado de algum modo, o
exato contexto da enunciação perdeu-se. É possível, entretanto, imaginá-lo.
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O Mundo é um Cavalo
Jaimuni interroga Markandeya, guache, 1785
Upanishades : comentários de meditação e filosofia dos sagrados Vedas transmitidos pela tradição oral
Nesse caso, o que importa é o reconhecimento de isomorfismo ou seja, que ambos os objetos,
mundo e cavalo, partilham da mesma ou quase da mesma estrutura num dado momento. Trata-se de
uma operação lógica muito diferente da que realizamos ao ouvir ou ler, por exemplo, “o mundo é
matéria”. Aqui, à diferença da situação anterior, subentende-se a inclusão de ‘mundo’ numa classe
(matéria) que nos remete para uma “categoria meta-descritiva, quer dizer, para uma certa língua
abstrata de descrição” (id ibid) em que o objeto descrito é fundamentalmente diverso do sistema de
descrição - à exemplo dos nomina sacra no léxico de Isidoro de Sevilha.
O primeiro caso refere-se mais diretamente à oralidade e também aos primórdios da evolução
humana. O segundo tem raízes mais evidentes na escritura e ao que segue-se a ela. Esses dois sistemas coexistem e interagem na mente humana. Ao pensamento que opera por tradução no sentido
amplo do têrmo, os autores denominam ‘descritivo’. O outro tipo é caracterizado como pensamento
‘mitológico’ - não o mitológico dos textos narrativos, tampouco o que se refere a um sistema da cultura, mas o mitológico que remete a um fenômeno de consciência no qual o reconhecimento do signo se dá por uma identificação precisa e o ato de denominação corresponde a um ato de singularização e de conhecimento (id ibid p 133).
No plano das culturas o quadro se diferencia enormemente. Nesse caso, sugerem Lotman e Uspenski (1981:132), talvez seja útil distinguir entre as culturas que se orientam para um tipo de pensamento mitológico e aquelas que escolhem o caminho contrário, lembrando que, na consciência
não-mitológica, o processo descritivo é plurilinguístico, ou seja, exige uma outra língua, uma língua
diferente para a sua compreensão - pouco importa se a das construções abstratas ou uma língua estrangeira que funcione como metalinguagem193 . Na consciência mitológica a descrição do mundo é
por princípio monolinguística, ou seja, os objetos desse mundo são interpretados através desse próprio mundo, construído daquela mesma e idêntica maneira. Há que reconhecer, entretanto, que se
193
Os autores usam o têrmo no sentido de ‘língua de segundo grau’ definido por Georg Klaus no contexto da teoria dos
graus semânticos (apud V. Navas e S. T. de Menezes, nota 1, pp 150-151 in Lotman & Uspenski, 1981, Mito, Nome, Cultura, op cit): “A teoria dos graus semânticos representa uma formulação importante da semiótica. Daí se deduz que existem coisas, propriedades, relações etc que pertencem à realidade objetiva e por si só não constituem signos linguísticos.
Tais objetos formam o grau zero. Os signos por que são designados os objetos do grau zero pertencem à uma linguagem
objeto [grifo no original], ou língua de primeiro grau. Uma metalinguagem [grifo no original] ou língua de segundo
grau, contem todos os signos necessários para a designação dos signos da linguagem objeto”. Por exemplo, o latim, a
lingua em que foram traduzidas as Escrituras em grego antigo e hebraico por São Jerônimo de Strídon (ca 370-420),
utilizado pelos monges ocidentais na comunicação com o divino, em detrimento da lingua materna de origem.
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Hall Freire 99
houve, em algum longínquo momento das culturas, uma identidade mitológica unida à uma língua
perfeitamente ordenada na inseparabilidade do nome da coisa, feita ela só de nomes, objetos transformados em sons, na qual fosse impossível detectar um mínimo de movimento e mudança na denominação dos objetos, das relações, das propriedades do mundo objetivo, essa língua e a consciência dessa língua seria intraduzível fora do seu círculo necessária e momentaneamente restrito e, portanto, para nós outros, necessariamente perdido.
No entanto, o comportamento do nome próprio no conjunto das línguas naturais nos dá a possibilidade de algum vislumbre. A sua atuação é tão diferente das outras categorias linguísticas, observam Lotman e Uspenski, que pode ser percebida como uma língua distinta, construída de outra
forma mas incorporada no todo da linguagem natural - um resíduo, talvez, reminiscência quem
sabe, de uma língua só de nomes próprios que nos chega de uma época tão remota que apenas nos é
permitido imaginar e observar, por semelhança, na aquisição da linguagem da criança bem pequena
e na utilização de vocábulos corpulentos por povos chamados, grossíssimo modo, “primitivos”.
A imaginação, nesse caso, é possível porque uma língua feita só de nomes próprios implica numa
concepção de espaço construído por pequenos fragmentos justapostos à maneira de mosaicos 194 não um continuum marcado por traços distintivos tal como percebemos à luz do dia - mas algo mais
coerente com a concepção mitológica de mundo, um espaço mosaicado semelhante a um conjunto
de objetos isolados marcados por signos próprios - análoga à organização do códice que traz, entre
outros, o “Conto de Amaro” numa coleção que se quer, se diz ou da qual foi dita “mystica”, e inclui
uma variedade de exemplos de caminhos percorridos na busca o divino e que fazem parte da
tradição monástica do Oriente. Análoga, principalmente, às etapas da travessia particular do Amaro
no conto, de ilha em ilha, até ver-se frente a frente com o seu objetivo.
Tanto a tradição monástica de São Bernardo quanto a tradição escolástica de São Tomás de Aquino
(1225-1274) se fundamentam na aceitação do fato que momentos acontecem, raros e especiais, em
que a realidade perde seu rosto mais óbvio e mostra outro, mais parecido com o que é. Esses momentos pessoais e intransferíveis - que no caso de uma experiência traduzida em termos religiosos
significa uma comunicação direta com o divino ou, mais intensamente, a fusão do indivíduo naquela realidade pelo seu reconhecimento em si - resultam no que se chama experiência mística. Uma
intimidade necessariamente fugidia, à qual não se chega apenas pelo caminho do intelecto, mas
também pela afetividade que fundamenta a crença. Tais momentos, na rememoração, se apresentam
como um espaço mosaicado à consciência, não um continuum.
A vivência de tais momentos era intensamente desejada e estimulada pela tradição monástica através da prática ritual da Lectio Divina, uma forma imersão do indivíduo em oração permanente, uma
meta-linguagem afetiva que religava-o a Deus e, em alguns casos, ao próximo. Nessa prática é a
Oração, não a experiência mística em si, que constitui o continuum que se apresenta à consciência
marcados por traços distintivos.
A importância da Oração é enfatizada pela tradição cristã desde os primórdios do cristianismo,
notadamente por Origenes no tratado Da Oração195, cuja relação com a história da Lectio Divina
194
in Lotman & Uspenski, op cit pg 137
195O
tratado Da Oração, preservado na integra em grego, foi escrito entre 232 e 235, enquanto Origenes estava na Cesaréia. O trabalho inicia com uma introdução do objeto, sua necessidade e importancia e termina com uma exeges da Lectio Divina, que menciona a posição, lugar e atitude a ser tomada pelo orante, assim como as classes de oração. OnLine
in Christian Classics Ethereal Library trad William CURTIS http://www.ccel.org/ccel/origen/prayer.i.html
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“salta aos olhos”, considera Joseph Aloisius Ratzinger 196 , acrescentando que foi o bispo Ambrósio
de Milão (340-397) - “que aprendeu a ler as Escrituras a partir das obras de Origenes de Alexandria197 ” - quem trouxe a tradição para o Ocidente. A partir de Santo Ambrosio, a quem se atribui a
conversão de Santo Agostinho de Hipona (354-430) e, principalmente através desse último, a Lectio
foi incorporada à tradição monástica subsequente, unindo os incontáveis elos da corrente.
Acredita-se que a beleza das imagens corpulentas das Escrituras colocam os fiéis em contato com
aqueles tempos ermos. No caminho preconizado por Orígenes, a razão não é o elemento fundamental na meditação das Sagradas Escrituras, e sim o amor. Hans Urs Balthasar esclarece-nos a respeito
desse amor quando escreve que “a compreensão de Cristo, a PALAVRA (caracteres maiúsculos no
original) Encarnada é central ao conceito de Origenes da escritura”198. Para Origenes, continua
Balthasar (ibid), “a Palavra foi encarnada não apenas no Jesus histórico mas em cada uma das palavras” do Novo e no Antigo Testamento, isto é, ela - a Palavra Encarnada ou Cristo - já existia “nas
palavras de Moisés, Davi e os profetas” (id ibid). Desse modo, quando um cristão medita nas palavras sagradas dos Salmos, o eterno Logos fala a essa alma
No Cântico dos Cânticos o noivo é a PALAVRA conversando com sua esposa, a alma. E talvez, mais revelador ainda, a origem do pessach199 egípcio não é uma imagem típica do sofrimento de Jesus, mas do
transitus de Cristo para o Pai, uma realidade que ainda está ocorrendo em nós (Balthasar, op cit xiii, grifo
e maiusculas no original, trad livre).
Do ponto de vista interno do conto que nos ocupa, parece-me que o presente contínuo mencionado por Balthasar ressoa naquele “poucochinho de terra do Paraíso” que Amaro recebe ao final da
travessia, para uso próprio na memória, e para dividir entre os companheiros. O que se percebe naquela lembrança é o que permite o santo homem pio retornar em paz ao seu tempo em vida, paralelo
mas distinto daquele que vislumbrou lá fora, trazendo algo daquela maravilha consigo.
A idéia de processo que reside nesse remédio permite traçar um paralelo com outras tradições.
Para isso, identificamos como chave do conto a convivência de temporalidades distintas num mesmo espaço narrativo, transmitido em situação de oralidade e escritura.
196Papa
emérito Bento XVI, audiencia geral quarta-feira 2 de maio de 2007: Origenes (II)- Catequese de Bento XVI,
Roma: Zenit.org OnLine:http://www.zenit.org/fr/articles/audience-generale-origene-ii
197
Origenes de Alexandria, também conhecido por Origenes de Cesaréia (ca 185-253) nasceu em família cristã egípcia
(copta) foi teólogo, filósofo neo-platônico patrístico no período pré-niceno e teve como mestre Amônio Sacas ( ~175242) e Clemente de Alexandria, a quem sucedeu (203) à frente da escola catequética de Alexandria, fundada pelo estóico Panteno, que floresceu como um centro de espiritualidade à mesma época em que, nas areias do sul do Egito iniciava-se, com Santo Antão, a vida monástica na Igreja, num dos períodos mais intensos das perseguições romanas. Desejoso de conhecer a Igreja de Roma, esteve na capital dos césares à época (ca 212) do papa Zeferino e do imperador Caracala, e posteriormente em Antioquia e na Cesaréia, onde foi ordenado por bispos locais. O fato provocou seu banimento
de Alexandria pelo bispo Demétrio de Alexandria, que o acusou de heresia por aplicar métodos filosóficos e filológicos
a problemas de teologia. Perseguido, partiu (231) para a Cesaréia, Palestina, onde fundou uma escola, famosa em todo o
Oriente. Tornou-se o mais destacado exegeta bíblico da igreja grega primitiva e influiu em todo o pensamento cristológico oriental posterior. Durante a perseguição aos cristãos promovida pelo imperador Décio, foi aprisionado (250) e
torturado, ocasião em que se manteve firme escrevendo cartas a respeito da fé. Libertado após a morte de Décio (251),
não recuperou a saúde e morreu dois anos depois, em Tiro, antiquissima cidade fundada por fenícios no Líbano (apud
Catholic Encyclopedia: Origen OnLine: http://www.newadvent.org/cathen/11306b.htm
198
Hans Urs von BALTHASAR (2001) Origen of Alexandria: Spirit and Fire: A Thematic Anthology of His Writings,
trad p/ o inglês Robert DALY. S.J., USA: The Catholic University of America Press, p xiii
199
Passover na trad inglesa, Balthasar, op cit p xiii
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Da esquerda para a direita, mosaico de Santo Ambrosio na Basílica de mesmo nome, em Milão;
ícone copta, mostrando no canto inferior esquerdo Santo Antão com Paulo de Tebas, o primeiro eremita;
"Origenes, in Numeros homilia XXVII”, imagem produzida no monastério beneditino de Schäftlarn, ca 1160, Baviera,
Alemanha (atualmente na Bayrische Staatsbibliothek de Munique);
representação de Agostinho de Hipona em afresco datado do século VI na Basílica de São João de Latrão, em Roma
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O Mosteiro e o Reino_ Comunidades monásticas não são iguais no tempo e no espaço. Elsa
Branco da Silva ( 2002:261) nos aproxima do perfil da comunidade monástica à época que o “Conto de Amaro” passou para a letra, ao situa-la200 no período do abaciado de Dom Estevão Aguiar
(1431 a 1446), membro do Concelho de Rei a partir de 1440 - indicação do infante D. Pedro duque
de Coimbra, príncipe religioso e bem latinizado que fôra armado cavaleiro em Ceuta durante a conquista da cidade marroquina em 1415 201 . Nas funções de Esmoler-Mor, D. Estevão Aguiar tornouse o distribuidor oficial de bondades e benesses do Reino.
Consta que D. Estevão, já abade e vindo de uma estadia de quatro anos em Florença (1422-1426)
faz traduzir em Alcobaça muitos livros na ‘lyngoagem’, o português, e mandar recopiar outros em
que os antigos caracteres iam se apagando com o tempo e uso nos armaria do mosteiro. Consta
também que Dom Estevão havia se tornado monge na Itália e feito a profissão de fé na Badia Fiorentina, o mosteiro beneditino de Sta Maria de Florença - não sem antes vender seu guarda-roupa de
cavaleiro pela soma avultada de 100 florins a Palla Strozzi, banqueiro, patrono das artes, fluente em
grego, latim e colecionador de livros raros202.
Entre os filhos de Dom João I (1357-1433)203, o infante Pedro duque de Coimbra - dito o das Sete
Partidas pelas suas muitas missões no estrangeiro - é quem mantem melhores relações com o abade
de Alcobaça, recorrendo aos seus préstimos em momentos cruciais não só no plano espiritual.
A Alcobaça de D. Estevão Aguiar é muito diferente daquela primeira abadia erguida pelos monges
bernardos franceses com o auxílio dos “irmãos leigos”. Ampliara-se além das povoações e terras
agrícolas doadas em regime de couto por Afonso Henriques. As doações de couto, frequentes entre
os séculos IX e XIV em Portugal, podiam ser concedidas pelo rei a nobres, eclesiásticos ou ordens
monásticas, seja em recompensa por serviços prestados, seja por necessidade de “povoamento”.
Como expressão senhorial consistiam em territórios imunes dos encargos públicos do poder real, a
saber, a hoste e o fossado (contribuição de peões e cavaleiros para a defesa comum); o foro (tributos pecuniários ou em gêneros) e toda peita (expressão que resume as multas aplicadas pelo fisco).
200
Há particularidades linguisticas que levam a supor a dependência dessa cópia manuscrita de outra (s) anterior (es)
201
As causas da conquista de Ceuta por Portugal, que marca o início de expansão portuguesa e o período das Grandes
Descobertas, são múltiplas: uma delas, a Bélica, implica na oportunidade dos infantes (o herdeiro Dom Duarte, Dom
Pedro e Dom Henrique, dito depois Navegador), serem armados cavaleiros por um feito de guerra. Ceuta era rica e canalizava o tráfego marítimo do Mediterrâneo Ocidental. A esquadra partiu de Lisboa em 1415 com um exército de cerca
de 20 mil soldados e marinheiros, muitos deles recrutados na região da Estremadura onde se localizavam as terras do
mosteiro. Dom Pedro teve parte destacada nos preparativos da expedição, feitos quase em segredo. Coube a ele o comando da nau capitânea de mais de uma centena de embarcações.
202
apud Virginia RAU, “Bartolomeo di Iacopo di ser vanni mercador-banqueiro florentino «estante» em Lisboa nos
meados do século XV” in Do Tempo e da História, vol. IV, Lisboa:Centro de Estudos Históricos, 1971:99
203
Dom João I de Portugal, cognominado “o de Boa Memória”, era filho do rei Dom Pedro I (1320-1367) e de uma
dama da corte, Teresa ou Tareija. Embora ilegítimo, o terceiro Mestre da Ordem de Avis foi aclamado décimo rei de
Portugal, primeiro da Dinastia de Avis, na sequência da crise de 1383-1385 em que a independência de Portugal foi
ameaçada por uma invasão do Reino de Castela, ameaça que ele debelou na Batalha de Aljubarrota (1385) com o apoio
do condestável do reino, Nuno Álvares Pereira, e aliados ingleses. Para selar a aliança luso-britânica Dom João casou-se
com Dona Filipa de Lencastre com quem teve os filhos Dom Duarte, Dom Pedro, Dom Henrique, Dom João e Dom
Fernando. Foi sucedido por D. Duarte (1391-1438) apodado o Eloqüente, I de Portugal e 2o. da dinastia de Avis. À época, havia fome e peste e hiperinflação e leis sobre os judeus do Reino. Quanto aos infantes D. Pedro duque de Coimbra
e D. Henrique duque de Viseu, o pai atribuiu-lhes a direção dos negócios externos do Estado, dos quais se ocuparam
além da administração das fontes de renda própria. D. João, senhor de Reguengos, Colares e Belas, tornou-se condestável do reino, desempenhando funções militares. Ao caçula D. Fernando dito depois Infante Santo coube a administração
do mestrado de Avis - uma ‘pouquidade de bens’ suspira ele - motivo pelo qual associa-se ao infante D. Henrique e arranca ao rei seu irmão o consentimento para uma empresa em Tanger no Marrocos “por ele considerada como uma forma de criar riqueza e de resolver seu caso pessoal”, nos diz Julio Dantas (1921:102).
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Hall Freire 103
Os funcionários régios (juízes, meirinhos, mordomos, etc) eram proibidos de aplicar penalidades ou
recolher impostos em terra coutada cujos moradores, embora imunes aos impostos e à justiça reais,
ficavam sujeitos às do senhor. No século XV o abade de Alcobaça era um Dom, ‘senhor’.
O couto que serviu de núcleo ao Mosteiro ia da Serra dos Candeeiros até ao mar, numa largura de
20 km, maior parte em denso matagal, nos diz o geógrafo e historiador Orlando Ribeiro204 dos
agrupamentos de pinheiros, carvalhos e castanheiras, lugares ermos onde se instalaram os primeiros
monges. Mas é preciso cuidado com a palavra “ermamento”, adverte. Terras sem senhor, ruínas silenciosas, desertos - expressões dos cronistas da época - não significam necessariamente terras sem
gente mas terras habitadas por gente invisível e nem por isso menos conhecedora do terreno que
habitava neles.
É provável que as terras doadas ao couto de Alcobaça fossem cultivadas há muito por famílias
camponesas, mouras, cristãs ou de outra denominação, não consideradas pelo sistema feudal por
serem desprovidas de um senhor legal (nobre, clérigo, ordem monástica ou rei)205. Desse modo, o
famoso deserto subjacente à fundação inicial cisterciense que aparece em piedosas versões da história antiga significa apenas que aquelas terras eram “vilas sem rei nem roque”, camponeses “sem
provedor nem patrão” que camuflavam-se à passagem dos exércitos para voltar aos campos logo
que se retiravam os cavalos, nota Moisés Espirito Santo (2004:32-33).
A inserção no sistema feudal português de algo que já existia à margem dele explica em parte o
desenvolvimento de Alcobaça. Não a partir do nada, mas em espaços de fertilidade, terras com vias
de escoamento e sistemas de irrigação trabalhados por gente do ramo e não “camponeses deslocados” de algum outro lugar - de onde? espanta-se Moisés Espírito Santo (ibid, p39) - às quais os
monges brancos aplicaram os seus métodos de colonização, arroteamento de charnecas e matagais,
secamento de brejos e desenvolveram certas culturas (da oliveira, por exemplo). Os monges também sabiam ler e escrever e àquela época era forte a relação entre a escritura e o sagrado. Aos poucos, os camponeses se achegaram à volta do mosteiro.
A população da vila de Alcobaça começou a crescer no início do século XIII, no compasso do
enriquecimento e crescimento territorial. No XIV, a abadia já era um feudo poderoso, com a figura
do Dom Abade ao centro. Não só os próprios coutos foram se alargando, como toda a Estremadura
salpicou-se de lugarejos, “herdades, vinhas, granjas da abadia. O seu domínio foi sempre crescendo, aumentara, avolumara excedentes”, nos diz Iria Gonçalves (1987:92). Ali, quem se viu algum
dia em perigo ou na iminência de perder um desejado não bradou como no resto do reino ‘Aqui
d’el-rei’, mas sim ‘Aqui do Abade’ ou mais modestamente ‘Aqui do Mosteiro’ comenta Maur de
Cocheril (1981:30). De qualquer forma, o que se ouviu quando o infante D. Pedro duque de Coimbra entrou em conflito com a rainha regente Dona Leonor de Aragão viuva de D. Duarte I vítima da
peste negra, foi ‘Comigo, o Abade’ - pois consta que eles entraram juntos, o infante, o abade e mais
500 homens de Alcobaça em prontidão “a cavallo e de pee”206, na Lisboa de 1438.
204
Orlando RIBEIRO (1987) A Formação de Portugal de Lisboa:Instituto Camões, Biblioteca Breve, 1987 OnLIne
//cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/formportugal.pdf
205
Nesse sentido, uma lei do rei Afonso II em 1211 é bastante clara: todo o homem livre deve depender de um senhor,
a menos que já viva inserido num senhorio. Na prática, isso significou mais impostos, um monte de nomes raros: o jantar, a lutuosa, a ramada, a entroviscada, a anúduva, a ‘voz e coima’, a ‘ossadeira’.
206in
MORENO, Humberto Baquero (1979) A Batalha de Alfarrobeira: antecedentes e significado histórico, vol 1;
Coimbra:Universidade de Coimbra pp 34-35
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Hall Freire 104
Expansão: Coutos de Alcobaça, depois da segunda doação real (século XIV)
Leonor de Aragão reinou sòzinha por três meses, de setembro a novembro, após o que a regência
coube ao Infante das Sete Partidas (1439-1448) até a maioridade do herdeiro (Afonso V, o Africano)
que à época do desfile de força tinha pouco mais de seis anos.
A Ordem de Cister em tempos de crise _ No confronto entre o Das Sete Partidas e sua cunhada
real, Alcobaça já estava formalmente dispensada da obrigação de os abades das casas filiadas reunirem-se uma vez por ano na Abadia de Citeaux na Borgonha, a grande casa-mãe e sede delas todas,
inclusive Clairvaux à qual Alcobaça estava subordinada. Essas reuniões capitulares, consideradas de
grande importância numa Ordem com vocação universalista, foram previstas de início e definidas
na Carta Caritatis (sec XII) em que St. Stephen Harding delineou o modelo organizacional da Cisterciense e seus instrumentos de controle: restam duas versões da Carta além de três epístolas de St
Stephen207. As reuniões do Capítulo Geral em Citeaux duravam de sete a dez dias a partir de 13 de
setembro, vigília da festa da Santa Cruz. As ausências injustificadas eram consideradas ofensas graves, passíveis de penalização.
No entanto, as viagens não eram fáceis, cercadas de perigo, custos enormes, autorização de pouca
companhia - concedeu-se que cada abade levasse consigo um monge secretário e um irmão leigo.
Mas as distancias na Idade Média eram maiores. Vista de Alcobaça àquela época, mesmo Lisboa é
distante - algo que hoje se leva hora e meia para vencer 124 quilômetros, no século XV, exigia “pelo
menos dois dias, que se duplicavam com o regresso. E eram dois dias de viajar aturado que, para
algum descanso, eles estavam longe de bastar”, nos diz Iria Gonçalves (1987:94).
Além disso, o Cisma do Ocidente (1387-1417) - período em que dois e até três papas, eleitos por
cardeais divididos em grupos antagônicos, disputaram a autoridade pontifícia - teve consequências
funestas na unidade da Ordem, já fragilizada pelas guerras, pela peste e, principalmente, pelo sistema de “comendas” instituido pelo papa Gregório XI. Pelo sistema, o Papa - na qualidade de tutor
das Ordens monásticas - reservava-se o direito de nomear os abades.208. Enquanto membros de uma
207in
208
Ordine Cistercense - Nono Centenario dalla Fondazione, 1098-1998- trad DEMARTINI, Pe. Paulo Celso, O. Cist.
Na sequencia, os reis reivindicaram seus direitos feudais de nomear os abades nos mosteiros localizados em seus
territórios.
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Ordem, os cistercienses estavam sob orientação espiritual do Sumo Pontífice, mas em situações de
conflito as obediências se confundem. Não só os nacionalismos fragilizaram a estrutura interna
como, externamente, a tendência dos papas em Roma ou Avignon de favorecer as abadias que lhes
davam apoio, fracionou a Ordem em Capítulos nacionais, seguindo essa ou aquela tendencia.
Em setembro de 1438 as intrigas do Reino absorviam D. Estevão Aguiar e naquele momento era
delicada a situação do papa Eugenio, o IV (1431-1447) nascido Gabriele Condulmer em Veneza.
Embora o Concilio de Constança (1417) tenha avançado na pacificação da Igreja Ocidental, estabelecendo o papado definitivamente em Roma, sobravam sequelas.
Eleito papa, Eugenio IV - a quem D. João I se dirigira em 1431 para interceder pela confirmação
de Estevão de Aguiar como abade de Alcobaça - havia proclamado o 17.º Concílio Ecumênico em
Basiléia, na Suiça cujos decretos teve que enfrentar na situação de pontífice itinerante entre as cidades de Florença e Bolonha.
Roma, de onde fora obrigado a fugir em 1434 quando um governo comunal autônomo proclamou
a república, só voltaria a ser um destino seguro e séde do papado em 1443, graças ao apoio de
Afonso V de Aragão, investido por ele como rei de Nápoles.
Nas intrincadas relações diplomáticas dessa época entre o Papado e o Reino português, destaca-se
a participação de Dom Frei Gomes, descendente de uma família de comerciantes lisboetas e superior da Badia Florentina. Dom Frei Gomes era amigo pessoal de Eugenio IV desde os tempos do noviciado em Florença209 e um canal de comunicação confiável para as partes envolvidas.
A “Badia” Florentina / Dom Frei Gomes _Como noviço da Badia é provável que Estevão
Aguiar tenha convivido com Frei Gomes210, responsável pelo reflorescimento da memorável instituição da cidade italiana. A partir de 1418, com Frei Gomes à frente até 1439, a velha Badia surge
nos livros de arte como um marco do primeiro renascimento em Florença, deixando para trás um
período “quase sem religiosos e enredada em graves problemas economicos”, reforça António Matos Reis (op cit, p 141) num estudo dos afrescos místicos do claustro, executados pelo artista português João Gonçalves, dito Giovanni di Gonsalvo.
209
Eugênio IV foi membro da comunidade de presbíteros regulares de S. Jorge da Alga, em Veneza, onde era abade
comendatário Ludovico dos Barbos que, em seguida, tomou posse como abade regular do mosteiro de Santa Justa de
Pádua, o mesmo onde Frei Gomes professou. Antes de ser eleito Papa, Eugenio IV foi Bispo de Siena e nessa situação
teve diversos contatos com Frei Gomes, que se encontrava à frente da Badia Florentina. Daí, talvez, uma mútua estima
acentuada nos anos em que o pontífice se viu forçado a residir em Florença.
210
Também grafado Dom Frey Gomez, Gomes Eanes Ferreira, Gomes ou Gomésio de Portugal (a partir do latim erudito Gometius di Giovanni, usado por Tommaso Salvetti na biografia escrita em 1431 para o Infante D. Pedro de Portugal). No século XV, Gomes era um nome próprio de largo e longo uso na Península Ibérica - e não um patronímico
como hoje. “Eanes” e “Ferreira” eram os nomes de família do abade de Florença, que raramente os usava. Frei Gomes
estudou Direito em Pádua; em ca. 1412 ingressou na Ordem de S. Bento fazendo o noviciado no mosteiro de Stª Justina
sob orientação do Abade Ludovico dos Barbos de Veneza. Enviado pelo seu superior à abadia de S. Fortunato de Bassano, Frei Gomes voltou a Stª Justina para professar no início de 1414 antes de seguir à frente dos 16 monges encarregados da reforma da Badia. Para maior detalhamento remete-se às obras consultadas: _ 1) tese de doutoramento de Eduardo Borges NUNES, (Dom Frey Gomez, Abade de Florença, 1420-1440, Lisboa: Universidade de Lisboa/ Faculdade de
Letras, 1963) para o período italiano de Frei Gomes; _ 2) estudo de António Matos REIS (O Claustro da Badia de Florença in LER - Revista da Faculdade de Letras, volume 1- Estudos em homenagem ao professor doutor José Amadeu
Coelho Dias; Porto: Universidade do Porto 2006: pp 141-158) para os afrescos portugueses em Florença; _ 3) ensaio de
Rita Costa GOMES (Letters and letter-writing in fifteenth century Portugal, 2004:pp 11-37 in EUI Working Paper HEC
No. 2004/2, Reading, Interpreting and Historicizing:Letters as Historical Sources, Ed Regina SCHULTE e Xenia von
TIPPELSKIRCH,Florença/Badia Fiesolana:European University Institute (EUI)/Dept History and Civilization (HEC)
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Supõe-se que, à época, existia uma importante colonia portuguesa na Itália formada não só por
monges e religiosos da Florentina - onde Frei Alvaro e Frei João, ambos portugueses, substituiam
D. Frei Gomes quando esse se ausentava - mas também por nobres, viajantes, mercadores e artistas
em permanente contato com seus pares italianos. Nesse circuito considera-se a Badia um dos polos
de referência da colonia portuguesa.
Consta que em Florença, na Badia e fora, Frei Gomes tinha fama de ser adepto de disciplina austera para os padrões reinantes. Quanto a esses “padrões reinantes” Marcelino Menendez y Pelayo é
muito claro pois, na sua opinião (1992:919), “con Renacimiento y sin Renacimiento hubiera sido el
siglo XV una edad viciosa y necesitada de reforma”. Quem não se lembra das invectivas de São
Bernardo contra a gula, o luxo, a soberba, a avareza, a rapacidade de muitos monges do seu tempo?
pergunta Menendez y Pelayo (ibid), aproximando os dois panoramas.
Ciclo da Vida de São Bento : afrescos de João Gonçalves no Claustro das Laranjeiras (Mosteiro da Badia, Florença):
“... claustro pequenino e verdadeira jóia da Renascença, que se chama a Crasta das Laranjeiras, porque
na sua origem as arcadas eram ornadas com grandes vasos de laranjeiras” (in Guido Batelli, A Crasta das Laranjas, uma
lembrança de Portugal, Porto:Prometeu, 1950: 4).
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Movimento e expressão: Influência florentina e herança ibérica (afrescos do claustro, Badia, Florença)
Em 1439 Florença vivia sob o ritmo do Concílio Ecumênico que, finalmente, Eugenio IV conseguiu transferir de Basiléia. Nas ruas da cidade ouviam-se vozes de idiomas estranhos, cristãos da
Armênia, de diferentes partes da Grécia, da Russia, da África do Norte e do Leste, coptas e etíopes
que atenderam ao apelo do papa, empenhado em reunir um grande número de orientais no encontro
e manter acesa a chama de reunificação das Igrejas do Oriente e do Ocidente. O imperador bizantino João VIII Paleólogo e sua corte lá estavam. Pressionado fortemente pelos turcos otomanos, mostrava-se ansioso por uma aliança com os católicos.
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Hall Freire 108
A sede do encontro e o direito de convocá-lo fora objeto de acirradas discussões entre o papa e os
Conciliaristas211 reunidos em Basiléia. O grupo acusou Eugenio IV de simonia e heresia; entendeu
que cabia ao Concilio a convocação de diálogo com a Igreja do Oriente e finalmente elegeu um duque da nobreza de Sabóia como ocupante do trono de S. Pedro, o antipapa Félix V, naquele mesmo
ano em que o papa descendente de mercadores de Veneza dava início ao Concilio de Florença.
A vitória no embate coube ao Papado, não sem pesadas concessões aos príncipes da Europa. A dinastia de Avis, em particular, foi agraciada com as bulas 212, que renovaram a concessão ao rei Dom
Duarte I de Portugal de todas as terras que conquistasse na África, desde que o território não pertencesse a príncipe cristão, com a justificativa de que os portugueses fariam os povos bárbaros adeptos
de Cristo 213.
Em 1435, depois de ter incumbido Dom Frei Gomes da delicada visitação aos mosteiros florentinos, o Papa enviou-o a Lisboa. Até 1437, anos cruciais nas negociações do papado, ele permaneceu
na capital portuguesas como núncio apostólico, legado do Papa junto ao rei Dom Duarte I. Voltando
a Florença, foi nomeado em 1439 geral dos beneditinos Camaldulenses. Finalmente, em 1441, Frei
Gomes regressou definitivamente a Portugal como prior do Mosteiro de Sta Cruz de Coimbra, que
governou até a morte (1459).
Em Alcobaça, o abaciado de D. Estevão Aguiar pode ser pensado como um final feliz dos interesses do Reino e do Papado. Os interesses da Ordem Monástica à qual pertencia Dom Estevão, entretanto, estavam um pouco afastados.
211
O Conciliarismo ou Teoria Conciliar é uma doutrina reformista. Na Idade Média situa-se no contexto do Cisma do
Ocidente (1378-1417). À época, os Conciliaristas consideraram que a autoridade suprema da Igreja residia não no exercício do Papado, mas no Concilio Ecumênico ou Universal, fonte do poder dos papas. Dois pensadores importantes do
século XIV, Marsilio de Padua (ca 1275-1342) e William de Ockham (ca 1288-1348) foram favoráveis ao Conciliarismo
em detrimento ao poder papal. No século XV, Nicolau de Cusa (1401-1464) defendeu a supremacia dos Concílios mas,
diante das extrapolações em Basiléia, reviu as posições e reconciliou-se com as teses do Papado. Posteriormente, a
questão do poder papal foi resolvida e declarada dogma pela Constituição “Pastor Aeternus”, promulgada no Concilio
Vaticano I, em 1870, pelo Papa Pio IX. Para aprofundamento da questão remete-se a Paul VALLIÈRE (2012) Conciliarism: A History of Decision-Making in the Church, Cambridge: Cambridge University Press.
212
apud Charles Martial de WITTE (1958) Les bulles pontificales et l'expansion portugaise au XVe siècle in Revue
d'histoire ecclésiastique, t. XLVIII (1953), t. XLIX (1954), t. LI (1956), t. LIII (1958)
213
A conquista de Ceuta no norte da África, em 1415, marca o início da expansão portuguesa na África e na Ásia que,
85 anos depois, chegaria ao Brasil. Em menos de um século, Portugal dominaria as rotas comerciais do Atlântico sul, da
África e da Ásia. Sua presença foi tão importante nesses mercados que, do século XVI ao XVIII, o português era usado
nos portos como língua franca.
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ESPAÇOS INTERMEDIÁRIOS214
214
Pintura ritual yanomâmi: foto Claudia Andujar 1976 - s/ título, série Identidade
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Mapa Noturno _ Iniciei o presente estudo mencionando razões para investigar o ‘Conto de Amaro’ no espaço das ritualidades. No primeiro capítulo, tento demonstrar o modo operacional da Semiótica como disciplina pivotante (Liszka,1996, 1.6), apresentando uma leitura guiada pela idéia de
diálogo entre a lógica interna e a lógica externa ao texto. No processo, recorro aos resultados de diversas ciências empíricas com o intuito de refinar os resultados da pesquisa. “O termo dialógico215”,
nos diz Edgar Morin, (2003:148) “quer dizer que duas lógicas, dois princípios, estão unidos sem
que a dualidade se perca nessa unidade”. Concluo aquela leitura sugerindo que na composição do
‘Conto de Amaro’ estão dialogando duas lógicas distintas no contexto de respostas culturais à relação vida/morte, sem que aquela distinção se perca no espaço literário de um ‘raconto’ no qual se
ouvem muitas vozes ecoando na voz de um narrador que permanece fiel a si mesmo. No Raconto de
Amaro - uma rememoração que ocorre em espaço cultural definido - a transposição de uma temporalidade para a outra se dá através de uma figura retórica, a analepse, indicando o termo da longa
passagem que ocupa aproximadamente 95% da narrativa e descreve uma elipse na sua trajetória.
O desejo de um paraíso terreno expresso no “Conto de Amaro”, conduzindo sua viagem, ganha
outra concretude no ideário cristão, em que se traduz como possibilidade real de salvação (vida
eterna) pelo exercício de amor ao próximo como a si mesmo. O aprendizado desse amor divino,
como termo da passagem que transcende o binômio vida/morte, é um poderoso índice das relações
em jogo. É a prática do segundo mandamento que indica o caminho cristão de ascensão ao divino,
deslocando o objeto desse sumum bono do singular para o coletivo e do concreto para o abstrato
sem, entretanto, que nessa trajetória o coletivo perca a sua singularidade humana e o abstrato perca
a sua concretude.
É possível visualizar essa situacão, expressa em termos de temporalidades distintas no “Conto de
Amaro”, privilegiando a própria relação e o modo pelo qual esta formula e define os elementos que
a compõem - não os têrmos absolutos que a constituem, mas os espaços intermédios que a configuram, o que está “entre” ao invés dos elementos da baliza como nos aconselha Tomás de Aquino na
sua leitura da virtude teológica da esperança.
Desse modo, a voz que nos chega do Conto de Amaro é e não é apenas a de um manuscrito português do final do século XIV em Alcobaça. Da distancia em nos entrevemos, ela acena com um
tema universal 216 , em que a vida surge como uma passagem entre o nascimento e a morte que distingue os homens dos deuses e, ao mesmo tempo, nos remete a “certas estruturas simbólicas e universais presentes no ritual liminar”, conforme diz Victor Turner (in Moore & Myerhoff 1977:46)
destes espaços ‘de soleira’, como prefere Roberto DaMatta (2000).
215
O conceito de dialogismo foi formulado inicialmente por Mikhail BAKHTIN in ‘Problemas da Poética de Dostoiévski’, trad BEZERRA, Paulo , São Paulo: UFF – USP, 2002
216O
têrmo universal é polissêmico, nos diz Renato Ortiz: “o uso que dele fazemos remete a diferentes tradições de pensamento” (2007:7). Na herança iluminista (sec XVII e XVIII), por exemplo, o têrmo define uma qualidade da natureza
humana, relacionada ao triunfo da razão: ”O humanismo das Luzes funda-se nessa categoria transcendente e abstrata,
ela permite as generalizações filosóficas sobre um conjunto diverso (historicamente) e homogêneo (filosoficamente),
passível de ser compreendido e ordenado segundo a razão: a humanidade”(id ibid). Outro sentido do termo, característico do modernismo, continua Ortiz, exprime-se no contraste que se faz entre sociedade e natureza, homem e mundo
animal. Mas “no momento em que se determina um substrato comum a todos, um elemento específico os distancia: a
cultura. A linguagem é uma faculdade universal dos seres vivendo em sociedade, mas as línguas, enquanto atualização
da linguagem, os separa e os divide. Esse é o dilema de Babel” (2007:8), e conclui: “O universal termina onde começam
a cultura e a língua” (ibid). Na tradição sociológica, a noção tem outro significado. Émile Durkheim, por exemplo, citado por Ortiz (ibid, pg 9), procura demonstrar que categorias como o espaço e o tempo (abstratas e universais para os
filósofos) são sociais e dependem da organização das diferentes sociedades.“Existiria, pois, uma sociologia das categorias de pensamento inteiramente distinta de sua suposta universalidade”, considera Ortiz. O presente estudo apoia-se em
noções adquiridas na leitura de Aron Gurevitch (1990) a respeito das categorias de pensamento na cultura medieval.
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Passagens fazem parte do sagrado. O presente estudo visualiza o campo do sagrado como um denominador comum nas flexões do tempo e do espaço: nele atuam certas estruturas simbólicas e universais do pensamento que se diferenciam na manifestação em línguas, culturas e sub-culturas217.
Essa é a razão para abordar o Conto de Amaro no âmbito das ritualidades. Os antropólogos Claude
Lévi-Strauss e Victor Turner trouxeram contribuições valiosas que auxiliam a pensar a questão.
A possibilidade de análise semiótica decorre do fato que ritos e rituais também podem ser observados na perspectiva de signos218 e textos219, isto é, não apenas na condição de objetos empíricos
mas na sua ação como mediadores comunicativos da cultura. A teoria antropológica desenvolvida
para os ritos de passagem permite avaliar complexas relações em que processos culturais de velocidade distintas interagem simultaneamente em situações de mobilidade sígnica, ao mesmo tempo
que o olhar não perde de vista a diacronia.
Rito e Ritual nos falam de usos e costumes praticados desde tempos longínquos e sua trajetória
pode ser reconhecida num simples aperto de mão. Num sentido amplo, o rito compreende uma sucessão de palavras, gestos e atos para serem executados em ocasiões formais, no contato inter e intra-subjetivo com o acontecimento considerado especial, distinto, peculiar, específico, não-cotidiano
pelo grupo em questão. Dessa forma, todos os ritos são repetitivos e esta repetição cria laços de
continuidade com o passado. O ritual, por sua vez, implica na performance do rito. Lévi-Strauss nos
fala da relação entre rito e ritual num trecho de "O Pensamento Selvagem" (1962:44-47), mais precisamente aquele em que comenta os ritos funerários dos índios Fox220 : enquanto o rito fornece a
estrutura para uma certa prática, diz o autor, o ritual transforma esta estrutura numa série de eventos
217
Diferença é um têrmo polissêmico, lembra-nos Renato Ortiz (2007:9):geralmente associa-se ao particular, à contenção, aos limites e à identidade. A antropologia ensina que a noção de diversidade encontra-se intimamente associada à
idéia do outro. “Apesar da existência de correntes teóricas de cunho universalista, como o estruturalismo, a antropologia
é marcada por uma perspectiva que valoriza a unidade de cada cultura”, continua Ortiz (ibid) enfatizando que a diferença, não possui um valor “em si”, uma “estrutura” ou “essência” atemporal. Ao contrário, a diversidade existe em situações históricas determinadas, o que exige a sua qualificação. Desse modo, Ortiz sugere o têrmo “situação”, que define
como “uma totalidade no interior da qual as partes que a constituem são permeadas por um elemento comum” como um
conceito que nos permite pensar simultaneamente o comum e o diverso (ibid, pg 10)
218
Signo, para Charles Sanders Peirce, “é algo que está para alguém no lugar de alguma coisa sob algum aspecto ou
capacidade” (CP 2228).
219
O conceito de texto, formulado no contexto da semiótica da cultura na escola russa de Tartu-Moscou, abrange a cultura humana como um todo, um macro-texto integrado por uma diversidade de textos. Para que uma determinada mensagem seja definida como “texto” cultural supõe-se que deva estar codificada no mínimo duas vezes: uma delas pela
língua natural, utilizada pelos homens no seu cotidiano. A segunda linguagem é menos evidente. “Trata-se do modelo
estrutural do espaço” ao qual está ligada toda atividade humana, nos diz Iuri Lotman (1996: 57). Nesse espaço, concebido como semiosfera - um conceito cunhado por Lotman em analogia ao de biosfera - conjugam-se as diversas culturas
com a sua diversidade de códigos; sub-dividindo por sua vez o espaço em espaço próprio e alheio e assim indefinidamente como se fossem semiosferas dentro de semiosferas, células traduzindo “os variados vínculos sociais, religiosos,
políticos, de parentesco, etc na linguagem das relações espaciais” (id ibid). Fora desse espaço relacional que implica em
liminaridades, zonas fronteiriças de contato e intensa tradução entre textos distintos, não há comunicação, não há linguagem e é impossível a existência de processos de produção de significados ou semiose. Lotman (1996:12) define a
noção fundamental de “zonas fronteiriças” à semelhança do conceito de fronteira em matemática, “um conjunto de pontos pertencentes simultaneamente ao espaço interno e ao espaço externo” de semiosferas que se interseccionam, correspondendo à “soma dos tradutores/“filtros” bilingües através dos quais um texto se traduz em outra linguagem (ou linguagens) que se encontra fora da semiosfera dada (id ibid). Desse modo, um texto cultural não se apresenta apenas
como a realização de uma mensagem em uma linguagem única, e sim como um complexo dispositivo que guarda variados códigos, capaz de transformar as mensagens recebidas e gerar novas mensagens, um organismo vivo enfim, “um
gestor informacional que possui traços de uma pessoa com um intelecto altamente desenvolvido” (id ibid p 56).
220
Grupo nativo da região dos Grandes Lagos entre o Canadá e os Estados Unidos
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que ressignificam a prática. Para o antropólogo Victor Turner, os ritos de passagem estão sempre
associados aos rituais.
Os rituais apontam para processos de permanência e renovação no plano da cultura. O processo
de criação nos rituais é visualizável na performance dos ritos, entrelaçando temporalidades distintas,
identidades coletivas e singulares, razão e emoção que modificam e reafirmam, a cada novo e infinitesimal acréscimo, o universo simbólico culturalmente elaborado e historicamente acumulado
pelo grupo. Na trama que continuadamente reconstroem, os rituais iluminam não só as relações recíprocas entre as capacidades biológicas e o contexto social que Henri Wallon observa no desenvolvimento da criança em homem, mas a qualidade de certos vínculos que as culturas estabelecem com
a natureza. A complexa rede de significações que se produz nessa abordagem permite vislumbrar as
mediações e os sujeitos das mediações a partir de um outro lado, o dos interstícios: brechas em que
se insere a vida festiva, afetiva, lúdica, familiar, religiosa de que nos fala Jesús Martín-Barbero na
sua cartografia da noturnidade.
Em 1983, quando aventou pela primeira vez o que lhe pareceu uma “estranha proposta” de mapa
noturno, Barbero (2004:17) conta que sua idéia era “re-situar o estudo dos meios desde a investigação das matrizes culturais 221, dos espaços sociais e das operações comunicacionais dos diferentes
atores do processo”. Da concentração e mistério deste espaço vislumbrado nas práticas sociais, posteriormente ele dirá em entrevista222 : "O que eu comecei a chamar de mediações (…) significava
que entre estímulo e resposta há um espesso espaço de crenças, costumes, sonhos, medos, tudo o
221
Por matrizes culturais entende-se não apenas a abstração analítica, as dimensões metafórica, cognitiva e normativa
envolvidas na expressão, mas também a condição material indispensável na gestação e desenvolvimento do sujeito coletivo, à semelhança do útero materno na conformação do sujeito individual. Do ponto de vista cultural as matrizes constituem uma fonte continuada de alimento emocional e intelectual - um feixe de traços em comum, uma teia de usos,
gostos, costumes, crenças, valores, comportamentos e ações nas quais os indivíduos se reconhecem e são reconhecidos
como pertinentes a um grupo com determinada organização - e nesta qualidade são percebidas como focos de irradiação
e produção de identidades, fator fundamental na comunicação entre culturas distintas. A construção de uma identidade
cultural supõe um elo afetivo e sensorial entre a matriz e seus aderentes - ao mesmo tempo produto e produtores desta
trama de muitos nós que inclui laços da persuasão, sedução e também coerção e intimidação na urdidura. Na ausência
desta identificação, não necessariamente explícita e consciente, mas real na medida que é através dela que a realidade
socialmente se constrói, o indivíduo não é capaz de constituir uma identidade a partir daquela organização matricial.
Dela fazem parte não só emoções de ordem moral ou de interesse mas também emoções estéticas que desabrocham em
danças de toda espécie, cantos, dramatizações, paradas e desfiles, banquetes e festins, construção de objetos, adornos,
prestação de bons serviços etc: “daí a função primordial da estética para obter tal identificação”, considera Katya Mandoki (Prácticas estéticas y identidades sociales: prosaica II; México:Siglo XXI, 2006, p 91), lembrando que cada matriz
se fundamenta num símbolo particular ou grupo de símbolos, focos de dotação estética pela carga de tempo, matéria e
energia depositados neles (ibid 115) - o que não impede transformações durante o seu desenvolvimento. Embora fenômenos de mesma índole, as matrizes formam grupos e sub-grupos diversos: há matriz e matrizes de natureza familiar,
religiosa, artística, de produção de conhecimentos, etc. A constituição de tais sub-grupos não é homogênea nem claramente delimitada no tempo e no espaço. Há períodos em que uma matriz sobressai como dominante e em torno dela
giram as demais à exemplo da religiosa durante a Idade Média. Combinações e misturas se dão continuamente não
sòmente no interior de cada matriz, que pode incorporar elementos de outras matrizes ou de etapas prévias de seu desenvolvimento, mas também na fluidez das bordas, em que fenômenos diversos muitas vezes se confundem, imbricam e
sobrepõem sem que a matriz perca a especificidade de seu corpo matricial - um mundo profundamente afetivo e experencial que possui ritmos próprios, tensões distintas em contínua reorganização. Embora relacionados, o conceito de
matriz não se confunde com o de instituição. As últimas fazem parte das primeiras, como segmentos cristalizados em
práticas explícitas impessoais. Mas as matrizes, ao contrário das instituições que se caracterizam por fixar os comportamentos que regulam, são geradoras de comportamentos.
222
Entrevista de Claudia BARCELLOS para o programa Sintonia CBN, da rádio CBN-São Paulo, em 13/05/2000. A
edição publicada na Revista Brasileira de Ciências da Comunicação (Vol. XXIII, nº 1, janeiro/junho de 2000, pp 151163) orientada pela professora Maria Immacolata VASSALLO de LOPES (ECA-USP).
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que configura a cultura cotidiana"223. Essa reflexão, que dá conta da história pessoal e coletiva de
diversos agentes culturais entrelaçados na prática social, permitiu que Barbero - sem abandonar a
ancoragem do conceito de mediação e negar a importância dos meios - passasse dos mapas sobre as
mediações sócio-culturais (a partir das quais operam e são percebidos os meios), para cartografar as
mediações comunicativas da cultura - socialidade, institucionalidade, tecnicidade e ritualidade224 que, “ao tornarem-se o lugar antropológico da mutação cultural que introduz a espessura comunicacional do social, reconfiguram hoje as relações entre sociedade, cultura e política” (Barbero, 2004,
pp18-19).
Em relação às demais mediações comunicativas, a ritualidade apresenta um diferencial: ela “nos
remete ao nexo simbólico que sustenta toda a comunicação” diz Barbero (2003:xx), referindo-se aos
enclaves da ritualidade na memória, seus ritmos e formas, seus cenários de interação e repetição na
cultura. Constitui uma espécie de gramática de ação - do olhar, do escutar, do ler - que “regula a interação entre os tempos da vida cotidiana e os espaços e tempos que conformam os meios” (id ibid),
ao mesmo tempo que remete aos diversos usos sociais dos meios e trajetos de leitura ligados às
condições sociais. O reconhecimento do valor operacional da ritualidade implica também no reconhecimento que as relações de força numa sociedade são múltiplas e as simbólicas são instrumentos
tradicionais de poder. Como lembra Pierre Bourdieu (2002:11)
não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder
que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou
pelas instituições ) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch225, podem permitir
acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
223
Em relação à cultura cotidiana vale lembrar a distinção que Lev S.Vigotsky estabelece, a partir de estudos do desenvolvimento da criança, entre conceitos cotidianos ou espontâneos e conceitos científicos: enquanto os primeiros são
formados a partir de vivências, do sentimento de mundo, os segundos são adquiridos pela instrução formal. Mais
importante ainda é a relação de reciprocidade que Vigotski distingue entre ambos: “La frontera que separa unos y otros
conceptos resulta altamente lábil y es atravesada por ambas panes un incalculable número de veces en el curso real de
los acontecimientos. Hemos de suponer de antemano que el desarrollo de los conceptos espontáneos y científicos son
procesos que influyen uno en otro continuamente. Por un lado (...) el desarrollo de los conceptos científicos resulta posible tan sólo cuando los conceptos espontáneos del niño han alcanzado un nivel determinado, propio del comienzo de
la edad escolar. Por otro lado, debemos admitir que la aparición de conceptos de tipo más elevado, como son los conceptos científicos, no puede dejar de acusar la influencia de los conceptos espontáneos surgidos con anterioridad, ya que
ni unos ni otros están encapsulados en la conciencia del niño, ni están separados por un tabique infranqueable. No
fluyen por canales aislados, sino que se hallan inmersos en un proceso de continua interacción, que deberá tener el resultado inevitable de que las generalizaciones de estructura superior, propias de los conceptos científicos, produzcan
cambios estructurales en los conceptos espontáneos” (in Pensamiento y Lenguaje. Conferencias sobre Psicología. Obras
escogidas II, Madrid:Viscor, 1993 [1934], p.194). Para maior detalhamento da questão remete-se à obra citada.
224
Por socialidade ou sociabilidade, “ao mesmo tempo ancoragem da praxis comunicativa e resultado dos modos e usos
coletivos da comunicação” nos diz Martín-Barbero (2003:xviii), entende-se a trama interpessoal e coletiva das relações
cotidianas que orienta-se por racionalidades outras que a institucional, por exemplo, a dos afetos. Por institucionalidade
entende-se a mediação de interesses e poderes contrapostos que afeta a regulamentação dos discursos do Estado e dos
cidadãos. Por tecnicidade entende-se “menos uma questão de aparatos que de operadores perceptivos e destrezas discursivas”, considera Barbero (2003:xix), uma característica dos processos de comunicação que não se reduz ao meramente
instrumental permitindo deste modo o desenvolvimento de novas sensibilidades e práticas sociais.
225
“Potlatch” é um dos conceitos-chave de Antropologia, desenvolvido por Marcel Mauss. Aplicado de início a comportamentos institucionalizados por acordos tácitos, herdados, não escritos e celebrados em rituais de tribos do noroeste
americano, da Polinésia e da Melanésia, foi posteriormente detectado na origem e no desenvolvimento de numerosas
culturas. De maneira geral, o potlatch consiste em trocas e contratos que se materializam sob a forma de favores, presentes de plumas a vestes, passando por escravos, mulheres, imóveis, meios de locomoção etc, envolvendo um mundo
de significados e desdobramentos complexos em que persiste um traço isolado por Mauss (2002[1923-1924]:7): “o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, mas entretanto obrigatório e interessado dessas prestações”, uma vez que o agraciado pelos dons se vê na situação de retribuir necessariamente o recebido das mãos do doador, por sua vez beneficiado pelo poder simbólico da doação. Para maior detalhamento remete-se à obra citada.
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conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre
outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de [Max] Weber, para a domesticação dos dominados.
Nesse sentido, é muito interessante uma observação de Jerusa Pires Ferreira (2004:81-82) a respeito de Iuri Lotman. A de que ele “procurando romper o esquema diádico em que muitas vezes se
deixa aprisionar, consegue ver no processo de criação, dentro de uma cultura, uma reserva de dinamismos”. O processo de criação, nas culturas, está associado à heterogeneidade da consciência humana e situa-se em algum ponto da relação entre o que Lotman e Uspenski definem como culturas
orientadas pelo pensamento mitológico e culturas orientadas pelo pensamento descritivo. As primeiras, “podem ser definidas como culturas orientadas para os nomes próprios”. (1981:144). As segundas orientam-se por processos tradutórios e explicatórios. São temporalidades distintas.
Símbolos _ Nos símbolos aos quais a ritualidade remete há sempre alguma coisa de arcaico e tal
percepção não é meramente casual, lembra Lotman (1996:102). Toda cultura necessita uma camada
de textos que remetam a um passado remoto e nesta camada concentra-se um grupo de símbolos
que remonta à época anterior à escrita, período em que determinados signos eram programas mnemotécnicos condensados que conservavam textos extraordinariamente extensos e importantes na
memória oral da coletividade. Por representarem um texto acabado, estes símbolos se separam facilmente do entorno semiótico e com a mesma facilidade entram na rede de um novo entorno textual ou seja, o símbolo nunca pertence a um único corte sincrônico da cultura; ele sempre atravessa
este corte verticalmente, vindo do passado e projetando-se no futuro. Como diz Lotman “a memória
do símbolo sempre é mais antiga que o seu entorno textual não simbólico” (id ibid).
Suástica: símbolo presente desde o final do VI milenio
aC até hoje em representações religiosas e amuletos de proteção no Oriente. Signo de
força do nazismo no século XX, encontra-se em monumentos cristãos datados
desde o século VII em Portugal, como o pórtico da igreja matriz de Barcelos, a capela de S. Torcato e a pia
batismal da freguesia de Brito, em Guimarães (apud Sociedade Martins Sarmento,
1997, catálogo da exposição “A suástica e suas variantes no norte de Portugal, desde a pré-história até a atualidade”)
Na leitura do “Conto de Amaro” valemo-nos dessa característica migrante dos símbolos pelo vislumbre que permite da trama social - não só no que se refere à informação de um dado período histórico e suas linguagens e contextos culturais - mas também das camadas mais profundas. Sendo
um importante elemento da memória da cultura, atuante tanto nos mecanismos de conservação
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quanto na regeneração da informação dessa memória, os símbolos transportam textos, esquemas de
narrativas populares e outras configurações semióticas de uma camada da cultura para outra. Deste
modo, os repertórios constantes de símbolos impedem a desintegração da memória em camadas
cronológicas isoladas - assumindo, em boa parte, “a função de mecanismos de unidade” considera
Lotman (ibid, p 102) quando nos fala desta espécie de mensageiros invisíveis de outras épocas, outras culturas, trazendo consigo a notícia de fundamentos tão antigos que nos fazem pensar em eternidade. Mas não só. Em função de sua natureza dúplice, o símbolo se correlaciona ativamente com
o contexto histórico e cultural em que se atualiza, transformando seus significados de acordo com a
realidade dos contextos particulares ao mesmo tempo que modifica estes contextos. Assim, continua
Lotman (ibid, p 103), o símbolo realiza sua “invariância” na vocação de variância.
Temporalidades _A leitura de um texto da cultura a partir dessa perspectiva implica numa reavalição das noções de temporalidade ou talvez, como nos aconselha Margaret Mead (1972, prólogo),
em “ver o mundo que inclui o passado e o futuro como aspectos do presente, o presente de qualquer
geração”. Para proceder assim, continua Mead, é preciso reaprender a forma dos primeiros passos,
relocalizar o futuro. Reinterpretar, no presente, o significado do mito.
Em muitas religiões o paraíso é representado como início de tudo num passado remoto mas também como um fim último, um futuro pleno depois de um futuro qualquer. “Ao juízo dos ocidentais,
o futuro está diante de nós. Ao juízo de muitos povos da Oceania, o futuro reside atrás, não adiante”, lembra-nos Mead desta multivocalidade próxima e longínqua, dentro e fora, mais adiante e
mais atrás. “Para construir uma cultura na qual o passado seja útil, não coativo, devemos localizar o
futuro entre nós como algo que está aqui pronto para que o ajudemos e o protejamos antes que nasça, porque, do contrário, será demasiado tarde” aconselha Mead (1971, apud Martín-Barbero
(2002).
Não só os antropólogos se interessam pelo futuro que Mead localiza nas dobras do presente. A
realidade temporal em que a humanidade está imersa é parâmetro nas Ciências, objeto de reflexão
em Filosofia, na Arte, entre os criadores em geral. Jorge Luis Borges adverte-nos: “Y conste que lo
venidero nunca se anima a ser presente del todo sin antes ensayarse, y ese ensayo es la esperanza
(...) memoria del futuro, olorcito de lo por venir, palote de Dios!” (Borges [1926] 1994: 11).
Podemos vislumbrar esse “suave olor do que está por vir” de que fala Borges, na escudela de terra
do paraíso no Conto de Amaro, uma lembrança. Essa lembrança não é meramente casual e se encontra na base do grupo de questões ligadas ao tema “o texto dentro do texto” de que nos fala
Lotman226 , podendo ser observada nas estruturas simbólicas e universais do ritual liminar nos ritos
de passagem.
226
“O texto dentro do texto é uma construção retórica específica na qual a diferença de codificação das partes distintas
do texto torna-se um fator manifesto da construção autoral do texto e da sua recepção pelo leitor”, nos diz Lotman
(1996:71). O princípio de justaposição está na base deste processo. Mas à diferença da justaposição sintagmática, a retórica caracteriza-se justamente por aproximar segmentos aparentemente incompatíveis entre si, gerando uma recodificação recíproca dos mesmos, i. e., o efeito retórico é obtido pela justaposição do texto com uma série que semiòticamente
não lhe é homogênea e constitui, neste caso, o processo formador de uma linguagem de leituras plurais que revela inesperadas reservas de sentido. “Os processos formadores de significado ocorrem tanto por interação entre camadas semioticamente heterogêneas que se encontram em relação de intradutibilidade mútua no texto, quanto em consequência dos
complexos conflitos de significado entre o texto e o contexto que lhe é estranho”, continua Lotman (ibid, pp 70-71). A
incorporação de um texto estranho e longínquo do ponto de vista de um sistema dado gera uma explosão de significados
que resgata a estrutura semiótica do domínio dos mecanismos inconscientes para a esfera da criação semiótica consciente. O problema das diversas justaposições de textos heterogêneos, discutido amplamente na arte e na cultura atuais é, na
verdade, um dos mais antigos, considera Lotman (ibid pg 71). É possível percebe-lo, por exemplo, na aquisição da linguagem por uma criança e no processo de bricolagem descrito por Lévi-Strauss.
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Liminaridade e Communitas - Nas culturas, os ritos de passagem marcam a transição de uma
posição social para outra, de um lugar para outro, de uma idade para outra, de uma situação para
outra. São signos de uma mudança de estado, individual e coletiva, de uma situação estável e recorrente, reconhecida pelo grupo, para outra. A descoberta de Arnold Van Gennep, ainda em 1909, de
que “os ritos, como o teatro, têm fases invariantes” (Van Gennep 1978:18) constituiu um marco
importante, um divisor de águas nos estudos antropológicos de rito e ritual, uma obra pioneira “que
rompe com a universalidade da fisiologia como característica dos chamados ritos de puberdade”,
considera Roberto DaMatta (2000). Em “Ritos de Passagem”, Van Gennep resgatou tais ritos do seu
plano de estudo individual ao afirmar que “dentro de uma multiplicidade de formas conscientemente expressas ou meramente implícitas, há um padrão típico sempre recorrente: o padrão dos ritos de
passagem" (Van Gennep, 1978:191). Um padrão que implica, diz DaMatta (ibid),
três fases nitidamente distintas: separação, incorporação e, entre estas, uma fase liminar, fronteiriça,
marginal, paradoxal e ambígua, um limem ou soleira, que, embora se produzisse em todas as outras
fases, era destacada, focalizada e valorizada.
A primeira e a última fase falam por si: "elas destacam os sujeitos rituais de seus antigos lugares
na sociedade e os devolvem, transformados internamente e mudados exteriormente, para novos lugares", esclarece Turner (op cit, pg 36). Como antropólogo, Turner interessou-se particularmente
pela fase liminar entre a separação e a incorporação: nem uma coisa nem outra, mas no meio e entre, essencialmente ambígua. Em alguns grupos, nos diz Turner (1967:95 e sgts), os passageiros de
tal estado de transição são considerados impuros e contraditórios, poluídos e poluidores. São frequentemente identificados com a terra, a matéria generalizante que dissolve qualquer especificidade
individual: é considerado natural que os sujeitos liminares andem sujos e desalinhados. Um conjunto de símbolos complexo e bizarro - relacionado por um lado aos processos biológicos da morte, da
decomposição e por outro aos da gestação, do nascimento - define essa situação intermediária, estrutural e culturalmente "invisível": socialmente os sujeitos liminares já não podem ser classificados
pelo que eram nem ainda pelo que serão. De um certo ponto de vista não estão vivos nem mortos, e
de outro estão vivos e mortos. Talvez, uma característica marcante da liminaridade do ponto de vista
do sujeito seja a de uma vagueza intrínseca, um contato com o indeterminado em que a consciência
da realidade é sòmente feeling em plena qualidade, um não enfático
... como um Nay a todas as asserções estruturais positivas, mas de algum modo fonte de todas elas, e,
mais que isto, como um domínio de pura possibilidade em que novas configurações de idéias e relações podem surgir (Turner 1967: 97, trad livre).
Nos seus estudos de campo entre os Ndembu da Zambia, Turner notou também que esta indeterminação social, esta "morte temporária" que carregava consigo inúmeros elementos simbólicos de
base mítica, aproximava os sujeitos liminares entre si, mas de maneira distinta daquela criada pelos
laços formais das estruturas seculares. Perante o grupo social, os neófitos eram todos iguais independentemente de idade, posição social, riqueza, poder etc, estando todos igualmente despojados de
suas características individuais e igualmente submetidos à autoridade dos instrutores do ritual que,
como transmissores da tradição, constituíam a único elo socialmente estruturado da fase liminar.
Livres das costumeiras amarras estruturais, os passageiros deste outro trem criavam entre si outros
laços, através dos quais configuravam sua humanidade através de uma criatividade espontânea e
fluida, em oposição aos da estrutura: uma espécie de "sociedade" antitética, primordial e igualitária,
recriações de paraísos.
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Paraísos de certo modo semelhantes aos que são evocadas pelos mitos do início do mundo227. A
"cola" social deste comportamento associativo talvez possa ser descrita pelo princípio "um por todos e todos por um", nota Turner (1967:101), que define a modalidade do relacionamento pelo termo "communitas"
Communitas surge nos interstícios da estrutura, na liminaridade; nas bordas da estrutura, na marginalidade; abaixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda parte é tida como sagrada ou "divina",
possivelmente porque transgride ou dissolve as normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas e é acompanhada por experiências de potência sem precedentes (Turner, 2008:128, trad
livre)
Trata-se, no entender de Turner, de uma dimensão da sociabilidade humana que transcende as manifestações culturais particulares, alternando-se periodicamente com a dimensão estruturada, num
movimento oscilatório existente em todas as sociedades, passadas e atuais, arcaicas e industrializadas (2008: 130), importante para a renovação e necessário para a continuidade das mesmas. Embora
temporária - a tendência dos signos gerados em estados liminares é converterem-se a curto prazo
em signos de relações convencionais - a "communitas" não se limita à liberação de energias instintivas ou é simplesmente um produto de tendências biológicas hereditárias. "Antes, é produto de faculdades humanas que incluem racionalidade, vontade e memória e que se desenvolve com a experiência da vida em sociedade", diz Turner (2008:128), lembrando-nos que as situações de liminaridade e marginalidade estruturais frequentemente geram mitos, símbolos, rituais, sistemas filosóficos
e obras de arte.
A figuração dessa situação intermediária pode ser observada em diversas situações:
227
Esta semelhança é sugerida pelo estudo realizado por John Middleton (in Moore & Myerhoff, 1977: 77-90) de certos
aspectos do comportamento dos Lugbara, de Uganda, diante de situações ambíguas e ameaçadoras para a ordem do
grupo. Na ordenação do mundo e na relação entre os homens, a natureza e a divindade, os Lugbara distinguem dois
planos que se entrelaçam no coletivo e no individual: o interno (a casa, aku, o mundo do principio vital, a alma) e o
externo (awe, o mundo do espírito e dos espíritos, do poder divino). Ao primeiro pertencem o social, o moral, o controlável, o previsível, a autoridade, os homens, a autoridade. Seus contrários - o amoral, o incontrolável, o imprevisível, a
irresponsabilidade, o individualístico, etc - pertencem ao "externo", o mundo dos espíritos. Quando o equilíbrio entre
ambas as esferas se altera drasticamente, significando que o "espírito" prevaleceu sobre a "alma", os Lugbara lançam
mão de rituais protagonizados por "fazedores de chuva". No contexto do grupo, o xamã "fazedor de chuva" é associado
à anti-estrutura social: como figura liminóide entre os vivos é tido como repositório da saber divino, detentor do segredo
capaz de destruir e recriar todas as categorias da experiência e, de certo modo, considerado socialmente morto.
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Moeda romana (ca. 225-212, Museu Kunsthistorisches, Viena): efígie de Janus, o deus da dupla face, guardião das
portas e das transições, conhecido como divom deus (deus dos deuses). Em Roma, todos os sacrifícios iniciavam com
uma evocação a ele e o seu culto, um dos mais antigos, precedia os demais. Um dos altares de Janus erguia-se na colina
Oppius, onde os sacerdotes celebravam os ritos que transformavam os meninos em homens.
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Janus, de Ernst Fuchs, água-forte de um dos fundadores da escola vienense de Realismo Fantástico (1946) para “Die
Symbolik des Traumes” (O Simbolismo dos Sonhos) de Von Schubert228: “Na nossa natureza dúplice uma das duas
faces de Janus parece rir quando a outra chora, ou dormir e só falar em sonhos quando a outra desperta e fala alto...” 229
228”
Die Symbolik des Traumes” de Gotthilf Heinrich von Schubert (1780-1860) foi publicada em edição de luxo pela
Die Belser Presse, de Stuttgart em 1968: obra do médico e naturalista alemão influenciou Sigmund Freud e Karl Jung.
229
Tradução livre do texto de Von Schubert citado por Sonu Shamdasani in “Jung and the making of modern psychology: the dream of a science” (2005) Cambridge: University Press pg 109
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Davi e Betsabá, segundo Marc Chagall
Ilustrações da Bíblia, litografia a cores, publicação Statis Eleftheriades/Verve, 1956
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Na atualidade, algumas obras de arte evocam as relações entre liminaridade e “communitas”. Em
2007, por exemplo, uma exposição organizada no Palace of Fine Arts de San Francisco, na Califórnia, focalizou a relação entre ambientes que exploram ou sugerem vivências liminares e a interação
dos visitantes entre si e com o ambiente.
Liminalities: Instalação coletiva na exposição “Art on the Threshold” - Exploratorium | The museum of science, art
and human perception at the Palace of Fine Arts, San Francisco, CA, 2007.
Artistas: Seyed Alavi; Alex Clausen, Erica Gangsei, Paul Andre Hayes, Lead Pencil Studio - Curadoria: Pamela Winfrey
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Non Signal II: instalação de Dan Mihalyo & Annie
Han, Lead Pencil Studio 2010 OnLine: ://www.leadpencilstudio.com
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School (detalhe): instalação de Paul Hayes, San Francisco, CA, 2007
PaperWork series - OnLine: ://www.flickr.com/photos/paulandrewhayes/galleries/
Not Here: arte pública de Seyed Alavi (tinta branca em estrada asfaltada de mão dupla)1990
OnLine: ://here2day.netwiz.net/
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Territories: composição fotográfica de Alex Clausen, 2008 para Invisible Venue OnLine: ://www.invisiblevenue.com/
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Invisible man!: intervenção urbana de Erica
Gangsei, Argentina 2010. OnLine: ://www.flickr.com/photos/ericagangsei/sets/
Liminality (à esquerda): instalação fotográfica (2010) de Judy Leong, Carmenza Jimenez & Sun Kyung Im
The School of Art Galleries /Melbourne:Australia
Mixed Messages (à direita): instalação multimidia de Rex Armstrong (2010)
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Espaço do Desejo: still do filme Eat Me
(16mm posteriormente refeito em 35mm), de Lygia Pape , 1975
Em situação de “communitas”, os sujeitos liminares mantém uma relação atípica com os objetos à
sua volta, diferente da relação mediada através de outros sistemas simbólicos da cultura, sejam eles
os da Língua, da Arte, da Ciência ou da Religião. “Mediação e temporalidade supõem-se e necessitam-se”, nos diz Alfredo Bosi (2008:30). A liminaridade, não. De certa forma descarta o tempo, ignora-o, abre uma brecha no tempo linear, intercala-o com o seu vazio pleno e instala outro tipo de
comunicação. A liminaridade não possui a mesma sintaxe da frase. São apreensões emocionais de
uma dada realidade que surge à consciência do indivíduo como sentimento mais que idéias, um elo
afetivo tênue e irrecusável que se cria entre ambos, o sujeito e aquela realidade que deitou raízes no
seu corpo mas continua fora dele, uma imagem230 .
230
Vale lembrar que em Fisiologia, Medicina, Audiologia, Psicologia e Psicanálise o substantivo "limen" é entendido
no domínio da sensibilidade como o “nível em que o estímulo, ou a mudança de estímulo, é apenas suficiente para produzir uma sensação ou um efeito” (Stach 1998: 71); refere-se, para o observador, ao mais baixo nível de energia física
necessária para ser detectada por algum dos órgãos dos sentidos. Traduz-se no inglês pela palavra threshold: um dos
seus significados, segundo o dicionário (Merriam-Webster 2010: 3b) é um nível, ponto ou valor acima do qual algo é ou
será verdadeiro e abaixo do qual não é ou não será. Na Lógica e na Matemática, "limen" relaciona-se aos operadores de
inferência, ferramenta usada para modelar conjuntos vagos ou incertos em sistemas de regras nebulosas (SRNs), aos
quais aplica-se a lógica difusa ou imprecisa formulada por Lotfi Zadeh (1965:338-353) para definir o grau mínimo de
pertinência do conjunto. Embora utilizada para descrever conceitos não claramente definidos, “tanto a teoria dos conjuntos nebulosos como a lógica nebulosa possuem uma rigorosa base matemática. Especificamente, essas duas teorias
podem ser muito bem conduzidas numa estrutura algébrica chamada reticulado”, dizem Castilho e Valle
(2009:135-144).
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Imediaticidade_ “O caráter eterno e efêmero da imagem se concentra no detalhe, no anedótico,
no instante, no rito, em que o movimento se detém, em que a imobilidade é um elemento da socialidade”, lembra-nos Michel Maffesoli (2003:67) desta relação, instante fugidio que os gregos imortalizaram no mito de Kairós 231. Apelo forte, pulsão a que as palavras no discurso servem mal, quase
barreira, e paradoxalmente servem bem, traduzindo toscamente um sentimento de fusão, capturando
fragmentos de uma unidade que talvez houvesse e já não. O contato imediado com uma dada realidade, sempre forte e fugidio, traduz-se melhor na poesia que vem antes, em corpo e pele, ressoando
no indivíduo como sensações visuais, imagens sonoras, entonação de voz, assimilações de um toque
ou gosto ou cheiro, intensidade de um gesto. E também no sonho: segundo Lotman (1999:57), uma
das características do sonho consiste, justamente, “no fato que as categorias do discurso são transferidas para o espaço visual”. A caminho da expressão, as palavras vêm depois e usam a linguagem do
devaneio como ponte.
A tais ecos - pois aquelas imagens iniciais que se formam na mente já são indício de uma primeira
fronteira entre sujeito e objeto - Platão chamou phantasmata: ele usa a palavra para contar dos reflexos nos lagos, nos espelhos e no fígado. De modo diverso do filósofo de Atenas - para quem o
mundo das imagens conduz irremediavelmente ao erro (República, 509e) - Aristóteles aceita o fato
de as imagens desempenharem um papel no processo de cognição. Reconhece-as como potencialmente enganadoras é certo, mas compara-as à pintura e aos moldes em cera (De Memoria 450 30f)
quando nos diz da fisica da alma e do movimento: são reais na medida que constituem “movimento
resultante de um exercício real de uma faculdade dos sentidos” (De Anima 429a 1-3), processo esse
que chama phantasía (ibid 428a 1-4), embora constituam apenas “um resíduo da impressão real”.
Os resíduos de que fala o Estagirita fazem parte consciência humana, presentificam-se a todo momento como reminiscência, evocação, redobramento, repetição incansável de um “não-tempo”232 ,
refação de caminhos, celebração da impossível possibilidade de um paraíso terreal, cisma que persegue como encantamento ou tingida de receio. Nas palavras de Maffesoli (ibid pg 66), trata-se de
“um eterno recomeço do mesmo, mas também um trágico fundador”.
A arte, a música, a poesia, os rituais instalam-se na dinâmica deste eterno de duração efêmera, fazem dele matéria-prima para significados múltiplos que reconstroem nas suas idas e vindas em busca de um caminho de volta àquele sentimento de unidade e plenitude, supostamente guardado na
memória cultural. Mas na passagem para os corredores mediados a imagem formada na mente desprende-se necessariamente do imediato e abre mão daquela sua fulgurante simultaneidade. Assim, a
fusão estática que se deseja e não se alcança, produz a cada nova tentativa um novo corpo, lembranos Alfredo Bosi (ibid, p 21), imagens que ao mesmo tempo são dadas e construídas, e inexoravelmente transcendem a finitude do corpo que olha e vislumbra à distancia alguma sombra da matriz
atemporal que reproduz, por recorrência e analogia233 , revestida de temporalidade: frases, linhas,
traços, pontos, melodias, poemas, gestos, teoremas, grafismos.
231
Kairós representa uma das três concepções do tempo entre os gregos. Algumas vezes a divindade é confundida com
Cronos, com quem se relaciona ora como pai ora como filho; às vezes surge como uma dimensão de Zeus, outras como
filho de Zeus, ou como uma dimensão de Atena, ou Eros ou Dioniso
232
Como observou Gilbert Durand, a repetição, o rito cotidiano introduz um não-tempo mítico, o da comunidade (apud
Maffesoli, op cit, p 65)
233
O dicionário Houaiss (2001) nos diz que a palavra vem do latim analogia, ae (proporção, relação, simetria, semelhança, conformidade) que procede do grego aná (“em”; do proto-indoeuropeu h₂en-, “a bordo”) + logos (originalmente
“palavra, relato ou razão” e também “linguagem, senso comum, motivo, juizo, opinião, valor que se dá a uma coisa”).
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Topos e Tropos _ Na construção da sequência verbal o jogo combinatório das analogias surge
como companheiro dessas releituras de percurso em que o espaço é recriado na atualidade da memória. O processo de combinação age por contigüidade, lembra-nos o linguista Roman Jakobson
(2001:131), que relaciona-o à metonímia, figura de linguagem ou tropo 234, assim como à metáfora.
Tanto a metáfora quanto a metonímia pertencem ao domínio do pensamento analógico e, nessa condição, “encontram-se organicamente ligadas à consciência criadora como tal”, considera Lotman
(1996:92). Mas enquanto a metonímia estabelece um vínculo por proximidade imediata no arranjo
do comportamento verbal, a metáfora age no processo de seleção de imagens deste mesmo comportamento, estabelecendo vínculos através da intuição de equivalência (semelhança e dessemelhança,
sinonímia e antonímia). Ocorre que, na função poética, o eixo das equivalências é projetado no eixo
das contiguidades correlacionando os pólos metafórico e metonímico que configuram a estrutura
lingüística. Assim, na formulação fundamental de Jakobson (ibid) “a equivalência é promovida à
condição de recurso constitutivo da sequência”.
Do ponto de vista do presente estudo, é interessante notar que a transferência de função também
revela um topos 235, um espaço onde percebe-se a interação de signos diversos e distantes entre si,
movendo-se em harmonia num universo curvo que não volta ao ponto de partida mas segue adiante
como uma “imitação do Paraíso ainda não machucado pela dor da ruptura e do contraste”, nos diz
Bosi (ibid, pg 34), em bela imagem que recusa a fixidez do espelhamento.
Numa situação de diálogo de memória com o tempo e com o ser, consigo e com o outro, a qualidade analógica do tropo depende diretamente do contexto que promoveu a signicidade, i.e, aquele
espaço novo para o qual convergiram significados distintos aos quais o topos intersticial ofereceu
aderência e construiu-se no ponto de confluência entre linguagens. A característica de integrar dessemelhantes num todo coerente pertence ao domínio da retórica236- o único que admite a possibili234
O termo “tropo” vem do grego “trópos,ou” (direção) derivado do verbo “trepein” (voltar, virar, dirigir, fazer voltar,
fazer evoluir em outro sentido). Como figura de retórica, o tropo refere-se ao emprego figurado de palavra ou locução
(Houaiss, 2000, verbete) e designa os procedimentos de mudança do significado básico da palavra. Embora a classificação das figuras de retórica tenha atingido grande complexidade durante períodos como a Idade Média, atualmente admite-se três procedimentos básicos: 1) metáfora ou a substituição semântica por equivalência, 2) metonímia ou substituição semântica por contiguidade, associação, causalidade e 3) sinédoque, substituição com base na concernência, na inclusão, na parcialidade ou na substituição da multiplicidade pela singularidade. Segundo Lotman (1996:87), o conhecimento atual permite definir o tropo como “uma transposição semântica que se produz de um signo in praesentia para um
signo in absentia, baseada 1) na percepção do vínculo semântico entre um ou mais traços distintivos do designado; 2)
marcada pela incompatibilidade semântica dos micro e macro contextos e 3) condicionada pelo vínculo por semelhança,
ou causalidade, ou inclusão, ou oposição.
235
Topos (do gr tópos, topoi=lugar; em latim locus, loci) traduz-se variavelmente por tópica, linha de argumentação ou
lugar. O têrmo tem uma longa história e largo emprego numa variedade de ciências, artes, disciplinas e se aproxima do
conceito de logos. Na retórica clássica, por exemplo, referia-se a um método convencional de construir ou lidar com
argumentos, ajudando a delinear as relações entre as idéias. De maneira simples, podemos dizer que Topologia é o estudo da continuidade e da conectividade. O presente estudo se vale da topologia para delinear uma relação entre “tropo” e
“topos”.
236
Ao longo da história, o percurso da Retórica (do gr. “retoriké”), uma das partes mais antigas da ciência da palavra e
do discurso, mostra-se sinuoso e fascinante como um rio que aflora em certos trechos e em outros retoma ao seu eu subterrâneo. O interesse atual pela Retórica - que parecia decadente e condenada definitivamente ao descrédito teórico a
menos de um século - levou Lotman a se indagar das causas desse trajeto irregular e constância. O caminho que sugere
em busca de respostas - o estabelecimento de certo objeto que constitua um domínio exclusivo da disciplina e que
sòmente possa ser descrito em seus termos próprios - conduziu-o à percepção da importância de uma meta-retórica que
define como “teoria do pensamento criativo” (id 1996: 92) e cujo desenvolvimento considera tarefa em comum a todos
os campos da ciência. “O pensamento criativo”, escreve (id ibid), “tanto no domínio da ciência quanto no da arte, tem
uma natureza analógica e se constrói sobre uma base essencialmente idêntica: a abordagem de objetos e conceitos que
fora da situação retórica não podem ser abordados”. Através do caminho delineado por Lotman, vislumbra-se um elemento em comum entre esferas retóricas distintas à primeira vista, o topos.
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dade de justaposição de textos discretos (verbais, sincrônicos, finitos) e textos não-discretos (acústicos, visuais, contínuos). Tal multiplicidade gera necessariamente antinomias que não se reduzem à
uma única linguagem. Temporalidades distintas, analepses e prolepses como no Raconto de Amaro.
A partir do estudo do som, pele de palavras, Roman Jakobson e Lynda Waugh (2002) formularam
essas antinomias em termos de mediaticidade versus imediaticidade, i.e., a tendência do signo sonoro ter ao mesmo tempo uma relação indireta ou mediada com o significado (discriminação sensível)
versus a tendência a uma significação direta, e portanto imediada. Na primeira, os traços distintivos
conectam o som e o significado apenas em função da contigüidade. Na segunda, o simbolismo sonoro inerente a estes traços exibe uma relação de similaridade entre som e significado (determinação sensível), o que implica no reconhecimento de que o som está diretamente ligado ao significado
e nos informa a respeito dele (Jakobson & Waugh, 2002:4). Em outras palavras, o som do signo
possui um formato diretamente semântico que parece lançar um “encantamento” nos usuários, contribuindo para a sua significação imediada237. Jakobson cita o exemplo da poesia falada, cujos sons
possuem, espontânea e imediatamente, no momento mesmo da sua locução, uma função semântica
própria (ibid, pg 224), ou seja, as palavras “soam” como seu próprio significado, sua voz íntima.
O que a poesia ilumina não se restringe a ela. Os experimentos poéticos do início do século XX
em paralelo à tendência abstrata na pintura e outras artes - nas quais o modo mediado de significação é completamente absorvido pelo poder da significação imediada - remete-nos diretamente ao
fascínio do “som puro”, bruto, que desde há muito permeia os elementos encantatórios da tradição
oral, a pronúncia correta das fórmulas mágicas e mitopoéticas da linguagem, as funções expressivas
dos comportamentos culturais afins, lembra-nos Jakobson (ibid, pg 234) desse interstício que se estabelece entre o sim e o não, em que o verso e o reverso não se opõem, assim como o abstrato e o
concreto ou a dicotomia entre o real e o ideal - situações de liminaridade.
“Tanto as ciências naturais quanto as humanas concorreram para desmistificar o ultrapassado dualismo filosófico”, nota Lévi-Strauss e conclui (apud Waugh, in Jakobson & Waugh, 2002:265): “O
que nos é imediatamente ‘dado’ não é uma coisa nem outra mas algo no meio e entre, que já está
codificado pelos órgãos dos sentidos e pelo cérebro”. Charles Sanders Peirce, para quem todo pensamento é da natureza de um signo (CP 4.551), escreveu notas memoráveis de lógica simbólica em
que desvela progressivamente os processos mentais de inferência, seja quando nos fala do raciocínio abdutivo seja quando refere-se às relações ilativas e ao signo anfeque, este machado duplo que
combina as propriedades da negação e da adição .
O presente imediato, se pudessemos agarra-lo, não seria figurável, mas a sua primeiridade sim; com
isso não quero dizer que a sua consciência imediata (pura ficção, por sinal) seja a primeiridade, mas
que a qualidade do que estamos imediatamente conscientes, o que não é ficção, é primeiridade
(Lowell Lectures, CP 1.343, 1903 - trad livre).
Eis porque Lotman nos diz (1996:91) que as figuras retóricas não são “um ornamento que pertence exclusivamente à esfera da expressão, uma ornamentação de certo conteúdo invariante, mas sim
um mecanismo de construção de um certo conteúdo que não se edifica nos limites de uma só linguagem”. A própria consciência humana é heterogênea, observa ele (ibid, p 84). De um lado, opera
com um sistema discreto de codificação e forma textos que se constroem como cadeias lineares de
segmentos unidos: “neste caso, o portador fundamental de significados é o segmento (= signo) e a
cadeia de segmentos (= texto) é secundária, seu significado deriva do significado dos signos” (id
ibid). Por outro lado, a mente também opera com um sistema não-discreto de codificação em que o
texto é percebido como o portador primário de significados, continua Lotman (1996:84): “seu signi237
Para maior detalhamento remete-se à obra citada e, em especial, ao capítulo 4, “The Spell of Speech Sounds”.
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ficado não está organizado nem por sucessão linear nem por sucessão temporal mas encontra-se
‘expandido’ no espaço semântico n-dimensional do texto dado”. Do ponto de vista peirciano, o veículo de tal ‘expansão’ corresponde à natureza do símbolo.
A cultura enquanto inteligência coletiva funciona de maneira análoga à inteligência individual. Os
mecanismos geradores de textos descritos por Lotman, embora estruturalmente distintos, não são
sistemas fechados. Entre eles existe um constante intercâmbio de conteúdos que formam espaços de
tradução semântica - não espaços de tradução exata e regular pois não se trata de relações reciprocamente unívocas mas novos topoi, recorrentes, em que os diferentes justapostos se encontram por
equivalência aproximativa em processos de dilatação, torção e condensação de significados que
permitem a multivocalidade semântica e o grau de indefinição que a estrutura semiótica da cultura
necessita. No plano dos rituais, a celebração desses topoi é visualizada com maior clareza naquela
fase liminar, fronteiriça, marginal, paradoxal e ambígua, limem ou soleira de que nos fala Turner
nos ritos de passagem e onde ocorre a metamorfose que destaca os sujeitos rituais de seus antigos
lugares na sociedade e os devolve, transformados internamente e mudados exteriormente, para novos lugares.
Ritos de Passagem_ A imediaticidade que distingüe a "communitas" em relação à mediaticidade
das estruturas fixas não gera apenas modelos da relação humana com a natureza e a cultura. Na qualidade de produto polifônico e polissêmico, potencialmente descontínuo e explosivo, ela também é
geradora de múltiplas ações. No caso dos ritos de passagem, lembra-nos Turner (2008:129), os sujeitos liminares são libertados da estrutura para uma passagem em "communitas" sòmente para voltarem à estrutura revitalizados pela sua experiência da "communitas". No entanto, o desenvolvimento de "communitas" espontâneas ou existenciais em normativas e ideológicas mediadas por estruturas liminóides geram situações de conflito. Como observa Turner (2008:129), "a maximização da
communitas provoca a maximização da estrutura, o que por sua vez produz movimentos revolucionários para a reinstalação da communitas".
Nos textos de Turner os têrmos "liminar" e "liminóide" apresentam-se como gradações distintas
do mesmo fenômeno de "estar entre", justapondo neste estado intermediário atributos pertinentes a
categorias antagônicas que correspondem às fases que antecem e sucedem a mediação. Situam-se,
por assim dizer, numa espécie de continuum entre polos opostos, do mais ambíguo ao mais próximo
das relações estruturadas, em manifestações que tanto podem ser coletivas quanto individuais, e que
ocorrem nas duas modalidades tanto em sociedades tribais quanto nas industrializadas. No entanto,
considerando-se que nas sociedades tribais os diversos domínios da cultura imbricam-se como se
fossem aspectos de uma mesma trama, o têrmo "liminar" se aplica com mais propriedade aos rituais
religiosos, enquanto o têrmo "liminóide" denota o caráter profano das manifestações que ocorrem
em sistemas culturais de sociedades complexas, onde a liminaridade apresenta-se como um elemento comum entre linguagens distintas.
Dito de outro modo, a estreita correlação entre a constante "separação (vida)-liminaridade (morte)-incorporação (ressurreição/renovação)" visualizada num amplo círculo de textos mitológicos e
rituais de iniciação, da tonsura dos monges à consagração dos xamãs, tende a manter nos fenômenos "liminóides" apenas sua base formal despojada do conteúdo mítico, à semelhança do que ocorre
nas categorias gramaticais da linguagem em que as estruturas arcaicas do pensamento permanecem
como o fundamento da sintaxe narrativa - o que não exclui sua re-significação semântica em outros
contextos, "que frequentemente nos devolvem, consciente ou involuntariamente, ao mito", lembra
Lotman (1990:161).
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Em sociedades tribais, o fenômeno liminar tende a ser coletivo mais que individual, referir-se ao
sagrado mais que ao profano, estar situado de modo central na vida do grupo, relacionar-se no mais
das vezes aos ritmos da natureza, aos ciclos biológicos e às crises resultantes de rompimento no fluxo dos processos naturais e sócio-culturais (terremotos, invasões, pragas, inundações, secas prolongadas etc), possuindo um significado em comum para todos que, em determinados casos, pode configurar uma inversão dos valores vigentes. Por exemplo, os ritos sazonais - as festas de semeadura,
colheita, mudanças de estação e dos solstícios de inverno e verão - frequentemente envolvem uma
inversão de status e a celebração do caos. No entanto, à diferença dos ritos de passagem, a liminaridade dos ritos sazonais é pública e nenhum dos sujeitos liminares volta diferente do que era à uma
situação posterior.
Por sua vez, os fenômenos liminóides geralmente são plurais, fragmentados, muitas vezes experimentais, podendo ser individuais, produtos de grupos ou escolas, competir entre si no mercado
cultural e dirigir-se a um segmento da sociedade em particular. Constituem muitas vezes manifestações que se desenvolvem nas margens dos centros dominantes da cultura embora eventualmente
passem da periferia para a esfera central onde mantém um ou vários elementos de natureza ambígua. Apesar da possibilidade de combinação simultânea a um ou outro aspecto predominante da cultura, sua velocidade não é idêntica e sua dinâmica não é sincrônica - o que não exclui a interação.
Não apenas podem carnavalizar as estruturas vigentes como muitas vezes apresentam-se como abertamente críticos às estruturas centrais e portadores de modelos alternativos.
Processos de Criação_ Para os antropólogos, a compreensão de um ritual, qualquer que seja na
sua característica de evento dinâmico e único, situado no aqui e agora, não pode ser antecipada e
sim apreendida pelo observador, registrada no processo in loco isto é, na performance do rito. A
qualidade de tradução deste evento naturalmente varia. Numa situação ótima, não se tratará simplesmente de um registro literal e tampouco "da aquisição de um conhecimento mais completo dentro da perspectiva de observação participante mas sim da integração no mundo do outrem e do alhures", observa Maria Isaura Pereira de Queiroz (1983:20).
Roger Bastide explicita-nos a natureza da dificuldade: “é preciso, apelando para um ato de amor,
transcender nossa personalidade”, aconselha, ao fazer o elogio da empatia necessária ao olhar interno do objeto de pesquisa (1983:84, XI).
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Rito Nagô: ao “nascer de novo” depois de um período de recolhimento e resguardo, o iniciado recebe um novo nome
Nos textos em que Bastide nos fala do candomblé da Bahia, traçando pontes com a sua matriz
africana, percebe-se claramente o encantamento de um universo religioso específico, povoado por
homens, deuses, cânticos e danças, chamamentos e saudações. Através dos rituais, é a África que
“penetra pelos ouvidos, pelo nariz e pela boca, bate no estômago, impõe seu ritmo ao corpo e ao
espírito”, escreve (Bastide, 1945:27-28), acentuando o caráter sensóreo dessa comunicação que
atravessa a pele.
Em contatos desse tipo, de transpasse afetivo, o objeto é vivido como experiência íntima do sujeito, experiência liminar que não tem necessariamente significado lógico, apenas os dados traduzidos
por um sensóreo amalgamado. Mariza Werneck (2002:55) nota que Lévi-Strauss, no processo de
reconstrução das mitologias, “... faz com que se realize, em si mesmo, a grande aventura mítica: durante duas décadas, deixa-se penetrar pelos mitos, embriaga-se deles, permitindo que pensem entre
si, à sua revelia”. De certo modo, trata-se de percorrer os caminhos de um mundo que é outro e é o
mesmo, promovendo nesta trajetória um distanciamento com a visão estabelecida à qual se concede
"morte temporária", para que o fluxo de uma experiência em aberto 238 eventualmente propicie novas configurações de idéias e relações.
No caso de Lévi-Strauss, o sensóreo informava-lhe, como em ladainha entre camadas de memória
e fragmentos de sentido, algo a respeito dos mitos: “som, cheiro, cor, sabor. E pele" (Werneck,ibid).
Posteriormente, Lévi-Strauss descreverá esta fase como "incubação propiciatória" e, na qualidade
de pesquisador de mitos à procura dos aspectos estruturais da mente humana, fará a defesa dessa
etapa no desenvolvimento do raciocínio científico:
É preciso incubar o mito durante alguns dias, semanas, às vezes meses até que, de repente, a centelha
brote e que, em determinado detalhe inexplicável de um mito se reconheça, modificado, determinado
detalhe de um outro mito.(...) Tomado por si só, cada detalhe não é obrigado a significar algo, porque
é no seu relacionamento diferencial que reside a sua inteligibilidade (Lévi-Strauss 1988: 186)
Graham Wallas, autor de um dos primeiros estudos do pensamento criativo no início do século XX,
também menciona essa fase incubatória, presente no processo inventivo. No modelo que propõe, a incubação segue um estágio inicial, preparatório, de identificação do problema. Wallas distingue dois
aspectos na fase de incubação. O primeiro, negativo, consiste justamente “em não pensar, voluntária ou
conscientemente, no problema específico” (Wallas, 1926:86). O segundo aspecto, positivo, é que “uma
série de eventos mentais pode ocorrer, inconsciente e involuntariamente (ou subconsciente e subvoluntariamente) neste período” (id ibid). Caso a ‘incubação’ fôr positiva, advém um terceiro estágio, o insight que Wallas denomina ‘iluminação’239, no qual surgem as idéias ou soluções que,
no procedimento científico, serão testadas e submetidas à comprovação posterior.
Quando nos fala do pensamento científico, Lotman distingue duas esferas. A primeira, que de
certo modo corresponde à fase incubatória estudada por Wallas, constitui parte inalienável da in238
É interessante notar o desenvolvimento relativamente recente de um ramo da Psicologia dedicado a este tipo de vivência em que se destaca a Teoria do Fluxo da Experiência Ótima, do húngaro Mihaly Csikszentmihalyi (pronuncia-se
tchic-sentmirrái). Não sendo o objetivo deste estudo detalhar a questão, remete-se à obra "Optimal experience - Psychological Studies in Flow Consciouness" (Cambridge: Cambridge University Press, 1988), editado por Mihaly e Isabella
Csikszentmihalyi
239
É interessante notar que no desenvolvimento do conceito de abdução (tb. retrodução ou inferência abdutiva) Peirce
usa a expressão 'lume naturale' (CP 5.604, 6.4771.80) para significar um ‘insight’ espontâneo das leis da natureza, nos
diz Thomas Sebeok, enfatizando entretanto que "apesar da base instintiva, a abdução é claramente caracterizada por
Peirce como um método de raciocínio" (Sebeok, 1987).
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vestigação e pertence ao domínio do raciocínio analógico - uma etapa ‘fáustica’ no dizer de
Lotman (1996:92), “esfera de proposição de novas idéias, de estabelecimento de postulados e hipóteses inesperados que antes pareciam absurdos”. Neste patamar, o pensamento científico encontra-se organicamente ligado ao fazer poiético240 , assemelhando-se ao pensamento figurativo ou
retórico característico do pensamento artístico pois se vale, tanto quanto esse, dos procedimentos
metafóricos e metonímicos pertinentes ao domínio analógico. “Nesse sentido é errôneo contrapor
o pensamento retórico ao científico”, continua Lotman (1996:92): “a retórica é própria da consciência científica na mesma medida que a artística”, uma vez que ambas se constroem sobre uma
base essencialmente idêntica, i. e., a aproximação analógica de objetos e conceitos que fora da
situação retórica são incompatíveis.
A respeito desse processo liminar de reordenação sutil vale lembrar o que nos diz Michel Foucault
... a ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta
segundo a qual elas se olham de algum modo umas às outras e aquilo que só existe através do crivo de
um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é sòmente nas casas brancas desse quadriculado que
ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada (Foucault, 1999:XVI).
A segunda esfera da investigação científica, inalienável da primeira observa Lotman (ibid), é a
do pensamento lógico em diálogo com as referências existentes nas diversas disciplinas. Por
exemplo, na análise dos mitos Claude Lévi-Strauss faz uso antropológico das noções matemáticas desenvolvidas à época pelo grupo Bourbaki, em particular no que se refere às estruturas topológicas.
Como observa Mauro Barbosa de Almeida (1999), na obra de Lévi-Strauss “enquanto as estruturas de
ordem dão forma à noção de tempo e as estruturas algébricas formalizam a noção de movimentos espaciais, a topologia refina ambas essas noções, injetando-lhes a linguagem da proximidade”. Nesta
formulação, ganham sentido as noções de inclusão, proximidade, fronteira, limite - que Lévi-Strauss
aplica à absorção de significados nas ciências humanas. No entanto, embora a álgebra, a ordem e a topologia se sucedam na obra de Lévi-Strauss numa seqüência de publicações decisivas sobre o parentesco e as classificações em mitologia, não é intenção dele, acentua Barbosa de Almeida (ibid.), “levar
adiante de maneira sistemática um programa kantiano sem sujeito transcendental em que as estruturasmãe da matemática tomassem o papel do espaço e do tempo como formas a priori da sensibilidade”. O
que ele faz, sim, é usar o material etnográfico para construir estruturas sensíveis, à maneira do que
ocorre na música, tornando-se deste modo “um exemplo de bricoleur” (Barbosa de Almeida:1999).
Bricolagem_ O que é um bricoleur? Bricolagem, esclarece-nos Lévi-Strauss (1962:26), é um
termo antigo que se aplicava aos jogos de bocha e bilhar, à caça e à equitação para evocar o sujeito
de uma ação incidente que foge ao resultado esperado: a bola que quica, o cão que divaga, o cavalo
que refuga e contorna um obstáculo, afastando-se da linha reta, da ordem linear. Com o tempo, estes
movimentos divergentes passaram a substantivar o sujeito de um processo de criação diverso do
estabelecido pelos códigos dominantes: por exemplo, o trabalho de montagem, até certo ponto marginal, de um artesão que se serve das mãos e de materiais descartados, fragmentos de outros objetos, para produzir um objeto novo.
240
Nestes processos, o ato criativo ou elaboração poiética tem a força do verbo grego poiesis no seu significado original, i.e., ação no ‘fazer’, na comunicação pelo ato. A questão é discutida desde a Antiguidade. No diálogo ‘O Banquete’
escrito por Platão de Atenas, é a vidente Diotima de Mantinea, mentora de Sócrates, quem nos conta como a poiética
reconcilia a pensamento humano com a matéria e o tempo, e o homem com o mundo.
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A idéia de que “isso sempre pode servir” percorre a prática da bricolagem, é a sua regra de jogo.
Para entender o conceito, Lévi-Strauss (1962:28) propõe a visualização de um bricoleur em ação,
envolvido no seu projeto:
... seu primeiro movimento prático é retrospectivo, volta-se para um conjunto já constituído, formado
por utensílios e materiais, [trata-se de] fazer ou refazer seu inventário; enfim e principalmente, entabular com ele [ este inventário] uma espécie de diálogo, para listar, antes de escolher, as respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema que ele lhe propõe. Todos esses objetos heteróclitos
que constituem seu tesouro, ele os interroga, para compreender o que cada um deles pode significar. ...
Não se trata, porém, de um comportamento assistemático. Antes, trata-se de um procedimento de
aquisição de conhecimento que Lévi-Strauss compara ao de outro artesão, ao qual denomina Engenheiro: enquanto o Bricoleur adapta seu projeto a um inventário contingencial de materiais e ferramentas, o Engenheiro trabalha com a inteireza do projeto, buscando e concebendo os materiais e
ferramentas necessários para concretizá-lo. O primeiro se aproxima do ‘pensamento selvagem’, nos
diz Lévi-Strauss, enquanto o segundo se avizinha da ‘mente científica’: de certo modo, enquanto
esse interroga o universo, aquele se dirige à uma coleção de resíduos de obras humanas. No entanto,
embora ambos vivam uma realidade restrita aos meios de que dispõem; embora o engenheiro, à semelhança do bricoleur, seja forçado a considerar um conjunto pré-existente de conhecimentos práticos e teóricos, com os quais dialoga; embora o sábio, tal qual o bricoleur não dialogue diretamente com a natureza em estado bruto, mas com um certo estado da relação entre natureza e cultura que
pode ser definido “pelo período da história em que ele vive; pela civilização que é a sua, pelos meios materiais de que dispõe” (ibid p 29); ainda assim, há uma diferença segundo Lévi-Strauss
... o Engenheiro busca sempre abrir uma passagem e se situar ‘além’, enquanto o Bricoleur, por vontade ou à força permanece ‘aquém’, o que é outra maneira de dizer que o primeiro opera por meio de
conceitos e o segundo por meio de signos. No eixo da oposição entre natureza e cultura, os conjuntos
dos quais se servem estão em perceptível descompasso (ibid p 30, trad livre, grifo nosso)
Para Lévi-Strauss, os têrmos "conceito" e "signo" se aproximam pelo "poder referencial", comum
a ambos. "Entretanto", acrescenta, "o conceito possui a este respeito uma capacidade ilimitada, enquanto a do signo é limitada" (ibid p 28). Nesta quantificação, exemplifica pelo menos uma das
maneiras em que percebe as noções de ‘conceito’ e ‘signo’ dialogando em oposição: o primeiro
quer-se integralmente transparente à realidade, diz, enquanto a noção de signo aceita, “exige até,
que uma certa espessura de humanidade” esteja incorporada à esta realidade (ibid:30). E continua:
“De acordo com a expressão vigorosa e dificilmente traduzível de Peirce: it addresses somebody”
(id ibid) referindo-se à uma das passagens em que Charles Sanders Peirce define "signo"241.
Retórica_ Especialmente na última fase de sua produção intelectual quando desenvolve uma série
de reflexões de Retórica - esse “termo proteano” escreve Vincent Colapietro num artigo que exami-
241
“A sign, or representamen is something which stands to somebody for something in some respect or capacity. It
addresses somebody, that is, creates in the mind of that person an equivalent sign, or perhaps a more developed sign.
That sign which it creates I call the interpretant of the first sign”. (A Fragment, CP 2.228, c. 1897)
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na as relações de Peirce com a retórica, nos vários sentidos do termo (2007:17)242 - Peirce “devolve
a carne aos ossos” da concepção puramente formal de signo (Colapietro, ibid pg 19), e nos dirá que
signo é toda imagem, diagrama, grito natural, dedo que aponta, piscadela, nó no lenço, memória, sonho, fantasia, conceito, indicação, sinal, sintoma, letra, número, palavra, frase, capítulo, livro, biblioteca, em resumo, tudo o que, tanto no universo físico quanto no mundo do pensamento [...] esteja conectado com qualquer objeto existente, ou se refira a acontecimentos futuros por meio de uma regra
geral, e que cause algo mais, seu signo interpretante, determinado por uma relação correspondente
com a mesma idéia, coisa existente ou lei (EP 2:326, 1904,grifo nosso).
A amplidão que Peirce atribui ao signo à luz da Retórica Especulativa243 parece ausente da atribuição que Lévi-Strauss confere ao mesmo têrmo. A observação que primeiro ocorre a um leitor que
se familiariza com a semiótica peirciana é que, na produção de significados, Peirce não considera o
signo como elemento isolado, e sim como parte de uma relação triádica que une indissoluvelmente
o objeto a que o signo se refere, o próprio signo e o interpretante desse signo, ao passo que LéviStrauss na passagem citada usa o termo de outra forma, situando-o no universo diferente de uma
relação binária. Do mesmo modo, quando Lévi-Strauss escreve que "o conceito quer-se integralmente transparente à realidade" importa, para o semioticista, esclarecer em que consiste esta "realidade", esse contexto ao qual o conceito quer-se transparente, com o objetivo de estabelecer parâmetros que permitam reduzir a indeterminação.
242
O adjetivo “proteano” aplicado por Colapietro à retórica - significando algo versátil, flexível, mutável, capaz de assumir muitas formas - remete às habilidades de Proteu, uma das figuras primordiais da mitologia grega que Homero
distingue nas funções do ‘Velho do Mar’. Proteu era filho dos titãs Tétis e Oceano ou de Poseidon, de quem era pastor e
guardião dos rebanhos marinhos: habitava a ilha de Faro - hoje península situada na baía da cidade egípcia de Alexandria. Divindade oracular, capaz de predizer o futuro, Proteu evitava fazê-lo e, nessa intenção, metamorfoseava-se nas
mais diversas figuras. Entretanto, se agarrado, respondia com sinceridade (por ex. no relato de Menelau a Telêmaco in
Odisséia, 2009, livro IV,300-420). Para fins do presente estudo, vale lembrar que configurações semelhantes estão presentes em várias narrativas, não só na Odisséia mas também no ‘Panchatantra’ indiano e em recolhos de origem persa como as histórias de Simbá, o marujo.
Simbá e o Velho do Mar - ilustração de Virginia Frances Sterret (1900-1931) para a edição inglesa
de Mil e uma Noites (1928) / Wikimedia Commons. As viagens do marinheiro oriental, famosas no Ocidente embora
ausentes das compilações originais em manuscritos árabes (a maior parte traduzida do persa para o árabe no século VII)
foram incluidas a partir de outras fontes por iniciativa de Antoine Galland (ca. 1646-1715).
243
Em 1906 Peirce escreve: "... Eu ampliei a Lógica para abarcar todos os princípios necessários da Semiótica; eu reconheço uma lógica dos ícones, e uma lógica dos índices assim como uma lógica dos símbolos; e nesta última reconheço
três divisões: [Stecheotic or stoicheiology] que anteriomente chamei Gramática Especulativa; Crítica, que anteriormente
chamei Lógica; e Metodêutica, que anteriormente chamei Retórica Especulativa” ('Phaneroscopy', CP 4.9, c. 1906). Em
seus últimos trabalhos Peirce não apenas aproxima a Lógica da Retórica, como integra esta última ao processo de investigação científica na condição de “o ramo mais alto e mais vivo da Lógica” (CP 2.333) ou Semiótica, destinando-a a
“crescer como uma doutrina colossal da qual se espera as mais importantes conclusões filosóficas” (CP 3.454), uma
“arte universal” enfim, ou uma “ciência das condições pelas quais um signo pode determinar um signo interpretante de
si mesmo...” ('Ideas, Stray or Stolen, about Scientific Writing', EP 2:326-327, 1904). Ao fazer a defesa apaixonada desse
conhecimento, que ele próprio desenvolve fragmentariamente, Peirce alinha-se ao mesmo apelo formulado por Lotman,
cuja atenção também volta-se para a importância da meta-retórica .
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O problema foi abordado por Peirce a partir dos anos 1900. Até pouco antes, ele havia afirmado
que o interpretante de um pensamento é outro pensamento e que esse processo é teoricamente infinito - de certa forma corroborando com a idéia amplamente difundida nos meios científicos de que a
semiose244 é um processo infinito abstrato, sem conexão com o agir humano. Em 1907, no entanto,
ele estabelece uma distinção entre os interpretantes, subdividindo-os em emocional, energético e
lógico de acordo com os efeitos produzidos pelo signo ao encontrar uma mente interpretadora245 .
No esquema peirciano atualizado, o interpretante lógico - uma representação mental que ele identifica com o efeito significativo próprio de um conceito intelectual - é antecedido pelos interpretantes
emocional e energético, ou seja, ao sentimento produzido pelo signo na mente do observador (interpretante emocional) segue-se uma sensação de esforço de deciframento (interpretante energético)
rumo à atualização de um interpretante lógico, i. e., à adequação à uma regra interpretativa fornecida pelo hábito246 . Note-se que à diferença dos dois primeiros interpretantes, que têm uma terminação finita, o interpretante lógico é sempre potencialmente repetível sem terminação - o que não si-
244
Peirce define o processo de produção de significados ou semiose não como uma ação dinâmica entre pares, ou uma
relação direta entre um signo e aquilo que o signo significa mas sim “uma ação ou influencia que é, ou implica, na cooperação de três sujeitos, tais como o signo, seu objeto e seu interpretante; não sendo esta influência tri-relativa redutível
de nenhuma maneira [em caso algum] à ação entre pares”(EP 2:411, 1907, trad livre). Ou seja, para Peirce a relação que
se estabelece entre um objeto e seu interpretante é sempre triádica, uma vez que o processo de significação não comporta uma relação direta entre ambos nem entre um significante e um significado. Eis porque Peirce nos diz também que o
objeto da Semiótica é definir “a natureza essencial e as variedades fundamentais possíveis da semiose” (EP 2:413, 1907
trad livre) uma vez que é sòmente através da compreensão dessa relação triádica que podemos apreender o significado
de um signo.
245
“Mente para Peirce não é um conceito psicológico, mas lógico, sinônimo de mediação, algo capaz de traduzir um
signo em outro”, esclarece-nos Lúcia Santaella (2005:47)
246
A palavra hábito, do latim habitus, aplica-se aos seres orgânicos e define uma série de atitudes, herdadas ou adquiridas, de ser, parecer, comportar-se. Os hábitos podem ser individuais, familiares, econômicos, sociais, culturais, biológicos: designam costumes (regras resultantes de uma prática reiterada de forma generalizada e prolongada) e descrevem
tanto condicionantes genéticos (o hábito ereto do homo sapiens sapiens, por exemplo) quanto padrões de comportamento que ocorrem automaticamente (ex.: roer as unhas), reflexos condicionados (a sensação de fome associada à audição
da palavra “comida”, por exemplo) e escolhas conscientes (ex.: acordar cedo para caminhar). Alguns hábitos são objeto
de descrições detalhadas (ex.: o hábito monástico descrito no capítulo 55 da Regra de São Bento) embora grande parte
seja apenas sugerida (ex.: fulano de tal é trabalhador). O conceito tem uma longa história nas ciências humanas e biológicas, do “hexis” (disposição prática, condição ativa) de Aristóteles, passando pela tradição escolástica, ao “habitus” de
Pierre Bourdieu (... “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas,
funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de
tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas”, in Bourdieu, 1983:65). Para Peirce, o conceito de hábito está profundamente ligado à idéia de continuidade e não é “de modo algum um fato exclusivamente mental. Empiricamente sabemos que algumas plantas formam hábitos. Um curso d’água que constrói um leito
para si [também] está formando um hábito”(CP 5.492). Disso decorre que a realidade da mente tal como é exemplificada nos seres humanos e outras espécies animais emerge do decorrer da evolução.
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gnifica que seja eternamente dominante. Note-se igualmente que, nessa construção, Peirce contraria
a noção de “objetividade absoluta”247.
Ponte_Apesar de todas as três fases do processo interpretativo dinâmico transcorrerem, via de regra, de modo quase imperceptível, é possível que uma fase ou outra - um enlevo, uma impressão
puramente qualitativa (“som, cheiro, cor, sabor. E pele”, nos dirá por exemplo Lévi-Strauss de um
momento especialmente disponível e poroso que ele viveu intensamente no seu processo de investigação dos mitos [op cit acima]) ou, ainda, um esforço particularmente enérgico de entendimento,
fruto de ameaça, desafio ou qualquer necessidade premente - prevaleça como efeito emocional ou
energético exigindo uma resposta imediata do intérprete, uma prontidão “para agir de certo modo
sob determinadas circunstâncias” nos dirá Peirce (CP 5:480, 1907). Outras vezes, no entanto, é o
interpretante lógico que vem cedo demais, lembra-nos Lucia Santaella (2005:49). Neste caso, a variável bagagem de leis, códigos, conhecimentos acumulados, caminhos percorridos - numa palavra,
os hábitos formados e predominantes num dado momento histórico de um grupo ou segmento social, incorporados pelo intérprete - pode atropelar com a sua mediaticidade os companheiros de processo, os interpretantes emocional e energético, que o antecedem à sombra da sua dominância.
Uma informação nova, pressentimento apenas ou frágil conjectura perturbando a lógica anterior,
pode revigorá-los: nem sempre o signo sugere um interpretante lógico baseado em experiências
passadas. Neste caso, é possível que se instale um envolvimento emocional e energético que pode
levar ou não à uma descontinuidade da ordem anterior e à uma mudança de hábito, originando novo
processo de produção de significados. Foi justamente para “dar conta da plasticidade da mente humana para adquirir novos hábitos, da qual resulta a natureza evolutiva da mente, é que Peirce se
voltou para a tentativa de caracterização de um interpretante lógico último”, nos diz Santaella
(2004:82). Esse tem também o caráter de um hábito, mas de um tipo muito especial: “Pode ser provado que o único efeito mental que pode ser produzido e que não é um signo, mas é de uma aplicação geral, é a mudança de hábito, entendendo por mudança de hábito a modificação das tendências
de uma pessoa em relação à ação”, escreve Peirce (CP 5.476).
Quando descobre o papel do interpretante lógico no hábito, desvinculando-o da simples apreensão
intelectual do significado do signo e situando-o nos contornos da natureza, caracterizada ela própria
por hábitos, Peirce reforça uma ponte entre natureza e cultura, que irá colaborar entendimento à
compreensão do “novo” no âmbito da inteligência individual e nos processos de criação dentro de
247
Em carta à Lady Welby, de1897, Peirce explica seu pensamento em relação à impossibilidade da precisão absoluta:
"… há três coisas que nunca devemos esperar através do raciocínio, a saber: certeza absoluta, exatidão absoluta e universalidade absoluta" (CP 1931-1974, v.1, § 141 apud Ibri, 2000) e repete de outra forma na definição de ‘vagueza’ ou
'vaguidade' que escreve para o “Dictionary of Philosophy and Psychology”, em 1902: "Uma proposição é vaga quando
existem possíveis estados de coisas relacionados a ela que são intrinsicamente incertos, ou seja, tivessem sido eles contemplados pelo emissor, ele os teria considerado como excluidos ou incluidos na proposição. Por intrinsicamente incertos queremos dizer incertos não em consequência de qualquer ignorância do interprete, mas porque os hábitos de linguagem do emissor são indeterminados: de modo que um dia ele poderia considerar a proposição como excludente, no
outro includente, este tipo de coisas. No entanto, isto deve ser compreendido como referência do que poderia
ser deduzido de um perfeito conhecimento do seu estado mental [do emissor]; e é precisamente porque estas questões
nunca se apresentam, ou frequentemente nunca se apresentam, o seu hábito permanece indeterminado". A questão da
'vagueza' é um dos divisores de água entre os teóricos da linguagem e os pragmaticistas no início do século XX: dependendo do paradigma adotado, descarta-se as ambiguidades da lingua natural ou assume-se suas enormes potencialidades. Assim, a qualidade 'ideaI' que Gottlob Frege e Bertrand Russell percebem nas linguagens formais de modo a
evitar as irregularidades e ambiguidades da linguagem coloquial, é descartada por Peirce e William James. Ambos acreditam que os esforços lógicos para evitar a 'vagueza' da linguagem coloquial são perda de tempo e como tal preferem
usa-la como instrumento. Posteriormente, Ludwig Wittgenstein alinha-se à essa tendencia quando faz o elogio do conceito "blur" no Philosophical Investigations, afirmando toda a linguagem necessariamente vaga, embora não problemática, de modo que a 'vagueza' não compromete a utilidade da linguagem.
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uma cultura. De um lado, trata-se de julgar o significado de um conceito em termos da contribuição
que as reações que ele evoca produzem para o crescimento da razoabilidade concreta. Em paralelo a
essa compreensão estará o desvelamento progressivo da natureza do símbolo, um signo que Peirce
situa no ponto de cruzamento - um topos - entre “existência” e “lei”. É ele quem nos diz
“[símbolo] é um signo se refere ao objeto que denota em virtude de uma lei, habitualmente uma sucessão de idéias gerais, que induz à interpretação do símbolo como referindo-se a tal objeto... não só o
próprio símbolo é geral, como o objeto ao qual se refere é de natureza geral. Pois bem, aquilo que é
geral se faz existente nas instâncias que irá determinar. Portanto, devem haver instâncias existentes do
que o símbolo denota, embora devamos entender por [instâncias] ‘existentes‘ uma existência no universo talvez imaginário a que o símbolo se refere” (CP 2.249, 1903, trad livre)248
Em outras palavras, para Peirce trata-se de um signo que toma do objeto algum nível de generalidade pelo qual ele pode ser reconhecido, e entrega ao interpretante o valor dessa generalidade, para
que exista, no sistema correspondente, “um lugar lógico que o fixe e mantenha disponível para
quando se requeira a sua utilização”, considera Juan Magariños de Morentin (1983:101) do que poderíamos chamar topos da memória. Continua Morentin: “O símbolo é, portanto, o signo que permite afirmar a correlação entre a lei existente no objeto e a lei existente em algum interpretante”
(ibid). Desse modo, se existem ambas as leis, é possível produzir um signo que as correlacione no
ponto de convergência de dois sistemas distintos, e este signo é o símbolo. Simétricamente, continua Morentin, para “classificar um signo como símbolo, é necessário provar-se, a respeito dele, que
é o ponto de convergência da legalidade de dois sistemas: o que o identifica enquanto objeto e o que
o valoriza enquanto sistema” (ibid).
À diferença de outros signos como o ícone249 e o índice250 , a percepção do símbolo implica num
condicional, algo que certamente será experenciável, em situações não previamente estabelecidas251, se determinadas condições forem preenchidas de modo a influenciar o pensamento e a conduta do intérprete. A generalidade que Peirce atribui ao símbolo lhe permite afirmar: “Um símbolo é
um representamen cujo caráter representativo consiste em ser uma regra que determina seus interpretantes. Todas as palavras, enunciados, livros e outros signos convencionais são símbolos” (CP
2.292)252. A seguir, Peirce agrega uma definição inesperada de ‘significado’ quando nos diz que o
símbolo, sendo uma lei, ou regularidade de futuro indefinido, “seu interpretante deve ajustar-se à
mesma descrição; e o mesmo deverá ocorrer com o seu objeto imediato completo, ou significado
248
“... Is a Sign which refers to the object that it denotes by virtue of law. usually an association of general ideas, which
operates to cause the symbol to be interpreted as referring to that object... Not only is it general itself; but the Object to
which it refers is of a general nature. Now that which is general has its being in the instances which it will determine.
There must, therefore, be existent instances of what the symbol denotes, although we must here understand by 'existent',
existent in the possibly imaginary universe to which the symbol refers"
249
Funcionalmente os ícones são, segundo Peirce, “a única maneira de comunicar diretamente uma idéia; e todo método
indireto de comunicar uma idéia deve depender para seu estabelecimento do uso de um ícone” (CP 2.278).
250
Ao contrário dos ícones, os índices não comunicam idéias, apenas as conectam mas, à diferença dos símbolos, que
conectam idéias do tipo mais geral, os índices referem-se a “individuais, unidades únicas, coleções únicas de unidades,
ou contínuos únicos (...): dirigem a atenção aos seus objetos por compulsão cega” (CP 2.306)
251
... Thus the mode of being of the symbol is different from that of the icon and from that of the index. An icon has
such being as belongs to past experience. It exists only as an image in the mind. An index has the being of present experience. The being of a symbol consists in the real fact that something surely will be experienced if certain conditions be
satisfied. Namely, it will influence the thought and conduct of its interpreter (CP 4.447, ‘On Existential Graphs’,1903)
252A
Symbol is a Representamen whose Representative character consists precisely in its being a rule that will determine its Interpretants. All words, sentences, books, and other conventional signs are Symbols", (CP 2.292. 1903)
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(CP 2.293, trad livre)253. Ao contrário do que se poderia supor, a expressão ‘objeto imediato completo’, que Peirce relaciona ao ‘significado’ do símbolo, não se refere à realidade última do objeto,
conforme ele escreve em nota esclarecedora de pé de página
Há duas maneiras que um símbolo pode ter como objeto real uma coisa existencialmente real. Primeiro, a coisa pode adequar-se a ele acidentalmente ou em função de o símbolo ter a virtude de um hábito
expansivo [ou em expansão] e, segundo, quando o símbolo tenha um índice como parte de si mesmo254. Mas o objeto imediato de um símbolo só pode ser um símbolo e se ele contiver, em sua própria
natureza, outra classe de objeto, tal será por progressão infinita (CP 2.293, trad livre, grifo nosso) 255
Ao reconhecer no símbolo a “virtude de um hábito expansivo (ou em expansão)”, Peirce acrescenta uma dimensão evolucionária aos tradicionais critérios de convencionalidade, arbitrariedade,
codicidade que definem o símbolo. Ao mesmo tempo, nos diz Winfried Nöth (2010:84-85), a perspectiva peirciana do símbolo como um signo guiado por hábito onto e filogenético256 serve como
ponte entre natureza e cultura, contrariando não só a alegada dualidade entre ambas257, mas também
aquela estabelecida entre “signos culturalmente transmitidos via ensinamento e aprendizado” versus
“signos herdados geneticamente e interpretados por disposições instintivas”. Contra o dualismo cultura versus natureza, continua Nöth (ibid), “Peirce propõe que o hábito pelo qual os símbolos são
interpretados pode ser convencional ou natural. Contra o dualismo do convencional versus o inato,
Peirce postula que o hábito que determina o símbolo é uma disposição adquirida ou inata”.
253
A Symbol is a law, or regularity of the indefinite future. Its Interpretant must be of the same description; and so must
be also the complete immediate Object, or meaning (CP 2.293, ‘Syllabus’, 1903)
254
Uma vez que o símbolo, segundo Peirce, em si mesmo é um mero sonho pois não mostra sobre o que ele está falando, ele “precisa estar conectado com o seu objeto. Para este propósito, um índice é indispensável. Nenhum outro tipo de
signo irá responder ao propósito (...); um índice é essencialmente uma questão de aqui e agora, seu papel sendo de trazer o pensamento a uma experiência particular, ou série de experiências conectadas por relações dinâmicas” (CP 4.56)
255
There are two ways in which a Symbol may have a real Existential Thing as its real Object. First, the thing may conform to it, whether accidentally or by virtue of the Symbol having the virtue of a growing habit; and secondly, by the
Symbol having an Index as a part of itself. But the immediate Object of a Symbol can only be a Symbol and if it has in
its own nature another kind of Object, this must be by an endless series (CP 2.293 , ‘Syllabus’, 1903)
256
Ou seja, um hábito que se relaciona tanto às fases de desenvolvimento de um determinado organismo - desde o embrião passando pelos diferentes estágios e mudanças estruturais até sua forma desenvolvida - quanto à evolução da espécie. O primeiro caso (ontogênese - do gr ontos, "ser", e genesis "criação") relaciona-se à memória ontogenética, i.e., à
aquisição em vida (mesmo que intra-uterina) de um hábito essencial para a sobrevivência do grupo que a possui, embora não seja repassado geneticamente. O segundo caso (filogênese ou filogenia, do gr phylon = tribo, raça e genetikos =
relativo à gênese = origem) relaciona-se à memória que é armazenada na bagagem genética de um grupo de organismos
intimamente ligado a um modelo parental de ancestralidade e descendência. Na concepção peirciana, a noção de hábito
fundamenta não só sua definição de símbolo como base do pensamento e da cultura humana mas também sua compreensão das leis biológicas e da física como hábitos que devem ser atribuidos à natureza. É interessante lembrar que, para
Lotman - cujo conceito de semiosfera foi cunhado por analogia ao de biosfera, introduzido pelo geoquímico Vladimir
Ivanovich Vernadski (1863-1945) - o símbolo além de agir como si fosse um condensador de todos os princípios da
signicidade, também conduz, e ao mesmo tempo, para fora dos limites da signicidade, i.e., se apresenta como um mediador entre a realidade semiótica e a extra-semiótica. “Generalizando”, escreve Lotman (1996:108), “podemos dizer que
a estrutura dos símbolos desta ou daquela cultura forma um sistema isomorfo e isofuncional à memória genética do indivíduo”. No entanto, Lotman evita comprometer-se com a posição de outros membros notáveis da escola de TartuMoscou, como Viacheslav Ivanov, para quem os mecanismos fundamentais que tornam possível o funcionamento dos
sistemas de signos são inatos (apud Boguslaw Zylko, 2005). Ao mesmo tempo, Lotmand questiona a posição antagônica, i.e., a existência de um limite absoluto entre as esferas da natureza e da cultura: “Os limites não são nítidos”, escreveu num de seus últimos trabalhos, “e definir cada fato concreto como pertencente à cultura ou à esfera da não-cultura,
supõe um alto grau de relatividade”(apud Zylko, op cit).
257
Em especial, nos diz Nöth (ibid), o conceito evolucionário de símbolo desenvolvido por Peirce é “incompatível com
a Filosofia das Formas Simbólicas de Ernst Cassirer, segundo com a qual o símbolo é característica unicamente da natureza humana, enquanto a natureza não-humana é uma semiosfera desprovida de símbolos”.
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Eppur se muove: still da performance de Joseph Beuys na galeria René Block, em Nova York.
Durante três dias, oito horas por dia ele permaneceu fechado numa jaula de arame, enrolado num cobertor de feltro e em
companhia um coiote selvagem. O animal, sagrado para os índios norte-americanos, terminou por reconhece-lo
(Coyote: I Like America And America Likes Me, 1974).
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Tempo poético: apenas ligeiros movimentos do bastão de madeira denunciam a presença humana.
Alguns feixes de palha e uma pilha de jornais do dia (The Wall Street Journal) foram incluídos no cenário da ação.
A Língua dos Nomes Próprios_ Pelo que foi exposto parece estranho ao ponto de vista do sistema peirciano a idéia de que ‘conceito’ e ‘signo’ possam funcionar em oposição ou, dito de outro
modo, que a ciência opera com conceitos e o mito opera com signos. De acordo com o modelo
pragmático de Peirce, a noção de significado implica em processo ou “ação de signos” (semiose),
um sistema triádico que não comporta aquela dualidade e, à diferença do modelo diádico de Ferdinand de Saussure, não pode ser reduzido a uma face sensível (o significante) e à uma face puramente conceitual (o significado) 258. Trata-se, portanto, de um modelo situado na relação entre os
signos, seus objetos e seus interpretantes e, nesse modelo, ‘conceito’ é signo gerado por interpretante lógico mediado por hábito, independentemente - e ao mesmo tempo profundamente dependente - do fato de o intérprete viver numa taba indígena; absorvido no cotidiano de uma cidadezinha
onde todos se conhecem, isolado num mosteiro medieval ou, ainda, no ambiente frenético de uma
metrópole onde o tempo voa.
A contradição mais básica que posso perceber interagindo nos sistemas da cultura e no pensamento individual dessas culturas refere-se aos mecanismos de duas lógicas diferentes entre si em funcionamento num caso e outro, e presentes ambas na mente humana. Uma é o que chamamos “língua
dos nomes próprios”, resquícios de um pensamento mitológico inalcançável em estado puro, presente em todas as culturas, que se diferencia na manifestação dessas culturas e que se apresenta em
constante aliança com o jogo artístico. Essa lógica é distinta do pensamento dedutivo, civilizado por
algum tipo de cultura e que opera por tradução no sentido amplo do têrmo.
Nesse sentido, talvez seja mais útil distinguir as culturas que se orientam para um tipo de pensamento mitológico daquelas que escolhem o caminho contrário, como o fizeram Iuri Lotman e Boris
Uspenski da Escola de Tartu-Moscou. Segundo os autores, o pensamento mitológico que remete a
um fenômeno de consciência, distingue-se por ser aquele que percebe o mundo composto de objetos
que: a) pertencem ao mesmo nível, sugerindo um pensamento alheio ao princípio de hierarquia lógica; b) não se deixam decompor em traços distintivos, indicando um pensamento que interpreta
cada coisa como um todo unitário; c) que não se repetem, remetendo a um pensamento que não in-
258
Entre as críticas ao modelo saussuriano destaca-se aqui a de Jacques Derrida, particularmente em “A Escritura PréLiteral”, primeiro capítulo de “Gramatologia” (1973)
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clui a presença de um nível metadescritivo na interpretação lógica. Paradoxalmente, continuam
Lotman e Uspenski (1981:133), esse mesmo pensamento que
conhece um só nível no plano da hierarquia lógica, mostra-se extremamente hierarquizado no plano
semântico-valorativo; não é decomponível em traços distintivos, mas apesar disso está em grau máximo articulado em partes (os elementos materiais que o constituem); e, por último, a singularidade
dos objetos não impede a consciência mitológica de os considerar, duma maneira para nós estranha,
como um só objetos (grifo no original) que dum ponto de vista não mitológico aparecem pelo contrário completamente diferenciados..
Um raciocínio desse tipo, é Lévi-Strauss quem nos diz, não significa ausência ou incapacidade de
abstração, não se confunde com percepções equivalentes a "pensamento dos selvagens" nem com a
noção de uma humanidade primitiva ou arcaica.
Antes, é o pensamento em estado selvagem que ele distingüe do "pensamento cultivado ou domesticado em vistas de obter um rendimento" (1962:3). Sua contribuição, imensa, é ter demonstrado, através de exemplos verificados no seu campo de estudos e da sua experiência que as dois modos de raciocínio convivem na experiência humana. Mas, para isso, foi obrigado a abrir temporariamente mão da extensa bagagem conceitual - a "taxonomia científica" própria à cultura a qual pertence - para fazer uso de elementos do pensamento a que chamará mítico - uma certa bricolagem
intelectual, concreta, afetiva, caleidoscópica, sensível, qualitativa, sígnica, conforme descreve sucessivamente (Lévi-Strauss, 1962) - porque é a única coisa que possui de si e que serve naquele
momento para fazer frente e traçar uma ponte significante entre ele e o objeto que se propõe traduzir, i. e., o funcionamento de uma lógica diferente da sua.
. Essas considerações nos aproximam das questões relativas aos objetos cujos elementos se conjugam em imagens de complexidades descontínuas, tais como as que se vislumbram na trajetória dos
símbolos, no percurso dos mitos, nas bruscas mudanças de rumo, na articulação da fala, nos processos de criação artística e científica, nos encontros com uma realidade diversa do esperado, em uma
palavra, na apreensão de elementos díspares em justaposição.
Até onde podemos perceber, essa é uma das características dos mecanismos da Retórica de que nos
falam Lotman e Peirce. Mas, à diferença da justaposição sintagmática, acentua Lotman (op cit) a
retórica distingue-se justamente por aproximar segmentos aparentemente incompatíveis entre si,
gerando uma recodificação recíproca dos mesmos, i. e., o efeito retórico é obtido pela justaposição
do texto com uma série que semiòticamente não lhe é homogênea e constitui, neste caso, o processo
formador de uma linguagem de leituras plurais que revela inesperadas reservas de sentido.
Uma situação desse tipo verifica-se em “O Conto de Amaro”, que justapõe temporalidades distintas na mesma narrativa, gerando a estranheza no momento em que a percepção do tempo do mundo
descola-se do tempo da eternidade, o tempo externo do interno, o pensamento descritivo do pensamento mitológico. Sua viagem foi um rito de passagem.
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TEMPORALIDADES DISTINTAS
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Introdução _ Esse capítulo seleciona alguns textos que confrontam temporalidades distintas, em
situações variadas, e se aproximam de vários modos da que se verifica em “O Conto de Amaro”.
Honi, o Fazedor de Círculos e o Plantador de Alfarrobeiras
À esquerda, alfarrobeira do Mediterrâneo (também conhecida por figueira-de-pitágoras e figueira-do-egito).
À direita, estela canaanita do século XIII aC
Os “fazedores de círculos” pertencem à tradição dos grandes taumaturgos, augures, curandeiros,
rezadores e xamãs que fazem parte da história da humanidade. Consta que um deles, Honi Ha-
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Me'aguel, viveu na Babilonia antes da época do Tanaim259. Homem muito piedoso e conhecedor das
Leis divinas, era respeitado pelo povo. Dizia-se que sua proximidade com Deus era tanta que Ele
escutava-lhe todos os pedidos. A fama e o título de “fazedor de chuva” veio da seguinte história,
comentada no Talmude da Babilonia260 (Ta’anit 3,8261):
Havia grande seca; compadecido dos seus, Honi atende aos pedidos e reza para que chova. Mas a
simples oração não é suficiente para obter o efeito desejado. Então, Honi traça um círculo na areia,
senta-se no interior e brada aos céus: “Senhor do Mundo! Teus filhos vieram a mim porque diante de
Ti sou como um filho da casa. Juro pelo vosso santo Nome que não arredarei daqui enquanto não tiverdes piedade de teus filhos!” .
Aos poucos, começam a pingar gotas de chuva e a cada gota que cai Honi brada, categórico: “Não foi
por esta a chuva que eu orei...” . Então, veio um temporal imenso, de provocar enchente na terra e
medo nos corações.
Diante disso, Honi novamente clama: “Não foi por esta a chuva que eu orei...”. Finalmente a chuva
torna-se calma e boa.
Pelo uso da fórmula “Juro pelo vosso santo nome”, não pelo ato mágico em si Honi podia ser expulso da comunidade, nos diz Hans Jürgen Becker 262 . A arrogância no trato da divindade é censurada pelo rabino Shimon ben Shetah (século I aC) que, entretanto, releva a culpa
Se tu não fosses Honi, eu te condenaria. Mas que posso fazer a ti? Porque importunastes Deus, e Ele
fez o que querias como um pai que cede ao desejo do filho que o importuna. A teu respeito diz o Provérbio (23,25): “Alegrem-se teu pai e tua mãe, e regozije-se aquela que te deu à luz”.
259
As histórias de Honi referem-se às discussões rabínicas anteriores ao período em que os rabinos compilaram e discutiram a Mishná (entre ca. 70-200 dC). A Mishná é considerada a Torá Oral do povo judeu, isto é, a tradição transmitida
de boca em boca, de geração a geração, de mestres a discípulos até a sua passagem para a escritura, em hebraico: contém todas as leis possíveis e costumes do povo judeu desde os tempos da Bíblia. Os sábios que sistematizaram a Torá
Oral eram gente entre o povo, profundamente religiosos sim, mas também senhores de uma variedade de oficios: entre
eles haviam agricultores, astrônomos, escribas, sapateiros etc. Na discussão direta e lógica da matéria da Lei (o Halaká,
constituido pelos sagrados mandamentos, a lei bíblica, mais os costumes que se cristalizaram na prática dessa lei) acrescentaram o entorno das discussões - anedotas, histórias, tradições, lendas, provérbios, homilias, ditos, cálculos matemáticos e astronômicos - cujo lugar de significado situa-se no espaço-temporal em que deram as reflexões. Isolados do
contexto e instalados na escrita, é possível perceber esses comentários como um conjunto de histórias que pontuam o
corpo legal da Mishná. No entanto, mais que contos curiosos, esse conjunto corresponde à uma antiga prática de fixação
na memória e à partilhação do conhecimento entre os fiéis. Na lei mosaica são chamados Aggadá e ocupam cerca de um
terço dos escritos, inseridos na Mishná sem sinais de interrogação, exclamação, reticências, vírgulas ou quaisquer outras
marcas que, na escritura atual, indicam um ritmo de fala ou a expressão de um pensamento. Desse modo, a Aggadá flui
como pontuação aberta entre os textos da lei, “um valor de face” nos diz Aharon Feldman (1990:xxvii #5) destes véus,
destas máscaras ligeiras intercaladas como pontos obscuros da letra; um interstício que se constroi em camadas superpostas de significado e que permite a visualização do Talmude como um continuum esburacado: uma expressão utilizada por Paul Zumthor quando nos fala da percepção da História. Nesse modo de transmissão a Aggadá apresenta-se muitas vezes intencionalmente obscura, esclarece-nos Feldman (1990:xxii), envelopando “algumas das idéias mais básicas
do judaísmo” como se fossem comentários de passagem: geralmente seu significado pleno não está no literal - o que, de
certo modo, corresponde à constatação biblica da insuficiência da palavra como veiculo de tradução dos sentimentos
mais profundos. Ainda assim, na superfície que aflora na letra há sempre uma sombra de verdade.
260
O Talmude, um dos livros sagrados da tradição judaica, consiste em duas partes separadas e inseparáveis, é um em
dois: a Mishná e a Gemará (termo aramaico que significa "aprendizado" ou "tradição"). A Gemará é a explicação da
Mishná. Inclui os comentários e interpretações dos rabinos reunidos (ca século V) em duas academias situadas em locais distintos: Jerusalém na Palestina (Talmude Yerushalmi) e na Babilonia (Talmude Bavli). Assim, há dois Talmudes.
261
Na sistematização talmúdica um Ta’anit é considerado elemento único que admite a sub-divisão em capítulos. O
capítulo que trata dos casos em que a ordem ritual das preces pode ser alterada é dedicado quase exclusivamente às histórias de Honi, o fazedor de chuvas e de círculos, entre as quais a parábola do “Plantador de Alfarrobeira’.
262
Hans Jürgen BECKER (2002) The Magic of the Name and Palestinian Rabbinic Literature in SCHAFER, Peter &
HEZSER, Catherine (ed) The Talmud Yerushalmi and Graeco-Roman Culture, Volume 3, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul
Siebeck) pg 401
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A história do Plantador de Alfarrobeira consta do episódio da morte de Honi (Ta‘anit, 23a):
Certo dia Honi vê um velho plantando uma alfarrobeira: indaga dele em quanto tempo a árvore dará
frutos. “Daqui há uns 70 anos”, é a resposta. Honi espanta-se: “ E esperas viver 70 anos para comer do
fruto do teu trabalho?”. O velho responde: “Não encontrei o mundo vazio quando cheguei aqui. Meus
pais plantaram para mim antes que eu nascesse e assim eu planto para os que virão depois de mim”.
Meditando na resposta, Honi senta-se, come e adormece ao lado da sua mula e da muda da alfarrobeira. Quando acorda percebe que dormiu durante 70 anos porque um homem colhe alfarrobas da árvore
que viu plantar; e sua própria mula havia parido um tropel de burros. Mas então, ninguém mais o reconhece e o tomam por louco. Quando declara sua identidade, riem dele porque o famoso Fazedor do
Círculo desaparecera há muito tempo.
Triste, o sábio entrega sua alma a Deus e pede que Ele o leve e Deus atende o seu pedido.
Há muitos modos de perceber as histórias de Honi. Hans Jürgen Becker cita o episódio do “fazedor de chuva” quando investiga a magia do Nome Próprio entre os povos arcaicos e sua relação
com a literatura rabínica na Palestina. Michel Tardieu, pesquisando os sincretismos do final da Antiguidade, usa a história do “plantador de alfarrobeira” para explicar o conceito de “parábola em gavetas”, um tipo que proliferou no período e foi muito utilizado para fins didáticos. Segundo o autor
(2008:547), essa categoria inclui as narrativas com fundo moral aplicável a situações distintas, permitindo que diversas comparações sejam acrescentadas à história inicial, inclusive atualizando-a
fora do contexto. Apresentam-se como “espécies de parábolas dentro da parábola que dão ao conjunto um ar de um conto ou devaneio em voz alta” (id ibid).
De certo modo, o “Conto de Amaro” pode ser pensado assim. De um lado, pelo final inesperado
da narrativa (que liga o destino do personagem à fundação de um mosteiro em Tresvilles, por
exemplo). De outro, pelas interpretações que se acrescentam à própria narrativa como um prolongamento em outro nível, inclusive a que é tentada no presente estudo, formando uma corrente.
O caráter de “devaneio” sinalizado por Tardieu, parece-me, é inseparável da história considerando
que o fato selecionado pelo emissor é mais amplo o que o significado presente no código decodificado pelo receptor.
Indago, então, por que isso acontece.
No plano linguístico o fenômeno talvez possa ser pensado como o encontro das conjunções “e” +
“ou”. Enquanto o “ou” é mais premente e mais volúvel (um imperativo de escolhas, ou isso ou aquilo nos diz Cecília Meirelles num poema às crianças), o “e” agrega as coisas de modo parecido com
o “bricoleur” de Lévi-Strauss. Em algum momento ambos se cruzam: então o “e” passa a ‘ou”
como diferencial de outro sistema e o “ou” assume no sistema anterior as funções do bricoleur. Nestas mutações ficam sem definição uma ampla gama de signos que transitam entre eles.
A morte de Honi na história do “Plantador de Alfarrobeira”, à sombra da árvore que viu nascer,
nos fala da sobrevivência de partículas arcaicas em um tempo diferente daquele de que são parte.
Dá-se, no encontro, uma ruptura ambígua. Honi vai mas volta, fica nas páginas do Talmude.
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Salmo 90 [89]
No versículo 4 do Salmo 90 [89], Israel canta pelas cordas do salmista: “... mil anos na tua presença são como um ontem que passou, uma vigília noturna...”. Nessa frase, verifica-se a justaposição de temporalidades distintas que o presente estudo privilegia como chave para a interpretação do
Conto de Amaro.
Talvez até mais que em outros credos, os Salmos263 marcam o ritmo do tempo judaico. Supõem-se
que a maioria deles tenha surgido de alguma forma nos campos, nas guerras, nas moradias e a céu
aberto, no largo intervalo de tempo entre o Êxodo e a destruição do Primeiro Templo, concentrandose no período monárquico (1047 a 587 aC.) iniciado com Davi, rei de Judá. Como escreve Hermann
Gunkel (apud Raguer 1998:27)
As obras literárias de épocas e ambientes primitivos se distinguem das dos povos desenvolvidos precisamente pelo fato de que não são concebidas apenas como obras escritas, mas procedem da vida real
dos homens e têm sua realização nesta vida: um grupo de mulheres entoa um cântico triunfal diante do
exército que retorna vitorioso; as carpideiras entoam, junto ao ataúde, a comovedora canção dos mortos; no átrio do santuário um profeta faz ouvir sua voz trovejante
Embora seja muito difícil situar os Salmos individualmente, um olhar atento ao processo de evolução espiritual na história de Israel, aconselhado por Sigmund Mowinckel (2005:256, XXXIII),
pode perceber que os salmos mais antigos cantam em nome das promessas feitas ao povo, um coletivo forte que se interpõe à lamentação como sujeito, enquanto os de período mais recente sugerem
um olhar distinto, um ‘nós’ que observa seu próprio curto tempo de vida e clama por recompensa
antes que o prazo se esgote (ibid,102); clamor que não nega a Javé mas que o aproxima da visão de
um paraíso possível num plano terreno; algum lugar antes da queda.
263
Salmos são textos poéticos importantes nos rituais dos Povos do Livro. Feitos de ritmo e som, palavras que ecoam
mensagens, súplicas, lamentos, epifanias, música de corda, címbalos, instrumentos de sopro e percussão passaram à
escrita entre os séculos X-VI aC; resultado de um longo processo de acumulação, interpolações, reorganizações, releituras; fixados tal como o conhecemos hoje em edição rabínica (ca III aC) de 150 salmos organizados em cinco livros num
só, o Sefer Tehillim ou Livro dos Salmos. Embora de mesma fonte, os Saltérios cristão, judeu e muçulmano não são
idênticos, conceitual e formalmente. Existe uma diferença de numeração entre a primeira tradução grega (Septuaginta,IIII aC, Alexandria, traduzida para o latim por São Jerônimo na Vulgata, IV-V dC) e a original hebraica: esta última, uma
unidade sálmica à frente da numeração habitual nas versões litúrgicas latina e néo-latina.
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De acordo com a classificação de Gunkel por gêneros literários (1983), o Salmo 90[89] é considerado um salmo misto. Não que existam salmos ‘puros’: de lamento, louvor, súplica, etc. Mas em
alguns, como o 90[89], o traço forte é constituído pela convivência dos traços distintivos cuja predominância, em outros casos, permite separa-los por gênero. Embora o padrão misto possa sugerir
uma colagem de fragmentos, o estilo “não constitui evidência de origem posterior ou falta de sensibilidade às leis da arte, um declínio poético, ou mesmo a ausência de qualquer plano consciente da
parte do poeta”, nos diz Mowinckel (2005:74).
O Salmo 90 [89] é um canto forte da fragilidade. É o único do Sefer Tehillim264 que menciona
Moisés como autor na epígrafe, que começa justamente assim - “Oração de Moisés, homem de
Deus”. O olhar que o salmista lança ao passado não celebra os grandes feitos, as conquistas. Antes,
apequena o homem. A sombra da eternidade divina cresce de tal modo que perto dele, salmista ou
patriarca, limitam-se à uma imagem de nudeza, arrastando “a imaginação para distancias maiores,
de volta à Criação e além dela”, nos diz Gehrard von Rad (2001:453).
O 90 [89] não é um lamento, é um gemido. Nesse deserto, o salmista ergue a voz e clama, com a
intimidade de um Honi pedindo chuva: “apareça a tua obra aos teus servos e a tua glória sobre seus
filhos” (v.16). Segundo Von Rad, estas palavras quase podem ser descritas como a chave do salmo .
1 Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração.
2 Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade a
eternidade, tu és Deus.
3 Tu reduzes o homem à destruição; e dizes: Tornai-vos, filhos dos homens.
4 Porque mil anos aos teus olhos são como um ontem que passou, uma vigília noturna.
5 Tu os levas como uma corrente de água; são como um sono; de manhã são como a erva que cresce.
6 De madrugada floresce e cresce; à tarde corta-se e seca.
7 Pois somos consumidos pela tua ira, e pelo teu furor somos angustiados.
8 Diante de ti puseste as nossas iniqüidades, os nossos pecados ocultos, à luz do teu rosto.
9 Pois todos os nossos dias vão passando na tua indignação; passamos os nossos anos como um conto
que se conta.
10 Os dias da nossa vida chegam a setenta anos, e se alguns, pela sua robustez, chegam a oitenta anos,
o orgulho deles é canseira e enfado, pois cedo se corta e vamos voando.
11 Quem conhece o poder da tua ira? Segundo és tremendo, assim é o teu furor.
12 Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios.
13 Volta-te para nós, Senhor; até quando? Aplaca-te para com os teus servos.
14 Farta-nos de madrugada com a tua benignidade, para que nos regozijemos, e nos alegremos todos
os nossos dias.
15 Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste, e pelos anos em que vimos o mal.
16 Apareça a tua obra aos teus servos, e a tua glória sobre seus filhos.
17 E seja sobre nós a formosura do Senhor nosso Deus, e confirma sobre nós a obra das nossas mãos;
sim, confirma a obra das nossas mãos.
264
A tradição judaica atribui a autoria virtual do Livro dos Salmos a Davi (~1040 - 970 aC) ungido rei dos judeus pelo
profeta Samuel à época de Saul; o qual empreendeu a edição dos salmos. Embora grande parte dos salmos sejam de
autoria do próprio Davi (73, segundo epígrafe), alguns foram escritos por Salomão, seu filho com Bathsheba, herdeiro
do trono de Judá e construtor do primeiro Templo de Jerusalém (dois salmos, segundo epígrafe). O Livro de Salmos
contém epígrafes que mencionam outros nomes, não exatamente de indivíduos mas de ‘famílias’ de salmistas, semelhantes a corporações de ofício. Nomeia duas, Assaf e os Filhos de Coré; nesta última incluem-se dois sábios da Antiguidade, Hemã e Etã, ezraítas honrados e honrando os De Coré como patrono. Tais famílias, salmistas do Templo de
Jerusalém, podem ter sido incluídas na epígrafe dos salmos através de diversas formas de colaboração: autoria do poema, arranjo da melodia; interpretação; performance; execução da música; recolho e pesquisa de material; ou, ainda,
através do repertório escolhido para apresentação.
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Uma carta de Maimon_ Em forma de conclusão, trago uma carta escrita por Maimon ben Josef
(ca 1110-1165), pai de Maimônides dito o Rambam, da trajetória do Salmo 90 [89], interpretada no
Sefer Tehillim como Oração Profética. Através das linhas escritas por Maimon transparece o significado de continuidade na mente do fiel, como presentificação do passado e do futuro.
Mas por que?, indagava Maimon à sua época. “Costumava imaginar por que esta oração fôra incluida no Livro dos Salmos, e passou de mão em mão de geração em geração até os dias de Davi
que lhe deu lugar no seu livro de orações...”, escreve ele (Simon,1991:275#94265 ). Quando escreve
estas linhas (ca 1160) numa carta em árabe e linguagem que não vacila chamar Abraão de ‘Mahdi
de Deus’ e Moisés de ‘apóstolo’ (Kobler,1953:166 e sgs266), Maimon e família ainda estão em Fez
no Marrocos; de onde partem para Acre na Palestina, de onde vão para Jerusalém; de onde foram
para Al Fustat, a primeira capital do Egito sob domínio árabe - incendiada pouco depois pelos fatimidas em 1168 para impedir que caísse em mãos dos cruzados; hoje bairro na parte velha do Cairo
onde ainda se vê a Mesquita de Amr (ca 642), reconstruída. Mas quando isto aconteceu Maimon já
havia morrido.
O sefaradita Maimon nasceu em Córdoba quando havia relativa tolerância religiosa; relativa pois
sabe-se que a importante comunidade hebraica de Lucena, onde Maimon estudou, teve que desembolsar quantidade de moedas para evitar conversão forçada no Andaluz almorávida (1102-1147);
império este, almorávida, cuja capital Marraquech no Magreb assimilara algo da efervescência cultural andaluzi vinda do contato judeu e cristão sob domínio de outros árabes; e Maimon, dizíamos,
teve que fugir de Córdoba pois que se aproximam os almoadas, um novo poder surgido no Magreb,
mais rigoroso e cruel na aplicação da lei islâmica.
Quando partem do Marrocos, onde passam por muçulmanos, Maimon escreve aos amigos que
ficam, e talvez a ele mesmo. Mas antes, há algo a dizer de Maimon; perfil traçado nas palavras de
um poeta contemporâneo dele, Judá Halevi de Toledo, que ilumina aspectos da convivência no interior da comunidade sefaradita no Andaluz. "O filho não é distante mas antes que tudo é filósofo. O
pai é todo entusiasmo, cheio de fé, ansiando por habitar as belas histórias do Aggadá, sem medo de
acreditar nos anjos, sem vontade de fazer Deus uma abstração ou do apóstolo de Deus meramente
um profundo pensador (apud Yellin & Abrahams, 1903:9267).
Maimon tem o “dom da alegoria”, dizem assim (id ibid), e as imagens que utiliza correm como
um riacho suave e doce e direto ao coração. A “Carta de Consolação” que envia aos amigos do Marrocos - “uma das melhores expressões de tolerância que a literatura medieval pode exprimir”, consideram Yellin e Abrahams (1903:29) - atropela o presente e o indizível lamento do presente com a
eternidade toda - “o dia sucede à noite, e noite dia, e os homens ainda são mortos por obediência a
Deus e aceitação da sua Lei”, escreve - e refaz o caminho do Salmo 90 [89] pelo avesso.
265
SIMON, Uriel (1991) Four approaches to the Book of Psalms: from Saadiah Gaon to Abraham Ibn Ezra, Albany:
State Univrsity of New York Press
266KOBLER,
Franz (ed./1953) A Treasury of Jewish Letters: Letters from the Famous and the Humble. Philadelphia:
Jewish Publication Society of America.
267
YELLIN, David &ABRAHAMS, Israel (1903) Philadelphia: Jewish Publication Society of America;
://www.archive.org/details/maimonides01amergoog
OnLine:
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Hall Freire 150
Maimon aconselha, aos que ficam, as três orações do dia268 ; se for necessário, com a liturgia abreviada; em árabe, caso em hebraico parecer complicado demais; compara a Lei de Deus a uma corda
suspensa entre a terra e o céu: segurem com a mão inteira, diz, com parte da mão, com a ponta dos
dedos é melhor que nada, que ter esperança alguma. Louva intensamente a Moisés cujos olhos desprendem luz que anjo algum, “Michael ou Gabriel ou toda a coorte celestial” sustenta, e “cuja criação foi a evidência da força de Deus pois Deus o criou na sua forma mais bela”; mas reforça a idéia
de que é Ele, o Criador, quem não quer mal algum ao seu povo: “Deus não deseja uma coisa e depois a despreza; Ele não favorece e depois rejeita” (id ibid). E singelamente confessa sua ignorância: “Costumava imaginar por que esta oração [Salmo 90/89] fôra incluida no Livro dos Salmos ...”.
Neste gesto, não deixa espaço para pouca fé: o presente, de certa forma, desaparece, transfigura-se
em “espaço privado de realidade” como nos diz Iuri Lotman (1999:40) do momento de inspiração
poética - não uma unidade de tempo, mas uma brecha no tempo em que os opostos, passado e futuro, se encontram. Ao invés de resignação, a tradução que Maimon apresenta do salmo nesta carta
poética e memorável fala de oração. “Então eu considerei o significado do Salmo 90 [89] e seu segredo se tornou claro para mim ...”.
A resposta que Maimon encontra talvez não seja a minha ou a sua. Mas a impressão é que ele ativou, de alguma forma, um canal de reconciliação de memória através do qual o futuro olha apaixonadamente o passado e este lhe responde desde as montanhas do Sinai e antes delas.
Uma Carta de Pedro_ Constam do Cânone cristão duas cartas atribuidas ao apóstolo pescador da
Galiléia por nome Simão ou Simeão antes do Cristo transmutar-lhe a pele por algo maior da sua natureza, “Pedro, tu és pedra...”, disse-nos Jesus (Mateus,16:18) daquela fé. Em ambas as cartas São
Pedro dirige-se às comunidades cristãs do Oriente; e na segunda epístola escreve
Mas, amados, não ignoreis uma coisa, que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como
um dia (2 Pedro, 3:8) .
Na carta de Pedro a lembrança do verso sálmico se faz sem referência; como a continuação de um
discurso; de maneira distinta daquele que o próprio apóstolo profere em Pentecostes diante da comunidade cristã de Jerusalém, citando nominalmente as palavras do profeta Joel (Atos 2:17-21)
E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos
No discurso de Pentecostes, Pedro explica-nos o comportamento estranho dos que na ocasião falaram várias línguas e pareciam dirigir-se diretamente a cada um dos presentes em seus idiomas nativos; não loucos, não bêbados mas tomados pela palavra do Senhor. Entende-se, naquele momento
de transgressão poética, que os sinais haviam sido dados; momento de sacralidade ao instalar outro
começo. No reconhecimento de Cristo como o Logos cada momento do tempo corrente representa o
contato do temporal com o eterno, e a transcendência do fenômeno em direção ao seu arquétipo.
Na Carta, Pedro escreve ao Oriente.
268
A oração judaica, tefilá, são as recitações de orações que fazem parte da observância do Judaísmo. Estas orações,
muitas vezes com instruções e comentários, são encontradas no Sidur, o livro de orações judaicas. Tradicionalmente,
três grupos de orações são recitados diariamente: 1) Shacharit ou Shaharit , "luz da manhã"; 2) Arvit ou Maariv, as preces do anoitecer; 3) Minchá, as orações do pós meio-dia, geralmente recitadas em ambiente mais mundano
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Hinos do Paraíso de Santo Efrem
Ícone de Santo Efrem na Casa da Virgem Maria (Meryem Ana Kilisesi), em Diyarbakır, Turquia
Santo Efrem (306-373) é um teológo e poeta, um grande poeta que nasceu em Niblisi na Turquia,
próximo à fronteira com a Síria. Os hinos que ele compôs eram para ser cantados em toda parte.
Mais de 400 ainda existem. Em alguns ele fala do mundo natural e da Bíblia como duas testemunhas de Deus. O interesse da inclusão do hino reproduzido abaixo é que, nele, a justaposição dos
tempos não está está explícita, mas flui no entendimento. Santo Efrem usa uma variedade de termos intercambiáveis para explicar essa fluidez que aproxima realidades aparentemente incompatíveis entre si. O principal deles é “rasa ou raza” (mistério ou, mais apropriadamente, símbolo). Sebastian Brock (1990:42) atribui origem persa ao termo. Encontramos referência à “rasa” também no
Atarva indiano e provavelmente anterior 269.
Brock, tradutor dos hinos, acompanhou a trajetória da rasa/símbolo na tradição judaico-cristã. Ele
nos diz que o termo parece originalmente no profeta Daniel com o significado de ‘segredo’; em seguida ocorre nos textos da comunidade de Qumran e provavelmente é o termo semítico que subjaz
no uso da palavra ‘mysterion’ por São Paulo”. Como termo tipológico, continua Brock, o termo
“rasa” (símbolo) indica a conexão de dois modos diferentes da realidade e nos lembra que os Santos
Padres usaram-no no sentido forte de “símbolo” bastante diferente do uso atual: para eles, de algu269
O Atarva é um texto sagrado do hinduismo, um dos quatro Vedas, reunido num conjunto de 731 hinos de encantação,
canticos, orações, fórmulas mágicas tão antigos quanto os mais antigos hinos védicos, da mesma família que os do
RigVeda, embora de certa forma marginalizado pelo conteudo e instrumentalização das preces. com os significados de
‘essencia’ e ‘soma’, objetos de culto particular nos rituais védicos. Sabe-se que os sacerdotes entravam em extase com
o suco fermentado (essencia = rasa) desta “soma”, nos diz Prafulla Chandra Ray (1861-1944). A partir de determinado
momento a noção de ‘rasa’ associa-se também à idéia de ‘amrita’ ou nectar imortalidade, semelhante à ‘ambrosia‘ grega
nos diz Ray (903:ii). A associação da raiz sanscrita amr (imortal) com a noção de rasa (essencia) denota, no campo da
estética clássica indiana, a própria essencia da arte e da poesia; o tempo liquido da ‘rasa’ milenar que concentra-se num
instante, um batimento do coração se tanto, ou a menor unidade de tempo conhecível entendido como a resposta emocional do espectador à uma obra de arte. Este desenvolvimento aparece no conceito de ‘rasa’ percebido como ‘essencia’
na filosofia arcaica e direcionado para um significado prático nos compendios médicos, o Charaka, e o Susruta. A associação, presente desde a época dos hinos do Atarveda (ca. sec VIII aC) - tradição de certo modo relegada a segundo
plano espiritual por ser prática de xamãs - também pode ser percebida no seu trajeto em paralelo, guiando emoções
humanas e ambições como a do rei sassanida Chosroes I que no século VI enviou seu médico Burzoy à India em busca
do segredo do imortal.
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Hall Freire 152
ma forma, o símbolo participa realmente da realidade espiritual que simboliza, ao passo que para a
maioria das pessoas o símbolo implica hoje em algo fundamentalmente diferente da coisa que simboliza. Essa concepção “forte” afeta enormemente a atitude de Sto Efrem em relação ao mundo material.
De modo diferente, essa concepção “forte” do símbolo persiste no homem comum da Idade Média, que não concebe a abstração “fora da sua encarnação concreta visível”, precisa Aron Gurevitch
(1990:106), pois “olhava a natureza como se olha um espelho e ao mesmo tempo a reconhecia em si
mesmo” (ibid, p 84); noções como perto e longe indicando distancia - tais como as entendemos hoje
- não se aplicam àquela realidade.
Máximo, Bonelo e Baldario
Monasterio de San Pedro de Montes (El Bierzo, León, Espanha) onde, há muito tempo,
viveram San Valerio e seus discípulos
Entre as piedosas narrativas medievais que nos contam das viagens da alma distingue-se um grupo em que o espírito liberto das amarras do corpo mas à semelhança dele é guiado por seres alados
no trânsito entre mundos; do paraíso no céu ao inferno num reino subterrâneo; propiciado por sonhos e visões; algumas vezes no limiar da morte; depois, de volta ao corpo-Terra. São espaços sem
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continuidade, tempos justapostos. Na verdade, nos diz Aron Gurevitch (1990:86), são “uma espécie
de conglomerado de ‘lugares’ muito diferentes, ligados entre si, em sentido verdadeiro, pelo único
caminho que a alma errante do visionário percorre”.
A percepção de realidade do homem comum da Idade Média é diferente da nossa. A não-diferenciação em relação ao ambiente permitia, por exemplo, que ele concebesse o mundo concreto povoado pelos anjos e demonios, lugares paradisíacos e infernais que povoavam a sua mente. “As essencias espirituais tal como seus símbolos e reflexos terrestres eram igualmente objetivas e concebidas
enquanto coisas”, comenta Gurevitch (1990:106).
Não parecia estranho àquele homem que alguém pudesse percorrer um imenso trajeto num piscar
de olhos. Os textos continuadamente nos falam de santos que faziam em três dias um percurso que
exigia normalmente trinta. Considerava-se que as almas, nos diz Gurevitch, eram capazes de correr
tão depressa que “se uma qualquer dentre elas deixasse um corpo em Valence para entrar (dentro de
um outro corpo) numa qualquer aldeia do condado de Foix e tivesse chovido a cântaros durante
todo o trajeto que separa os dois locais, ela não teria apanhado sequer três gotas de água”
(1990:106).
As “Narrações do bem-aventurado Valerio ao bem-aventurado Donadeo”270 trazem alguns desses
relatos. Correspondem à uma prática comum nos mosteiros da época e às relações entre o monge e
seu diretor espiritual, de verbalização da totalidade dos pensamentos, o movimento das imagens nos
sonhos, desejos, visões; uma relação de obediencia absoluta conforme os votos monásticos. Pela
dedicatória do texto, supõem-se que foram destinadas à edificação e à instrução dos monges do
mosteiro onde Donadeo foi abade no século VII. É possível distinguir, como no Conto de Amaro,
uma estrutura tripartite nos relatos. 1) a existência antes da visão; 2) a visão em si e 3) a vida depois
da visão. Na primeira, Valerio conta do monge Máximo: dado como morto em consequência de
grave enfermidade, revive literalmente algumas horas depois e relata o que ele vê neste intervalo.
Esteve no céu - um anjo mostrou-lhe todos os encantos do jardim do paraiso - e no inferno, um
abismo envolto em densa bruma de onde escapam gemidos de dor. A história de Baldário não é
muito diferente. Já velhinho e doente vê a alma escapar-lhe do corpo e ser conduzida ao céu por duas pombas até um monte de rara beleza de onde contempla Cristo em seu trono; de lá a alma retorna; e Baldario, prestes a ser enterrado, surpreende os companheiros com o relato.
“Este tipo de narrativa”, nos diz Lotman (1990:152), “não objetiva informar os ouvintes de algo
que eles não sabem, mas é um mecanismo para assegurar a continuidade do fluxo dos processos cíclicos”. Em tais processos o narrador é parte do ritual e nele não ocorrem eventos excepcionais
mesmo que eventualmente assim nos pareçam, continua Lotman (ibid): antes, “são eventos fora do
tempo, repetidos infinitamente e, neste sentido, imutáveis”.
O relato de Bonelo é um pouco diferente. Não envolve a situação limítrofe de morte física e sim
de morte espiritual. Compõe-se de duas partes em uma, separadas pela queda e retomada de um
movimento ascensional . Na primeira parte vemos o jovem monge Bonelo profundamente aplicado
à penitencia e à mortificação da carne. Em êxtase, é conduzido por um anjo a um maravilhoso palácio em meio a um jardim de delícias: esta será sua futura morada, caso persista no propósito. Mas
Bonelo abandona o rigor e a penitência. Em novo êxtase reencontra um anjo, desta vez maligno,
que o leva até o inferno aonde sofrem os condenados. Ante o horror da nova visão Bonelo aconselha-se com Valerio; na sequência retira-se para o claustro e retoma a vida de ascetismo.
270
Dicta beati Valeri ad beatum Donadeum scripta (Narrações do bem-aventurado Valerio ao bem-aventurado Donadeo), de Bonello monaco (do monge Bonelo) y De celeste revelatione (e Da revelação do céu) In DÍAZ Y DÍAZ, Manuel C. (ed.); Valerio del Bierzo.; Leon: Centro de Estudios y Investigación St Isidoro, 2006, pp 200-209
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Hall Freire 154
Essa divisão tripartite - que também ocorre em “O Conto de Amaro” - corresponde à estrutura dos
ritos de passagem que, segundo Victor Turner, marcam a transição de uma posição para outra nos
rituais; um padrão típico recorrente implicando em três fases nitidamente distintas: separação, incorporação e, entre estas, uma fase liminar, paradoxal e ambígua, limem ou soleira. Kathryn Lynch
(1988:47) identifica esta fase intermediária, transicional com o domínio das visões medievais, associando-as ao significado das peregrinações na cultura cristã estudadas pelo casal Turner.
_ Os Sete Dormentes de Éfeso
Sete Dormentes: à esquerda miniatura do século XII (in Cod. Bodmer 127, fol125v
Passionário de Weissenau, Alemanha; Vitae Sanctorum);
à direita, miniatura do século XIV (Cod 185 , Fol. 234v. Vies de Saints, France, Paris, atrib Richard de Montbaston).
Na cristandade a história é bem conhecida, em muitas versões: sete jovens de Éfeso adormecem
numa caverna à época das perseguições do imperador romano Décio (249-251) para despertar no
reinado do imperador Teodósio II (408-450) sem ter noção do tempo transcorrido.
Menos conhecida é sua ampla difusão, tanto no plano espacial quanto temporal, que remete ao
conceito de dormência, usado no presente estudo para referir o fenômeno de reativação de tendências ou tradições aparentemente desaparecidas que ressurgem em novo contexto.
O fenômeno não era desconhecido dos gregos e se reflete numa lenda que circulava livremente à
época de Aristóteles de Estagira (ca 384 aC-322) e possivelmente antes dele - a dos Sete Dormentes
da Sardenha a respeito de indivíduos que adormeceram em locais consagrados a antigos heróis e
quando acordaram não tinham noção do tempo transcorrido. O filosófo usou-a para mostrar que o
movimento no tempo é de reciprocidade. O ponto defendido era que os Dormentes conectaram o
momento que adormeceram com o que acordaram, deixando de lado tudo o que se passara no entremeio. A ilusão favoreceu uma falsa percepção de continuidade: como o tempo é sempre limitado
por dois “agoras”, o antes e o depois, nenhum tempo parece transcorrer quando se percebe - ou
acredita-se perceber - os dois juntos em um e mesmo agora. Desse modo, ao refletir sobre o tempo
do mundo, o Estagirita afirmou a impossibilidade da passagem desse tempo sem que alguma forma
de mudança ocorra na passagem. Se o “agora” fosse sempre um e o mesmo não haveria tempo. Para
Henri Bergson (1859-1941), Aristóteles foi o primeiro filósofo que espacializou o tempo, relacionando a concepção platônica (uma imagem imóvel da eternidade) à concepção pitagórica (expansão
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Hall Freire 155
da natureza como um todo) para propor uma terceira via em que o tempo não é idêntico ao movimento embora não seja totalmente independente dele.
A tradição dos Dormentes é reencontrada de inúmeras formas no mundo greco-romano. Distinguem-se, nesse aglomerado, idéias de incubação divina e transe relacionadas a práticas ascéticas,
rituais de cura e de iniciação xamânica. Tradição semelhante vamos encontrar no mundo judaico.
Por exemplo, história bíblica do Abimeleque registrada no “Paralipomena Ieremiae” (ou Baruch IV)
que passou para a escritura nas primeiras décadas do século II dC. O “paralipomena” 271 em questão
nos conta das “coisas que foram deixadas de fora do Livro de Jeremias”, entre as a quais o sono de
66 anos que acomete um jovem etíope durante uma missão a que fora enviado pelo profeta (ca 626586 aC), durante o qual Jerusalém é destruida e o povo, cativo, é levado para a Babilonia. À volta,
no que ele pensa ser o entardecer do mesmo dia, não reconhece a cidade e acredita ter se perdido
no caminho272. Esse texto, “paralipomena” em outros Canons, faz parte da Bíblia em idioma amárico da Igreja Cristã Ortodoxa Etíope.
Na mesma linha de “dormencias sagradas” - propiciando saltos mais ou menos longos no tempo os cristãos de Éfeso reconheceram o tema e em meados do século V a história passou para a escritura conforme sua crença.
Dormentes: ícone russo do século XVIII
Todas as versões cristãs concordam que, ao despertar, os dormentes conservavam a mesma juventude: suas roupas estão intactas, pensam ter dormido não mais que uma noite; estão bem vivos pois
sentem fome e sede. Um deles sai em busca de mantimentos.
Descobre a cidade transformada, repleta de igrejas; tenta pagar pela compra: os comerciantes, estupefatos, desconfiam daquelas moedas com a efígie do imperador, Décio de terrível memória, morto há tanto tempo. A notícia corre rápido: o imperador Teodósio e a imperatriz vão à caverna; um
bispo os acompanha. Os jovens recontam sua história; os presentes não duvidam de um milagre de
ressurreição da carne; pouco depois os jovens adormecem novamente, desta vez um sono eterno. O
tempo entre uma dormência e outra, a definitiva, varia com as versões: 190, 309 ou ainda 372 anos.
271
Em grego “paralipomena”, significa coisas omitidas da historia oficial - o que implica na suposição que outros fatos
possam ter ocorrido e considerados não significativos pelos critérios de seleção, à época; fora do contexto.
272
4 Baruch: Paraleipomena Jeremiou (2005) trad ed e notas de Jens HERZER, Houston, USA: Society of Biblical Literature, pg xv
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Hall Freire 156
Em algumas versões consta o nome dos jovens, gravados por alma piedosa à entrada da caverna
em que se refugiaram por não aceitar o culto do imperador como divino: Maximiliano, Malco, Marcião, Denis, João, Serapião e Constantino. Mas ao fugir, teriam eles distribuído seus bens aos pobres? O imperador Decio confiscou-lhes as posses? Quem descerrou a entrada da gruta, por quê?
Terá sido o dono das terras, para transformá-la em abrigo para o gado? Ou pedreiros, em busca de
material de construção? E a caverna, exatamente onde? Monte Pion, Celion, Ochlon?
Respostas a essas perguntas podemos encontrar em todos os lugares, nunca exatamente iguais.
Acredita-se que um original grego de que fala Paul Peeters 273 está na origem dos primeiros manuscritos cristãos da narrativa, em siríaco e latim, encontrados em duas homilias do bispo de Edessa
Jacó de Sarug, dito Mar Jacó na Anatólia (ca 451-521) - um dos grandes teológos e poetas do cristianismo oriental, lembrado pelos contemporâneos como “Flauta do Espírito” assim como Santo
Efrem era conhecido como “Harpa Divina”. No mesmo Oriente mas no século X, Simeão Metafrastes, chanceler da corte de Bizâncio, incluirá o relato dos sete jovens na coleção hagiográfica que
organiza com mais de 120 textos de vida, paixão, milagres de santos. Desse repertório também fará
parte a narrativa de “Barlaão e Josafate”, cuja tradução para o grego é atribuida a João de Damasco
ou João Damasceno (675-749), doutor da Igreja e um dos maiores teólogos do seu tempo.
No Ocidente latino, a narrativa dos Dormentes transmite-se nas versões do “Passio Septem Dormientium” de Gregório de Tours (~594) e na do beneditino Paolo Diacono (sec VIII), que a incluiu
na sua “Historia dos Povos Lombardos” (i.4)274, situando a caverna, local do adormecimento, em
longínquas fronteiras no extremo noroeste da atual Alemanha. Também atribui-se a Paulo Diácono a
tradução, para o latim, de uma “Vita de Santa Maria Egipcíaca” 275 . Ambas as narrativas, a dos
Dormentes e a de Maria do Egito, estarão presentes na Legenda Áurea (ca 1260) organizada pelo
dominicano Jacopo da Varazze, bispo de Gênova.
No mundo islâmico, existe uma narrativa similar à dos Sete Dormentes, observada nos versículos
9-26 da 18a. Surata276 do Corão intitulada Al-Kahf (A Caverna, texto completo no Anexo)
9
Pensas, acaso, que os ocupantes da caverna e da inscrição foram algo extraordinário entre os
Nossos sinais?
10
Recorda de quando um grupo de jovens se refugiou na caverna, dizendo: Ó Senhor nosso,
concede-nos Tua misericórdia, e reserva-nos um bom êxito em nossa empresa!
11
Adormecemo-los na caverna durante anos.
Ao contrário da versão cristã, a corânica - Ahl al-Kahf ou Ashâb al-Raqîm - não menciona o número e o nome dos jovens encerrados na caverna; admite entretanto a tradição segundo a qual um
273 Analecta
Bollandiana 41 (1923) pp 369-385
274
Historia gentis Langobardorum- Os lombardos ou longobardos ("os de barba longa"), um povo germânico estacionado no vale do Danúbio, invadiu a Itália bizantina em 568 dC. Lá estabeleceram um Reino Lombardo, posteriormente
chamado de Itálico (Regnum Italicum), que durou até 774 dC, quando foi conquistado pelos francos. Sua influência na
geografia política italiana permanece na denominação regional da Lombardia. Texto comparativo da obra de Lombardo
(ingles e latim) OnLine: http://germanicmythology.com/works/HistoriaLangobardum.html. A tradução inglesa é de autoria de W.D. FOULKE (Filadélfia, 1906)
275
O texto de Paolo Lombardo, também chamado Paulus Cassinensis e Paolo di Varnefrido encontra-se no Manuscrito
de Paris, v. 161-164.
276
Sura, surata ou surat é nome de cada um dos capítulos do Corão. O livro sagrado da religião islâmica possui 114
suras, por sua vez subdivididas em versículos (ayat). As suras não se encontram ordenadas por uma ordem cronológica
de revelação (apud USC - University of Southern California / Center for Muslim-Jewish Engagement).
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Hall Freire 157
cão 277 acompanhou os fugitivos e incentiva a construção de uma masjid (templo, mesquita) no local que adormeceram
18
(Se os houvesses visto), terias acreditado que estavam despertos, apesar de estarem dormindo, pois Nós os virávamos, ora para a direita, ora para a esquerda, enquanto o seu cão dormia, com as
patas estendidas, na entrada da caverna. Sim, se os tivesses visto, terias retrocedido e fugido, transido
de espanto!
19
E eis que os despertamos para que se interrogassem entre si. Um deles disse: Quanto tempo
permanecestes aqui? Responderam: Estivemos um dia, ou parte dele! Outros disseram: Nosso Senhor
sabe melhor do que ninguém o quanto permanecestes. Enviai à cidade alguns de vós com este dinheiro; que procure o melhor alimento e vos traga uma parte; que seja afável e não inteire ninguém a vosso respeito,
20
Porque, se vos descobrirem, apedrejar-vos-ão ou vos coagirão a abraçar seu credo e, então,
jamais prosperareis.
21
Assim revelamos o seu caso às pessoas, para que se persuadissem de que a promessa de Deus
é verídica e de que a Hora é indubitável. E quando estes discutiram entre si a questão, disseram: Erigi
um edifício, por cima deles; seu Senhor é o mais sabedor disso. Aqueles, cujas opiniões prevalecia,
disseram: Erigi um templo, por cima da caverna!
Foram exatos 309 anos anos lunares (300 solares) de dormência, nos diz o Corão dessa fuga no
tempo (18:25).
25
Eis que permaneceram na caverna trezentos e nove anos.
26
Dize-lhes: Deus sabe melhor do que ninguém o quanto permaneceram, porque é Seu o mistério dos céus e da terra. Quão Vidente e quão Ouvinte é! Eles têm, em vez d'Ele, protetor algum, e Ele
não divide com ninguém o seu comando.
27
Recita, pois, o que te foi revelado do Livro de teu Senhor, cujas palavras são imutáveis; nunca acharás amparo fora d'Ele.
O culto aos Dormentes, o único que será admitido entre os muçulmanos, difunde-se nas regiões
anexadas pelos árabes pontilhando o mapa das terras conquistadas com oratórios e mesquitas edificadas na proximidade de grutas onde o tema ainda hoje ecoa como se estivesse acontecendo. Surgem, nessa difusão espaço-temporal, acréscimos e variantes. Por exemplo, Usāmah ibn Munqidh
conta-nos em suas memórias das Cruzadas (apud Hitti, 2000:39-40) de uma estreita fenda à entrada
da caverna de al-Raqîm no caminho entre Petra e Amã, onde os Dormentes teriam repousado. Segundo a crença “nenhum filho do adultério” conseguiria passar por aquela fenda. Nos juramentos de
fidelidade, o ritual da passagem era percebido como prova de pureza de sentimentos.
277
Os comentaristas admitem Qtmir, cujo nome não é mencionado no Corão embora bem conhecido fora do texto sagrado, como um companheiro protetor e leal que pode ser admitido no Paraíso. Rumi (+ 1273), o poeta e místico persa
acreditava inclusive que os cães eram capazes de detectar intimamente o amor de Deus pela sua criação (in Juan Eduardo CAMPO (2009) Encyclopedia of Islam New York:VB Hermitage, p 201)
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Hall Freire 158
Miraj, sultão Muhammad, 1539-43, Tabriz, Azerbaijão
Isra e Miraj - A décima-sétima Sura do Corão, Al-Isra (A Viagem Noturna) conta a história do
sonho sagrado na tradição islâmica. Consta de duas partes, Isra e Miraj, revelados a Maomé pouco
antes Hégira, em 621, quando o profeta deixa Meca por Medina, para fugir à perseguições. Isra é a
viagem noturna em que Maomé é transportado para a mais longínqua mesquita onde encontra os
profetas e se une a eles na Oração.
1. Glorificado seja Aquele que, durante a noite, transportou o Seu servo, tirando-o da Sagrada
Mesquita (em Makka) e levando-o à Mesquita de Alacsa (em Jerusalém), cujo recinto bendizemos,
para mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. Sabei que Ele é Oniouvinte, o Onividente.
Em seguida, no Miraj (centelha, ascensão celestial), o profeta percorre numa única noite os céus e
os infernos, transportado pela montaria que o anjo Gabriel lhe trouxe. Barak, é o nome desse estranho animal mais veloz que o raio, representado em algumas tradições com cabeça de mulher e cauda de pavão. Segundo a interpretação tradicional, é a encarnação do intelecto capaz de reconhecer
imediatamente a natureza espiritual de um ser, sem a intervenção da análise e da razão. A Sura é
densa e a simbologia belíssima. Merece um estudo detalhado, em outra ocasião.
Psicopompos_ Em muitas culturas, não todas, os animais são identificados como psicopompos:
abelhas, cães, cavalos, golfinhos, raposas e principalmente os pássaros - águias, corvos, corujas,
grous, pombas, aves canoras como as cotovias, os sabiás, etc. Acredita-se, nos diz Eliade, que “entender a linguagem dos animais, especialmente a dos pássaros, equivale a conhecer os segredos da
natureza; e, a partir daí, ser capaz de profetizar" (Eliade 1974:98). O aprendizado do canto dos pássaros - ou, mais exatamente, a habilidade de transformar-se em pássaro pela imitação da sua voz faz parte da iniciação de um xamã, continua o mestre romeno: o domínio da técnica é um signo de
que ele “pode circular livremente nas três regiões cósmicas: inferno, terra, céu” ou, dito de outro
modo, “é capaz de penetrar impunemente aonde só os mortos e os deuses têm acesso” (ibid).
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Hall Freire 159
Xamãs, em diversas culturas, desempenham funções variadas: curam, benzem, presidem sacrifícios e rituais; fazem e desfazem encantamentos; lêm sortes, praticam adivinhação; são guardiões da
tradição nas melodias e cantos que preservam, nas fórmulas e na entonação correta das fórmulas
que repassam aos iniciantes, no reconto de narrativas que evocam a memória cultural de um povo
ou grupo. Mas há quem defenda um uso mais restrito do termo: Eliade, por exemplo, acredita que o
xamã é capaz de curar sim, como os médicos; realizar coisas espantosas sim, como os mágicos;
mas, principalmente, um xamã é um xamã por ser psicopompo, isto é, um condutor ou guia, alguém
que acompanha os espíritos até o lugar onde irão passar a outra vida” . Além disso, ele pode ser sacerdote, místico e também poeta (apud Eliade, 1974:4).
O termo forma-se do grego pompos (condutor, guia) e psyché (respiração, vida, alma, mente): histórias relacionadas a psicompompos fazem parte de textos mitológicos, religiosos, narrativas sagradas e da tradição dos mais diversos povos. São considerados psicopompos figuras como Hermes e
Perséfone na grega; Freia na nórdica; Anubis entre os antigos egípcios; Jizo na tradição búdica; valquírias que conduzem os guerreiros germânicos ao Valhala; toda a coorte de anjos e santos de devoção pessoal e em especial Michael e o arcanjo Azrail, um dos quatro que na tradição muçulmana
habita a árvore-lote da última fronteira de maneira análoga, não idêntica, ao barqueiro Caronte que
habita os rios intransponíveis.
Lendas do Reno e de Alhures _ Entre os séculos XI e XIII no Ocidente, no processo de sagração da Terra sob novas perspectivas, destacam-se os escritos de Caesarius de Heisterbach (11981240) cronista à distancia da Cruzada Albigense (1209-1244) na primeira fase liderada por Arnau
Amalric abade de Citeaux, a casa-mãe da Ordem, inclusive Alcobaça em Portugal.
Estátua de Caesarius (Ernemann Sander in Konigswinter
Esses escritos surgiram às margens do rio Reno, em conexão com a ascensão do poder germânico.
Mais exatamente na porção média do rio, depois que ele passa do lago Constance a caminho do Mar
do Norte. Na região, o Reno estreita-se numa garganta pontilhada por mais de 40 castelos na Idade
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Média e depois se dilata perto das Sete Montanhas (Siebengebirge), uma fortaleza natural de origem
vulcânica onde a realidade tem asas de nibelungos 278.
Nesse local279 , um vale entre montanhas, ficava o mosteiro de Heisterbach onde viveu Caeasarius.
Fronteira avançada do Império Romano no século I, a região ficou famosa pelos vastos depósitos de
latite, uma rocha de dureza comparável ao diamante que os romanos exportavam para Roma do seu
porto de Königswinter. A memória das rochas sobreviveu aos romanos e encontrou abrigo no coração do Arcebispo de Colonia que no século XII necessitou minério para a construção da catedral da
cidade, desejada como a mais bela e a maior de toda a Europa.
O Monge de Heisterbach_ Em 1189, os cistercienses instalaram-se na região a pedido do arcebispo. Na condição de mestre dos noviços, depois prior do mosteiro e visitador das casas filiadas a
Heisterbach, Caesarius reuniu uma vasta coleção de exempla na obra conhecida como ‘Dialogus
Miraculorum’, baseada em situações vividas, destinada ao desenvolvimento espiritual de seus pupilos e ao esclarecimento das questões mais frequentes que eles enfrentavam com o demonio. A obra,
muito difundida na Idade Média, apresenta-se na forma de diálogo entre um monge e seu discípulo.
Constitui não só um panorama de costumes, um tratado não erudito de iniciação cisterciense, mas
também uma janela para sistemas que operam com lógicas distintas. Para a grande maioria da popu278
Os nibelungos (nibelungen) são os anões das lendas germânicas cuja riqueza vêm das minas no interior das montanhas que habitam. Na mitologia germânica o termo também aplica-se aos antepassados dos Burgundios, um povo da
Escandinávia documentado por volta do século V na margem esquerda do Reno, dominando a região da atual Worms,
na Renânia-Palatinado, com o status de federados (foederati) do Império Romano. Apesar do tratado, eles avançaram
pelos rios, desferindo contínuos ataques às regiões da Belgica Gálica, o que provocou a destruição de sua capital em
Worms pelos romanos aliados aos hunos. Consta então que o povo foi transferido para terras da atual Sabóia, na França,
de onde se espalhou por uma vasta região que alcança o território da atual Provence. Dominados pelos francos, os burgundios foram reunidos na parte ocidental do Reino Franco (Neustria) sob os merovingios, desde a Aquitânia até o Canal da Mancha (séculos V ao VIII). A memória da passagem dos burgundios preservou-se no nome da atual Borgonha.
Neustria e Austrásia : divisões do Reino Franco entre 511 e 751
Entre a mitologia e a história, os nibelungos surgem numa Canção germânica que leva seu nome (em alemão Das Nibelungenlied), poema épico que passa anonimamente à escrita por volta do século XII. Embora conhecida pelo termo
"canção", o significado de ‘liet’ em alemão arcaico incorpora os de 'estrofe' e ‘saga’. A mais famosa versão da Saga dos
Nibelungos, remonta à era do nomadismo dos povos germânicos e remete à corte da Burgundia na atual Renânia-Palatinado, onde o herói Siegfried apaixona-se pela princesa Kriemhild, irmã do rei. Como presente de casamento, Siegfried
oferece à noiva o incalculável tesouro dos nibelungos, os anões mágicos das montanhas sob seu domínio. Nas bodas, o
tesouro dos nibelungos passa às cortes da Burgundia e, junto com ele, a maldição que o acompanha, trazer infelicidade
e morte ao seu possuidor.
Canção dos Nibelungos (Manuscrito de Donaueschingen, ca. 1230): redescoberta no século XIX
a Saga foi transformada em ópera por Richard Wagner e considerada por muito tempo epopéia nacional do povo alemão.
A versão original germânica também existe na tradicão oral na Escandinávia, compilada no século XII como Saga dos
Volsungos (Volsunga Saga), mais ou menos à mesma época que a mitologia nórdica foi reunida na Islandia em duas
versões da Edda (uma em verso, outra em prosa). A Saga dos Volsungos narra a história do clã em que nasce o heróí
Sivard, Sigurðr ou Sigur que mata o dragão Fafnir, aprende a linguagem dos pássaros e fica com o tesouro dos anões,
inclusive um anel amaldiçoado. A origem escandinava da tradição burgúndia encontra suporte na evidência dos topônimos e em pesquisas do arqueólogo sueco Knut Stjerna (OnLine in ://archive.org/details/cu31924013340074)
279
Atualmente Renânia do Norte-Vestfália, o mais populoso estado alemão formado no pós-guerra de 1946 a partir da
fusão de duas regiões da antiga Prusssia. A maior cidade da região é Colonia.
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lação, na Idade Média, as imagens tinham uma concretude para nós estranha. Por exemplo, quando
se refere às artes do maldito e diz ao discípulo que os heréticos iam para a fogueira sorrindo porque
estavam protegidos por um tratado feito com o demonio, costurado em suas carnes sob a pele das
axilas280, Caesarius não estava usando apenas uma metáfora.
Fronteiras:
Cátaros expulsos da cristandade (Iluminura de Grandes Chroniques de France, seculo XIV British Library, Londres)
O mosteiro tornou-se muito rico, herdando terras e camponeses órfãos de senhores que não voltaram das Cruzadas. Permaneceu assim até ser mediatizado em 1803281. Nesse processo, a biblioteca
e os arquivos do mosteiro foram doados à cidade de Dusseldorf, as construções vendidas e derrubadas. A partir de 1809 restaram na paisagem de Heisterbach apenas a ábside da antiga igreja e as ruínas do coro. Dessas ruínas ressurgiu, esporadicamente, o motivo do Monge e do Passarinho. O
monge, no caso, pode ser entendido como uma aglomeração de Caesarius e seus discípulos na leitura das gerações subsequentes. Na geografia ritualizada da Idade Média, o coletivo transformou-se
num único indivíduo, imagem justaposta ao acervo de figuras existentes no imaginário coletivo.
Essa figura transmitiu-se de diversas formas, em várias versões e em diferentes situações. Constante, manteve-se a noção de temporalidades distintas convivendo concretamente no mesmo espaço.
Entre o final do século XVIII e o início dos XX, o motivo aparece repetidamente. Por exemplo, na
balada (lied) de Karl Wilhelm Muller, que se tornou muito popular na Alemanha como o ‘Monge de
Heisterbach”. Pouco depois, com título idêntico, outra versão aparece num recolho das ‘Lendas do
Reno’ feito pelo filólogo e escritor Wilhelm Ruland.
280 Cesarius
de HEISTERBACH (1929) “Dialogue on Miracles”, trad H. VON SCOTT & Swinton BLAND,
London:Routledge, I:338-41 apud John H. ARNOLD, 2001:64). A região de Colonia na Alemanha conheceu uma manifestação precoce de catarismo, sugerida pela carta que o clérigo Eberwin de Steinfeld, encarregado de um processo de
heresia, enviou a São Bernardo em 1143. Na epístola, Steinfeld mostra-se surpreendido com o comportamento dos heréticos, que se declaram ‘apóstolos’ e caminham com alegria para o martírio na fogueira. (Epistola ad S. Bernardu, Ep
CDLXXII, Patrologia Latina 182 cols 676-80 apud Arnold, ibid). É possivel que Cesarius conhecesse o teor dessa carta.
281
Entre 1803 e 1806, a maioria dos estados do Sacro Império Romano Germânico foi mediatizada por pressão de Napoleão Bonaparte, isto é, perderam a ‘imediatidade imperial’: ao invés de dependerem diretamente do imperador passaram a fazer parte de outros estados. Anteriormente, as regiões possuidoras de tal privilégio tinham o direito de coletar
impostos e, em alguns casos, impor a pena capital. Na prática, a imediatidade imperial correspondeu a uma semi-independência com alto grau de autonomia. O número de estados foi reduzido de cerca de 300 para aproximadamente 30.
No processo, os estados eclesiástico, como Heisterbach, foram secularizados.
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Claustro de Heisterbach (em postal de 1913)
O Monge de Heisterbach nas Baladas Germânicas
poemas musicais de Karl Wilhelm Muller (1794-1827)
Schimpf und Ernst _Antes disso, no século XVI, um registro escrito já aparecera (1522) numa
coleção comentada de lendas que o franciscano Johannes Pauli recolheu da tradição oral, o
"Schimpf und Ernst" 282 . O tom aí é outro, menos romântico, mais ácido e o texto não menciona
Heisterbach. A lenda reproduzida por Pauli 283 refere-se ao Salmo bíblico, motivo de meditação de
282
Schimpf und Ernst (1866) ed Hermann Oesterley: Stuttgart, n 562 e notas 537//
283Von
Schimpff das 562: Ein Fogel sang eim Bruder 300 jar. e Von Ernst das 537: all spilleut, Hüren warden erschlagen/ OnLine://www.cluberzengel.de/download/ebooks/pdf/Pauli,%20Johannes%20-%20Schimpf%20und%20Ernst.pdf
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um monge que desencadeia o aparecimento de um passarinho que canta por 300 anos. Alinhavado
ao lado de outras lendas, a impressão é de um desfile divertido de tipos comuns da alta Idade Média
- o monge glutão, o fornicador, o avarento, o adepto de nepotismo e, no caso, o absenteísta. Apesar
do humor auto-crítico - Pauli, natural da Alsácia no Baixo Reno é monge e sacerdote - o olhar que
organiza tais histórias não é apenas de quem quer fazer rir. Antes, exorciza naquele seu presente a
imagem da Igreja antes da Reforma, tornando-a algo cômica e algo séria através de indivíduos sem
nome que ele devolve ao coletivo, a respeito do qual silencia.
Affligem _O motivo do Monge e o Passarinho era conhecido no meio monástico de uma vasta
região fronteiriça banhada pelo Reno e seus afluentes, antes mesmo da fundação de Heisterbach.
Vamos encontrá-lo primeiro em Affligem, uma estreita faixa de terra ao longo dos rios Reno e Ródano, na atual Bélgica entre Bruxelas e Gante - terras de Annon II, arcebispo de Colonia, tutor do
futuro conde palatino da Lotaríngia. Em 1062 um grupo de cavaleiros decidiu abandonar as armas
e fundou nesse local284 uma comunidade de eremitas. Outros nobres se reunirão àqueles; uma igreja
será construída (São Pedro, 1083); a comunidade adotará a Regra de São Bento (1085) e vai buscar
proteção dos senhores da Lovaina, centro comercial do Ducado de Brabante. Ao mesmo tempo, expande-se em priorados entre os quais Grand-Bigard e Forest, nas cercanias de Bruxelas - este último
também dito ‘Nobles Dames’ (1105) por abrigar as mães, mulheres e irmãs do senhorio da região,
ativo participante das Cruzadas.
Uma parte destes relatos está na “História Affligeniensis”285 que Odon ou Eudes Cambier, monge
da abadia de Affligem, recolheu de antigos manuscritos do convento e reuniu num cronicão do século XVII (1648-1670). Na obra, ele reconstrói a história como se recordasse: começa por indagar
do nome arcaico do local, e conclui que pode ter origem dupla: 1) latina, por semelhança de sonoridade com o verbo affligere e com a situação dos viajantes que trafegavam por aqueles pântanos e
florestas, constantemente espoliados por bandoleiros; 2) do flamengo afleggen, cujo significado de
“transpasse” (atravessar, abandonar, largar, cobrir uma distância) remete aos primeiros solitários
que abandonavam a antiga pele (títulos, bens, modos de vida) para renascer em outra. No capítulo
XXI, possivelmente transcrito de anais do século XI 286, surge a maravilhosa história do religioso
que permaneceu três séculos no fundo do bosque, extasiado pelo canto do passarinho celeste; acreditando, ao despertar, que havia deixado o monastério há poucas horas (BCRH,1838:225-227).
284
Há notícia de que os anos imediatamente anteriores à constituição do eremitério são violentos na corte da Lotaríngia:
em 1060 o suzerano, conde Henrique I "Furiosus" Pfalzgraf, mata a machadadas a mulher, Mathilde (1025-1060), filha
de Gozelon I duque de Verdun e irmã do papa Estevão IX (X) por desconfiar que ela o trai; encerrado na abadia de
Echternach, morre em 1061; suas funções e terras serão administradas pelo mencionado arcebispo, dito santo Annon,
até a maioridade do filho único do infeliz casal, Herman II Pfalzgraf (1064-1085) conde de Brabante e último da Lotaríngia da dinastia de Ezzenidas; após a morte dele em duelo, a região será chamada Palatinado do Reno, com domínios
ampliados.(in Annales Weissemburgenses 1058, MGH SS III, pp. 70-1 ; Boehmer, J. F. (1868) Fontes Rerum Germanicarum, Band IV (Stuttgart), Kalendarium Necrologicum Weissenburgense, p. 312 apud CCML , 2011)
285
286
in CAMBIER, O. Continuatio Chronici Affligemensis; D’Achery, Spicilegium, tom. II p769
Os anais da Abadia mencionam que o fato ocorreu no tempo de Fulgentio, primeiro abade de Afflingem no século
XI. No entanto a expressão “no tempo do abade Fulgencio” pode significar simplesmente “há muito tempo atrás”. Assim como o tempo cotidiano fora dos muros do mosteiro era contado pelo repicar dos sinos da abadia, pelo nome dos
governantes locais, suzeranos e pelas estações do ano, o passar do tempo no espaço interno da abadia era contado pelo
nome dos sucessivos abades.
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Lotaríngia: Por volta do ano 1000 a vasta região conhecida como tal estava subdividida em ducados que se dividiam em condados e feudos menores, estendendo-se por terras que atualmente pertencem aos Países Baixos, à Alemanha e ao norte da França.
O anjo passarinho_Em 1196 vamos encontrar um registro do motivo do Monge e do Passarinho
num sermão atribuido ao bispo de Paris, Maurice de Sully. Foi ele quem deu impulso à construção
da catedral gótica de Notre Dame, situada no mesmo lugar onde os celtas haviam celebrado sacrifícios, os romanos erguido um templo a Jupiter, os primeiros cristãos construido a basílica de SaintEtienne sob os auspícios do rei franco merovíngio Childeberto, filho de Clovis e Clotilde da Burgundia. Lugares sagrados superpõem-se não apenas na memória mas também no plano físico. Em
1160, diante do movimento centrípeto do poder germânico, De Sully mandou demolir o templo anterior e deu início ao projeto gótico de uma nova idéia de prestígio no domínio das cidades, com o
apoio do rei e abençoado pelos interesses na criação do novo símbolo.
O sermão intitula-se ‘Deus li avoit faite un angle en samblance d’oisel’ (em Anexo) e nele o bispo
incentiva os fiéis a esquecerem a dor daquele século, concentrando-se na glória eterna que há de vir.
Como exemplo do que espera os que chegarem ao Paraíso, De Sully cita a história do monge que
escuta a voz de um anjo que imagina ser passarinho e esquece as dores terrenas. Mas ao voltar, o
porteiro não o reconhece. Naquele êxtase haviam se passado 300 anos. No presente, diante das necessidades da nova catedral, não havia tempo a perder.
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Reconstituição do Coro gótico da Catedral de Notre Dame : núcleo interno fechado
por elemento do Alto Coro separando a nave da Igreja do Santuário do Sagrado.
Desenho de Viollet-le-Duc no Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XIe au XVIe siècle, 1856
Pecopin e Baldur, Guntram e Liba_ Às margens do Reno, para glória da França, o grande Victor Hugo irá por sua vez recolher as histórias que correm junto ao rio, longe das cidades. Entre as
“Cartas do Reno” (1841) que ele escreve a um amigo, surge na vigésima-primeira epístola, ‘O Belo
Pecopin e a Bela Baldur‘( no Anexo), o mesmo intervalo desconcertante que joga com o paradoxo
temporal e cuja instalação e desinstalação é anunciada por aves, passarinhos. Na apresentação das Cartas (Paris:Hetzel, tomo I, 1842:1-10), ele escreve de uma saudade nômade: “Há alguns anos...
... un écrivain, celui qui trace ces lignes, voyageait sans autre but que de voir des arbres et le ciel, deux
choses qu’on ne voit pas à Paris. Tout en allant ainsi devant lui presque au hasard, il arriva sur les bords
du Rhin. La rencontre de ce grand fleuve produisit en lui ce qu’aucun incident de son voyage ne lui avait
inspiré jusqu’à ce moment, une volonté de voir et d’observer, fixa la marche errante de ses idées, donna
un centre à ses études, en un mot le fit passer de la rêverie à la pensée. Le Rhin est le fleuve dont tout le
monde parle et que personne n’étudie, que tout le monde visite et que personne ne connaît, que tout regard effleure et qu’aucun esprit n’approfondit. Pourtant ses ruines occupent les imaginations élevées, sa
destinée occupe les intelligences sérieuses; et cet admirable fleuve laisse entrevoir à l’oeil du poète
comme à l’oeil du publiciste, sous la transparence de ses flots, le passé et l’avenir de l’Europe
Na releitura do motivo, Victor Hugo se refere à uma tradição anterior, conhecida em versão oral
germânica, que nos conta do estranho amor do nobre Guntram e da bela Liba (no Anexo) no miste-
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rioso Castelo de Falkenburg 287 . Na sua versão, Victor Hugo acrescenta outras missões à missão do
cavaleiro Guntram nas Cortes da Borgonha 288 , prolonga a memória antiga numa apreensão mais
recente. Da lenda anterior, ele conserva a estrutura em que sobressai a travessia da ‘Floresta’289 um
topos concreto que viabiliza no plano racional a instalação do desdobramento do tempo. Na ressignificação, o escritor dá voz a um imaginal que nos conduz pelo avesso do tempo histórico - um
espaço onírico em que se movem personagens noturnos de memórias universais e francesas. Esse
espaço ocupa a maior parte da narrativa. O que era lenda e mancha esparsa em registros de monges
e pregadores amplia-se no Romantismo.
Um “Conte noir à Sevillana”_ Quase à mesma época o mesmo paradoxo temporal aparece no
relato ‘Creed en Dios’ (1862, no Anexo), que Gustavo Adolfo Bécquer (1836 –1870) recolhe entre
as lendas aragonesas e reescreve, do mesmo modo que Victor Hugo, incluindo nas linhas e nas entrelinhas a musicalidade que percebe na língua da terra. Percebe a narrativa como se fosse uma cantiga provençal e situa a ação na cavalgada do cavaleiro Teobaldo de Montagut, que perseguiu porcos selvagens numa caçada - após o que ele volta, para encontrar-se 100 anos depois com os delitos
que praticara.
Montagut é uma comunidade da comarca de La Garrotxa em Gerona, na Catalunha fronteira com
o sul da França, antiga Marca Hispanica. Parte da paisagem remonta ao século X, quando foram
erguidos ou reerguidos a igrejinha de San Pedro (três naves e apenas uma ábside) e o Castelo de
Montagut, do qual se conserva uma torre circular e alguns restos de muralha. Os moradores daquela
localidade diziam dela ‘Montagut de Fluvià’, em referência ao rio maior da região que nasce nas
montanhas do Collsacabra (Falgars d'en Bas) e desemboca no Mediterrâneo. No século XIX, os ha-
287
A tradição atribui a origem do Castelo de Falkenburg, também chamado de Reichenstein, à uma fortaleza erguida no
século XI nas proximidades da Floresta do Palatinado, dominando a entrada da Garganta do Reno entre Koblenz e Bingen, atual Renânia-Palatinado. No século XIII a fortaleza teria sido ocupada por um “Raubritter”, termo à vezes traduzido por ‘barão-brigante’ que no futuro será associado ao conceito de ‘capitalista selvagem’. Na Alemanha medieval,
porém, a situação era outra. O termo relaciona-se à região do Reno onde era costume recolher taxas de pedágio para
proteção das embarcações que cruzavam a Garganta. Em determinadas épocas, que coincidem com o enfraquecimento
do poder centralizado nos Condes da Lotaríngia, essa proteção extravazou os limites permitidos e incluiu atos de pirataria - roubo de cargas, confisco de navios e sequestro de personalidades -, razão do seu ‘oppobrium’. A conduta desregrada foi combatida pela “Liga do Reno” que destruiu várias fortalezas. O castelo de Falkenburg foi destruido duas vezes, em 1253 e 1282. As ruinas do castelo foram compradas no século XIX e reformadas com outra serventia.
288
No século XII as terras da Borgonha viveram um período de esplendor monástico, sediando as duas principais Ordens religiosas do período: Cluny, fundada no século X, e Cister, fundada em 1098. Com uma população residente superior à da maioria das cidades de seu tempo, mais de mil monges entoando continuamente cantos gregorianos suavissimos, Cluny tornou-se a abadia para onde se voltavam os olhares da cristandade. Posteriormente Citeaux substitui-a em
prestígio e poder simbólico. O prestígio da Casa de Borgonha, de cuja nobreza descendem os reis de Portugal, cresceu
junto com esse florescimento. Entre os séculos XIV e XV o poder dos Duques da Borgonha rivalizou e desafiou os reis
de França: assassinatos, incestos, traições, filhos ilegítimos, batalhas como a de Agincourt (1415) e o suplício de Joana
D’Arc (1431) fazem parte dessa história assim como o fausto das Cortes Borgonhesas, sua arte, suas jóias, sua música.
289
Universo simbólico que o pensamento medieval associou ao selvagem e ao perigo, a Floresta espelha noções que
homens diversos em épocas distintas atribuiram ao desconhecido. Um desses topoi pode ser entrevisto na região montanhosa recoberta pela Floresta Palatina (Pfälzerwald) no sudoeste da Alemanha, que se prolonga pelo maciço de Vosges,
ao sul da antiga Bélgica, a nordeste das terras francesas na região do baixo Reno (Alsácia) e se comunica com a Borgonha. Por volta do século XIII essa região era conhecida na tradição de Cluny por Vosagum (Lat.Vogesus, Ger. Wasgau),
significando uma terra bravia onde aflorou uma cultura agrária esparsa e se refugiaram remanescentes celtas organizados em bagaudas que se diziam protegidas por deuses da caça e da previsão. A travessia era considerada desafiadora e
perigosa, não só no plano físico. Dizia-se “par Vouge trespassa”.
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bitantes colhiam legumes, batatas e frutas, produziam vinho e azeite290 como fizeram seus antepassados.
Ruinas do Castelo de Montagut, Catalunha: lugar estratégico
domina a vertente norte da entrada de Gerona, o vale de Banyoles e as montanhas da Garrotxa,
fronteira da França, região da Marca Hispanica (abaixo)
O castelo onde não se passa a ação de “Creed en Dios”, mas onde a narrativa tem começo e fim,
foi propriedade do Reino de Aragão no período que corresponde àquele Pedro II, o Católico (11781213)291 e seu neto Pedro III o Grande (1240-1285)292. Os primeiros sete ou oito metros da torre são
mais antigos, datados do ano 1000. A construção foi reformada sob supervisão de Jofre de Foixà,
290 in
España Regional, Cataluña, Barcelona:Imprenta de Luís Tasso y Serra, s/d :868 OnLine
://www.bibliotecavirtualmadrid.org/bvmadrid_publicacion/i18n/catalogo_imagenes/imagen.cmd?path=1026753&posicion=35).
291
Pedro II de Aragão, conde de Barcelona e senhor de Montpellier, morreu na batalha de Muret; em defesa de seus
interesses no Languedoc, contra os cruzados do Norte no período de repressão à heresia cátara.
292
Pedro III de Aragão, conde de Barcelona e rei de Valência era filho de Violante da Hungria, casado com Constanza
de Hohenstaufen. Pelo casamento, também foi rei consorte do trono da Sicília.
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monge e trovador293, a quem Pedro III nomeara seu procurador. Posteriormente, consta que Jofre de
Foixà doou ou vendeu o Castelo de Montagut ao Monastério de San Pedro de Galligants, em Gerona (1370)294.
Demonios à mesa : Jograis e Trovadores em suspeição
iluminura de manuscrito catalão não identificado (site “Els Trobadors Catalans”)295
No século XIX Gustavo Adolfo Bécquer colhe e reescreve as memórias que rodeavam Montagut
num texto impregnado pelo sentimento íntimo da terra, que ele vai buscar na musicalidade da fala e
nos rompantes de sua gente. Em 1862 escreve ("El Miserere", El Contemporáneo, 17-IV-1862):
Yo no sé la música; pero le tengo tanta afición que, aun sin entenderla, suelo coger a veces la partitura de
una ópera y me paso las horas muertas hojeando sus páginas.
293Temos
notícia de Jofre de Foixà (?-1300?), filho de um vassalo do Conde de Empuriès, entre os franciscanos e depois
na abadia beneditina de San Feliu de Guixols, na Catalunha. Como trovador De Foixà distinguiu-se por um tratado de
gramàtica e poética, Regles de trobar, que escreveu sob as ordens de Jaime II (1267-1327), irmão querido de Isabel, a
Rainha Santa de Portugal, quando esse era rei da Sicília. De Jofre de Foixà restam também quatro composições (no
Anexo), cujos recursos inovadores foram utilizados posteriormente por Petrarca (1304-1374) e pelos poetas italianos do
Dolce Still Nuovo, incluindo, entre outros, Dante Alighieri (1265-1321). A respeito desse movimento da segunda metade do século XIII em que ressurge a poética occitânica, nos diz Eric Auerbach (“Dante, poeta del mundo terrenal”, trad
Jorge SECA, Barcelona: Acantilado, 2008:51): “ El Stil Nuovo tiene la particularidad de que su insipiración religiosa no
es únicamente mística sino que es subjetivista en grado sumo. [...] Esta mentalidad, que recuerda a las corrientes místicas, neoplatonicas e averroistas, es como mínimo una fortísima sublimación de las doctrinas eclesiásticas, es algo autónomo que en todo caso puede hacerse un sitio en el seno de la Iglesia, pero que, no obstante, se encuentra ya en los límites de la heterodoxia. Y de hecho, algunos miembros de aquel círculo eran considerados librepensadores”. À época de
Foixà, muitos trovadores dispersos pela destruição das cortes occitânicas no Languedoc, mostravam-se veladamente
críticos ou abertamente contrários à ortodoxia da Igreja.
294
No censo do ano de 1370 o Castelo de Montagut consta como patrimonio do Monastério de San Pedro de Galligants
cuja história passada entrelaça-se em alguns momentos com o da Abadía de La Grassa de Llenuadoc, perto de Carcassonne no Languedoc.
295
Página disponibilizada por Miguel ALONSO in ://www.xtec.cat/~malons22/trobadors/index.htm
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“Gustavo Adolfo Bécquer dibujando”: olhar de Valeriano Bécquer, às costas do irmão
Expedición de Veruela, Universidade de Columbia, Nova York
Comporta-se como um intermediário do encontro. O texto justapõe imagens que os sentidos lhe
fornecem como realidade do objeto com outras, semelhantes a resíduos do objeto. Vinculadas ao
processo criativo de Becquer, essas impressões justapostas se expressam na formatação de ‘Creed
en Dios”, um “conte noir à sevillana” em prosa ritmada. Daí, talvez, a tensão que se percebe na escritura como se ela se processasse dentro e fora da sensibilidade de um único indivíduo.
Em “Creed en Dios”, publicado postumamente pelos amigos de Bécquer em ‘Rimas y Leyendas’
(1867), o poeta escreveu na apresentação
Yo fui el verdadero Teobaldo de Montagut,
barón de Fortcastell. Noble o villano,
señor o pechero, tú, cualquiera que seas,
que te detienes un instante al borde de mi sepultura,
cree en Dios, como yo he creído, y ruégale por mí.
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UM SANTO PORTUGUÊS
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Santo do mar e das minas, padroeiro dos coxos, dos epiléticos, protetor divino dos que sofrem de
males ligados aos membros inferiores e superiores, reumatismos, artrites, paralisias e também aleijados de nascença, Amaro é um santo cujas festas são celebradas com muita devoção. Atestam este
vigor e continuidade as inúmeras ermidas e capelinhas que existiram e existem no Portugal territorial, insular e ultramarino; assim como no norte e noroeste da Espanha; a persistência das lendas,
ditos e festas populares; muito presente na nomeação de acidentes geográficos, rios, lagos, ilhas etc
com mais de 50 topônimos em Portugal e também na região espanhola da Galícia; nos prenomes e
patronímicos das gentes; assim como na denominação de divisões administrativas - povoações, freguesias e concelhos ibéricos como Santo Amaro na provícia de Orense e a vila de Santo Amaro no
Concelho de Castrillón, nas Asturias.
Um santo português_ À diferença de São Mauro, discípulo de São Bento, o santo Amaro especificamente português não tem registro na Acta Santorum nem tem dia marcado no Calendário Litúrgico. Suas relíquias não pertencem a um corpo físico. Ele situa-se mais propriamente no cotidiano e
no coração do povo e na persistência das crenças. O fato de situar-se no cotidiano e na tradição já
indica a antiguidade do culto. Vislumbra-se desse modo o desenvolvimento da devoção a Santo
Amaro através de algumas linhas da formação do povo português, que são variadas e múltiplas,
diferenciando-se grandemente conforme a região.
As festas de Santo Amaro, em geral, podem ser caracterizadas como de “abertura” e “encerramento”. Com algumas exceções, os festejos são celebrados em Portugal no dia 15 de janeiro 296.
Na Ilha da Madeira, principalmente no Concelho de Santa Cruz, a festa de Santo Amaro está entre
as mais importantes do ano. A data, comemorada com um arraial típico, marca um ‘encerramento’,
o do interstício do Natal. "Pelo Santo Amaro varre-se o armário" diz o ditado. Caso haja sobra de
enfeites natalícios, a tradição manda que se desfaça; e consuma-se o quanto antes os últimos manjares da ceia.
Já na Paróquia de Camposancos no baixo Minho (município de Guarda), fronteira entre Espanha e
Portugal, a festa é celebrada no segundo domingo de janeiro e marca a “abertura” de um novo ciclo
de romarias: a primeira do ano homenageia "Sanamaro". O dia pede comidas específicas e a ‘paleta’
do porco, morto anteriormente, é sempre reservada para cozimento em caldo neste dia especial.
Serve-se também o "bolo", uma espécie de embutido fatiado, feito do estômago do porco recheado
de ovo, pão, chouriço, cozido no caldo. Há procissão, missa solene e sermão. Antes e depois da
missa tem sempre gente pedindo pela "medida", uma simpatia oficiada pelas devotas do santo, advogado contra os reumatismos. O ritual é realizado dentro e fora da igreja. Para tanto usa-se um fio
encerado, a ‘candeia’, cujo preparo assim como todo o resto é transmitido de boca, das iniciadas às
iniciantes. Com a candeia preparada mede-se a altura e diferentes partes do corpo do pedinte: cabeça, braços, tronco, pernas, mãos; cortando-se em seguida a quantidade de fio utilizada. No interior
da igreja o fio é queimado num cepo cortado do tronco de um sobreiro, ‘alcornoque’ diz-se, com
uns 20 centímetros de altura, escavado no centro; concavidade essa recoberta por metal da qual sai
uma lingueta de ferro, em forma de “L” invertido para sustentação dos fios: as cinzas da ardência
296
Na Freguesia de Ponta Delgada na Ilha das Flores, a menor do arquipélago açoriano, por exemplo, celebra-se uma
festa no primeiro domingo de setembro, comemorando a vontade férrea e o talento de evasão de St Amaro para afirmar
seu lugar sagrado. Na tradição, cresce a história da estatueta do santo. Consta que a imagem apareceu há mais de 300
anos no redemoinho além da Baixa Rasa, no sítio do Vento, proveniente talvez de algum naufrágio. Fiéis atentos levaram a imagem do santinho para a igreja paroquial; lida que lida e mais se tenta, e se trancam as portas, ele fogiu; reapareceu depois, no lugar da primeira escolha. Rendido ao santo, o povo construiu uma capela no local marcado.
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vão caindo, devagarzinho, no interior do alcornoque. O ritual termina com uma esmola a Sanamaro,
antes voluntária, hoje paga, com direito a repetição gratuita se o sofrente necessitar de alívio imediato em alguma parte específica.
O ‘alcornoque’, a árvore usada no ritual, é da linhagem dos carvalhos, com boa sombra e longuíssima memória na Península. Sabe-se que a casca teve grande procura na Europa medieval, não só
porque dela se extraia cortiça e tanino para os curtumes, mas também porque era remédio afamado
contra a tísica - consta que o melhor, senão o único e verdadeiro, vinha da Iberia297. Deste ‘alcornoque’ nos fala Don Sebastian de Covarrubias 298: diz que a palavra vem corrompida do árabe, ‘dorque’, com o significado de ‘desnudo ou mal vestido’. Em outra circunstancia, o ‘alcornoque’ surge
na boca de Don Quixote como reminiscência de uma Idade do Ouro: diante de humildes pastores,
obriga um relutante Sancho sentar-se ao seu lado e, a memória (mais que o estômago) saciada com
assado de cabrito, vinho e bolotas, brinda os anfitriãos estupefatos com um discurso daquela época,
quando
Los valientes alcornoques despedían de sí, sin otro artificio que el de su cortesía, sus anchas y livianas
cortezas, con que se comenzaron a cubrir las casas sobre rústicas estacas, sustentadas no más que para
defensa de las inclemencias del cielo (Cervantes I,11)
Festividades de encerramento e abertura nesse período do ano, como a de Santo Amaro, são manifestações cultuais que resistem desde a Antiguidade, simbolizando o início da vitória da luz sobre a
escuridão299 na transição entre os dois períodos do solstício de inverno, ocasião em que o sol tem o
seu ponto mais baixo no horizonte do hemisfério norte - o que ocorre entre os dias 21 e 22 de dezembro, devido à inclinação do eixo terrestre - e se prolonga a partir do dia 25, com os primeiros
minutos que o sol ganha da noite, até o fim da primeira semana de janeiro, ocasião em que o astro,
por assim dizer, renasce300 .
Na Terra, inicia-se a partir daí um segundo ciclo de festejos que na Idade Média prolongavam-se
até as mascaradas do Carnaval no fim do inverno, prenúncio da Primavera e início da Quaresma. No
hemisfério norte, nos diz Roger Caillois (1950:148), essa era tradicionalmente a estação “das danças em que os jovens encarnavam os espíritos para obter os dons que eles dispensavam e, identificados com eles, apropriar-se dos poderes que eles possuiam”.
297
apud The Pharmaceutical journal & Transactions, by the Pharmaceutical Society of Great Britain,1846-7; London:
Mclachlan & Stewart, Volume 6; p 362
298
in Diccionario de la Lengua Castellana compuesto por la Real Academia Española, 1726-39
299
Em período arcaico personifica-se no deus Mitra do panteão proto-indo-iraniano; que no RigVeda assume a identidade de Mitrá-; que no Avesta persa é mencionado como Mithra e depois no persa médio como Mihr/Mehr; que na Grécia é identificado com o deus Helio, de quem Homero nos diz simplesmente Titã ou Hyperion e Hesíodo identifica
como ‘filho dos titãs Hyperion e Theia’, irmão das deusas Selene e Eos (Teogonia 371); que entre os romanos é a divindade suprema na religião mistérica do mitraismo, popular entre os soldados do império; que é celebrado em Roma nas
festividades pagãs do ‘Sol Invictus’; que no mundo cristão compreende as celebrações do nascimento de Cristo, São
João Evangelista, Ano Novo ou do Menino Jesus, dos Reis ou Epifania e ainda, no dia 26, a de Santo Estêvão - o primeiro mártir do cristianismo, listado entre os setenta primeiros diáconos da Igreja nascente por São Lucas (10:1-24).
Sto Estevão foi condenado por blasfemia pelos descrentes e morto em apedrejamento (Atos,8).
300
No céu, o fenômeno é sinalizado pelo alinhamento da estrela Sirius com as três estrelas centrais da constelação de
Orion, chamadas Três Marias (Brasil) e Três Reis Magos (Portugal) - um ciclo de aproximadamente 12 dias.
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Tais celebrações remetem a antiquíssimos ritos de fecundidade301 cuja relação com o sagrado foi
comentada por Mircea Eliade (1959:261). Intransigentemente proibidos no início da cristianização
da Península pelo seu parentesco com os rituais dionisíacos e “inversões da ordem social e cósmica”, nos diz António Mourinho (2000:123), os festejos pagãos foram posteriormente acomodados
na convivência pacífica com as festas e rituais cristãos de inverno, que decorrem entre o Natal e o
Carnaval. As festividades de Santo Amaro em Portugal incluem-se nesse ciclo, encerrando a primeira fase e comemorando a chegada da segunda.
O período também tem significado na tradição oral dos ‘Amazigh ou Imazighen’ (homens livres),
os povos berberes do norte da África que habitaram o Magreb desde tempos muito antigos: os laços
históricos e sociais que ligam-nos aos povos ibericos são antigos e profundos - é possível vislumbrar raízes desse contato nas chamadas regiões ‘saloias’ na Espanha e em Portugal, ao norte e ao sul
do Tejo, nos arredores de Lisboa, Sintra, Mancha, Estremadura, e mais além, nas montanhas de
Leon, Galicia e Asturias302.
Na evolução das comunidades íbero-bérbere-moçárabes, cristãs e saloias “cujo sedentarismo não
perdeu nunca o estigma da psicologia nômade, trabalhando a pequena propriedade em múltiplas
hortas” nota José Manuel Fernandes303, sobressai o vínculo com a terra na “busca da produção de
legumes e frutas, que são símbolo de uma nunca alcançada frescura edênica”.
Nas tradições que sobrevivem entre os bérberes dispersos no Magreb, há duas que nos interessam
mais de perto: a persistência do chamado Calendário Agrícola que, à semelhança do Juliano, estabelece o primeiro dia do ano entre 12 e 15 de Janeiro - período em que se comemora Santo Amaro na
maior parte das regiões ibéricas nas quais a tradição nos fala de migrações pastoris do Magreb; e o
significado específico desta data, de grande importância ainda hoje entre os bérberes. Trata-se da
ocasião em que a coletividade percebe algo do seu futuro pelas “portas” que o solstício de inverno
abre no tempo, “tibbura useggwas” dizem os ancestrais. Nesse entreabrir vislumbra-se a memória
tecida pelos mitos e pelas instituições sócio-político-culturais que permitem à comunidade reconhecer-se como tal. As confraternizações que têm lugar na data confirmam estas tradições no futuro,
através dos ritos propiciatórios para um novo ano: o corte de cabelo das crianças; o sacrifício de um
animal de pena (galo ou galinha), eventualmente uma cabra ou bode - cujas carnes são servidas junto com as comidas especiais deste dia (cuscus de sete verduras por exemplo).
Os povos do litoral também tem uma relação particular com Santo Amaro que se traduz no entremeio das partidas e chegadas. Num estudo que realizou da religiosidade popular na região da Es301
A ‘simpatia’ de Camposancos ecoa esses ritos através dos objetos rituais e pela revitalização que julga propiciar aos
membros afetados. Moisés Espírito Santo (1989:152), por exemplo, menciona uma pedra encontrada naquele mesmo
municipio de Guarda (São Domingos, freguesia de Banespera), “espécie de banco cujo topo comporta um buraco central proeminente com um sulco em torno” usado por mulheres em antigos rituais de fecundação e, talvez, para preparar
a noiva “quando dos encontros festivos para o primeiro contato” (ibid). Na região do Minho também há referencias a
estas pedras que “tornavam as mulheres fecundas” esclarece Espirito Santo (ibid pp 152 e 157), citando a interpretação
que José Leite de Vasconcelos (1858-1941) dá à inscrição “CAEPO FIRMU SABINAE LUSL ou USL” que consta de
uma das pedras. Segundo Vasconcelos (apud Espírito Santo, ibid p 152), “a palavra caepus pode ser latina, da língua
comum popular, mera masculinização de caepa, cebola” correspondente a Caepus, uma divindade protetora das hortas e
do bom exito das sementeiras.
302
Embora possuam uma lingua original, simbolos e ritos em comum, os amazigh atualmente dispersos em regiões da
Argélia, Tunisia, Libia, Marrocos e Mauritania, não constituem propriamente um povo, uma religião e tampouco existe
uma língua escrita berbere: de modo geral, assimilaram a escrita e a religião dos sucessivos conquistadores - fenicios,
gregos, romanos e árabes, nesta ordem - mantendo a fala berbere em casa e em familia.
303
in FERNANDES, José Manuel & JANEIRO, Maria de Lurdes (1991) Arquitectura Vernácula da Região Saloia, Lisboa: Ministério da Educação/Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, pg 28
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tremadura portuguesa, Moisés Espirito Santo nos diz (2004: 256) que os moradores dessas regiões
identificam o “seu” Santo Amaro como “o santo que venceu os perigos do mar, um salva-náufragos”. Essa tradição vem de longe. Citando um estudo de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Espírito
Santo lembra que “o povo ibérico da Idade Média dizia que a língua dos antepassados fora o caldaico, nome por que são também conhecidos os idiomas acadiano e ugarítico” (1989: 392).
Sabe-se que na fachada atlantica da Península formou-se desde a pré-história uma importante
zona de navegação marítima, visualizável num arco que vai dos rios Tejo ao Souss no Marrocos incluindo os estreitos de Gibraltar. Para o comércio desta zona com outro polo existente mais ao norte
- um arco formado pelos rios Shannon na Irlanda e Loire na Bretanha-Normandia, no qual se inclui
o canal da Mancha, nos diz Barry Cunliffe (2001:34) - as costas de ria da Galícia constituiram um
indispensável ponto de apoio e ancoragem. De interesse adicional para os marinheiros fenícios que
primeiro se aventuraram na travessia, Cunliffe menciona ainda (ibid) as reservas minerais da região
galaica, onde se verificou uma extensiva troca de bronzes e estanhos a partir do primeiro milenio aC
(ibid, p 339). A língua dos fenicios era semítica, escrita inicialmente em caracteres cuneiformes:
falavam um idioma do subgrupo cananita, parecida com o hebraico, que se dispersou em diversos
dialetos entre os quais o caldaico, o ugarítico e o acadiano.
Considera-se que elementos da língua e da cultura das civilizações do Oriente (toda a Mesopotamia, Egito e Creta) chegaram à Peninsula Ibérica através dos fenícios, antes dos gregos. A partir da
costa da África, pontilhada de entrepostos na região yamazighi, os fenicios vão fundar entrepostos
na costa atlântica da Península e na mediterrânea. De início, evitaram contato maior com os nativos;
mantendo consigo os deuses que trouxeram de casa, Baal, Melqarth, Eshmun, Astarté (Ishtar) e seus
mitos, entre os quais a versão babilônica do dilúvio que, em acadiano diz-se “amaru”304 - um nome
que evoca o do santo do mar, Amaro.
Depois, os deuses e as culturas se entrelaçaram. No recorte mediterrâneo sob influencia fenícia
sobressaem duas cidades: Huelva e Gadiz (Cádiz). Na costa atlantica, Setubal em Portugal, e no
vale do Ebro, Tudela. Na Galícia não há noticias de povoamento sistemático. Mas há marcas fortes
de um culto precoce a Santo Amaro, ligado às pedras, grutas, lugares altos.
Entre as lendas que circulam na Galícia à volta dos grandes blocos de granito que avançam rumo
ao mar e no leito de rios como o Das Pedras, algumas mencionam ‘Sanamaro’. Barcas de Pedra,
diz-se destes blocos de granito, e consta que o santo, tido como fundador do eremitério de Misarela
(Paróquia de San Isidro de Posmarcos, Concelho de Pobra do Caramiñal), certo dia aportou naquele
lugar, a poucos metros da confluência com o rio Barbanza, fugindo da perseguição dos mouros. A
providência veio em seu auxílio e coalhou o leito do rio com centenas de rochedos. Quando os
mouros se aproximaram foram lançados num poço sem fundo do qual, segundo contam, saiam às
vezes mas agora não saem mais. Tal história, certamente uma re-significação de época mais recente,
remete ao culto das pedras comum a todo o Megalítico.
Uma variedade desses megalitos conhecidos em Portugal por “antas” e “mamoas” provavelmente eram santuários na origem e foram continuadamente re-significados por diferentes lógicas de implantação no espaço seguindo a tendencia dos lugares marcados pelo sagrado prolongarem-se como
tal na memória das comunidades. Os santuários populares tradicionais geralmente decalcam-se sobre outros precedentes.
304
Em “Cinco Mil Anos de Cultura a Oeste” (op cit, 2004), Moisés Espírito Santo analisa detalhadamente as semelhanças entre a “Epopeia de Gilgamesh”, o texto babilonico que traz um relato do diluvio, e o “Conto de Amaro”, que considera uma reminiscencia do primeiro. Para maior detalhamento remete-se à obra, às páginas 258-277
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Por exemplo, a capelinha dedicada a Sto Amaro na Freguesia de Quiaios, na Serra da Boa Viagem
(Concelho de Figueira da Foz, distrito de Coimbra) situa-se sobre um dolmen ao qual recobre; local
desde há muito procurado para abrigo e prece nos dias de trovão e raio forte; devoção dos mineiros
das primeiras minas e dos pescadores de alto mar. No primeiro domingo depois de 15 de janeiro,
acontece ali uma romaria, festa mencionada com procissão em 1721. Do ritual, faz parte uma surra
no púlpito – um rolo cilíndrico sobre uma coluna datada de 1636 e atualmente no Museu Municipal
- surra esta dada por moças com medo de não casar. Consta também que em Quiaios, ‘há coisa de
uns 300 anos’, certos mancebos da freguesia de Buarcas tentaram roubar a escultura, mas foram
impedidos pelo povo. O mal intentado virou contra o malfeitor: o mancebo que carregou a imagem,
ficou ‘aleijado das duas mãos’; o filho que veio a ter nasceu ‘aleijado de ambos os pés’.
O culto das rochas e escarpas de montanha remete na Península à uma época anterior à ocupação
romana e indica antiquíssimos espaços sagrados, anteriores à influencia céltica mas celticizados desigualmente na sequência pelo contato com ondas migratórias de matriz indo-européia, nunca de
uma vez só mas revezadamente nos diz J.M. Branco Freire (2009:158), destes povos que a partir de
1.200 aC vieram juntar-se ao substrato existente formado por etnicidades próprias e influxos populacionais variados, ora temporários, ora definitivos, provenientes tanto da fachada atlântica quanto
do interior europeu e dos entrepostos comerciais em torno do Mediterrâneo.
Atrelados ao processo de aculturação romana tais lugares foram posteriormente ressacralizados em
época cristã e associados aos monumentos da nova fé - marcos funerários, capelas, igrejas. Tal é o
caso das cinco sepulturas antropomórficas escavadas nas escarpas de Donões (Montalegre), grandes
rochedos que possuem cavidades de diferentes tamanhos especialmente na sua parte norte, correspondente à área de influência céltica, nas proximidades do castro do mesmo nome e junto à uma
capelinha dedicada a Santo Amaro.
Entrelaçamentos_A cidade de Burgos, na Espanha, fica a meio caminho de quem vem de Paris e
vai a Compostela e vice-versa a pé, no trecho em que a leste os montes cobertos de tomilho e salvia
da Serra de Atapuerca conformam o Corredor da Bureba, histórica e pré-histórica passagem de gentes e animais, entre o interior da Península e o resto da Europa unindo o vale do Ebro, vertente mediterrânea, ao vale do Douro, vertente atlântica; rota dos passos pirenaicos em direção oeste (Galícia
e Portugal) e sul (meseta castelhana, Andaluzia, Estremadura, sul de Portugal e África); uma das
principais estradas romanas e, na Idade Média, parador obrigatório no caminho francês de Santiago.
Segundo um relato atribuido ao dominicano Alonso de Venero (1488-1545) na “Historia de la insigne ciudad de Burgos”, o século XIII vê passar ali um nobre e rico peregrino, romeiro francês
vindo de Compostela, o qual permanece na cidade e distribui sua fortuna aos pobres; e mostra tanta
piedade no trato dos enfermos que é “honrado como bem-aventurado no Hospital del Rey e a este
romeiro chamam San Amaro”: os peregrinos perpetuam sua memória em uma ermida, citada pelo
também dominicano Juan de Marieta na sua Historia Eclesiástica, capela esta reconstruida em 1614
por ordem de frei Pedro de Lazcano com uma inscrição em pedra nesta data informando que o culto
havia sido autorizado pela Igreja.
Pouco mais se sabe daquele mestre peregrino, além da situação miraculosa que envolve a sua
morte: contam que o momento do trespasse foi anunciado por uma chuva de estrelas para quem sonhasse o céu naquelas noites em que muitos permaneciam em vigília por amor a Deus e medo aos
outros. Consta também que essa história foi representada pelo pintor Juan del Valle (século XVII),
frade do convento de San Pablo de Burgos, numa das cenas de santos da Ordem de São Domingos
que adornaram o claustro do mosteiro.
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O agostiniano Enrique Flórez 305 conta que esse santo Amaro foi sepultado “como os demais peregrinos que morrem no hospital, tendo sido colocado em meio ao campo santo”, acrescentando que
“a crença comum é que foi natural de França; pelo que se acredita que o nome Amaro é derivado de
Mauro, famoso santo daquela nação” - com o que concorda o beneditino Antonio Yepes em crônica
publicada em 1609. “Na Espanha”, escreve, “há muita devoção pelo glorioso confessor São Mauro;
mas muitos honram o que não conhecem. Veneram a São Mauro com o título disfarçado de San
Amaro e com esta vocação há muitas igrejas e ermidas em Portugal e Galícia e fazem a festa de este
San Amaro em 15 de janeiro e com este nome o Senhor faz muitas maravilhas por ele…”306.
Fidel Fita 307 é de outro parecer. “Não me convenço”, diz, “que devemos identificar Amaro com
Mauro como deixa crer o padre Florez e pretende o padre Yepes”. Antes, prefere um paralelo com
Ademarus, Adémar ou Aymar, nome do erudito monje limosino autor de uma historia de França que
termina em 1028 (Migne, Patrol. lat., tomo CXLI apud Fita, 1827); ou do bispo de Puy-en-Velay,
Aymar du Monteil, a quem o papa Urbano II (1042-1099) delegou autoridade para dirigir a primeira
cruzada; ou, ainda, Amaury em francês e Manrique em castelhano. “Tampouco seria estranho”,
conclui (1897:516), “se o culto de St Omer (Audomarus, 600-670) cruzando as ondas ou seguindo a
costa do mar Cantábrico, viesse esparramar-se em Portugal e na Galicia desde a Bretanha francesa”.
São Bento pede a São Mauro que resgate São Plácido (Fra Filippo Lippi, ca.1445):
na imagem, o hábito dos monges é branco e não negro como o dos beneditinos
Relíquias_São Mauro, a quem os padres Florez e Yepes se referem, é um monge beneditino que
viveu no século VI, filho do romano Equitius entregue aos 12 anos pelo pai a Bento de Nursia para
305
FLOREZ, Enrique P.M. (1972) "Vida del peregrino San Amaro" in España Sagrada, Tomo XXVII, Madrid, 2ª. Ed.
306
Antonio de YEPES, Coranica general de la Orden de San Benito- Irache, 1609-1621 in J. Pérez de URBEL, Crónica general de la Orden de San Benito ,Madrid, 1959-60. Biblioteca de autores españoles, vols. 123-5
307
Fidel FITA (1897) Inscripciones Visigóticas / Estudios Hagiológicos - El Almendral. Lápida de San Mauro, in Boletin de la
Real Academia de la Historia, Tomo XXX, pp 506-516 OnLine:
://www.cervantesvirtual.com/s3/BVMC_OBRAS/011/189/308/2b2/11d/fac/c70/021/85c/e60/64/mimes/01118930-82b211df-acc7-002185ce6064.pdf
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que o santo o criasse em Subiaco; de quem ele se tornou um dos discípulos prediletos. O papa beneditino são Gregório Magno (Gregório 1995; cap 7) ao nos contar do jovem Mauro, elogia os dons
que ele manifesta desde cedo, andar nas águas como se terra fôssem; assim salvou o jovem Placido,
seu companheiro e também futuro santo, de morte certa por afogamento; alertado por um apelo que
são Bento lhe enviara em pensamento (Jacobus, 1843:53). Nesta situação é pintado pelo renascentista florentino Fra Filippo Lippi (ca 1406-1469).
O dominicano Jacopo da Varazze Fazio (ca 1228-1298), futuro bispo de Gênova também chamado Jacobus, menciona Mauro mas não Amaro na Legenda Aurea (Legenda Sanctorum), obra que ele
começa nos anos 1260 e continua até pouco antes de morrer. Escreve:
No mesmo ano em que morreu, São Bento envia são Mauro e outros quatro companheiros à França, a
saber Fusciniano, Simpliciano, Antoniano e Constantino, a rogo de Varicam, bispo de Meaux [Le
Mans], para fundar uma abadia onde o dito bispo indicasse, e deu a são Mauro um livro em que havia
escrito a Regra, de mão própria… (1931, vol 3, Here beginneth the Life of S. Maur)
No relato do caminho de São Mauro da Itália à França consta que ele fundou o primeiro mosteiro
beneditino na Gália, em Glanfeuil, que conservou as suas relíquias; mosteiro esse arruinado na segunda metade do século IX pelos normandos que atravessaram a ferro e fogo a região do Loire ao
Maine, tendo à frente o afamado pirata Hastings. Consta também que os monges fugiram, transportando as relíquias de São Mauro para a região de Saint-Pierre-des-Fossés, onde fundaram nova abadia numa curva do rio Marne, em local que possivelmente havia sediado um castrum308 e oppidum309. É dessa época a “Vita” de São Mauro, possível fonte do relato de Jacopo da Varazze310.
No século XII, em função dos milagres atribuidos às relíquias de São Mauro, o nome da abadia
foi alterado para Saint-Maur-des-Fossés e se transformou em centro de peregrinação importante,
muito procurado na França por doentes de reumatismo e gota, coxos e epiléticos.
A posse de relíquias, o corpo ou partes do corpo físico dos santos e objetos que pertenceram a
eles, acrescentava poder simbólico ao lugar que as tivesse, atraiam fiéis, produziam milagres, prestígio e foram disputadas na esteira dos benefícios trazidos pelas multidões que se deslocavam para
onde elas estivessem, em busca de proximidade com esses pedacinhos visíveis do paraiso.
Na Iberia, com detalhes intrigantes, surge assim versão alternativa para o destino das relíquias de
São Mauro ou, pelo menos, parte delas: exatamente 127 ossos grandes e três ou quatro bem miudinhos, contados quando foi erguida uma capela maior para abrigar os despojos, supostamente trazidos da França para a Espanha por discípulos do santo em fuga de Glanfeuil e depositados na antiga
vila de Almendral, próxima da cidade de Badajoz na Estremadura espanhola. Mais precisamente na
308
Castrum (pl: castra), era um termo usado pelos romanos para designar os acampamentos fortificados das legiões do
Império na Galia, geralmente rodeados por muralhas e em lugares altos anteriormente ocupados pelos celtas. A noroeste
da Peninsula Ibérica (aproximadamente o norte de Portugal, Galicia e Asturias), onde a influencia das migrações celtas
vindas da Europa Central sobre as populações nativas é sensível a partir do período final da Idade do Bronze ( sec IX
aC), desenvolveu-se uma cultura típica, conhecida por Cultura Castreja, caracterizada pela presença de povoações fortificadas em lugares altos, que vai se modificando com a chegada dos romanos do século II aC. em diante até o desaparecimento por volta do século IV dC
309
Um oppidum (pl: oppida) era o termo genérico em latim para a principal povoação em qualquer área administrativa
do Império Romano, geralmente em lugar elevado e de diferentes amplitudes, cujas defesas naturais eram reforçadas
para defender campos de cultivo.
310
A Vita foi escrita pelo abade Odo (Eudes) de Glanfeuil, que atribui a narrativa a outra anterior, escrita por Faustus de
Montecassino. Entretanto, nem São Gregório Magno nem Gregorio de Tours mencionam essa importante viagem à
França. Hoje a maioria dos especialistas considera provável que a versão tenha sido forjada pelo próprio Odo. Outra
obra do autor, “Miracula S. Mauri, sive restauratio monasterii Glannafoliensis", tem algum valor histórico, i.e., nos fala
dos fatos que comprovadamente ocorreram
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capelinha de Santa Madalena. Em 1609 o Padre Yepes faz um relato da história que corria naquela
região estremenha e era tida por verdade, conforme lhe foi transmitido por gente de sua confiança
(apud Fita,1897:510)
Los discípulos de San Mauro enterraron el santo cuerpo en el cementerio de la iglesia de la Madalena,
que á la sazón era pequeña; y después, por honra de San Mauro, la hicieron grande y mudaron la traza
en la forma que agora tiene, y en lugar de cementerio se hizo un oratorio dedicado al nombre de este
santo y llamado la capilla de Mauro, en donde estuvieron las reliquias muchos años debajo del altar, y
encima estaba otro retablo, pintados también en él sus milagros . Y aunque la devoción al santo siempre fué mucha, no estaban las reliquias con el ornato con que después las acomodaron; porque se hizo
un nuevo sepulcro en un arco que está entre la capilla mayor y la de San Mauro, y en ambos lugares se
leían estas palabras: Hic requiescit corpus Beati Mauri Abbatis
Àquela época a história já constava do Flos Sanctorum de Alonso de Villegas (1533-1603) capelão moçárabe da capela idem da Santa Igreja de Toledo, publicado em Toledo em 1591311 onde se lê
que Santo Amaro foi abade em Glanfeuil por 41 anos. Ao morrer ...
... Tinha 72 [anos]. Foi diácono. Sepultaram-no seus monges com muito sentimento na mesma igreja
de San Martin [em Glanfeuil] na parte direita do altar. Depois diz-se que foi trasladado para a Espanha e que está numa povoação chamada Almendral, a cinco leguas de Badajoz (op cit, p 119)
... fato confirmado em termos por Juan de Marieta na quarta parte da sua “Historia Eclesiástica de
los Santos de España”. Ele nos diz ter se informado com pessoas do lugar; que não souberam dizerlhe se relíquias tão honradas eram realmente do discípulo de São Bento ou de “outro santo distinto
que se chamasse pelo mesmo nome e fosse espanhol” (apud Fita, 1897:513).
Nenhum desses depoimentos é conclusivo. Além dos documentos escritos existe a inscrição em
pedra mencionando um certo Mauro - (*) HIC REQVIESCIT CORPVS BCTI MAVRI - tomada por
lápide do santo discípulo de São Bento ou seu homônimo no local onde repousa um corpo no Almendral. Fidel Fita concluiu, a partir de estudos comparativos do estilo gramatical e da decoração
emblemática da pedra - desenho de uma pomba colocada no início da inscrição - que “a cópia é
moderna, o texto antiquíssimo” - o que nos permite pensar apenas numa área de culto Amaro/Mauro
ativo desde épocas remotas, eventualmente visigóticas, relacionando a devoção latente à um nome
sagrado sem corpo físico, à outro com concretude definida pelo nome do discípulo querido de um
fundador de Ordem religiosa. A esses corpos foi dada sepultura, lado a lado. A singularidade dos
objetos não impediu a devoção popular, à semelhança do pensamento mitológico descrito por
Lotman e Uspenski (1981:133), de os considerar como “um só objetos”.
Peregrinações _ São Mauro (século VI) também não era estranho à fama de peregrino. Consta 312
que ao passar por Aguanum no atual cantão suiço do Valais, no seu trajeto real ou ficticio da Itália à
França, São Mauro devolveu a visão de um cego que há 11 anos esmolava na igreja onde estavam
enterrados os Santos Mártires, um dos mais importantes centros de peregrinação da alta Idade Média. A tradição dos Santos Mártires remete a soldados de tez escura, vindos de Tebas no Egito, alis-
311
Flos sanctorum: Historia general de la vida y hechos de Jesu-Christo... Y de los Santos’, Barcelona: Prenta de Isidro
Aguas Vivas, ed 1794, pg 117 e segts
312
Legenda Aurea, Caxton, 1483,III
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tados entre as fileiras do Exército Romano no centro da Europa (século IV) 313 . Dizia-se que essa
Legião Tebana, formada por cristãos coptas, recusou cumprir ordens de sacrifício ritual aos deuses
romanos. O imperador /general ordenou que fossem dizimados até o último homem, inclusive o
chefe deles, venerado como São Mauricio314.
Quatro séculos depois, às vésperas do temido milênio, alguns restos de São Mauricio, de seus
companheiros e porções de outros santos, foram transportados para a catedral gótica de Magdeburg
por ordem do imperador Oto I ( 912-973), filho de Henrique I da Germania, dito o Passarinheiro.
1)
2)
3)
São Mauricio, valioso auxílio em caso de gota e cãimbras, é patrono de diversas cidades e associações profissionais tintureiros, alfaiates, ferreiros, soldados - na Suiça, no Piemonte, na França e na Alemanha.
1) Estátua de São Mauricio (sec XIII) na Catedral de Magdeburg às margens do rio Elba, a mais antiga construção
gótica da Alemanha. 2) Brasão da cidade alemã de Coburg, da qual é patrono.
3) Algumas figurações apresentam-no como um cavaleiro em armadura (St Maurice equestre, relevo na Abadia de
Saint-Maurice d'Agaune, Suiça, sec XII)
313
A tradição se baseia numa carta de Euquério, bispo de Lyon (c. 434-450) ao amigo Salvius. Nessa carta, ele reconta a
história de uma “legio militum, qui Thebaei appellabantur” que teria sido convocada pelo co-imperador Maximiano (ca.
250-310) para enfrentar revoltosos na região dos Alpes durante as crises do terceiro século. David WOODS (The Origin
of the Legend of Maurice and the Theban Legion," Journal of Ecclesiastical History 45, July 1994: 385-395) nos diz
que realmente houve uma unidade militar com esse nome nas listas militares de um documento do século IV (Notitia
Dignitatum), estacionada ao norte da Italia e eventualmente deslocada para lutar nos Alpes. Para aprofundamento da
questão remete-se a Denis VAN BERCHEM (1968) Le martyre de la légion Thébaine: essai sur la formation d'une legende, Bale:Rheinhardt e Louis DUPRAZ (1961) Les Passions de S. Maurice d'Agaune, Fribourg: Ed Universitaires.
314
Etimologicamente o nome Mauritius foi, como Mauro, associado à tez morena e à cor escura. A tradução inglesa da
Legenda Aurea (William Caxton, 1483, volume 5, Vita S. Maurice) acrescentou no século XV outros significados aos
que lhe foram atribuidos por Isidoro: entre eles o composto de amarus, amargo, e cis, odor enjoativo, uma eventual referência ao bulbo da Iris, orris, conhecida no Oriente desde a Antiguidade por suas propriedades medicinais.
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Henrique I Passarinheiro da Saxonia, caçador, falcoeiro, hábil construtor de armadilhas para aves
de migração315 havia sido indicado em 918 por Conrado dito o Franco316 que acreditava ser ele, entre todos, o mais capacitado para manter as alianças da incipiente nação germânica, um aglomerado
de gentes quase sempre em conflito, como de resto toda a Europa. Nesse mosaico, foi o filho dele,
Oto I, quem se fez coroar como o primeiro imperador do Sacro Império Romano-Germânico com o
apoio da poderosa igreja local e as bençãos do papa.
À diferença de outras casas reais, o fundador da Dinastia Otoniana (919-1024), não possuia nem
antecedentes régios nem santos próprios reluzindo na memória - o que de certo modo diminuia-o
entre os pares e gerava insegurança no povo. Numa época que pensava viver o último dos Quatro
Impérios profetizados por Daniel no Velho Testamento, a nobreza das casas reais era medido não só
pelo poder em terras, súditos e riquezas mas também pelo parentesco com os santos e, através deles,
com Cristo aguardado em Segunda Vinda. Para mostrar proximidade e pertença à linhagem sagrada,
as casas nobres costumavam colecionar relicários com santos patronos e guardar cuidadosamente os
registros de “santos de família”, cuja quantidade e frequência acrescentava prestígio aos títulos e a
esperança que deles pudesse vir, a qualquer momento, o Salvador317 .
Otonianos: Genealogia (rei Henrique I e rainha Matilde no círculo duplo in Cronica de S. Pantaleão, séc. XII, Herzog
August Bibliothek, Wolfenbüttel, Cod. Guelf. 74.3);
Henrique I com um Falcão (Fragmento da Saga de Regensburg, século XIII, recuperada pelo monge cartuxo Jeremias
Grienewaldt em ca 1611 (Ratisbona oder Summarische Beschreibung der Uhralten Nahmhafften Statt Regensburg, I.8);
Ilustração de Hermann Vogel, 1900: nobres que vieram oferecer a Henrique da Saxonia a Coroa dos Reinos Germânicos encontraram-no preparando armadilhas para aves.
315
No século XIX, a figura de Henrique I, o Passarinheiro (Auceps em latim, Finkler ou Vogler em alemão e Fowler em
ingles) era bem conhecida em baladas populares nos países de tradição germânica. Posteriormente, a propaganda nazista apresentará Henrique I como o fundador da nação germânica, enfrentando tanto os Francos da fronteira latina ocidental quanto as tribos eslavas do Norte e as que vinham em ondas do Oriente. Há indicações de que o III Reich e, principalmente Heinrich Himmler, comandante das SS, reconheceram o monarca medieval como precursor da política expansionista alemã Drang nach Osten (Marcha irresistível para o Leste), termo usado para explicar a necessidade da Alemanha obter territórios no Leste europeu e a política expansionista da Prússia e da Austria na Polonia e nos Bálcãs (apud
FRISCHAUER, Willi (1953) Himmler, the Evil Genius of the Third Reich. London: Odhams: pp 85-88)
316
Esse rei, justamente o primeiro da Alemanha embora não usasse o título (rex Teutonicorum), era duque da Francônia
(França oriental), embrião do Reino germânico. Havia sido eleito em 911 pelos chefes das tribos germânicas - uma colagem irregular de grupos independentes e heterogêneos - para representá-las junto ao Sagrado Império Romano, na
qualidade de descendente de Carlos Magno.
317
Na base dessa crença está a noção de sangue real de Cristo. A idéia era bastante difundida entre o clero do século X,
de cujo ambiente saiu a maioria dos preceptores e conselheiros de reis e principes, aos quais aconselhavam a imitação
do exemplo de Cristo, nascido em manjedoura embora em suas veias corresse o sangue nobre da Casa de Davi.
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A linhagem de Oto era outra, mais próxima da idéia de “estrangeiro” ou “bárbaro”. os povos nômades, cujos movimentos migratórios se fizeram sentir no tempo e no espaço, durante séculos e até
milênios, não só em relação aos diversos grupos entre si, mas também dentro de um mesmo grupo,
clãs e até famílias a indefinição se reflete na língua; ou, como foi sugerido à batalha de Maurica que
afastou os hunos da Europa.
‘bárbaros’, os hunos, os burgúndios. O termo foi aplicado pelos romanos a exemplo dos gregos aos
que não falavam a sua língua e não partilhavam seu modelo de civilização baseada na cidade e na
escrita. Com a extensão do cristianismo surge uma segunda divisão, entre cristãos e pagãos.
. jardim Na época acreditava-se estar em curso o último dos Quatro Impérios profetizados por Daniel no Velho Testamento, antes da esperada Segunda Vinda de Cristo.
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Ibn Al-MukafaKalila e Dimna: ilustração de
manuscrito persa do século XV (Topkapi Palace Museum, Istambul, Turquia.
II.9.3_ O Monge e o Passarinho _ A narrativa é singela e apresenta-se em diversas versões
atribuidas a diversos personagens que, de alguma forma, são sempre os mesmos: trata das reflexões
de um bom abade a respeito do cansaço que a alma poderá sentir na glória da eternidade sem fim.
Sai do monastério, entra no bosque, perdido na sua meditação do gozo eterno. Senta-se junto a uma
fonte entre as árvores. No ramo de uma delas um passarinho entoa trinados dulcíssimos. O santo
escuta. Volta ao mosteiro e ninguém o reconhece. Haviam se passado 300 anos. Mas Deus confirma
as palavras do santo homem fazendo vir a avezinha que traz no bico o anel abacial; diante do acontecido, os monges dão fé à história do abade.
Vamos encontrá-la em pelo menos duas versões ibéricas anteriores à época das Cantigas alfonsinas: na história de San Virila de Leyre (ca. 870-950) e na história de San Ero de Armentera.
Ambas se localizam na região nortenha ocupada pelas terras do que se diz hoje Galícia.
Eventualmente podemos chamar tais narrativas de ‘apólogos’ - um conto e um reconto que
ilustra lições de sabedoria e ética através da relação de personagens de índole diversa - um diálogo
que se estabelece entre dois seres do mesmo reino vegetal ou animal e ainda entre espécies diferentes. No caso das histórias de Calila e Dimna, traduzidas na Hispania na época de Afonso X, os personagens são animais de mesma espécie.
Entre 1421 e 1423 alguns destes recontos foram compilados no Libro de los Exenplos por
A.B.C 318 por Clemente Sánchez de Vercial, vigário-geral de Valdeiras na província de León, norte
318
Libro de los Exemplos por A.B.C. in Ms. 432 da B. N. F. (Paris) e Ms. 1182 da B. N. de Madrid
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da Espanha: a maior coleção em língua ibérica medieval de historietas deste tipo e a única que apresenta-as em ordem alfabética. Mas ele não é o autor da história de San Virila, lembra-nos Julio
Ruiz de Oyaga (1953:316). Antes, está presente, através do paradoxo temporal que nos ocupa, naquela mesma Cantiga 103 que mencionamos há pouco.
A ‘Legenda Aurea’, de Jacobo de Voragine (1230-1290) traz outro apólogo idêntico “y éste y
Alfonso el Sabio son los autores más antiguos que la dicen” informa-nos Oyaga, incluindo a fama
futura da história do ‘Monge e o Passarinho’ nas asas das ‘Alphabeta Exemplorum’. Num percurso
rumo ao passado, remete-as à Disciplina Clericorum do escritor, teólogo e astronomo Moshe
Sephardi (ca 1062-1140) cujo nome de origem judaica oculta-se sob o de Pedro Alfonso, batizado
em 1106.
II.9.3.a_ San Virila_ São Virilia ou Virila tem existência histórica ou, ao menos,
existiu um abade com este nome no mosteiro de São Salvador do Leyre na Espanha, na região dos
antigos Reino de Navarra nos limites de Aragão ao qual a narrativa se agrega; mosteiro este que elrei Sancho Garcés III de Navarra y Pamplona (c. 990/92-1035) cognominado o Grande, chama “o
primeiro e antiquíssimo monastério Real de todo o reino” (RAH, 1832:570-571), panteão de reis e
de grande importância na Reconquista.
Documentando a existência de Virila existe uma carta pública do bispo de Pamplona, dom
Galindo, datada de 928; a respeito do encaminhamento de uma pendência entre duas vilas, a de Catamesas e a de Benasa; entre outras assinaturas traz a do abade don Virila de Leyre como testemunha; documento este lavrado na igreja de San Juan de Montray, próximo ao monastério 319.
A festa de San Virila é comemorada pelos monges de Leyre em 1 de Outubro mesma data
em que o é na vila de Tiermas, onde ele supostamente nasceu. Das imagens do santo, duas em pedra: uma, do século XI, está no tímpano da porta principal da igreja. Outra, do século XII, mostranos o santo em êxtase com dois passarinhos que o observam de dois pequenos capitéis: está conservada no museu arqueológico de Castelo de Xavier. Quanto à antiguidade do culto a São Virila, a
primeira referencia é do próprio Sancho III que em 1011 pede a proteção dos santos venerados em
Leyre - entre os quais “sancti Virile abbatis et confesoris” - na campanha para desalojar os infiéis
do vale de Funes, prometendo na ocasião “a décima parte do pão, do vinho e dos frutos das terras
conquistadas” em troca de sucesso320.
II.9.3.b_Complexo Filosófico e Teológico_ O paradoxo temporal refletido nos relatos de o ‘Monge e o Passarinho’ ocupa também um lugar na patrística e na escolástica. Este lugar
pode ser percebido como um complexo filosófico e teológico, um nódulo de discussões em torno da
questão do tempo; representado na transição da Antiguidade para a Idade Média por Boécio (Anicius Manlius Torquatus Severinus Boetius, ca 480-525), que mostra a diferença entre os modos de
conhecimento de Deus e dos homens a partir da distinção entre tempo (tempus) e eternidade (aeternitas); constituindo-se esta última em ‘puro presente’ e no ‘agora divino’; definindo-se pela perfeita,
total e imediata possessão de uma vida sem fim, fonte do tempo mas não o tempo em si; contrastando-se com o conceito de perpetuidade (perpetuitas, sempiternitas) atributo de infinitude do mundo,
sem começo nem fim no tempo, fluindo sucessivamente no agora, mas não presente permanente e
319
Libro Gótico ou Cartulário de San Juan de la Peña, fol. 71V; in “Fondo Pinatense”da Biblioteca de la Academia de
la Historia apud OYAGA, Julio Ruiz de - op cit
320
Libro Becerro Menor de Leyre, fol. 32; in Archivo Histórico Nacional de Madrid e Archivo General de Navarra
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identidade constante, atributos exclusivos de Deus (ET_, 2009:101). Deste modo, Boécio filia-se a
uma tradição neoplatônica que remonta também a Aristóteles e tem entre seus seguidores Tomás de
Aquino (1224-1274); para a qual o mundo é perpétuo mas não eterno (ibid); e uma vez que a sua
infinitude é imagem daquela eternidade, admite-se que o tempo possua existência objetiva, fora da
mente humana (ibid:35). Outra corrente de pensamento à qual alguns mas nem todos filiam é representada por Sto. Agostinho de Hipona (Aurelius Augustinus, 354-430), cuja percepção de tempo é o
de uma experiência subjetiva (ibid:39) e finita; pois extensão da mente humana e da sua habilidade
em compreender os eventos sucessivos.
II.9.3.c_Vilar de Frades _ Longe das academias, a história do monge e o passarinho
segue mundo, nos dois sentidos do tempo. Por exemplo em Barcelos, distrito de Braga ao norte de
Portugal. A cidade de Barcelos tem memória de romanos e do primeiro ducado de Bragança no século XV. Não muito longe, coisa de sete quilômetros pela margem esquerda do rio Cávado até o
sopé do monte Airó, chega-se à freguesia de Areias do Vilar, onde está a Igreja de São Salvador de
Vilar de Frades; também conhecida como Igreja do Mosteiro dos Lóios, lembrança dos padres
evangelistas (lóios) que ali se instalaram no início do século XV.
A implantação de um conjunto arquitetônico, nos diz Carlos Alberto Ferreira de Almeida
(1993:410) “marca o lugar onde está implantado, recriando íntimas relações com o sítio. A sua envolvência faz parte da sua memória histórica e estética”. Fazem parte desta memória os três povoados mais antigos – S. Salvador, S. João e Stª Maria Madalena - que hoje formam a freguesia de
Areias de Vilar; e também a origem beneditina do Mosteiro dos Lóios, o mosteiro de Vilar de Frades. Ali situa-se outra versão semelhante do monge e do passarinho embora não seja possível precisar desde quando. Consta que teriam existido ali capelinhas, datadas entre 1537 e 1590, das quais
14 de Calvário, uma de ‘presépio’ e outra do ‘passarinho’. Consta também que foram construidas
pelos próprios frades, usando conchas e pedrinhas.321
A mais antiga referência ao mosteiro beneditino de Vilar de Frades data de 1059 (apud
Marques,1998:652); no entanto é possível recuar ainda mais no tempo pois Frei Leão de São Tomás
(1574-1651), abade do mosteiro de Tibães e autor de uma Benedictina Lusitana, nos conta de uma
carta de 571 escrita por um certo monge Drumário que menciona um assentamento beneditino no
local em 566, com o beneplácito de São Martinho de Dume (~518-579); bispo de Braga no Concílio
de 563 e autor de diversos tratados; entre os quais o Formula vitae honestae, um dos primeiros da
corrente literária "espelho de príncipes" escritos em Portugal. Martinho este também chamado da
Panonia, pois natural do lugar que hoje se constitui a Hungria, tal como outro notável do período,
seu conterrâneo Martinho de Tours.
A menção ao santo bracarense também nos leva de certo modo mais adiante rumo ao Oriente, pois
foi ali que ele estudou grego e as coisas religiosas; tendo escrito, inclusive, uma recompilação de
sentenças dos Padres do Deserto322.
Acreditando na existência desta carta, Jorge de São Paulo, cronista da Ordem dos Lóios, nos confirma em suas memórias (1658) que o mosteiro seguiu a Regra de São Bento até 714, quando foi
destruído pelas razias muçulmanas; tendo sido reconstruído em 1070 mantendo-se na Regra até
1425.
321
FONSECA, Teotónio da.(1987) "O concelho de Barcelos aquém e além Cávado", (Reprodução em fax-simile da
edição de 1948), Barcelos: Santa Casa da Misericórdia : Câmara Municipal.
322
apud Pedro Calafate, verbete, Instituto Camões 1998-2000
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ANEXOS
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SALMO 90 [89] - Oração de Moisés, homem de Deus
1 Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração.
2 Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade a
eternidade, tu és Deus.
3 Tu reduzes o homem à destruição; e dizes: Tornai-vos, filhos dos homens.
4 Porque mil anos aos teus olhos são como um ontem que passou, uma vigília noturna.
5 Tu os levas como uma corrente de água; são como um sono; de manhã são como a erva que cresce.
6 De madrugada floresce e cresce; à tarde corta-se e seca.
7 Pois somos consumidos pela tua ira, e pelo teu furor somos angustiados.
8 Diante de ti puseste as nossas iniqüidades, os nossos pecados ocultos, à luz do teu rosto.
9 Pois todos os nossos dias vão passando na tua indignação; passamos os nossos anos como um conto
que se conta.
10 Os dias da nossa vida chegam a setenta anos, e se alguns, pela sua robustez, chegam a oitenta anos,
o orgulho deles é canseira e enfado, pois cedo se corta e vamos voando.
11 Quem conhece o poder da tua ira? Segundo és tremendo, assim é o teu furor.
12 Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios.
13 Volta-te para nós, SENHOR; até quando? Aplaca-te para com os teus servos.
14 Farta-nos de madrugada com a tua benignidade, para que nos regozijemos, e nos alegremos todos
os nossos dias.
15 Alegra-nos pelos dias em que nos afligiste, e pelos anos em que vimos o mal.
16 Apareça a tua obra aos teus servos, e a tua glória sobre seus filhos.
17 E seja sobre nós a formosura do Senhor nosso Deus, e confirma sobre nós a obra das nossas mãos;
sim, confirma a obra das nossas mãos.
SURATA Al-Kahf (A caverna) - 18ª Sura do Corão formada por 110 versículos
1
Louvado seja Deus que revelou o Livro ao Seu servo, no qual não colocou contradição alguma.
2
Fê-lo reto, para admoestar do Seu castigo e alvissarar aos fiéis que praticam o bem que obterão uma boa recompensa,
3
Da qual desfrutarão eternamente,
4
E para admoestar aqueles que dizem: Deus teve um filho!
5
A despeito de carecerem de conhecimento a tal respeito; o mesmo tendo acontecido com seus antepassados. É
uma blasfêmia o que proferem as suas bocas; não dizem senão mentiras!
6
É possível que te mortifiques de pena por causa deles, se não crerem nesta Mensagem.
7
Tudo quanto existe sobre a terra, criamo-lo para ornamentá-la, a fim de os experimentarmos e vermos aqueles,
dentre eles, que melhor se comportam.
8
Em verdade, tudo quanto existe sobre ela, reduzi-lo-emos a cinza e solo seco.
9
Pensas, acaso, que os ocupantes da caverna e da inscrição forma algo extraordinário entre os Nossos sinais?
10
Recorda de quando um grupo de jovens se refugiou na caverna, dizendo: Ó Senhor nosso, concede-nos Tua misericórdia, e reserva-nos um bom êxito em nossa empresa!
11
Adormecemo-los na caverna durante anos.
12
Então despertamo-los, para assegurar-Nos de qual dos dois grupos sabia calcular melhor o tempo que haviampermanecido ali.
13
Narramos-te a sua verdadeira história: Eram jovens, que acreditavam em seu Senhor, pelo que os aumentamos
em orientação.
14
E robustecemos os seus corações; e quando se ergueram, dizendo: Nosso Senhor é o Senhor dos céus e da terra e
nunca invocaremos nenhuma outra divindade em vez d'Ele; porque, com isso, proferiríamos extravagâncias.
15
Estes povos adoram outras divindades, em vez d'Ele, embora não lhes tenha sido concedida autoridade evidente
alguma para tal. Haverá alguém mais iníquo do que quem forja mentiras acerca de Deus?
16
Quando vos afastardes dele, com tudo quanto adoram, além de Deus, refugiai-vos na caverna; então, vosso Senhor vos agraciará com a Sua misericórdia e vos reservará um feliz êxito em vosso empreendimento.
17
E verias o sol, quando se elevava, resvalar a caverna pela direita e, quando se punha, deslizar pela esquerda, enquanto eles ficavam no seu espaço aberto. Este é um dos sinais de Deus. Aquele que Deus encaminhar estará bem encaminhado; por outra, àquele que desviar, jamais poderás achar-lhe protetor que o guie.
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18
(Se os houvesses visto), terias acreditado que estavam despertos, apesar de estarem dormindo, pois Nós os virávamos, ora para a direita, ora para a esquerda, enquanto o seu cão dormia, com as patas estendidas, na entrada da caverna. Sim, se os tivesses visto, terias retrocedido e fugido, transido de espanto!
19
E eis que os despertamos para que se interrogassem entre si. Um deles disse: Quanto tempo permanecestes aqui?
Responderam: Estivemos um dia, ou parte dele! Outros disseram: Nosso Senhor sabe melhor do que ninguém o quantopermanecestes. Enviai à cidade alguns de vós com este dinheiro; que procure o melhor alimento e vos traga uma parte;
que seja afável e não inteire ninguém a vosso respeito,
20
Porque, se vos descobrirem, apedrejar-vos-ão ou vos coagirão a abraçar seu credo e, então, jamais prosperareis.
21
Assim revelamos o seu caso às pessoas, para que se persuadissem de que a promessa de Deus é verídica e de que
a Hora é indubitável. E quando estes discutiram entre si a questão, disseram: Erigi um edifício, por cima deles; seu Senhor é o mais sabedor disso. Aqueles, cujas opiniões prevalecia, disseram: Erigi um templo, por cima da caverna!
22
Alguns diziam: Eram três, e o cão deles perfazia um total de quatro. Outros diziam: Eram cinco, e o cão totalizava seis, tentando, sem dúvida, adivinhar o desconhecido. E outros, ainda, diziam: Eram sete, oito com o cão. Dize: Meu
Senhor conhece melhor do que ninguém o seu número e só poucos o desconhece! Não discutais, pois, a respeito disto, a
menos que seja de um modo claro e não inquiras, sobre eles, ninguém
23
Jamais digas: Deixai, que farei isto amanhã,
24
A menos que adiciones: Se Deus quiser! Recorda teu Senhor quando esqueceres, e dize: É possível que meu Senhor meencaminhe para o que está mais próximo da verdade.
25
Eis que permaneceram na caverna trezentos e nove anos.
26
Dize-lhes: Deus sabe melhor do que ninguém o quanto permaneceram, porque é Seu o mistério dos céus e da
terra. Quão Vidente e quão Ouvinte é! Eles têm, em vez d'Ele, protetor algum, e Ele não divide com ninguém o seu comando.
27
Recita, pois, o que te foi revelado do Livro de teu Senhor, cujas palavras são imutáveis; nunca acharás amparo
fora d'Ele.
28
Sê paciente, juntamente com aqueles que pela manhã e à noite invocam seu Senhor, anelando contemplar Seu
Rosto. Não negligencies os fiéis, desejando o encanto da vida terrena e não escutes aquele cujo coração permitimos
negligenciar o ato de se lembrar de Nós, e que se entregou aos seus próprios desejos, excedendo-se em suas ações.
29
Dize-lhes: A verdade emana do vosso Senhor; assim, pois, que creia quem desejar, e descreia quem quiser. Preparamos para os iníquos o fogo, cuja labareda os envolverá. Quando implorarem por água, ser-lhes-á dada a beber água
semelhante a metal em fusão, que lhes assará os rostos. Que péssima bebida! Que péssimo repouso!
30
Em troca, os fiéis, que praticam o bem - certamente que não frustraremos a recompensa do benfeitor -,
31
Obterão os jardins do Éden, abaixo dos quais correm os rios, onde usarão braceletes de ouro, vestirão roupas
verdes de tafetá e brocado, e repousarão sobre tronos elevados. Que ótima recompensa e que feliz repouso!
32
Expõe-lhes o exemplo de dois homens: a um deles concedemos dois parreirais, que rodeamos de tamareiras e,
entre ambos, dispusemos plantações.
33
Ambos os parreirais frutificaram, sem em nada falharem, e no meio deles fizemos brotar um rio.
34
E abundante era a sua produção. Ele disse ao seu vizinho: Sou mais rico do que tu e tenho mais poderio.
35
Entrou em seu parreiral num estado (mental) injusto para com a sua alma. Disse: Não creio que (este parreiral)
jamais pereça,
36
Como tampouco creio que a Hora chegue! Porém, se retornar ao meu Senhor, serei recompensado com outra
dádiva melhor do que esta.
37
Seu vizinho lhe disse, argumentando: Porventura negas Quem te criou, primeiro do pó, e depois de esperma e
logo te moldou como homem?
38
Quanto a mim, Deus é meu Senhor e jamais associarei ninguém ao meu Senhor.
39
Por que quando entrastes em teu parreiral não dissestes: Seja o que Deus quiser; não existe poder senão de Deus!
Mesmo que eu seja inferior a ti em bens e filhos,
40
É possível que meu Senhor me conceda algo melhor do que o teu parreiral e que, do céu, desencadeie sobre o teu
uma centelha, que o converta em um terreno de areia movediça.
41
Ou que a água seja totalmente absorvida e nunca mais possa recuperá-la.
42
E foram arrasadas as suas propriedades; e (o incrédulo, arrependido) retorcia, então, as mãos, pelo que nelas haviainvestido, e, vendo-as revolvidas, dizia: Oxalá não tivesse associado ninguém ao meu Senhor!
43
E não houve ajuda que o defendesse de Deus, nem pôde salvar-se.
44
Assim, a proteção só incumbe ao Verdadeiro Deus, porque Ele é o melhor Recompensador e o melhor Destino.
45
Expõe-lhes o exemplo da vida terrena, que se assemelha à água, que enviamos do céu, a qual se mescla com as
plantas da terra, as quais se convertem em feno, que os ventos disseminam. Sabei que Deus prevalece sobre todas as
coisas.
46
Os bens e os filhos são o encanto da vida terrena; por outra, as boas ações, perduráveis, ao mais meritórias e mais
esperançosas, aos olhos do teu Senhor.
47
E recorda-lhes o dia em que moveremos as montanhas, quando então verás a terra arrasada, e os congregaremos,
sem se omitir nenhum deles.
48
Então serão apresentados em filas, ante o seu Senhor, que lhes dirá: Agora compareceis ante Nós, tal como vos
criamos pela primeira vez, embora pretendêsseis que jamais vos fixaríamos este comparecimento.
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Hall Freire 188
49
O Livro-registro será exposto. Verás os pecadores atemorizados por seu conteúdo, e dirão: Ai de nós! Que significa este Livro? Não omite nem pequena, nem grande falta, senão que as enumera! E encontrarão registrado tudo quanto
tiverem feito. Teu Senhor não defraudará ninguém.
50
E (lembra-te) de quando dissemos aos anjos: Prostrai-vos ante Adão! Prostraram-se todos, menos Lúcifer, que
era um dos gênios, e que se rebelou contra a ordem do seu Senhor. Tomá-los-íeis, pois, juntamente com a sua prole, por
protetores, em vez de Mim, apesar de serem vossos inimigos? Que péssima troca a dos iníquos!
51
Não os tomei por testemunhas na criação dos céus e da terra, nem na sua própria criação, porque jamais tomei
por assistentes os sedutores.
52
E no dia em que Ele disser (aos idólatras): Chamais os Meus pretendido parceiros!, chamá-los-ão; porém, estes
não atenderão a eles, pois lhes teremos imposto um abismo.
53
Os pecadores divisarão o fogo, estarão cientes de que cairão nele, porém não acharão escapatória.
54
Temos reiterado, neste Alcorão, toda a classe de exemplos para os humanos; porém, o homem é o litigioso maisrecalcitrante (que existe).
55
E o que impediu os humanos de crerem, quando lhes chegou a orientação, de implorarem o perdão do seu Senhor? Desejam, acaso, que os surpreenda o escarmento dos primitivos ou lhes sobrevenha abertamente o castigo?
56
Jamais enviamos mensageiros, a não ser como alvissareiros e admoestadores; porém, os incrédulos disputam
com vãos argumentos a falsidade, para com ela refutarem a verdade; e tomam os Meus versículos e as Minhas advertências como objeto de escárnio.
57
E haverá alguém mais iníquo do que quem, ao ser exortado com os versículos do seu Senhor, logo os desdenha,
esquecendo-se de tudo quanto tenha cometido? Em verdade, sigilamos as suas mentes para que não os compreendessem, e ensurdecemos os seus ouvidos; e ainda que os convides à orientação, jamais se encaminharão.
58
Porém, teu Senhor é Indulgente, Misericordiosíssimo. Se ele os punisse pelo que cometeram, acelerar-lhes-ia o
castigo; porém, terão um prazo, depois do qual jamais terão escapatória.
59
Tais eram as cidades que, pela iniqüidade dos seus habitantes, exterminamos, e prefixamos um término para isso.
60
Moisés disse ao seu ajudante: Não descansarei até alcançar a confluência dos dois mares, ainda que para isso
tenha de andar anos e anos.
61
Mas quando ambos se aproximaram da confluência dos dois mares, haviam esquecido o seu peixe, o qual seguira, serpeando, seu rumo até ao mar.
62
E quando a alcançaram, Moisés disse ao seu servo: Providencia nosso alimento, pois sofremos fadigas durante a
nossa viagem.
63
Respondeu-lhe: Lembras-te de quando nos refugiamos junto à rocha? Eu me esqueci do peixe - e ninguém, senão
Satanás, me fez esquecer de me recordar! - Creio que ele tomou milagrosamente o rumo do mar.
64
Disse-lhe: Eis o que procurávamos! E voltaram pelo mesmo caminho.
65
E encontraram-se comum dos Nossos servos, que havíamos agraciado com a Nosso misericórdia e iluminado
com a Nossa ciência.
66
E Moisés lhe disse: Posso seguir-te, para que me ensines a verdade que te foi revelada?
67
Respondeu-lhe: Tu não serias capaz de ser paciente para estares comigo.
68
Como poderias ser paciente em relação ao que não compreendes?
69
Moisés disse: Se Deus quiser, achar-me-á paciente e não desobedecerei às tuas ordens.
70
Respondeu-lhe: Então segue-me e não me perguntes nada, até que eu te faça menção disso.
71
Então, ambos se puseram a andar, até embarcarem em um barco, que o desconhecido perfurou. Moisés lhe disse:
perfuraste-o para afogar seus ocupantes? Sem dúvida que cometeste um ato insólito!
72
Retrucou-lhe: Não te disse que és demasiado impaciente para estares comigo?
73
Disse-lhe: Desculpa-me por me ter esquecido, mas não me imponhas uma condição demasiado difícil.
74
E ambos se puseram a andar, até que encontraram um jovem, o qual (o companheiro de Moisés) matou. Disselhe então Moisés: Acabas de matar um inocente, sem que tenha causado morte a ninguém! Eis que cometeste uma ação
inusitada.
75
Retrucou-lhe: Não te disse que não poderás ser paciente comigo?
76
Moisés lhe disse: Se da próxima vez voltar a perguntar algo, então não permitas que te acompanhe, e me desculpa.
77
E ambos se puseram a andar, até que chegaram a uma cidade, onde pediram pousada aos seus moradores, os
quais senegaram a hospedá-los. Nela, acharam um muro que estava a ponto de desmoronar e o desconhecido o restaurou. Moisés lhedisse então: Se quisesses, poderia exigir, recompensa por isso.
78
Disse-lhe: Aqui nós nos separamos; porém, antes, inteirar-te-ei da interpretação, porque tu és demasiado impaciente para isso:
79
Quanto ao barco, pertencia aos pobres pescadores do mar e achamos por bem avariá-lo, porque atrás dele vinha
um rei que se apossava, pela força, de todas as embarcações.
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Quanto ao jovem, seus pais eram fiéis e temíamos que os induzisse à transgressão e à incredulidade.
81
Quisemos que o seu Senhor os agraciasse, em troca, com outro puro e mais afetuoso.
82
E quanto ao muro, pertencia a dois jovens órfãos da cidade, debaixo do qual havia um tesouro seu. Seu pai era
virtuoso eteu Senhor tencinou que alcançassem a puberdade, para que pudessem tirar o seu tesouro. Isso é do beneplácito de teu Senhor. Não o fiz por minha própria vontade. Eis a explicação daquilo em relação ao qual não foste paciente.
83
Interrogar-te-ão a respeito de Zul-Carnain. Dize-lhes: Relatar-vos-ei algo de sua história:
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Consolidamos o seu poder na terra e lhe proporcionamos o meio de tudo.
85
E seguiu um rumo,
86
Até que, chegando ao poente do sol, viu-o pôr-se numa fonte fervente, perto da qual encontrou um povo. Dissemos-lhe: Ó Zul Carnain, tens autoridade para castigá-los ou tratá-los com benevolência.
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Disse: Castigaremos o iníquo; logo retornará ao seu Senhor, que o castigará severamente.
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Quanto ao crente que praticar o bem, obterá por recompensa a bem-aventurança, e o trataremos com brandura.
89
Então, seguiu (outro) rumo.
90
Até que, chegando ao nascente do sol, viu que este saía sobre um povo contra o qual noa havíamos provido nenhum abrigo.
91
Assim foi, porque temos pleno conhecimento de tudo sobre ele.
92
Então, seguiu (outro) rumo.
93
Até que chegou a um lugar entre duas montanhas, onde encontrou um povo que mal podia compreender uma
palavra.
94
Disseram-lhe: Ó Zul Carnain, Gog e Magog são devastadores na terra. Queres que te paguemos um tributo, para
que levantes uma barreira entre nós e eles?
95
Respondeu-lhes: Aquilo com que o meu Senhor me tem agraciado é preferível. Secundai-me, pois, com denodo,
e levantarei uma muralha intransponível, entre vós e eles.
96
Trazei-me blocos de ferro, até cobrir o espaço entre as duas montanhas. Disse aos trabalhadores: Assoprai (com
vossos foles), até que fiquem vermelhas como fogo. Disse mais: Trazei-me chumbo fundido, que jogarei por cima.
97
E assim a muralha foi feita e (Gog e Magog) não puderam escalá-la, nem perfurá-la.
98
Disse (depois): Esta muralha é uma misericórdia de meu Senhor. Porém, quando chegar a Sua promessa, Ele a
reduzirá a pó, porque a promessa de meu Senhor é infalível.
99
Nesse dia, deixaremos alguns deles insurgirem-se contra os outros e a trombeta será soada. E os congregaremos
a todos.
100 Nesse dia, apresentaremos abertamente, aos incrédulos, o inferno,
101 Bem como àqueles cujos olhos estavam velados para se lembrarem de Mim, e que não foram capazes de escutar.
102 Pensaram, acaso, os incrédulos tomar Meus servos por protetores, em vez de Mim? temos destinado o inferno,
por morada, aos incrédulos.
103 Dize-lhes: Quereis que vos inteire de quem são os mais desmerecedores, por suas obras?
104 São aqueles cujos esforços se desvaneceram na vida terrena, não obstante crerem haver praticado o bem.
105 Estes são os que renegaram os versículos de seu Senhor e o comparecimento ate Ele; porém, suas obras tornaram-se sem efeito e não lhes reconheceremos mérito algum, no Dia da Ressurreição.
106 Sua morada será o inferno, por sua incredulidade, e por terem escarnecido os Meus versículos e os Meus mensageiros.
107 Por outra, os fiéis, que praticarem o bem, terão por abrigo os jardins do Paraíso,
108 Onde morarão eternamente e não ansiarão por mudar de sorte.
109 Dize-lhes: Se o oceano se transformasse em tinta, com que se escrevessem as palavras de meu Senhor, esgotarse-ia antes de se esgotarem as Suas palavras, ainda que para isso se empregasse outro tanto de tinta.
110 Dize: Sou tão-somente um mortal como vós, a quem tem sido revelado que o vosso Deus é um Deus único. Porconseguinte, quem espera o comparecimento ante seu Senhor que pratique o bem e não associe ninguém ao culto d'Ele.
Ezequiel Capítulo 1
1:1 Ora aconteceu no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto do mês, que estando eu no meio dos cativos, junto ao
rio Quebar, se abriram os céus, e eu tive visões de Deus.
1:2 No quinto dia do mês, já no quinto ano do cativeiro do rei Joaquim,
1:3 veio expressamente a palavra do Senhor a Ezequiel, filho de Buzi, o sacerdote, na terra dos caldeus, junto ao rio
Quebar; e ali esteve sobre ele a mão do Senhor.
1:4 Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo que emitia de contínuo
labaredas, e um resplendor ao redor dela; e do meio do fogo saía uma coisa como o brilho de âmbar.
1:5 E do meio dela saía a semelhança de quatro seres viventes. E esta era a sua aparência: tinham a semelhança de homem;
1:6 cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles quatro asas.
1:7 E as suas pernas eram retas; e as plantas dos seus pés como a planta do pé dum bezerro; e luziam como o brilho de
bronze polido.
1:8 E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e todos quatro tinham seus rostos e suas asas
assim:
1:9 Uniam-se as suas asas uma à outra; eles não se viravam quando andavam; cada qual andava para adiante de si;
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1:10 e a semelhança dos seus rostos era como o rosto de homem; e à mão direita todos os quatro tinham o rosto de leão,
e à mão esquerda todos os quatro tinham o rosto dé boi; e também tinham todos os quatro o rosto de águia;
1:11 assim eram os seus rostos. As suas asas estavam estendidas em cima; cada qual tinha duas asas que tocavam às de
outro; e duas cobriam os corpos deles.
1:12 E cada qual andava para adiante de si; para onde o espírito havia de ir, iam; não se viravam quando andavam.
1:13 No meio dos seres viventes havia uma coisa semelhante a ardentes brasas de fogo, ou a tochas que se moviam por
entre os seres viventes; e o fogo resplandecia, e do fogo saíam relâmpagos.
1:14 E os seres viventes corriam, saindo e voltando à semelhança dum raio.
1:15 Ora, eu olhei para os seres viventes, e vi rodas sobre a terra junto aos seres viventes, uma para cada um dos seus
quatro rostos.
1:16 O aspecto das rodas, e a obra delas, era como o brilho de crisólita; e as quatro tinham uma mesma semelhança; e
era o seu aspecto, e a sua obra, como se estivera uma roda no meio de outra roda.
1:17 Andando elas, iam em qualquer das quatro direções sem se virarem quando andavam.
1:18 Estas rodas eram altas e formidáveis; e as quatro tinham as suas cambotas cheias de olhos ao redor.
1:19 E quando andavam os seres viventes, andavam as rodas ao lado deles; e quando os seres viventes se elevavam da
terra, elevavam-se também as rodas.
1:20 Para onde o espírito queria ir, iam eles, mesmo para onde o espírito tinha de ir; e as rodas se elevavam ao lado deles; porque o espírito do ser vivente estava nas rodas.
1:21 Quando aqueles andavam, andavam estas; e quando aqueles paravam, paravam estas; e quando aqueles se elevavam da terra, elevavam-se também as rodas ao lado deles; porque o espírito do ser vivente estava nas rodas.
1:22 E por cima das cabeças dos seres viventes havia uma semelhança de firmamento, como o brilho de cristal terrível,
estendido por cima, sobre a sua cabeça.
1:23 E debaixo do firmamento estavam as suas asas direitas, uma em direção à outra; cada um tinha duas que lhe cobriam o corpo dum lado, e cada um tinha outras duas que o cobriam doutro lado.
1:24 E quando eles andavam, eu ouvia o ruído das suas asas, como o ruído de muitas águas, como a voz do Onipotente,
o ruído de tumulto como o ruído dum exército; e, parando eles, abaixavam as suas asas.
1:25 E ouvia-se uma voz por cima do firmamento, que estava por cima das suas cabeças; parando eles, abaixavam as
suas asas.
1:26 E sobre o firmamento, que estava por cima das suas cabeças, havia uma semelhança de trono, como a aparência
duma safira; e sobre a semelhança do trono havia como que a semelhança dum homem, no alto, sobre ele.
1:27 E vi como o brilho de âmbar, como o aspecto do fogo pelo interior dele ao redor desde a semelhança dos seus lombos, e daí para cima; e, desde a semelhança dos seus lombos, e daí para baixo, vi como a semelhança de fogo, e havia
um resplendor ao redor dele.
1:28 Como o aspecto do arco que aparece na nuvem no dia da chuva, assim era o aspecto do resplendor em redor. Este
era o aspecto da semelhança da glória do Senhor; e, vendo isso, caí com o rosto em terra, e ouvi uma voz de quem falava.
Mensagem, de Fernando Pessoa
Trecho de: I - Os Campos / O dos Castelos
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
Trecho de: II - Os Castelos / D. Afonso Henriques
Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
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Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!
Trecho de: II - Os Castelos / Dom Dinis
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente d'esse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
Trecho de: III - As Quinas / D. Sebastião Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Hinos de Sto EFREM da Síria
«Quero, fica limpo»
Hinos sobre o Paraíso, IV, 3-5
No povo hebraico, Deus deu-nos a imagem:
Quem fosse atingido pela lepra, estando no acampamento,
Seria expulso e banido para fora dele.
Mas se, curado da lepra, tivesse encontrado a graça,
Então, com o hissope, purificado pelo sacerdote
com o sangue e a água,
Voltava para sua casa, recuperando a sua herança.
Adão era totalmente puro no Jardim esplêndido,
Mas foi-lhe transmitida a terrível doença pelo hálito da serpente.
O Jardim puro o rejeitou, o expulsou de seu seio,
Mas o Sumo Sacerdote (Heb 9, 11), vendo lá do alto
Que ele fora expulso, dignou-Se descer até junto dele,
Purificou-o com o Seu hissope (cf. Jo 19,29)
e reabriu-lhe as portas do Paraíso.
Nu, Adão era belo; mas sua diligente esposa
Esforçou-se por lhe tecer um manto de máculas.
Ao avistá-lo, o Jardim achou-o hediondo e expulsou-o.
Para ele, porém, fez Maria uma nova túnica.
Envergando essa veste,
e segundo a promessa, o Ladrão resplandeceu;
E o Jardim, revendo Adão na sua imagem, foi abraçá-lo.
«Os pastores... glorificavam e louvavam a Deus
por tudo o que tinham ouvido e visto»
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Vem, Moisés, mostra-nos essa sarça no cimo da montanha cujas chamas dançavam no teu rosto (Ex 3,2): é o filho do
Altíssimo que apareceu no seio da Virgem Maria e iluminou o mundo com a sua vinda. Glória a Ele da parte de toda a
criatura e feliz aquela que O gerou!
Vem, Gedeão, mostra-nos esse velo e esse suave orvalho (Jz 6,37), explica-nos o mistério das tuas palavras: é Maria o
velo que recebeu o orvalho, o Verbo de Deus; nela Se manifestou na criação e resgatou o mundo do pecado.
Vem, David, mostra-nos a cidade que viste e a planta que dela brotou: a cidade é Maria, a planta que dela saíu é o nosso
Salvador, cujo nome é Aurora (Jr 23,5; Za 3,8 LXX).
A árvore da vida que era guardada por um querubim com espada de fogo (Gn 3,24), eis que habita em Maria, a Virgem
pura; José a guarda. O querubim depos a espada porque o fruto que guardava foi enviado do alto dos céus até aos que
estavam exilados no abismo. Comei dele todos, homens mortais, e vivereis. Bendito seja o fruto que a Virgem gerou.
Bendito seja Aquele que desceu e habitou em Maria e dela saíu para nos salvar. Bem-aventurada Maria, tu que foste
julgada digna de ser a mãe do Filho do Altíssimo, tu que geraste o Ancião que tinha criado Adão e Eva. Ele saíu de ti,
suave fruto cheio de vida, e por Ele os exilados têm de novo acesso ao paraíso.
«Toda a criação geme em trabalho de parto.
Nós gememos também na espera da redenção dos nossos corpos» (Rom 8, 22-23)
Hinos sobre o Paraíso
A contemplação do Paraíso maravilhou-me pela sua paz e pela sua beleza. Ali mora a beleza sem mancha, ali reside a
paz sem tumulto. Feliz aquele que merecer recebê-la, se não por justiça, ao menos por bondade; se não por causa das
suas obras, ao menos por piedade...
Quando o meu espírito regressou às margens da terra, mãe dos espinhos, apresentaram-se-me dores e males de todos os
gêneros. Aprendi assim que o nosso lugar é uma prisão. E contudo os cativos que nele estão encerrados choram ao sair
dele. Espantei-me também por ver o que as crianças choram ao sair do seio; choram quando passam das trevas para a
luz, de um espaço estreito para o vasto universo. Da mesma forma, a morte é, para os homens, uma espécie de parto. Os
que nascem choram ao deixar o universo, mãe das dores, para entrar no Paraíso de delícias.
Ó Tu, Senhor do Paraíso, tem piedade de mim! Se não é possível entrar no Teu Paraíso, faz-me ao menos digno dos
prados que o rodeiam. No centro do Paraíso é a mesa dos santos, mas no exterior, os frutos do seu cercado caem como
migalhas para os pecadores que, mesmo aí, viverão pela Tua bondade.
«Com os pedaços que sobraram,encheram doze cestos»
Diatessarum, 12, 4-5, 11
Num piscar de olhos, o Senhor multiplicou um pedaço de pão. Aquilo que os homens fazem em dez meses de trabalho,
fizeram-no os Seus dedos num instante. [.] Contudo, não foi com o seu poder que comparou este milagre, mas com a
fome dos que tinha diante de Si. Se o milagre tivesse sido comparado com o seu poder, seria impossível de avaliar;
comparado com a fome daqueles milhares de pessoas, o milagre ultrapassou os doze cestos. O poder dos artesãos é inferior aos desejos dos respectivos clientes; eles não conseguem fazer tudo aquilo que se lhes pede; pelo contrário, as realizações de Deus ultrapassam todo o desejo. [.]
Saciados no deserto, como outrora o tinham sido os Israelitas pela oração de Moisés, eles exclamaram: "Este é o profeta
do qual está dito que viria ao mundo." Aludiam às palavras de Moisés: "O Senhor suscitará para vós um profeta", que
não será um profeta qualquer, mas "um profeta como eu" (Dt 18,15), que vos saciará de pão no deserto. Tal como eu,
caminho u sobre as águas, surgiu numa nuvem luminosa (Mt 17,5), libertou o seu povo. Entregou Maria a João, como
Moisés entregara o seu rebanho a Josué. [.] Mas o pão de Moisés não era perfeito; apenas foi dado aos Israelitas. Querendo significar que o seu dom é superior ao de Moisés e o chamamento às nações ainda mais perfeito, Nosso Senhor
disse: "Se alguém comer o Meu pão viverá eternamente", porque "o pão vivo que desceu do céu" é dado a todo o mundo (Jn 6,51).
Advento, eu vos proponho umas esplêndidas imagens tomadas dos hinos «Sobre a natividade de Cristo». Diante de
Nossa Senhora, Efrém manifesta com inspiração sua maravilha:
«O Senhor veio a ela
para tornar-se servo.
O Verbo veio a ela
para calar em seu seio.
O raio veio a ela
para não fazer ruído.
O pastor veio a ela,
e nasceu o Cordeiro, que chora docemente.
O seio de Maria
trocou os papéis:
quem criou tudo
apoderou-se dele, mas na pobreza.
O Altíssimo veio a ela (Maria),
mas entrou humildemente.
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O esplendor veio a ela,
mas vestido com roupas humildes.
Quem tudo dá
experimentou a fome.
Quem dá de beber a todos
sofreu a sede.
Saiu dela nu,
quem tudo reveste (de beleza)» (Himno «De Nativitate» 11, 6-8)
Para expressar o mistério de Cristo, Efrém utiliza uma grande variedade de temas, de expressões, de imagens. Em um
de seus hinos põe em relação Adão (no paraíso) com Cristo (na Eucaristia).
«Foi fechando
com a espada do querubim,
até deixar fechado
o caminho da árvore da vida.
Mas para os povos,
o Senhor desta árvore
entregou-se ele mesmo como alimento,
como oblação (eucarística).
As árvores do Éden
foram dadas como alimento
ao primeiro Adão.
Por nós o jardineiro
do Jardim em pessoa
fez-se alimento
para nossas almas.
De fato, todos nós havíamos saído
do Paraíso junto com Adão,
que o deixou às suas costas.
Agora que foi retirada a espada,
abaixo (na cruz) pela lança
podemos regressar» (Hino 49, 9-11)
Para falar da Eucaristia, Efrém utiliza duas imagens: as brasas ou o carvão ardente, e a pérola. O tema das brasas está
tomado do profeta Isaías (cf. 6, 6). É a imagem do serafim, que toma as brasas e toca simplesmente os lábios do profeta
para purificá-los; o cristão, pelo contrário, toca e digere as próprias Brasas, o próprio Cristo:
«Em teu pão se esconde o Espírito,
que não pode digerir-se;
em teu vinho está o fogo, que não pode beber-se.
O Espírito em teu pão, o fogo em teu vinho:
esta é a maravilha acolhida por nossos lábios.
O serafim não podia aproximar seus dedos das brasas,
E elas só puderam aproximar-se os lábios de Isaías;
nem os dedos as tomaram, nem os lábios as digeriram;
mas o Senhor concedeu a nós ambas coisas.
O fogo desceu com ira para destruir os pecadores,
mas o fogo da graça desce sobre o pão e ali permanece.
Em vez do fogo que destruiu o homem,
comemos o fogo no pão
e fomos salvos» (Hino «De Fide», 10, 8-10).
Outro exemplo dos hinos de Santo Efrém, onde fala da pérola como símbolo da riqueza e da beleza da fé:
«Coloquei (a pérola), irmãos, na palma de minha mão
para poder examiná-la.
Observei-a por todos os lados:
tinha o mesmo aspecto desde todos os lados.
Assim é a busca do Filho, inescrutável,
pois é totalmente luminosa.
Em sua limpidez, vi o Límpido,
que não se opaca;
em sua pureza,
vi o símbolo do Corpo de nosso Senhor,
que é puro.
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Em seu caráter indivisível, vi a verdade,
que é indivisível» (Hino sobre a Pérola 1, 2-3).
Cantiga 103 de Santa Maria
Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passara,
porque lle pedia que lle mostrasse qual era
o ben que avian os que eran en Paraiso.
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
E daquest' un gran miragre vos quer' eu ora contar,
que fezo Santa Maria por un monge, que rogar
ll'ia sempre que lle mostrasse qual ben en Parais' á
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
E que o viss' en ssa vida ante que fosse morrer.
E porend' a Groriosa vedes que lle foi fazer:
fez-lo entrar en ha orta en que muitas vezes ja
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Entrara; mais aquel dia fez que ha font' achou
mui crara e mui fremosa, e cab' ela s'assentou.
E pois lavou mui ben sas mãos, diss': «Ai, Virgen, que será
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Se verei do Parayso, o que ch' eu muito pidi,
algun pouco de seu viço ante que saya daqui,
e que sábia do que ben obra que galardon averá?»
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Tan toste que acababa ouv' o mong' a oraçon,
oyu ha passarinna cantar log' en tan bon son,
que sse escaeceu seendo e catando sempr' alá.
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Atan gran sabor avia daquel cant' e daquel lais,
que grandes trezentos anos estevo assi, ou mays,
cuidando que non estevera senon pouco, com' está
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Mong' alga vez no ano, quando sal ao vergeu.
Des i foi-ss' a passarynna, de que foi a el mui greu,
e diz: «Eu daqui ir-me quero, ca oy mais comer querrá
Quena Virgen ben servirá
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a Parayso irá.
O convent'.» E foi-sse logo e achou un gran portal
que nunca vira, e disse: «Ai, Santa Maria, val!
Non é est' o meu mõesteiro, pois de mi que se fará?»
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Des i entrou na eigreja, e ouveron gran pavor
os monges quando o viron, e demandou-ll' o prior,
dizend': «Amigo, vos quen sodes ou que buscades acá?»
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Diss' el: «Busco meu abade, que agor' aqui leixey,
e o prior e os frades, de que mi agora quitey
quando fui a aquela orta; u seen quen mio dirá?»
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Quand' est' oyu o abade, teve-o por de mal sen,
e outrossi o convento; mais des que souberon ben
de como fora este feyto, disseron: «Quen oyrá
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Nunca tan gran maravilla como Deus por este fez
polo rogo de ssa Madre, Virgen santa de gran prez!
E por aquesto a loemos; mais quena non loará
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Mais d'outra cousa que seja? Ca, par Deus, gran dereit' é,
pois quanto nos lle pedimos nos dá seu Fill', a la ffe,
por ela, e aqui nos mostra o que nos depois dará».
Quena Virgen ben servirá
a Parayso irá.
Trecho da Carta que Eberwin de Steinfeld escreveu a São Bernardo (1143)
La Capella Real de Catalunya / Hesperion XXI
recitada por René Zosso aos 2’20 de Le Royaume Oublié / La Tragedie Cathare / 1a. Partie (CD 1) Aux Origines du
Catharisme: Orient et Occident : 950-1099 /por Jordi Savall with Hespèrion XXI: Alia Vox, * AVSA9873
Jordi Savall i Bernadet (1941) é um músico e compositor catalão, virtuoso em viola de gamba, intérprete de música
medieval, tendo traduzido inúmeros manuscritos de origem mourisca, turca, grega, espanhola. Em 1974 formou
com sua mulher, Montserrat Figueras, cantora também catalã, o grupo Ensemble Hesperion XX (Hesperion XXI
desde o ano 2000) dedicado à divulgação de músicas do século VII em diante
Epistola ad patrem Bernardum
This is their heresy. They say of themselves that they are
the Church, because they alone follow Christ; and that
they are the true disciples of the apostolic life, because
Interstícios /
Hall Freire 196
they do not seek the world and they possess neither
house, nor land nor money. As Christ himself possessed
nothing, so he is content for his disciples to possess
nothing.
They say of t hemsel ves “We, the poor of Christ ,
wandering, fleeing from one city to another like sheep in
the midst of wolves, suffer persecution with the apostles
and the martyrs. Nevertheless, we lead a holy and very
strict life of fasting and abstinence, praying and working
both day and night, seeking by our work to obtain only
what we need to live. We bear all this because we are not
of the world: but you, who love the world, are at peace
with the world because you are of the world.
We and our fathers, as heirs to the apostles, remain and
shall remain in the grace of Christ until the end of the
world. To set you and ourselves apart, Christ has said:
“By their fruits you shall know them.” Our fruits are the
traces of Christ.
The Monk of Heisterbach323
Karl Wilhelm Muller, poeta (1794-1827), filho de um mestre alfaiate da cidade de Dessau, estudante de Filologia clássica em Berlin, soldado do Exército Prussiano contra Napoleão Bonaparte em defesa da unidade do povo alemão,
membro da Sociedade Berlinense da Língua Alemã (Berliner Gesellschaft für deutsche Sprache) na juventude
frequentou círculos onde pontificavam gigantes do Romantismo alemão como os Irmãos Grimm, von Arnim, Brentano, Fouqué e Tieck. Na qualidade de membro da Academia de Ciências de Berlin integrou a Missão Científica à
Grécia, Egito e Oriente Médio liderada pelo Barão Albert Von Sack, da nobreza prussiana. Professor de grego e
latim, tornou-se conselheiro na Corte do Duque Leopold Friedrich e amigo de Carl Maria von Weber and Goethe.
Sua fama como poeta, autor de textos populares pela contagiante musicalidade, espalhou-se a partir de 1821
quando publicou uma série de baladas inspiradas nas Lendas do Reno - um trabalho que Bertold Brecht elogiaria
como “coisas fáceis difíceis de fazer” .324
In cloister Heisterbach a youthful monk
Went sauntering through the garden's farthest ground,
Heading God's Holy Word in silence, sunk
In musings on eternity profound.
He reads, and hears the Apostle Peter say:
"One day is with the Lord a thousand years,
A thousand years with him are but a day," —
But, in his maze of doubt, no clew appears.
He heeds not, lost in thought, the flight of time,
And deeper in the wood is lost his track,
Until the bell, with holy vesper chime,
To serious cloister-duties calls him back.
He reaches with swift steps the gate; the hand
Of an unknown one answers now the bell;
He starts — but sees the church all lighted stand,
And hears the friars the holy chorus swell.
323
Tradução do Alemão para o Inglês por Charles T. BROOKS in German Lyrics: By Charles T. Brooks, Boston:
Tiknor, Reed and Fields, 1853:205
324
apud Robert PETERS, do grupo musical Winterreise (Viagem de Inverno) cujo nome remete ao ciclo de 24 arranjos
(lieder) compostos em 1827 por Franz Schubert para os poemas de Wilhelm Muller.
OnLine no site do grupo: ://www.gopera.com/winterreise/articles/rp_mueller_bio.mv
Interstícios /
Hall Freire 197
Then, entering, to his seat he straightway goes,
But strange to tell, he finds it occupied;
He looks upon the monks in their long rows,
He sees all strangers, there, on every side.
The staring one is stared at all around,
They ask his name, and why he there appears;
He tells, — low murmurs through the chapel sound !
"None such has lived here these three hundred years.
"The last who bore the name," out spake the crowd,
"A doubter was, and disappeared one day;
None, since, to take that name has been allowed" —
He hears the word, and shudders with dismay.
He names the abbot now, and names the year:
They call for the old cloister-book, and lo!
A mighty miracle of God is clear:
'T is he was lost three hundred years ago
The terror palsies him, —his hair grows gray,—
A deathly paleness settles on his face,—
He sinks, — while breath enough is left to say:
"God is exalted over time and space!
"What he had hid, a miracle now clears;
Think of my fate, believe, adore, obey!
I know: a day is as a thousand years
With God, a thousand years are as a day!
The Monk Of Heisterbach (Siebengebirge) in Legends of the Rhine (1906)325
por Wilhelm Rutland (1869-1927) escritor que nasceu em Bonn, estudou Literatura, Filologia, graduou-se doutor em
Filosofia pela Universidade de Rostock, e recolheu a narrativa às margens do Reno
In olden times in a lovely valley near the Seven Mountains, stood a cloister called Heisterbach. Even now parts of the
walls of this old monastery remain, and it was not by the hand of time, but by the barbarism of foolish warfare,
that its halls fell into ruins. The monks were driven away, the abbey was pulled down, and the stones were used for
the building of a fortress.
Since that time, so the country folk relate, the spirits of the banished monks wander nightly among the ruins, raising mute accusations against their persecutors and the destroyers of their cells. Among them there was one, Gebhard, the last Prior of Heisterbach, who now, they say, wanders about the graves of the monks, and also haunts the
burial-places of the Masters of Löwenburg and Drachenburg.
In the Middle Ages the monks of Heisterbach were very famous. Many a rare copy of the Holy Scriptures, many a
highly learned piece of writing was sent out into the world from this hermitage, telling of the industry and learning
of the pious monks.
There was one brother, still young in years, who distinguished himself by his learning. He was looked up to by all
the other brethren, and even the gray-haired Father Prior had recourse to his stores of knowledge. But the poisonous worm of doubt began to gnaw at his soul; the mirror of his faith was blurred by his deep meditations. His
keen eye would often wander over the faded parchment on which the living word of God was written, while his
childlike believing heart, humbly submitting itself, would lamentingly cry out, "Lord, I believe, help Thou mine
unbelief!"
Like a ghost his restless doubts would hover about him, making his soul the scene of tormenting struggle.
325
Tradução do alemão para o inglês in Legends of Rhine with illustrations from Paintings by celebrated artists, Cologne: Hoursch & Bechstedt , Publisher, 1906 OnLine in //www.kellscraft.com/LegendsRhine/legendsrhinecontents.html
Interstícios /
Hall Freire 198
One night with flushed face he had been meditating over a parchment. At daybreak he still remained engrossed in
his thoughts. The morning sun threw his bright rays over the heavens, casting playful beams on the written roll in
the monk's hands.
But he saw them not, his thoughts were wholly taken up by a passage which for months past had ever been hidden
to him and had been the constant subject of his reflections, "A thousand years are but as a day in Thy sight."
His brain had already long tormented itself over the obscure words of the Psalmist, and with a great effort he had
striven to blot it out of his memory, and now the words danced again before his weary eyes, growing larger and
larger. Those confusing black signs seemed to become a sneering doubt hovering round him: "A thousand years
are but as a day in Thy sight."
He tore himself away from the silent cell, seeking the cool solitude of the cloister-gardens. There with a heavy heart he paced the paths, torturing himself with horrid doubts.
His eyes were fixed on the ground, his mind was far away from the peaceful garden, and without being aware of
what he was doing, he left the cloister-gardens and wandered out into the neighbouring forest.
The birds in the trees greeted him cordially, the flowers opened their eyes at his approach; but the wretched man heard
and saw nothing but the words: "A thousand years are but as a day in Thy sight."
His wandering steps grew feeble, his feverish brain weary from want of sleep. Then the monk sank down on a stone, and laid his troubled head against a tree.
A sweet, peaceful dream stole over his spirit. He found himself in spheres glowing with light; the waters of Eternity were rushing round the throne of the Most High; creation appeared and praised His works, and Heaven extolled their glory; from the worm in the dust, which no earthly being has been able to create, to the eagle soaring
above the heights of the earth: from the grain of sand on the sea-shore, to the gigantic crater, which, at the Lord's
command, vomits fire out of its throat which has been closed for thousands of years: they all spoke with one voice
which is not heard by the haughty, being only manifest and comprehensible to the humble.
These were the words of Him who created them, be it in six days or in six thousand years, "A thousand years are but as
a day in Thy sight."
With a slight shudder the monk opened his eyes.
"I believe Lord! help Thou my unbelief," murmured he, taking heart.
The bell sounded in the distance. They were ringing for vespers; sunset was already gleaming through the forest.
The monk hastily turned towards the cloister. The chapel was lighted up, and through the half-opened door he
could see the brothers in their stalls. He hurried noiselessly to his place, but to his astonishment he found that
another monk was there; he touched him lightly on the shoulder, and strange to tell, the man he saw was unknown
to him. The brothers, now one, now another, raised their heads and looked in silent questioning at the new comer.
A peculiar feeling seized the poor monk, who saw only strange faces round him. Growing pale, he waited till the
singing was over. Confused questions seemed to pass along the rows.
The Prior, a dignified old man with snow-white hair, approached.
"What is your name, strange brother?" asked he in a gentle, kind tone. The monk was filled with dismay.
"Maurus," murmured he in a trembling voice. "St. Bernhard was the Abbot who received my vows, in the sixth
year of the reign of King Conrad, whom they called the Frank."
Incredulous astonishment was depicted on the brothers' countenances.
The monk raised his face to the old Prior and confessed to him how he had wandered out in the early morning into
the cloister-gardens, how he had fallen asleep in the forest, and had not wakened till the bell for vespers sounded.
The Prior made a sign to one of the brothers. Then turning to the monk he said: "It is almost three hundred years
since the death of St. Bernhard and of Conrad, whom they called the Frank."
The cloister annals were brought; and it was there found that three hundred years had passed since the days of St.
Bernhard. The Prior also read the following note.
"A doubter disappeared one day from the cloister, and no one ever knew what became of him."
A shudder ran through the monk's limbs. This was he, this brother Maurus who had now come back to the cloister
after three hundred years! What the Prior had read sounded in his ears as if it were the trumpet of the Last
Judgment. Three hundred years!
With wide-open eyes he gazed before him, then stretched forth his hands as if seeking for help. The brothers supported
him, observing him at the same time with secret dismay; his face had become ashy pale, like that of a dying person, the narrow circle of hair on his head had become snow-white.
"My brothers," murmured he in a dying voice, "value the imperishable word of the Lord at all times, and never try to
fathom what he in His wisdom has veiled from us. May my example never be blotted out of your memory. Only
to-day the words of the Psalmist were revealed to me. 'A thousand years are but as a day in Thy sight.' May he
have mercy on me, a poor sinner." He sank lifeless to the ground, and the brothers, greatly moved, repeated the
prayers for the dead over his body.
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Hall Freire 199
Sermão_ Deus li avoit faite un angle en samblance d’oisel (sec XII)
proferido por Maurice de Sully, bispo de Paris, possivelmente no terceiro domingo depois da Páscoa de 1196, texto completo in Ms n° 270 da Biblioteca Bodleiana (Universidade de Oxford), documento manuscrito por mão única em pergaminho no fim do século XII, provavelmente antes da morte do bispo segundo M. E. Cortambert, attaché do Departamento de
Mapas e Coleções Geográficas da Biblioteca Imperial, cujo Relatório ao Ministro de Instrução Pública consta do Tomo V
dos Archives des Missions Scientifiques et Litteraires, publicados sob os auspícios do Ministère de L’Instruction Publique
et des Cultes de France, Paris: Imprimerie Imperiale, M DCCC LVI (1856): pp 152-154
- Documento digitalizado pelo Google in ://www30.us.archive.org/details/archivesdesmissi05fran
Mulier cum parit animi tristitiam habet; cum aulem
peperit jam non nieminit doloris, propter gaudium quod
natus est homo in mundo.
Nostre sires Diex, qui seut bien que li cuer de ses aposteles
estoient triste et torblé par se passion, si les conforta; si com li
Evangilles d'ui dist, et si lor dist, al joesdi absolut, le soir devant
sa passion: « Voirement, dist-il, vos plorés, et li monde aura
joie. » (Le monde apele-il les bornes qui plus aiment cest monde
qu'il ne font N. S. D., ne sa glore.) «Vos plorés, fait-il as aposteles, et li mondes aura joie. Mais ne vos esmaiés mie : vostre
tristesse meterai à joie, et tel joie, que ja nel perdrés et que nus ne
vos porra tollir. »
Si lor dist une samblance, et de la tristre dolor que il doivent
avoir en cest siècle, et de la joie qu'il doivent avoir en l'autre.
« La feme , quant ele doit enfanter est triste , por ce que l'eure
de l'anguisse et de son mal vient; mais quant ele a enfanté, si ne
le membre de sa dolor, por la joie qu'ele a de son enfant. Autresi
aurés vos ore tristèche; mais vostre tristèche sera mue en joie. »
Si com il lor dist, ainsi lor avint. Car il furent tristre de sa passion
que il soffri à l'endemain, et furent en grant dehait, dus qu'ai
lier jor, que il le virent relevé de mort et que il le virent, le jor de
l'Assencion , monter es chiels; et qu'il, au jor de Pentecoste lor
envoïa le Saint-Esperit, dont fu lor tristèce muée en joie, que il
jamais ne perderont; et meismement quant il, ens fins de lor
vies, les tramist de la dolor de cest monde en la joie de paradis,
dont fu lor dolor et lor tristèce muée en joie, que jamais ne
perderont.
Segnor et dames, prendons garde as aposteles et, à lor exemple,
plorons nos péciés en cest siècle; soffrons debonairement les
contraires et les anuis et les domages s'il nos avienent; despisons la
vaine gloire de cest siècle, les malvais délis de quoi il se délitent
en cest siècle, qui cest siècle aiment et qui n'atendent autre joie,
Interstícios /
ne requièrent, se celui non que il voient as iex del cuer. Car se
nos voulons conquerre la joie del siècle qui est avenir, il nous
covient la malvaise vie de cest monde déguerpir, si com clist la
S. Escripture. Car cil qui voelent estre ami de cest siècle, se
devienent anemi nostre Segnor. Despisons donc la vaine joie de cest
siècle, por avoir la joie del chiel, por avoir celé joie que iex ne
puet veoir, ne oreille oïr, ne cuer d'orne ne puet penser com grande
ele est, et quant plus Famés, plus le rcquerés volentiers.
Si vous en dirons un mult bel example.
Il fu jadis un bons hom de religion, qui sovent proioit Dieu en
ses orisons, qu'il li otroiast à veoir aucune chose de la grant joie
que il pramet à cels qui lui aiment, et N. S. D. l'en oï. Car, si
com il fu i fois en an angle del mostier, et ce fu devant le jor, si li
envoia N. S. D. un angele, en samblance d'oisel, si s'assist
devant lui, et quant il regarda cel angele et il ne savoit mie que
c'estoit angeles. Si chéi si en son esgart et en la beauté de lui,
que il oblia quanque il avoit veu cha en arière. Si se leva sus,
por prendre l'oisel, dont il estoit moult covoitiés, et si com il
vint près de lui, si s'envola i poi plus loin. Que vos feroi-je lonc
conte? Li oisiaus traïst tant le bon home et mena od soi tant,
que avis li fu qu'il fu issus de s'abéie en i. biau lieu, droit en
un bois , et si estoit avis au bon home que il estoit en i bois et
voloit prendre l'oisel; et li oisiaus s'envola sor i. arbre; si
commencha à chanter, qu'onques nule riens ne fu si doce à oïr;
dont s'estut li bons hom, et regarda la beauté de l'oisel et escouta
la dochor de son chant, et si ententievement, qu'il en oblia totes
choses terrienes. Et quant li oisiaus out tant chanté comme à
Dieu plot, si s'envola, et li bons hom commencha à repairier a
soi meisme à heure de miedi, — DiexJ pensa-il, je ne dis hui
mes heures! comment les recommencerai-je hui mes? Et quant
il regarda vers s'abéie, si ne le reconut mie; ains li sambloient
les plusor choses remuées : « Hé Diex! dit-il, u sui-je? en est ce ci
m'abéie dont je issi-je hui matin?
Il vint à la porte; si apela le portier par son non. «Oevre,
dist-il , la porte. » Le portier vint à la porte, et quant il vit le bon
home, si ne le conutmie, ains li demanda qui il estoit. «Je sui,
dist-il, un moines de léans; si voil léans entrer. » « Si m'aïst Diex,
dist li portier, vous n'estes mie moines de céans. Quant issistes
vos de céans? » Il respondisl : « Je hui matin , « Si m'aïst Diex, dist
li portiers, je ne vos connois mie à moine de céans! »
Hall Freire 200
Interstícios /
Quand li prodom oï ce , si fu tos esbahis et esperdus. « Faitesmoi , fait-il , venir le portier; car vos n'estes mie portier de céans. »
Li portier respondi : « Céans n'a portier se moi non ; et vous me
samblés l’home qui n'estes mie bien assenés, quant vous vous
faites moines de céans. » « Si sui, dist-il, voir; faites-moi venir l'abé
et le prieus ; si parlerai à els. » L'abés et li prieus vinrent à la porte ;
mes il nés connut mie. « Que demandés vous, font-il , beau sire? »
«Je demande, dist-il, l'abé et le prieus de chéans : n'est ce ci li
abéie de c'est S un (si noma le saint de l'abeie.) » « Oil , dit le
portier. » « Dont sui je moine de céans. »
Atant li abés et li prieus li demandent : « Que demandes vous ,
beau sire! » «Je demande, dist-il, l'abé et le prieus de céans; à qui
je voil parler. » « Cesomes nous ; véés-nous ci. » « Non estes, dist le
bons hom. Je ne vous vis oncques mais. » « Quel abé et quel prieus
demandés vous donques? et qui connoissiés vous céans? » « Je
déniant, fait il, un abé et î prieus ki ensi orentànon. »
Et quant il oïrent ce, si connurent bien les nons de cels. Si li
disent: «Bons hom, cels que vous demandés, sont mort, passé a
III c ans! ore gardés u vous avez esté et dont vous venés, et que
demandés ? »
Dont s'aperchut li bons hom de la merveille que Diex li avoit
faite par l'oiselet, et com gent il l'avoit mené fors de s' abéie. Dont
• s'aperchut-il que N. S. D. li avoit mostré une partie de la joie que
li ami de Dieu auront es chieus. Si s'esmerveilla moult de ce que
ecc ans ne s'estoit esveillés, ne n'avoit vesteure usée ne solers depeciés, Dont l'enmenèrent li abés et li prieus por obédience.
Quant il furent en chapitèle, que il lor reconeust la vérité de
la chose où il avoit esté, et comment, dont lor conta li bons
hom tote s'aventure de chief en chief.
Seignor et dames, ore esgardés com est grans li beautés et la
dolçors que N. S. D. donc à ses amis es ciels, quant la beauté de
cel honorable angèle qui aparut au bon homme en semblance
d'oiscil, et li chans fut si bons et si dois, qne li bon hom qui
l'esgarda et escouta ccc ans, ne le quida avoir escouté c'une pièce
del jor.
Or soffrons donques les tristéces; despisons les joies de cesl
siècle; desevrons les joies de cest siècle; deservons la joie del ciel ,
si con fisent li apostele, si com dist Diexen l'Évangile d'ui. Car si
nous somes parchonier des travaux, nos serons parchonier à la
joie. Q. N. P. D.
Hall Freire 201
Interstícios /
Hall Freire 202
Lettre vingtième-unième
Légende du beau Pécopin et de la belle Bauldour.
Vitor Hugo
Bingen, août.
Je vous avais promis quelqu’une des légendes fameuses du Falkenburg, peut-être même la plus belle, la sombre aventure de Guntram et de Liba. Mais j’ai réfléchi. À quoi bon vous conter des contes que le premier recueil venu vous contera, et vous contera mieux que moi ? Puisque vous voulez absolument des histoires pour vos petits enfants, en voici une,
mon ami. C’est une légende que du moins vous ne trouverez dans aucun légendaire. Je vous l’envoie telle que je l’ai
écrite sous les murailles même du manoir écroulé, avec la fantastique forêt de Sonn sous les yeux, et, à ce qu’il me
semblait, sous la dictée même des arbres, des oiseaux et du vent des ruines. Je venais de causer avec ce vieux soldat
français qui s’est fait chevrier dans ces montagnes, et qui y est devenu presque sauvage et presque sorcier ; singulière
fin pour un tambour-maître du trente-septième léger. Ce brave homme, ancien enfant de troupe dans les armées voltairiennes de la république, m’a paru croire aujourd’hui aux fées et aux gnomes comme il a cru jadis à l’empereur. La solitude agit toujours ainsi sur l’intelligence ; elle développe la poésie qui est toujours dans l’homme ; tout pâtre est rêveur.
J’ai donc écrit ce conte-bleu dans le lieu même, caché dans le ravin-fossé, assis sur un bloc qui a été un rocher jadis, qui
a été une tour au douzième siècle et qui est redevenu un rocher, cueillant de temps en temps, pour en aspirer l’âme, une
fleur sauvage, un de ces liserons qui sentent si bon et qui meurent si vite, et regardant tour à tour l’herbe verte et le ciel
radieux pendant que de grandes nuées d’or se déchiraient aux sombres ruines du Falkenburg.
Cela dit, voici l’histoire :
LÉGENDE
Le beau Pécopin aimait la belle Bauldour, et la belle Bauldour aimait le beau Pécopin. Pécopin était fils du burgrave de
Sonneck, et Bauldour était fille du sire de Falkenburg. L’un avait la forêt, l’autre avait la montagne. Or, quoi de plus
simple que de marier la montagne à la forêt ? Les deux pères s’entendirent, et l’on fiança Bauldour à Pécopin.
Ce jour là, c’était un jour d’avril, les sureaux et les aubépines en fleur s’ouvraient au soleil dans la forêt, mille petites
cascades charmantes, neiges et pluies changées en ruisseaux, horreurs de l’hiver devenues les grâces du printemps, sautaient harmonieusement dans la montagne, et l’amour, cet avril de l’homme, chantait, rayonnait et s’épanouissait dans le
cœur des deux fiancés.
Le père de Pécopin, vieux et vaillant chevalier, l’honneur du Nahegau, mourut quelque temps après les accordailles, en
bénissant son fils et en lui recommandant Bauldour. Pécopin pleura, puis peu à peu, de la tombe où son père avait disparu, ses yeux se reportèrent au doux et radieux visage de sa fiancée, et il se consola. Quand la lune se lève, songe-t-on au
soleil couché ?
Pécopin avait toutes les qualités d’un gentilhomme, d’un jeune homme et d’un homme. Bauldour était une reine dans le
manoir, une sainte-vierge à l’église, une nymphe dans les bois, une fée à l’ouvrage.
Pécopin était grand chasseur et Bauldour était belle fileuse. Or, il n’y a pas de haine entre le fuseau et la carnassière. La
fileuse file pendant que le chasseur chasse. Il est absent, la quenouille console et désennuie. La meute aboie, le rouet
chante. La meute qui est au loin et qu’on, entend à peine, mêlée au cor et perdue profondément dans les halliers, dit tout
bas avec un vague bruit de fanfare : Songe à ton amant. Le rouet, qui force la belle rêveuse à baisser les yeux, dit tout
haut et sans cesse avec sa petite voix douce et sévère : Songe à ton mari. Et quand le mari et l’amant ne font qu’un, tout
va bien.
Mariez donc la fileuse au chasseur, et ne craignez rien.
Interstícios /
Hall Freire 203
Cependant, je dois le dire, Pécopin aimait trop la chasse. Quand il était sur son cheval, quand il avait le faucon au poing
ou quand il suivait le tartaret du regard, quand il entendait le jappement féroce de ses limiers aux jambes torses, il partait, il volait, il oubliait tout. Or en aucune chose il ne faut excéder. Le bonheur est fait de modération. Tenez en équilibre vos goûts et en bride vos appétits. Qui aime trop les chevaux et les chiens fâche les femmes ; qui aime trop les
femmes fâche Dieu.
Lorsque Bauldour, et cela arrivait souvent, lorsque Bauldour voyait Pécopin prêt à partir sur son cheval hennissant de
joie et plus fier que s’il eût porté AJexandre-le-Grand en habits impériaux, lorsqu’elle voyait Pécopin le flatter, lui passer la main sur le cou, et, éloignant l’éperon du flanc, présenter au palefroi un bouquet d’herbe pour le rafraîchir, Bauldour était jalouse du cheval. Quand Bauldour, cette noble et fïère demoiselle, cet astre d’amour, de jeunesse et de beauté, voyait Pécopin caresser son dogue et approcher amicalement de son charmant et mâle visage cette tête camuse, ces
gros naseaux, ces larges oreilles et cette gueule noire, Bauldour était jalouse du chien.
Elle rentrait dans sa chambre secrète, courroucée et triste, et elle pleurait. Puis elle grondait ses servantes, et après ses
servantes elle grondait son nain. Car la colère chez les femmes est comme la pluie dans la forêt ; elle tombe deux fois.
Bis pluit.
Le soir Pécopin arrivait poudreux et fatigué. Bauldour boudait et murmurait un peu avec une larme dans le coin de son
œil bleu. Mais Pécopin baisait sa petite main, et elle se taisait ; Pécopin baisait son beau front, et elle souriait.
Le front de Bauldour était blanc, pur et admirable comme la trompe d’ivoire du roi Charlemagne.
Puis elle se retirait dans sa tourelle et Pécopin dans la sienne. Elle ne souffrait jamais que ce chevalier lui prît la ceinture. Un soir il lui pressa légèrement le coude, et elle rougit très fort. Elle était fiancée et non mariée. Pudeur est à la
femme ce que chevalerie est à l’homme.
Ils s’adoraient à faire envie.
Pécopin avait dans sa halle d’armes à Sonneck une grande peinture dorée représentant le ciel et les neuf deux, chaque
planète avec sa couleur propre et son nom écrit en vermillon à côté d’elle ; Saturne blanc-plombé ; Jupiter clair, mais
enflambé et un peu sanguin ; Vénus l’orientale embrasée ; Mercure étincelant ; la Lune avec sa glace argentine ; le Soleil tout feu rayonnant. Pécopin effaça le nom de Vénus et écrivit en place Bauldour.
Bauldour avait dans sa chambre aux parfums une tapisserie de haute lice où était figuré un oiseau de la grandeur d’un
aigle, avec le tour du cou doré, le corps de couleur de pourpre, la queue bleue mêlée de pennes incarnates, et sur la tête
des crêtes surmontées d’une houppe de plumes. Au-dessous de cet oiseau merveilleux l’ouvrier avait écrit ce mot grec :
Phénix. Bauldour effaça ce mot et broda à la place ce nom : Pécopin.
Cependant le jour fixé pour les noces approchait. Pécopin en était joyeux et Bauldour en était heureuse.
Il y avait dans la vénerie de Sonneck un piqueur. drôle fort habile, de libre parole et de malicieux conseil, qui s’appelait
Érilangus. Cet homme, jadis fort bel archer, avait été recherché en mariage par plusieurs riches paysannes du pays de
Lorch ; mais il avait rebuté les épouseuses et s’était fait valet de chiens. Un jour que Pécopin lui en demandait la raison,
Érilangus répondit : Monseigneur, les chiens ont sept espèces de rage, les femmes en ont mille. Un autre jour, apprenant
les prochaines noces de son maître, il vint à lui hardiment et lui dit : Sire, pourquoi vous mariez-vous ? Pécopin chassa
ce valet.
Cela eût pu inquiéter le chevalier, car Érilangus était un esprit subtil et une longue mémoire. Mais la vérité est que ce
valet s’en alla à la cour du marquis de Lusace, où il devint premier veneur, et que Pécopin n’en entendit plus parler.
La semaine qui devait précéder le mariage, Bauldour filait dans l’embrasure d’une fenêtre. Son nain vint l’avertir que
Pécopin montait l’escalier. Elle voulut courir au-devant de son fiancé, et en sortant de sa chaise, qui était à dossier droit
et sculpté, son pied s’embarrassa dans le fil de sa quenouille. Elle tomba. La pauvre Bauldour se releva. Elle ne s’était
fait aucun mal, mais elle se souvint qu’un accident pareil était arrivé jadis à la châtelaine Liba, et elle se sentit le cœur
serré.
Pécopin entra rayonnant, lui parla de leur mariage et de leur bonheur, et le nuage qu’elle avait dans l’âme s’envola.
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Le lendemain de ce jour-là Bauldour filait dans sa chambre et Pécopin chassait dans le bois. Il était seul et n’avait avec
lui qu’un chien. Tout en suivant le hasard de la chasse, il arriva près d’une métairie qui était à l’entrée de la forêt de
Sonn et qui marquait la limite des domaines de Sonneck et de Falkenburg. Cette métairie était ombragée à l’orient par
quatre grands arbres, un frêne, un orme, un sapin et un chêne, qu’on appelait dans le pays les quatre Évangélistes. Il
paraît que c’étaient des arbres-fées. Au moment où Pécopin passait sous leur ombre, quatre oiseaux étaient perchés sur
ces quatre arbres : un geai sur le frêne, un merle sur l’orme, une pie sur le sapin et un corbeau sur le chêne. Les quatre
ramages de ces quatre bêtes emplumées se mêlaient d’une façon bizarre et semblaient par instant s’interroger et se
répondre. On entendait en outre un pigeon, qu’on ne voyait pas parce qu’il était dans le bois, et une poule, qu’on ne
voyait pas parce qu’elle était dans la basse-cour de la ferme. Quelques pas plus loin un vieillard tout courbé rangeait le
long d’un mur des souches pour l’hiver. Voyant approcher Pécopin, il se retourna et se redressa. — Sire chevalier,
s’écria-t-il, entendez-vous ce que disent ces oiseaux ? — Bonhomme, répondit Pécopin, que m’importe ! — Sire, reprit
le paysan, pour le jeune homme, le merle siffle, le geai garrule, la pie glapit, le corbeau croasse, le pigeon roucoule, la
poule glousse ; pour le vieillard, les oiseaux parlent. — Le chevalier éclata de rire.
— Pardieu ! voilà des rêveries. — Le vieillard repartit gravement : Vous avez tort, sire Pécopin. — Vous ne m’avez jamais vu, s’écria le jeune homme, comment savez-vous mon nom ? — Ce sont les oiseaux qui le disent, répondit le
paysan. — Vous êtes un vieux fou, brave homme, dit Pécopin ; et il passa outre.
Environ une heure après, comme il traversait une clairière, il entendit une sonnerie de cor et il vit paraître dans la futaie
une belle troupe de cavaliers ; c’était le comte palatin qui allait en chasse. Le comte palatin allait en chasse accompagné
des burgraves qui sont les comtes des châteaux, des wildgraves qui sont les comtes des forêts, des landgraves qui sont
les comtes des terres, des rhingraves qui sont les comtes du Rhin, et des raugraves qui sont les comtes du droit-dupoing. Un cavalier gentilhomme du pfalzgraf, nommé Gaïrefroi, aperçut Pécopin et lui cria : Holà, beau chasseur ! ne
venez-vous pas avec nous ?
— Où allez-vous ? dit Pécopin. — Beau chasseur, répondit Gaïrefroi, nous allons chasser un milan qui est à Heimburg
et qui détruit nos faisans ; nous allons chasser un vautour qui est à Vaugstberg et qui extermine nos lanerets ; nous allons
chasser un aigle qui est à Rheinstein et qui tue nos émerillons. Venez avec nous. — Quand serez-vous de retour ? demanda Pécopin. — Demain, dit Gaïrefroi. — Je vous suis, dit Pécopin. La chasse dura trois jours. Le premier jour
Pécopin tua le milan, le second jour Pécopin tua le vautour, le troisième jour Pécopin tua l’aigle. Le comte palatin s’émerveilla d’un si excellent archer.-― Chevalier de Sonneck, lui dit-il. je te donne le fief de Rhineck, mouvant46 de ma
tour de Gutenfels. Tu vas me suivre à Stâhleck pour en recevoir l’investiture et me prêter le serment d’allégeance, en
mail public et en présence des échevins, in mallo publico et coram scabinis, comme disent les chartes du saint empereur
Charlemagne. Il fallait obéir. Pécopin envoya à Bauldour un message dans lequel il lui annonçait tristement que la gracieuse volonté du pfalzgraf l’obligeait de se rendre sur-le-champ à Stâhleck pour une très-grande et très-grosse affaire.
Soyez tranquille, madame ma mie, ajoutait-il en terminant, je serai de retour le mois prochain. — Le messager parti,
Pécopin suivit le palatin et alla coucher avec les chevaliers de la suite du prince dans la châtellenie basse à Bacharach.
Cette nuit-là il eut un rêve. Il revît en songe l’entrée de la forêt de Sonneck, la métairie, les quatre arbres et les quatre
oiseaux ; Tes oiseaux ne criaient, ni ne sifflaient, ni ne chantaient, ils parlaient. Leur ramage, auquel se mêlaient les voix
de la poule et du pigeon, s’était changé en cet étrange dialogue que Pécopin endormi entendit distinctement :
LE GEAI
Le pigeon est au bois.
LE MERLE
La poule dans la cour
Va disant : Pécopin.
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LE GEAI
Le pigeon dit : Bauldour.
LE CORBEAU
Le sire est en chemin.
LA PIE
La dame est dans la tour.
LE GEAI
Reviendra-t-il d’Alep ?
LE MERLE
De Fez ?
LE CORBEAU
De Damanhour ?
LA PIE
La poule a parié contre, et le pigeon pour.
LA POULE
Pécopin ! Pécopin !
LE PIGEON
Bauldour ! Bauldour ! Bauldour !
Pécopin se réveilla, il avait une sueur froide ; dans le premier moment il se rappela le vieillard et il s’épouvanta, sans
savoir pourquoi, de ce rêve et de ce dialogue, puis il chercha à comprendre, puis il ne comprit pas, puis il se rendormit,
et le lendemain, quand le jour reparut, quand il revit le beau soleil qui chasse les spectres, dissipe les songes et dore les
fumées, il ne songea plus ni aux quatre arbres, ni aux quatre oiseaux.
Pécopin était un gentilhomme de renommée, de race, d’esprit et de mine. Une fois introduit à la cour du pfalzgraf et
installé dans son nouveau fief, il plut à ce point au palatin que ce digne prince lui dit un jour : Ami, j’envoie une ambassade à mon cousin de Bourgogne, et je t’ai choisi pour ambassadeur, à cause de ta gentille renommée. Pécopin dut faire
ce que voulait son prince. Arrivé à Dijon, il se fit si bien distinguer par sa belle parole que le duc lui dit un soir, après
avoir vidé trois larges verres de vin de Bacharach : — Sire Pécopin, vous êtes notre ami ; j’ai quelque démêlé de bec
avec monseigneur le roi de France, et le comte palatin permet que je vous envoie près du roi, car je vous ai choisi pour
ambassadeur, à cause de votre grande race. — Pécopin se rendit à Paris. Le roi le goûta fort, et le prenant à part un matin : — Pardieu, chevalier Pécopin, lui dit-il, puisque le palatin vous a prêté au bourguignon pour le service de la Bourgogne, le bourguignon vous prêtera bien au roi de France pour le service de la chrétienté. J’ai besoin d’un très noble
seigneur qui aille faire certaines remontrances de ma part au miramolin des maures en Espagne, et je vous ai choisi pour
ambassadeur, à cause de votre bel esprit. — On peut refuser son vote à l’empereur, on peut refuser sa femme au pape ;
on ne refuse rien au roi de France. Pécopin fit route pour l’Espagne. À Grenade le miramolin l’accueillit à merveille et
l’invita aux zambras de I’Alhambra. Ce n’était chaque jour que fêtes, courses de cannes et de lances et chasses au fau-
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con, et Pécopin y prenait part en grand jouteur et en grand chasseur qu’il était. En sa qualité de moricaud, le miramolin
avait de bons lanerets, d’excellents sacrets et d’admirables tuniciens, et il y eut à ces chasses les plus belles volées imaginables. Cependant Pécopin n’oublia pas de faire les affaires du roi de France. Quand la négociation fut terminée, le
chevalier se présenta chez le sultan pour lui faire ses adieux. — Je reçois vos adieux, sire chrétien, dit le miramolin, car
vous allez en effet partir tout de suite pour Bagdad. — Pour Bagdag ! s’écria Pécopin. — Oui, chevalier, reprit le prince
maure ; car je ne puis signer le traité avec le roi de Paris sans le consentement du calife de Bagdad, qui est commandeur
des croyants ; il me faut envoyer quelqu’un de considérable auprès du calife, et je vous ai choisi pour ambassadeur à
cause de votre bonne mine. Quand on est chez les maures, on va où veulent les maures. Ce sont des chiens et des infidèles. Pécopin alla à Bagdad. Là il eut une aventure. Un jour qu’il passait sous les murs du sérail, la sultane favorite le
vit, et comme il était beau, triste et fier, elle se prit d’amour pour lui. Elle lui envoya une esclave noire qui parla au chevalier dans le jardin de la ville à côté d’un grand tilleul microphyila qu’on y voit encore, et qui lui remit un talisman en
disant : Ceci vient d’une princesse qui vous aime et que vous ne verrez jamais. Gardez ce talisman. Tant que vous le
porterez sur vous, vous serez jeune. Quand vous serez en danger de mort, touchez-le, et il vous sauvera. — Pécopin à
tout hasard accepta le talisman, qui était une fort belle turquoise incrustée de caractères inconnus. Il l’attacha à sa chaîne
de cou.
— Maintenant, monseigneur, ajouta l’esclave en le quittant, prenez garde à ceci : tant que vous aurez cette turquoise à
votre cou, vous ne vieillirez pas d’un jour ; si vous la perdez, vous vieillirez en une minute de toutes les années que
vous aurez laissées derrière vous. Adieu, beau giaour ! — Cela dit, la négresse s’en alla. Cependant le calife avait vu
l’esclave de la sultane accoster le chevalier chrétien. Ce calife était fort jaloux et un peu magicien. Il convia Pécopin à
une fête, et, la nuit venue, il conduisit le chevalier sur une haute tour. Pécopin, sans y prendre garde, s’était avancé fort
près du parapet, qui était très bas, et le calife lui parla ainsi : — Chevalier, le comte palatin t’a envoyé au duc de Bourgogne à cause de ta noble renommée, le duc de Bourgogne t’a envoyé au roi de France à cause de ta grande race, le roi
de France t’a envoyé au miramolin de Grenade à cause de ton bel esprit, le miramolin de Grenade t’a envoyé au calife
de Bagdad à cause de ta bonne mine ; moi, à cause de ta noble renommée, de ta grande race, de ton bel esprit et de ta
bonne mine, je t’envoie au diable. — En prononçant ce dernier mot, le calife poussa violemment Pécopin, qui perdit
l’équilibre et tomba du haut de la tour.
Quand un homme tombe dans un gouffre, c’est un terrible éclair que celui qui frappe sa paupière en ce moment-là et qui
lui montre à la fois la vie dont il va sortir et la mort où il va entrer. Dans cette minute suprême, Pécopin éperdu envoya
sa dernière pensée à Bauldour et mit la main à son cœur ; ce qui fit que, sans y songer, il toucha le talisman. À peine
eut-il effleuré du doigt la turquoise magique qu’il se sentit emporté comme par des ailes. Il ne tombait plus, il planait. Il
vola ainsi toute la nuit. Au moment où le jour paraissait, la main invisible qui le soutenait le déposa sur une grève solitaire, au bord de la mer.
Or, en ce temps-là même, il était arrivé au diable une aventure désagréable et singulière. Le diable a coutume d’emporter les âmes qui sont à lui dans une hotte, ainsi que cela peut se voir sur le portail de la cathédrale de Fribourg en Suisse,
où il est figuré avec une tête de porc sur les épaules, un croc à la main et une hotte de chiffonnier sur le dos ; car le démon trouve et ramasse les âmes des méchants dans les tas d’ordures que le genre humain dépose au coin de toutes les
grandes vérités terrestres ou divines. Le diable n’avait pas l’habitude de fermer sa hotte, ce qui fait que beaucoup d’âmes s’échappaient, grâce à la céleste malice des anges. Le diable s’en aperçut et mit à sa hotte un bon couvercle orné
d’un bon cadenas. Mais les âmes, qui sont fort subtiles, furent peu gênées du couvercle ; et, aidées par les petits doigts
roses des chérubins, trouvèrent encore moyen de s’enfuir par les claires-voies de la hotte. Ce que voyant, le diable, fort
dépité, tua un dromadaire, et de la peau de la bosse se fit une outre qu’il sut clore merveilleusement avec l’assistance du
démon Hermès, et de laquelle il se sentait plus joyeux quand elle était remplie d’âmes qu’un écolier d’une bourse rem-
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plie de sequins d’or. C’est ordinairement dans la Haute-Égypte, sur les bords de la mer Rouge, que le diable, après avoir
fait sa tournée dans le pays des païens et des mécréants, remplit cette outre. Le lieu est fort désert ; c’est une grève de
sable près d’un petit bois de palmiers qui est situé entre Coma, où est né saint Antoine, et Clisma, où est mort saint Sisoës.
Un jour donc que le diable avait fait encore meilleure chasse qu’à l’ordinaire, il remplissait gaiement son outre lorsque,
se retournant par hasard, il vit à quelques pas de lui un ange qui le regardait en souriant. Le diable haussa les épaules et
continua d’empiler dans ce sac les âmes qu’il avait, les épluchant fort peu, je vous jure ; car tout est assez bon pour cette
chaudière-là. Quand il eut fini, il empoigna l’outre d’une main pour la charger sur ses épaules ; mais il lui fut impossible
de la lever du sol, tant il y avait mis d’âmes et tant les iniquités dont elles étaient chargées les rendaient lourdes et pesantes. Il saisit alors cette besace d’enfer à deux bras ; mais le second effort fut aussi inutile que le premier, l’outre ne
bougea pas plus que si elle eût été la tête d’un rocher sortant de terre. — Oh ! âmes de plomb ! dit le diable, et il se prit
à jurer. En se retournant, il vit le bel ange qui le regardait en riant.
— Que fais-tu là ? cria la démon. — Tu le vois, dit l’ange, je souriais tout à l’heure et à présent je ris. — Oh ! céleste
volaille ! grand innocent, va ! répliqua Asmodée. Mais l’ange devint sévère et lui parla ainsi :
— Dragon, voici les paroles que je te dis de la part de celui qui est le Seigneur : tu ne pourras emporter cette charge
d’âmes dans la géhenne tant qu’un saint du paradis ou un chrétien tombé du ciel ne t’aura pas aidé à la soulever de terre
et à la poser sur tes épaules. — Cela dit, l’ange ouvrit ses ailes d’aigle et s’envola.
Le diable était fort empêché. — Que veut dire cet imbécile ? grommelait-il entre ses dents. Un saint du paradis ? ou un
chrétien tombé du ciel ? J’attendrai long-temps si je dois rester là jusqu’à ce qu’une pareille assistance m’arrive ! Pourquoi diantre aussi ai-je si outrageusement bourré cette sacoche ? Et ce niais, qui n’est ni homme ni oiseau, se burlait de
moi ! Allons ! il faut maintenant que j’attende le saint qui viendra du paradis ou le chrétien qui tombera du ciel. Voilà
une stupide histoire, et il faut convenir qu’on s’amuse de peu de chose là-haut ! — Pendant qu’il se parlait ainsi à luimême, les habitants de Coma et de Clisma croyaient entendre le tonnerre gronder sourdement à l’horizon. C’était le
diable qui bougonnait.
Pour un charretier embourbé, jurer est quelque chose, mais sortir de l’ornière c’est encore mieux. Le pauvre diable se
creusait la tête et rêvait. C’est un drôle fort adroit que celui qui a perdu Eve. Il entre partout. Quand il veut, de même
qu’il se glisse dans l’amour, il se glisse dans le paradis. Il a conservé des relations avec saint Cyprien-le-magicien, et il
sait dans l’occasion se faire bien venir des autres saints, tantôt en leur rendant de petits services mystérieux, tantôt en
leur disant des paroles agréables. Il sait, ce grand savant, la conversation qui plaît à chacun. Il les prend tous par leur
faible. Il apporte à saint Robert d’York des petits pains d’avoine au beurre. Il cause orfèvrerie avec saint Éloy et cuisine
avec saint Théodote. Il parle au saint évêque Germain du roi Childebert, au saint abbé Wandrille du roi Dagobert et au
saint eunuque Usthazade du roi Sapor. Il parle à saint Paul-le-Simple de saint Antoine et il parle à saint Antoine de son
cochon. Il parle à saint Loup de sa femme Piméniole et il ne parle pas à saint Gomer de sa femme Gwinmarie. — Car le
diable est le grand flatteur. Cœur de fiel, bouche de miel.
Cependant quatre saints, qui sont connus pour leur étroite amitié, saint Nil-le-Solitaire, saint Autremoine, saint Jean-leNain et saint Médard, étaient précisément allés ce jour-là se promener sur les bords de la mer Rouge. Comme ils arrivaient, tout en conversant, près du bois de palmiers, le diable les vit venir vers lui avant d’être aperçu par eux. Il prit
incontinent la forme d’un vieillard très pauvre et très cassé et se mit à pousser des cris lamentables. Les saints s’approchèrent. Qu’est-ce ? dit saint Nil. — Hélas ! hélas ! mes bons seigneurs, s’écria le diable, venez à mon aide, je vous en
supplie. J’ai un très méchant maître, je suis un pauvre esclave, j’ai un très méchant maître qui est un marchand du pays
de Fez. Or vous savez que tous ceux de Fez, les maures, numides, garamantes et tous les habitants de la Barbarie, de la
Nubie et de l’Égypte sont mauvais, pervers, sujets aux femmes et aux copulations illicites, téméraires, ravisseurs, hasardeux et impitoyables à cause de la planète Mars. De plus, mon maître est un homme que tourmentent la bile noire, la
bile jaune et la pituite à Cicéron ; de là une mélancolie froide et sèche qui le rend timide, de peu de courage, avec beau-
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coup d’inventions néanmoins pour le mal. Ce qui retombe sur nous, pauvres esclaves, sur moi, pauvre vieux. — Où
voulez-vous en venir, mon ami ? dit saint Autremoine avec intérêt. Voilà, mon bon seigneur, répondit le démon. Mon
maître est un grand voyageur. Il a des manies. Dans tous les pays où il va, il a le goût de bâtir dans son jardin une montagne du sable qu’on ramasse au bord des mers près desquelles ce méchant homme s’établit. Dans la Zélande il a édifié
un tas de sable fangeux et noir ; dans la Frise un tas de gros sable mêlé de ces coquilles rouges, parmi lesquelles on
trouve le cône tigré ; et dans la Chersonèse cimbrique, qu’on nomme aujourd’hui Jutland, un tas de sable fin mêlé de
ces coquilles blanches parmi lesquelles il n’est pas rare de rencontrer la telline-soleil-levant… — Que le diable t’emporte ! interrompit saint Nil qui est d’un naturel impatient.. Viens au fait. Voilà un quart-d’heure que tu nous fais perdre à
écouter des sornettes. Je compte les minutes. — Le diable s’inclina humblement : — Vous comptez les minutes, monseigneur ? c’est un noble goût. Vous devez être du midi ; car ceux du midi sont ingénieux et adonnés aux mathématiques, parce qu’ils sont plus voisins que les autres hommes du cercle des étoiles errantes. — Puis, tout à coup, éclatant
en sanglots et se meurtrissant la poitrine du poing : — Hélas ! hélas ! mes bons princes, j’ai un bien cruel maître. Pour
bâtir sa montagne il m’oblige à venir tous les jours, moi vieillard, remplir cette outre de sable au bord de la mer. Il faut
que je la porte sur mes épaules. Quand j’ai fait un voyage, je recommence, et cela dure depuis l’aube jusqu’au coucher
du soleil. Si je veux me reposer, si je veux dormir, si je succombe à la fatigue, si l’outre n’est pas bien pleine, il me fait
fouetter. Hélas ! je suis bien misérable et bien battu et bien accablé d’infirmités. Hier, j’avais fait six voyages dans la
journée ; le soir venu, j’étais si las que je n’ai pu hausser jusqu’à mon dos cette outre que je venais d’emplir ; et j’ai
passé ici toute la nuit, pleurant à côté de ma charge et épouvanté de la colère de mon maître. Mes seigneurs, mes bons
seigneurs, par grâce et par pitié, aidez-moi à mettre ce fardeau sur mes épaules, afin que je puisse m’en retourner auprès
de mon maître, car si je tarde il me tuera. Ahi ! ahi !
En écoutant cette pathétique harangue, saint Nil, saint Autremoine et saint Jean-le-Nain se sentirent émus, et saint Médard se mit à pleurer, ce qui causa sur la terre une pluie de quarante jours.
Mais saint Nil dit au démon : — Je ne puis t’aider, mon ami, et j’en ai regret ; mais il faudrait mettre la main à cette
outre qui est une chose morte, et un verset de la Très-Sainte-Écriture défend de toucher aux choses mortes sous peine de
rester impur.
Saint Autremoine dit au démon : — Je ne puis t’aider, mon ami, et j’en ai regret ; mais je considère que ce serait une
bonne action, et les bonnes actions ayant l’inconvénient de pousser à la vanité celui qui les fait, je m’abstiens d’en faire
pour conserver l’humilité.
Saint Jean-le-Nain dit au démon : — Je ne puis t’aider, mon ami, et j’en ai regret ; mais comme tu vois, je suis si petit
que je ne pourrais atteindre à ta ceinture. Comment ferais-je pour te mettre cette charge sur les épaules ?
Saint Médard, tout en larmes, dit au démon : — Je ne puis t’aider, mon ami, et j’en ai regret ; mais je suis si ému vraiment que j’ai les bras cassés.
Et ils continuèrent leur chemin.
Le diable enrageait. — Voilà des animaux ! s’écria-t-il en regardant les saints s’éloigner. Quels vieux pédants ! Sont-ils
absurdes avec leurs grandes barbes ! Ma parole d’honneur, ils sont encore plus bêtes que l’ange !
Lorsqu’un de nous enrage, il a du moins la ressource d’envoyer au diable celui qui l’irrite. Le diable n’a pas cette douceur. Aussi y a-t-il dans toutes ses colères une pointe qui rentre en lui-même et qui l’exaspère.
— Comme il maugréait en fixant son œil plein de flamme et de fureur sur le ciel, son ennemi, voilà qu’il aperçoit dans
les nuées un point noir. Ce point grossit, ce point approche ; le diable regarde ; c’était un homme, — c’était un chevalier
armé et casqué, — c’était un chrétien ayant la croix rouge sur la poitrine, — qui tombait des nues.
— Que n’importe qui soit loué ! cria le démon en sautant de joie. Je suis sauvé. Voilà mon chrétien qui m’arrive ! Je
n’ai pas pu venir à bout de quatre saints, mais ce serait bien le diable si je ne venais pas à bout d’un homme.
En ce moment-là Pécopin, doucement déposé sur le rivage, mettait pied à terre.
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Apercevant ce vieillard, lequel était là comme un esclave qui se repose à côté de son fardeau, il marcha vers lui et lui
dit : — Qui êtes-vous, l’ami ? et où suis-je ?
Le diable se prit à geindre piteusement : — Vous êtes au bord de la mer Rouge, monseigneur, et moi je suis le plus malheureux des misérables. — Sur ce, il chanta au chevalier la même antienne qu’aux saints, le suppliant pour conclusion
de l’aider à charger cette outre sur son dos.
Pécopin hocha la tête : — Bonhomme, voilà une histoire peu vraisemblable. — Mon beau seigneur qui tombez du ciel,
répondit le diable, la vôtre l’est encore moins, et pourtant elle est vraie.
— C’est juste, dit Pécopin.
— Et puis, reprit le démon, que voulez-vous que j’y fasse ? si mes malheurs n’ont pas bonne apparence, est-ce ma faute ? Je ne suis qu’un pauvre de besace et d’esprit ; je ne sais pas inventer ; il faut bien que je compose mes gémissements avec mes aventures et je ne puis mettre dans mon histoire que la vérité. Telle viande, telle soupe.
— J’en conviens, dit Pécopin.
— Et puis enfin, poursuivit le diable, quel mal cela peut-il vous faire, à vous mon jeune vaillant, d’aider un pauvre vieillard infirme à attacher cette outre sur ses épaules ?
Ceci parut concluant à Pécopin. Il se baissa, souleva de terre l’outre, qui se laissa faire sans difficulté, et, la soutenant
entre ses bras, il s’apprêta à la poser sur le dos du vieillard qui se tenait courbé devant lui.
Un moment de plus, et c’était fait.
Le diable a des vices ; c’est là ce qui le perd. Il est gourmand. Il eut dans cette minute-là l’idée de joindre l’âme de
Pécopin aux autres âmes qu’il allait emporter ; mais pour cela il fallait d’abord tuer Pécopin.
Il se mit donc à appeler à voix basse un esprit invisible auquel il commanda quelque chose en paroles obscures.
Tout le monde sait que, lorsque le diable dialogue et converse avec d’autres démons, il parle un jargon moitié italien,
moitié espagnol. Il dit aussi çà et là quelques mots latins.
Ceci a été prouvé et clairement établi dans plusieurs rencontres et en particulier dans le procès du docteur Eugenio Torralva, lequel fut commencé à Valladolid le 10 janvier 1528 et convenablement terminé le 6 mai 1531 par l’autodafé dudit docteur.
Pécopin savait beaucoup de choses. C’était, je vous l’ai dit, un cavalier d’esprit qui était homme à soutenir bravement
une vespérie4S. Il avait des lettres. Il connaissait la langue du diable.
Or, à l’instant où il lui attachait l’outre sur l’épaule, il entendit le petit vieillard courbé dire tout bas : Bamos, non cierra
occhi, verbera, frappa, y echa la piedra. Ceci fut pour Pécopin comme un éclair.
Un soupçon lui vint. Il leva les yeux, et il vit à une grande hauteur au-dessus de lui une pierre énorme que quelque géant
invisible tenait suspendue sur sa tête.
Se rejeter en arrière, toucher de sa main gauche le talisman, saisir. de la droite son poignard et en percer l’outre avec une
violence et une rapidité formidable, c’est ce que fit Pécopin comme s’il eût été le tourbillon qui, dans la même seconde,
passe, vole, tourne, brille, tonne et foudroie.
Le diable poussa un grand cri. Les âmes délivrées s’enfuirent par l’issue que le poignard de Pécopin venait de leur
ouvrir, laissant dans l’outre leurs noirceurs, leurs crimes et leurs méchancetés, monceau hideux, verrue abominable qui,
par l’attraction propre au démon, s’incrusta en lui, et, recouverte par la peau velue de l’outre, resta à jamais fixée entre
ses deux épaules. C’est depuis ce jour-là qu’Asmodée est bossu.
Cependant, au moment où Pécopin se rejetait en. arrière, le géant invisible avait laissé choir sa pierre, qui tomba sur le
pied du diable et le lui écrasa. C’est depuis ce jour-là qu’Asmodée est boiteux.
Le diable, comme Dieu, a le tonnerre à ses ordres ; mais c’est un affreux tonnerre inférieur qui sort de terre et déracine
les arbres. Pécopin sentit le rivage de la mer trembler sous lui et que quelque chose de terrible l’enveloppait ; une fumée
noire l’aveugla, un bruit effroyable l’assourdit ; il lui sembla qu’il était tombé et qu’il roulait rapidement en rasant le
sol, comme s’il était une feuille morte chassée par le vent. Il s’évanouit.
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Quand il revint à lui, il entendit une voix douce qui disait : Phi smâ, ce qui en langue arabe signifie : il est dans le ciel. Il
sentit qu’une main était posée sur sa poitrine, et il entendit une autre voix grave et lente qui répondait : Lô, lô, machi
mouth, ce qui veut dire : non, non, il n’est pas mort. Il ouvrit les yeux et vit un vieillard et une jeune fille agenouillés
près de lui. Le vieillard était noir comme la nuit, il avait une longue barbe blanche tressée en petites nattes, à la mode
des anciens mages, et il était vêtu d’un grand suaire de soie verte sans plis. La jeune fille était couleur de cuivre rouge,
avec de grands yeux de porcelaine et des lèvres de corail. Elle avait des anneaux d’or au nez et aux oreilles. Elle était
charmante.
Pécopin n’était plus au bord de la mer. Le souffle de l’enfer, le poussant au hasard, l’avait jeté dans une vallée remplie
de rochers et d’arbres d’une forme étrange. Il se leva. Le vieillard et la jeune fille le regardaient avec douceur. Il
s’approcha d’un de ces arbres ; les feuilles se contractèrent ; les branches se retirèrent ; les fleurs, qui étaient d’un blanc
pâle, devinrent rouges ; et tout l’arbre parut en quelque sorte reculer devant lui. Pécopin reconnut l’arbre de la honte et
en conclut qu’il avait quitté l’Inde et qu’il était dans le fameux pays de Pudiferan.
Cependant le vieillard lui fit un signe. Pécopin le suivit ; et quelques instants après, le vieillard, la jeune fille et Pécopin
étaient tous trois assis sur une natte dans une cabane faite en feuilles de palmier, dont l’intérieur, plein de pierres précieuses de toutes sortes, étincelait comme un brasier ardent.
Le vieillard se tourna vers Pécopin et lui dit en allemand : — Mon fils, je suis l’homme qui sait tout, le grand lapidaire
éthiopien, le taleb des Arabes. Je m’appelle Zin-Eddin pour les hommes et Evilmerodach pour les génies. Je suis le
premier homme qui ait pénétré dans cette vallée, tu es le deuxième. J’ai passé ma vie à dérober à la nature la science des
choses et à verser aux choses la science de l’âme. Grâce à moi, grâce à mes leçons, grâce aux rayons qui sont tombés
depuis cent ans de mes prunelles, dans cette vallée les pierres vivent, les plantes pensent et les animaux savent. C’est
moi qui ai enseigné aux bêtes la médecine vraie, qui manque à l’homme. J’ai appris au pélican à se saigner lui-même
pour guérir ses petits blessés des vipères, au serpent aveugle à manger du fenouil pour recouvrer la vue, à l’ours attaqué
de la cataracte à irriter les abeilles pour se faire piquer les yeux. J’ai apporté aux aigles, lesquelles sont étroites, la pierre
oetites qui les fait pondre aisément. Si le geai se purge avec la feuille du laurier, la tortue avec la ciguë, le cerf avec le
dictame, le loup avec la mandragore, le sanglier avec le lierre, la tourterelle avec l’herbe helxine ; si les chevaux gênés
par le sang s’ouvrent eux-mêmes une veine de la cuisse de derrière ; si le stellion, à l’époque de la mue, dévore sa peau
pour se guérir du mal caduc ; si l’hirondelle guérit les ophthalmies de ses petits avec la pierre calidoine qu’elle va chercher au delà des mers ; si la belette se munit de la rue quand elle veut combattre la couleuvre, — c’est moi, mon fils, qui
le leur ai enseigné. Jusqu’ici je n’ai eu que des animaux pour disciples. J’attendais un homme. Tu es venu. Sois mon
fils. Je suis vieux. Je te laisserai ma cabane, mes pierreries, ma vallée et ma science. Tu épouseras ma fille, qui s’appelle
Aïssab, et qui est belle. Je t’apprendrai à distinguer le rubis sandastre du chrysolampis, à mettre la mère-perle dans un
pot de sel et à rallumer le feu des rubis trop mornes en les trempant dans le vinaigre. Chaque jour de vinaigre leur donne
un an de beauté. Nous passerons notre vie doucement à ramasser des diamants et à manger des racines. Sois mon fils.
— Merci, vénérable Seigneur, dit Pécopin. J’accepte avec joie.
La nuit venue, il s’enfuit.
Il erra long-temps dans les pays. Dire tous les voyages qu’il fit, ce serait raconter le monde. Il marcha pieds nus et en
sandales ; il monta toutes les montures, l’âne, le cheval, le mulet, le chameau, le zèbre, l’onagre et l’éléphant. Il subit
toutes les navigations et tous les navires, les vaisseaux ronds de l’Océan et les vaisseaux longs de la Méditerranée, oneraria et remigia, galère et galion, frégate et frégaton, felouque, polaque et tartane, barque, barquette et barquerolle. Il se
risqua sur les caracores de bois des Indiens de Bantan et sur les chaloupes de cuir de l’Euphrate dont a parlé Hérodote.
Il fut battu de tous les vents, du levante-sirocco et du sirocco-mezzogiorno, de la tramontane et de la galerne. Il traversa
la Perse, le Pégu, Bramaz, Tagatai, Transiane, Sagistan, l’Hasubi. Il vit le Monomotapa comme Vincent-le-Blanc, Sofala
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comme Pedro Ordonez, Ormus comme le sieur de Fines, les sauvages comme Acosta, et les géants comme Malherbe de
Vitré. Il perdit dans le désert quatre doigts du pied, comme Jérôme Costilla. Il se vit dix-sept fois vendu comme Mendez-Pinto, fut forçat comme Texeus, et faillit être eunuque comme Parisol. Il eut le mal des pyans, dont périssent les
nègres ; le scorbut, qui épouvantait Avicenne ; et le mal de mer, auquel Cicéron préféra la mort. Il gravit des montagnes
si hautes qu’arrivé au sommet il vomissait le sang, les flegmes et la colère. Il aborda l’île qu’on rencontre parfois ne la
cherchant point et qu’on ne peut jamais trouver la cherchant, et il vérifia que les habitants de cette île sont bons chrétiens. En Midelpalie, qui est au nord, il remarqua un château dans un lieu où il n’y en a pas, mais les prestiges du septentrion sont si grands qu’il ne faut pas s’étonner de cela. Il demeura plusieurs mois chez le roi de Mogor Ekebas, bien
vu et caressé de ce prince, de la cour duquel il racontait plus tard tout ce qu’ont depuis couché par écrit les anglais, les
hollandais et même les pères jésuites. Il devint docte, car il avait les deux maîtres de toute doctrine : voyage et malheur.
II étudia les faunes et les flores de tous les climats. Il observa les vents par les migrations des oiseaux et les courants par
les migrations des céphalopodes. Il vit passer dans les régions sous-marines l’ommastrephes sagittatus allant au pôle
nord et l’ommastrephes giganteus allant au pôle sud. Il vit les hommes et les monstres ainsi que l’ancien Grec Ulysse. Il
connut toutes les bêtes merveilleuses, le rosmar, le râle-noir, le solendguse, les garagians semblables à des aigles de
mer, les queues-de-jonc de l’île de Comoré, les caper-calzes d’Ecosse, les antenales qui vont par troupes, les alcatrazes
grands comme des oies, les moraxos plus grands que les tiburons, les peymones des îles Maldives qui mangent des
hommes, le poisson manare qui a une tête de bœuf, l’oiseau claki qui naît de certains bois pourris, le petit saru qui chante mieux que le perroquet, et enfin le boranet, l’animal-plante des pays tartares, qui a une racine en terre et qui broute
l’herbe autour de lui. Il tua à la chasse un triton de mer de l’espèce yapiara et il inspira de l’amour à un triton de rivière
de l’espèce baëpapina. Un jour étant en l’île de Manar, qui est à deux cents lieues de Goa, il fut appelé par des pêcheurs,
lesquels lui montrèrent sept hommes-évêques et neuf sirènes qu’ils avaient pris dans leurs filets. Il entendit le bruit nocturne du forgeron marin, et il mangea des cent cinquante-trois sortes de poissons qu’il y a dans la mer et qui se trouvèrent tous dans le filet des apôtres quand ils péchèrent par ordre du Seigneur. En Scythie il perça à coups de flèches un
griffon auquel les peuples arimaspes faisaient la guerre pour avoir l’or que cette bête gardait. Ces peuples voulurent le
faire roi, mais il se sauva. Enfin il manqua naufrager en mainte rencontre et notamment près du cap Gardafù que les
anciens appelaient Promontorium aromatorum ; à travers tant d’aventures, tant d’erreurs, de fatigues, de prouesses, de
travaux et de misères, le brave et fidèle chevalier Pécopin n’avait qu’un but, retrouver l’Allemagne ; qu’une espérance,
rentrer au Falkenburg ; qu’une pensée, revoir Bauldour.
Grâce au talisman de la sultane qu’il portait toujours sur lui, il ne pouvait, on s’en souvient, ni vieillir ni mourir.
Il comptait pourtant tristement les années. A l’époque où il parvint enfin à atteindre le nord du pays de France, cinq ans
s’étaient écoulés depuis qu’il n’avait vu Bauldour. Quelquefois il songeait à cela le soir après avoir cheminé depuis
l’aube, il s’asseyait sur une pierre au bord de la route et il pleurait.
Puis il se ranimait et reprenait courage : — Cinq ans, pensait-il, oui, mais je vais la revoir enfin. Elle avait quinze ans,
eh bien ! elle en aura vingt ! — Ses vêtements étaient en lambeaux, sa chaussure était déchirée, ses pieds étaient en
sang, mais la force et la joie lui étaient revenues, et il se remettait en marche.
C’est ainsi qu’il parvint jusqu’aux montagnes des Vosges.
Un soir, après avoir fait route toute la journée dans les rochers, cherchant un passage pour descendre vers le Rhin, il
arriva à l’entrée d’un bois de sapins, de frênes et d’érables. Il n’hésita pas à y pénétrer. Il y marchait depuis plus d’une
heure quand tout à coup le sentier qu’il suivait se perdit dans une clairière semée de houx, de genévriers et de framboisiers sauvages. A côté de la clairière il y avait un marais. Épuisé de lassitude, mourant de faim et de soif, exténué, il
regardait de côté et d’autre cherchant une chaumière, une charbonnerie ou un feu de pâtre, quand tout à coup une troupe
de tadornes passa près de lui en agitant ses ailes et en criant. Pécopin tressaillit en reconnaissant ces étranges oiseaux
qui font leurs nids sous terre et que les paysans des Vosges appellent canards-lapins. Il écarta les touffes de houx et vit
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fleurir et verdoyer de toutes parts dans l’herbe le perce-pierre, l’angélique, l’ellébore et la grande gentiane. Comme il se
baissait pour s’en assurer, une coquille de moule tombée sur le gazon frappa son regard. Il la ramassa. C’était une de ces
moules de la Vologne qui contiennent des perles grosses comme des pois. Il leva les yeux ; un grand-duc planait au-dessus de sa tête.
Pécopin commençait à s’inquiéter. On conviendra qu’il y avait de quoi. Ces houx et ces framboisiers, ces tadornes, ces
herbes magiques, cette moule, ce grand-duc, tout cela était peu rassurant. Il était donc fort alarmé et se demandait avec
angoisse où il était, lorsqu’un chant éloigné parvint jusqu’à lui. Il prêta l’oreille. C’était une voix enrouée, cassée, chagrine, fâcheuse, sourde et criarde à la fois, et voici ce qu’elle chantait :
Mon petit lac engendre, en l’ombre qui l’abrite,
La riante Amphitrite et le noir Neptunus ;
Mon humble étang nourrit, sur des monts inconnus,
L’empereur Neptunus et la reine Amphitrite.
Je suis le nain, grand-père des géants.
Ma goutte d’eau produit deux océans.
Je verse de mes rocs, que n’effleure aucune ailé,
Un fleuve bleu pour elle, un fleuve vert pour lui.
J’épanche de ma grotte, où jamais feu n’a lui,
Le fleuve vert pour lui, le fleuve bleu pour elle.
Je suis le nain, grand-père des géants.
Ma goutte d’eau produit deux océans.
Une fine émeraude est dans mon sable jaune.
Un pur saphir se cache en mon humide écrin.
Mon émeraude fond et devient le beau Rhin ;
Mon saphir se dissout, ruisselle et fait le Rhône.
Je suis le nain, grand-père des géants.
Ma goutte d’eau produit deux océans.
Pécopin n’en pouvait plus douter. Pauvre voyageur fatigué, il était dans le fatal bois des pas-perdus. Ce bois est une
grande forêt pleine de labyrinthes, d’énigmes et de dédales où se promène le nain Roulon. Le nain Roulon habite un lac
dans les Vosges, au sommet d’une montagne, et parce que de là il envoie un ruisseau au Rhône et un autre ruisseau au
Rhin, ce nain fanfaron se dit le père de la Méditerranée et de l’Océan. Son plaisir est d’errer dans la forêt et d’y égarer
les passants. Le voyageur qui est entré dans le bois des pas-perdus n’en sort jamais.
Cette voix, cette chanson, c’étaient la chanson et la voix du méchant nain Roulon.
Pécopin éperdu se jeta la face contre terre.
— Hélas ! s’écria-t-il, c’est fini, je ne reverrai jamais Bauldour.
— Si fait, dit quelqu’un près de lui.
Il se redressa ; un vieux seigneur, vêtu d’un habit de chasse magnifique, était debout devant lui à quelques pas. Ce gentilhomme était complètement équipé. Un coutelas à poignée d’or ciselée lui battait la hanche et à sa ceinture pendait un
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cor incrusté d’étain et fait de la corne d’un buffle. Il y avait je ne sais quoi d’étrange, de vague et de lumineux dans ce
visage pâle qui souriait éclairé de la dernière lueur du crépuscule. Ce vieux chasseur ainsi apparu brusquement dans un
pareil lieu, à une pareille heure, vous eût certainement semblé singulier ainsi qu’à moi, mais dans le bois des pas-perdus
on ne songe qu’à Roulon, ce vieillard n’était pas un nain, et cela suffit à Pécopin.
Le bonhomme d’ailleurs avait la mine gracieuse, accorte et avenante. Et puis, bien qu’accoutré en déterminé chasseur, il
était si vieux, si usé, si courbé, si cassé, avait les mains si ridées et si débiles, les sourcils si blancs et les jambes si
amaigries que c’eût été pitié d’en avoir peur. Son sourire, mieux examiné, était le sourire banal et sans profondeur d’un
roi imbécile.
— Que me voulez-vous ? demanda Pécopin.
— Te rendre à Bauldour, dit le vieux chasseur toujours souriant.
— Quand ?
— Passe seulement une nuit en chasse avec moi.
— Quelle nuit ?
— Celle qui commence.
— Et je reverrai Bauldour ?
— Quand notre nuit de chasse sera finie, au soleil levant je te déposerai à la porte du Falkenburg.
— Chasser la nuit ?
— Pourquoi pas ?
— Mais c’est fort étrange.
— Bah !
— Mais c’est très fatigant.
— Non.
— Mais vous êtes bien vieux.
— Ne t’inquiète pas de moi.
— Mais je suis las, mais j’ai marché tout le jour, mais je suis mort de faim et de soif, dit Pécopin. Je ne pourrai seulement monter à cheval,
Le vieux seigneur détacha de sa ceinture une gourde damasquinée d’argent qui1 lui présenta.
— Bois ceci.
Pécopin porta avidement la gourde à ses lèvres. À peine avait-il avalé quelques gorgées qu’il se sentit ranimé. Il était
jeune, fort, alerte, puissant. Il avait dormi, il avait mangé, il avait bu. — Il lui semblait même par instants qu’il avait
trop bu. — Allons, dit-il, marchons, courons, chassons toute la nuit, je le veux bien ; mais je reverrai Bauldour ?
— Après cette nuit passée, au soleil levant.
— Et quel garant de votre promesse me donnez-vous ?
— Ma présence même. Le secours que je t’apporte. J’aurais pu te laisser mourir ici de faim, de lassitude et de misère,
t’abandonner au nain promeneur du lac Roulon ; mais j’ai eu pitié de toi.
— Je vous suis, dit Pécopin. C’est dit, au soleil levant, à Falkenburg.
— Holà, vous autres ! arrivez ! en chasse ! cria le vieux seigneur, faisant effort avec sa voix décrépite.
En jetant ce cri vers le taillis, il se retourna, et Pécopin vit qu’il était bossu. Puis il fit quelques pas, et Pécopin vit qu’il
était boiteux.
À l’appel du vieux seigneur, une troupe de cavaliers vêtus comme des princes et montés comme des rois, sortit de l’épaisseur du bois.
Ils vinrent se ranger dans un profond silence autour du vieux qui paraissait leur maître. Tous étaient armés de couteaux
ou d’épieux ; lui seul avait un cor. La nuit était tombée ; mais autour des gentilshommes se tenaient debout deux cents
valets portant deux cents torches.
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— Ebbene, dit le maître, ubi sunt los perros ?
Ce mélange d’italien, de latin et d’espagnol fut désagréable à Fécopin.
Mais le vieux reprit avec impatience : Les chiens ! les chiens !
Il achevait à peine que d’effroyables aboiements remplissaient la clairière. Une meute venait d’y apparaître.
Une meute admirable ; une vraie meute d’empereur. Des valets en jaquettes jaunes et en bas rouges, des estafiers de
chenil au visage féroce et des nègres tout nus la tenaient robustement en laisse.
Jamais concile de chiens ne fut plus complet. Il y avait là tous les chiens possibles, accouplés et divisés par grappes et
par raquettes, selon les races et les instincts. Le premier groupe se composait de cent dogues d’Angleterre et de cent
lévriers d’attache avec douze paires de chiens-tigres et douze paires de chiens-bauds. Le deuxième groupe était entièrement formé de greffiers de Barbarie blancs et marquetés de rouge, braves chiens qui ne s’étonnent pas du bruit, demeurent trois ans dans leur bonté, sont sujets à courir au bétail et servent pour la grande chasse. Le troisième groupe était
une légion de chiens de Norwége : chiens fauves, au poil vif tirant sur le roux, avec une tache blanche au front ou au
cou, qui sont de bon nez et de grand cœur et se plaisent au cerf surtout ; chiens gris, léopardés sur Péchine, qui ont les
jambes de même poil que les pattes d’un lièvre ou cannelées de rouge et de noir. Le choix en était excellent. Il n’y avait
pas un bâtard parmi ces chiens. Pécopin, qui s’y connaissait, n’en vit pas parmi les fauves un seul qui fût jaune ou marqué de gris, ni parmi les gris un seul qui fût argenté ou qui eût les pattes fauves. Tous étaient authentiques et bons. Le
quatrième groupe était formidable ; c’était une cohue épaisse, serrée et profonde de ces puissants dogues noirs de
l’abbaye de Saint-Aubert-en-Ardennes, qui ont les jambes courtes et qui ne vont pas vite, mais qui engendrent de si
redoutables limiers et qui chassent si furieusement les sangliers, les renards et les bêtes puantes. Comme ceux de
Norwége, tous étaient de bonne race, et vrais chiens gentilshommes, et avaient évidemment tété près du cœur. Ils avaient la tête moyenne, plutôt longue qu’écrasée, la gueule noire et non rouge, les oreilles vastes, les reins courbés, le râble
musculeux, les jambes larges, la cuisse troussée, le jarret droit bien herpé, la queue grosse près des reins et le reste
grêlé, le poil de dessous le ventre rude, les ongles forts, le pied sec, en forme de pied de renard. Le cinquième groupe
était oriental. Il avait dû coûter des sommes immenses ; car on n’y avait mis que des chiens de Palimbotra qui mordent
les taureaux, des chiens de Cintiqui qui attaquent les lions, et des chiens du Monomotapa qui font partie de la garde de
l’empereur des Indes. Du reste tous, anglais, barbaresques, norwégiens, ardennais et indous, hurlaient abominablement.
Un parlement d’hommes n’eût pas fait mieux.
Pécopin était ébloui de cette meute. Tous ses appétits de chasseur se réveillaient.
Cependant elle était un peu venue on ne sait d’où, et il ne pouvait s’empêcher de se dire à lui-même qu’il était singulier
qu’aboyant de la sorte, on ne l’eût pas entendue avant de la voir.
Le maître-valet qui menait toute cette vénerie était à quelques pas de Pécopin, lui tournant le dos. Pécopin alla à lui pour
le questionner, et lui mit la main sur l’épaule ; le valet se retourna. Il était masqué.
Cela rendit Pécopin muet. — Il commençait même à se demander fort sérieusement s’il suivrait en effet cette chasse
quand le vieillard l’aborda. — Hé bien, chevalier, que dis-tu de nos chiens ?
— Je dis, mon beau sire, que, pour suivre de si terribles chiens, il faudrait de terribles chevaux.
Le vieux, sans répondre, porta à sa bouche un sifflet d’argent qui était fixé au petit doigt de sa main gauche, précaution
d’homme de goût qui est exposé à voir des tragédies, et il siffla.
Au coup de sifflet, un bruit se fit dans les arbres, les assistants se rangèrent, et quatre palefreniers en livrée écarlate surgirent, menant deux chevaux magnifiques. L’un était un beau genêt d’Espagne, à l’allure magistrale, à la corne lisse,
noirâtre, haute, arrondie, bien creusée, aux pâturons courts, entredroits et lunés, aux bras secs et nerveux, aux genoux
décharnés et bien emboîtés. Il avait la jambe d’un beau cerf, la poitrine large et bien ouverte, l’échiné grasse, double et
tremblante. L’autre était un coureur tartare à la croupe énorme, au corsage long, aux flancs bien unis, au manteau bayardant. Son cou, d’une moyenne arcade, mais pas trop voûté, était revêtu d’une vaste perruque flottante et crépelue ; sa
queue bien épaisse pendait jusqu’à terre. Il avait la peau du front cousue sur ses yeux gros et étincelants, la bouche
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grande, les oreilles inquiètes, les naseaux ouverts, l’étoile au front, deux balzans aux jambes, son courage en fleur, et
l’âge de sept ans. Le premier avait la tête coiffée d’un chanfrein, le poitrail d’armes et la selle de guerre. Le second était
moins fièrement, mais plus splendidement harnaché ; il portait le mors d’argent, les roses dorées, la bride brodée d’or, la
selle royale, la housse de brocard, les houppes pendantes et le panache branlant. L’un trépignait, bravait, ronflait, rongeait son frein, brisait les cailloux et demandait la guerre. L’autre regardait çà et là, cherchait des applaudissements,
hennissait gaiement, ne touchait la terre que du bout de l’ongle, faisait le roi et piaffait à merveille. Tous deux étaient
noirs comme l’ébène. — Pécopin, les yeux presque effarés d’admiration, contemplait ces deux merveilleuses bêtes.
— Hé bien, dit le seigneur clopinant et toussant, et souriant toujours, lequel prends-tu ?
Pécopin n’hésita plus, et sauta sur le genêt.
— Es-tu bien en selle ? lui cria le vieillard.
— Oui, dit Pécopin.
Alors le vieux éclata de rire, arracha d’une main le harnois, le panache, la selle et le caparaçon du cheval tartare, le saisit de l’autre à la crinière, bondit comme un tigre et enfourcha à cru la superbe bête qui tremblait de tous ses membres ;
puis, saisissant sa trompe à sa ceinture, il se mit à sonner une fanfare tellement formidable que Pécopin assourdi crut
que cet effrayant vieillard avait le tonnerre dans la poitrine.
Au bruit de ce cor, la forêt s’éclaira dans ses profondeurs de mille lueurs extraordinaires, des ombres passèrent dans les
futaies, des voix lointaines crièrent : En châsse ! La meute aboya, les chevaux reniflèrent et les arbres frissonnèrent
comme par un grand vent.
En ce moment-là une cloche fêlée, qui semblait bêler dans les ténèbres, sonna minuit.
Au douzième coup le vieux seigneur emboucha son cor d’ivoire une seconde fois, les valets délièrent la meute, les chiens lâchés partirent comme la poignée de pierres que lance la baliste, les cris et les hurlements redoublèrent, et tous les
chasseurs, et tous les piqueurs, et tous les veneurs, et le vieillard, et Pécopin s’élancèrent au galop.
Galop rude, violent, rapide, étincelant, vertigineux, surnaturel, qui saisit Pécopin, qui l’entraîna, qui l’emporta, qui faisait résonner dans son cerveau tous les pas du cheval comme si son crâne eût été le pavé du chemin, qui l’éblouissait
comme un éclair, qui l’enivrait comme une orgie, qui l’exaspérait comme une bataille ; galop qui par moments devenait
tourbillon,, tourbillon qui parfois devenait ouragan.
La forêt était immense, les chasseurs étaient innombrables, les clairières succédaient aux clairières, le vent se lamentait,
les broussailles sifflaient, les chiens aboyaient, la colossale silhouette noire d’un énorme cerf à seize andouillers apparaissait par instants à travers les branchages et fuyait dans les pénombres et dans les clartés, le cheval de Pécopin
soufflait d’une façon terrible, les arbres se penchaient pour voir passer cette chasse et se renversaient en arrière après
l’avoir vue, des fanfares épouvantables éclataient par intervalles, puis elles se taisaient tout à coup, et Ton entendait au
loin le cor du vieux chasseur.
Pécopin ne savait où il était. En galopant près d’une ruine ombragée de sapins, parmi lesquels une cascade se précipitait
du haut d’un grand mur de porphyre, il crut retrouver le château de Nideck. Puis il vit courir rapidement à sa gauche des
montagnes qui lui parurent être les Basses-Vosges ; il reconnut successivement à la forme de leurs quatre sommets le
Ban-de-la-Roche, le Champ-du-Feu, le Climont et l’Ungersberg. Un moment après il était dans les Hautes-Vosges. En
moins d’un quart d’heure son cheval eut traversé le Giromagny, le Rotabac, le Sultz, le Barenkopf, le Graisson> le
Bressoir, le Haut-de-Honce, le mont de Lure, la Tête-de-1’Ours, le grand Donon et le grand Ventron. Ces vastes cimes
lui apparaissaient pêle-mêle dans les ténèbres, sans ordre et sans lien ; on eût dit qu’un géant avait bouleversé la grande
chaîne d’Alsace. Il lui semblait par moments distinguer au-dessous de lui les lacs que les Vosges portent sur leurs
sommets, comme si ces montagnes eussent passé sous le ventre de son cheval. C’est ainsi qu’il vit son ombre se réfléchir dans le bain-des-païens et dans le saut-des-cuves, dans le lac Blanc et dans le lac Noir. Mais il la vit comme les
hirondelles voient la leur en rasant le miroir des étangs, aussitôt disparue qu’apparue. Cependant, si étrange et si
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effrénée que fût cette course, il se rassurait en portant la main à son talisman et en songeant qu’après tout il ne s’éloignait pas du Rhin.
Tout à coup une brume épaisse l’enveloppa, les arbres s’y effacèrent, puis s’y perdirent, le bruit de la chasse redoubla
dans cette ombre et son genêt d’Espagne se mit à galoper avec une nouvelle furie. Le brouillard était si épais que Pécopin y distinguait à peine les oreilles de son cheval dressées devant lui. Dans des moments si terribles, ce doit être un
grand effort et c’est à coup sûr un grand mérite que de jeter son âme jusqu’à Dieu et son cœur jusqu’à sa maîtresse.
C’est ce que faisait dévotement le brave chevalier. Il songeait donc au bon Dieu et à Bauldour, plus encore peut-être à
Bauldour qu’au bon Dieu, quand il lui sembla que la lamentation du vent devenait comme une voix et prononçait distinctement ce mot : Heimburg ; en ce moment une grosse torche portée par quelque piqueur traversa le brouillard, et, à
la clarté de cette torche, Pécopin vit passer au-dessus de sa tête un milan qui était percé d’une flèche et qui volait pourtant. Il voulut regarder cet oiseau, mais son cheval fit un bond, le milan donna un coup d’aile, la torche s’enfonça dans
le bois et Pécopin retomba dans la nuit. Quelques instants après le vent parla encore et dit : Vaugtsberg, une nouvelle
lueur illumina le brouillard, et Pécopin aperçut dans l’ombre un vautour dont l’aile était traversée par un javelot et qui
volait pourtant. Il ouvrit les yeux pour voir, il ouvrit la bouche pour crier ; mais avant qu’il eût lancé son regard, avant
qu’il eût jeté son cri, la lueur, le vautour et le javelot avaient disparu. Son cheval ne s’était pas ralenti une minute et
donnait tête baissée dans tous ces fantômes, comme s’il eût été le cheval aveugle du démon Paphos ou le cheval sourd
du roi Sisymordachus. Le vent cria une troisième fois et Pécopin entendit cette voix lugubre de l’air qui disait : Rheinstein ; un troisième éclair empourpra les arbres dans la brume, et un troisième oiseau passa. C’était un aigle qui avait une
sagette dans le ventre et qui volait pourtant. Alors Pécopin se souvint de la chasse du pfalzgraf où il s’était laissé entraîner, et il frissonna. Mais le galop du genêt était si éperdu, les arbres et les objets vagues du paysage nocturne fuyaient si promptement, la vitesse de tout était si prodigieuse autour de Pécopin que, même en lui, rien ne pouvait s’arrêter.
Les apparences et les visions se succédaient si confusément qu’il ne pouvait même fixer sa pensée à ses tristes souvenirs. Les idées passaient dans sa tête comme le vent. On entendait toujours au loin le bruit de la chasse, et par instants le
monstrueux cerf de la nuit bramait dans les halliers.
Peu à peu le brouillard s’était levé. Soudain l’air devint tiède, les arbres changèrent de forme, des chênes-liéges, des
pistachiers et des pins d’Alep apparurent dans les rochers ; une large lune blanche entourée d’un immense halo éclairait
lugubrement les bruyères. Pourtant ce n’était pas jour de lune.
En courant au fond d’un chemin creux, Pécopin se pencha et arracha à la berge une poignée d’herbes. A la lueur de la
lune il examina ces plantes et reconnut avec angoisse l’anthylle vulnéraire des Cévennes, la véronique filiforme et la
férule commune dont les feuilles hideuses se terminent par des griffes. Une demi-heure après le vent était encore plus
chaud, je ne sais quels mirages de la mer remplissaient à de certains moments les intervalles des futaies, il se courba
encore une fois sur la berge du chemin et arracha de nouveau les premières plantes que sa main rencontra. Cette fois
c’était le cytise argenté de Cette, L’anémone étoilée de Nice, la lavatère maritime de Toulon, le géranium sanguineum
des Basses-Pyrénées si reconnaissable à sa feuille cinq fois palmée, et l’astrantia major dont la fleur est un soleil qui
rayonne à travers un anneau comme la planète Saturne. Pécopin vit qu’il s’éloignait du Rhin avec une effroyable rapidité ; il avait fait plus de cent lieues entre les deux poignées d’herbes. Il avait traversé les Vosges, il avait traversé les Cévennes, il traversait en ce moment les Pyrénées. — Plutôt la mort, pensa-t-il, et il voulut se jeter en bas de son cheval.
Au mouvement qu’il fit pour se désarçonner, il se sentit étreindre les pieds comme par deux mains de fer. Il regarda. Ses
étriers l’avaient saisi et le tenaient. C’étaient des étriers vivants.
Les cris lointains, les hennissements et les aboiements faisaient rage ; le cor du vieux chasseur, précédant la chasse à
une distance effrayante, sonnait des mélodies sinistres ; et à travers de grands branchages bleuâtres que le vent secouait,
Pécopin voyait les chiens traverser à la nage des étangs pleins de reflets magiques.
Le pauvre chevalier se résigna, ferma les yeux et se laissa emporter.
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Une fois il les rouvrit ; la chaleur de fournaise d’une nuit tropicale lui frappait le visage ; de vagues rugissements de
tigres et de chacals arrivaient jusqu’à lui ; il entrevit des ruines de pagodes sur le faîte desquelles se tenaient gravement
debout, rangés par longues files, des vautours, des philosophes et des cigognes ; des arbres d’une forme bizarre prenaient dans les vallées mille attitudes étranges ; il reconnut le banyan et le baobab ; l’ouë-nonbouyh sifflait, Foyra-rameum
fredonnait, le petit gonambuch chantait. Pécopin était dans une forêt de l’Inde.
Il ferma les yeux.
Puis il les rouvrit encore. En un quart d’heure aux souffles de l’équateur avait succédé un vent de glace. Le froid était
terrible. Le sabot du cheval faisait crier le givre. Les rangifères, les aises et les satyres couraient comme des ombres à
travers la brume. L’âpreté des bois et des montagnes était affreuse. Il n’y avait à l’horizon que deux ou trois rochers
d’une hauteur immense autour desquels volaient les mouettes et les stercoraires, et à travers d’horribles verdures noires
on entrevoyait de grandes vagues blanches auxquelles le ciel jetait des flocons de neige et qui jetaient au ciel des flocons d’écume. Pécopin traversait les mélèzes de la Biarmie qui sont au cap Nord.
Un moment après la nuit s’épaissit, Pécopin ne vit plus rien, mais il entendit un bruit épouvantable et il reconnut qu’il
passait près du gouffre Maelstron qui est le Tartare des anciens et le nombril de la mer.
Qu’était-ce donc que cette effroyable forêt qui faisait le tour de la terre ?
Le cerf à seize andouillers reparaissait par intervalles, toujours fuyant et toujours poursuivi. Les ombres et les rumeurs
se précipitaient pêle-mêle sur sa trace, et le cor du vieux chasseur dominait tout, même le bruit du gouffre Maelstron.
Tout à coup le genêt s’arrêta court. Les aboiements cessèrent, tout se tut autour de Pécopin. Le pauvre chevalier, qui
depuis plus d’une heure avait refermé les yeux, les rouvrit. Il était devant la façade d’un sombre et colossal édifice dont
les fenêtres éclairées semblaient jeter des regards. Cette façade était noire comme un masque et vivante comme un visage.
Ce qu’était cet édifice, il serait malaisé de le dire. C’était une maison forte comme une citadelle, une citadelle magnifique comme un palais, un palais menaçant comme une caverne, une caverne muette comme un tombeau.
On n’y entendait aucune voix, on n’y voyait aucune ombre.
Autour de ce château, dont l’immensité avait je ne sais quoi de surnaturel, la forêt s’étendait à perte de vue. Il n’y avait
plus de lune sur l’horizon. On n’apercevait au ciel que quelques étoiles qui étaient rouges comme du sang.
Le cheval s’était arrêté au pied d’un perron qui aboutissait à une grande porte fermée. Pécopin regarda à droite et à gauche, et il lui sembla distinguer tout le long de la façade d’autres perrons au bas desquels se tenaient immobiles d’autres
cavaliers arrêtés comme lui et qui semblaient attendre en silence.
Pécopin tira son poignard ; et il allait heurter du pommeau la balustrade de marbre du perron, quand le cor du vieux
chasseur éclata subitement près du château, probablement derrière la façade, puissant, énorme, sonore, assourdissant
comme le clairon plein d’orage où souffle le mauvais ange. Ce cor, dont le bruit courbait visiblement les arbres, chantait
dans les ténèbres un effroyable hallali.
Le cor se tut. À peine eut-il fini que les portes du château s’ouvrirent en dehors à deux battants, comme si un vent intérieur les eût violemment poussées toutes à la fois. Un flot de lumière en sortit.
Le genêt monta les degrés du perron, et Pécopin entra dans une vaste salie splendidement illuminée.
Les murailles de cette salle étaient couvertes de tapisseries figurant des sujets tirés de l’histoire romaine. Les entre-deux
des lambris étaient revêtus de cyprès et d’ivoire. En haut régnait une galerie pleine de fleurs et d’arbres, et dans un angle, sous une rotonde, on voyait un lieu pour les femmes pavé d’agate. Le reste du pavé était une mosaïque représentant
la guerre de Troie.
Du reste, personne ; la salle était déserte. Rien de plus sinistre que cette grande clarté dans cette grande solitude.
Le cheval, qui allait de lui-même et dont le pas sonnait gravement sur le pavé, traversa lentement cette première salle et
entra dans une seconde chambre qui était de même illuminée, immense et déserte.
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Hall Freire 218
De larges panneaux de cèdre sculpté se développaient autour de cette chambre, et dans ces panneaux un mystérieux
artiste avait encadré des tableaux merveilleux incrustés de nacre et d’or. C’étaient des batailles, des chasses, des fêtes
représentant des châteaux pleins d’artifices à feu assiégés et pris par des faunes et des sauvages, des joutes et des guerres navales avec toutes sortes de vaisseaux courant sur un océan de turquoises, d’émeraudes et de saphirs qui imitait
admirablement la rondeur de l’eau salée et la tumeur de la mer.
Au-dessous de ces tableaux une frise fouillée du ciseau le plus fin et le plus magistral figurait, dans les innombrables
rapports qu’elles ont entre elles, les trois espèces de créatures terrestres qui contiennent des esprits : les géants, les
hommes et les nains ; et partout dans cette œuvre les géants et les nains humiliaient l’homme, plus petit que les géants et
plus bête que les nains.
Le plafond pourtant semblait rendre je ne sais quel malicieux hommage au génie humain. II était entièrement composé
de médaillons accostés dans lesquels brillaient, éclairés d’un feu sombre et coiffés de couronnes de Pluton, les portraits
de tous les hommes à qui la terre doit des découvertes réputées utiles, et qui pour ce motif sont appelés les bienfaiteurs
de l’humanité. Chacun était là pour l’invention qu’il a faite. Arabus y était pour la médecine, Dédalus pour les
labyrinthes, Pisistrate pour les livres, Aristote pour les bibliothèques, Tubalcaïn pour les enclumes, Architas pour les
machines de guerre, Noé pour la navigation, Abraham pour la géométrie, Moïse pour la trompette, Amphictyon pour la
divination des songes, Frédéric Barberousse pour la chasse au faucon, et le sieur Bachou, lyonnais, pour la quadrature
du cercle. Dans les angles de la voûte et dans les pendentifs se groupaient, comme les maîtresses-constellations de ce
ciel d’étoiles humaines, force visages illustres : Flavius, qui a trouvé la boussole ; Christophe Colomb, qui a découvert
l’Amérique ; Botargus, qui a imaginé les sauces de cuisine ; Mars, qui a inventé la guerre ; Faustus, qui a inventé l’imprimerie ; le moine Schwartz, qui a inventé la poudre ; et le pape Pontian, qui a inventé les cardinaux.
Plusieurs de ces fameux personnages étaient inconnus à Pécopin, par la grande raison qu’ils n’étaient pas encore nés à
l’époque où se passe cette histoire.
Le chevalier pénétra ainsi, marchant où le menait le pas de son cheval, dans une longue enfilade de salles magnifiques.
En l’une d’elles il remarqua sur le mur oriental cette inscription en lettres d’or : « Le caoué des arabes, autrement dit
cave, est une herbe qui croît en abondance dans l’empire du Turc, et qu’on appelle dans l’Inde l’herbe miraculeuse,
étant préparée comme il s’ensuit : prenez demi-once de cette herbe que vous mettrez en poudre et ferez infuser dans une
pinte d’eau commune trois ou quatre heures ; puis vous la faites bouillir de sorte qu’il y ait un tiers de consommé. Buvez-la peu à peu, quasi comme en humant. Les personnes de condition l’adoucissent avec le sucre et l’aromatisent avec
l’ambre gris. »
En face, sur le mur occidental brillait cette autre légende : « Le feu grégeois se fait et excite dans l’eau avec du charbon
de saule, du sel, de l’eau-de-vie, du soufre, de la poix, de l’encens et du camphre, lequel même brûle seul dans l’eau
sans autre mixtion et consume toute matière. »
Dans une autre salle il n’y avait pour tout ornement que le portrait fort ressemblant de ce laquais qui, au festin de Trimalcion, faisait le tour de la table en chantant d’une voix délicate les sauces où il entre du benjoin.
Partout des torchères, des lustres, des chandelles et des girandoles, reflétés par d’immenses miroirs de cuivre et d’acier,
étincelaient dans ces chambres démesurées et opulentes où Pécopin ne rencontra pas un être vivant, et à travers lesquelles il s’avançait, l’œil hagard et l’esprit trouble, seul, inquiet, effaré, plein de ces idées inexprimables et confuses
qui viennent aux rêveurs dans le sombre des bois.
Enfin il arriva devant une porte de métal rougeâtre au-dessus de laquelle s’arrondissait, dans un feuillage de pierreries,
une grosse pomme d’or, et sur cette pomme il lut ces deux lignes :
ADAM A INVENTÉ LE REPAS,
EVE A INVENTÉ LE DESSERT.
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Comme il cherchait à approfondir le sens lugubrement ironique de cette inscription, la porte s’ouvrit lentement, le cheval entra, et Pécopin fut comme un homme qui passe brusquement du plein soleil de midi dans une cave. La porte s’était
refermée derrière lui, et le lieu dans lequel il venait d’entrer était si ténébreux qu’au premier moment il se crut aveuglé.
Il apercevait seulement à quelque distance une large lueur blême. Peu à peu ses yeux, éblouis par la lumière surnaturelle
des antichambres qu’ils venaient de traverser, s’accoutumèrent à l’obscurité, et il commença à distinguer, comme dans
une vapeur, les mille piliers monstrueux d’une prodigieuse salle babylonienne. La lueur qui était au milieu de cette salle
prit des contours, des formes s’y dessinèrent, et au bout de quelques instants le chevalier vit se développer dans l’ombre, au centre d’une forêt de colonnes torses, une grande table lividement éclairée par un chandelier à sept branches, à la
pointe desquelles tremblaient et vacillaient sept flammes bleues.
Au haut bout de cette table, sur un trône d’or vert, était assis un géant d’airain qui était vivant. Ce géant était Nemrod. À
sa droite et à sa gauche siégeaient sur des fauteuils de fer une foule de convives pâles et silencieux, les uns coiffés du
bonnet à la mauresque, les autres plus couverts de perles que le roi de Bisnagar.
Pécopin reconnut là tous les fameux chasseurs qui ont laissé trace dans les histoires : le roi Mithrobuzane, le tyran Machanidas, le consul romain Emilius Barbula II ; Rollo, roi de la mer ; Zuentibold, l’indigne fils du grand Arnolphe, roi
de Lorraine ; Haganon, favori de Charles de France ; Herbert, comte de Vermandois ; Guillaume-Tête-d’Étoupe, comte
de Poitiers, auteur de l’illustre maison de Rechignevoisin ; le pape Vitalianus ; Fardulfus, abbé de Saint-Denis ;
Athelstan, roi d’Angleterre, et Aigrold, roi de Danemark. À côté de Nemrod se tenait accoudé le grand Cyrus qui fonda
l’empire persan deux mille ans avant Jésus-Christ, et qui portait sur sa poitrine ses armoiries ; lesquelles sont, comme
on sait, de sinople à un lion d’argent sans vilenie, couronné de laurier d’or à une bordure crénelée d’or et de gueules
chargée de huit tierces-feuilles à queue d’argent.
Cette table était servie selon l’étiquette impériale, et aux quatre angles il y avait quatre chasseresses distinguées et illustres : la reine Emma, la reine Ogive, mère de Louis-d’Outre-mer, la reine Gerberge, et Diane, laquelle en sa qualité de
déesse avait un dais et un cadenas comme les trois reines.
Aucun de ces convives ne mangeait, aucun ne parlait, aucun ne regardait. Une large place vide au milieu de la nappe
semblait attendre qu’on servît le repas, et il n’y avait sur la table que des flacons où étincelaient mille boissons des pays
les plus variés, le vin de palme de l’Inde, le vin de riz de Bengala, l’eau distillée de Sumatra, l’arak du Japon, le pamplis
des chinois et le pechmez des turcs. Çà et là, dans de vastes cruches de terre richement émaillée, écumaif ce breuvage
que les norwégiens appellent wel, les goths buska, les carinthiens vo, les sclavons oll, les dalmates bieu, les hongrois
ser, les bohèmes piva, les polonais pwo, et que nous nommons bière.
Des nègres qui ressemblaient à des démons ou des démons qui ressemblaient à des nègres entouraient la table, debout,
muets, la serviette au bras et l’aiguière à la main. Chaque convive avait, comme il convient, son nain à côté de lui. Madame Diane avait son lévrier.
En regardant attentivement dans les profondeurs les plus brumeuses de ce lieu extraordinaire, Pécopin vit que dans
l’immensité peut-être sans fond de la salle, sous la forêt de colonnes, il y avait une multitude de spectateurs ; tous à
cheval comme lui, tous en habit de chasse : ombres par l’obscurité, statues par l’immobilité, spectres par le silence.
Parmi les plus rapprochés, il crut reconnaître les cavaliers qui accompagnaient le vieux chasseur dans le bois des pasperdus. Comme je viens de le dire, convives, valets, assistants gardaient un silence effrayant, et plutôt que d’entendre un
souffle sortir de cette foule on eût entendu chuchoter les pierres d’un tombeau.
Il faisait très-froid dans ces ténèbres. Pécopin était glacé jusque dans les os ; cependant il sentait la sueur ruisseler sur
tous ses membres.
Tout à coup des jappements retentirent, d’abord lointains, bientôt violents, joyeux et sauvages ; puis le cor du vieux
chasseur s’y mêla brusquement et se mit à exécuter, avec une splendeur triomphale, un admirable hallali parfaitement
étrange et nouveau, qui, retrouvé plusieurs siècles plus tard par Roland de Lattre dans une inspiration nocturne, valut à
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ce grand musicien, le 6 avril 1574, l’honneur d’être créé par le pape Grégoire XIII chevalier de Saint-Pierre à l’éperon
d’or de numero participantium.
À ce bruit Nemrod leva la tête, l’abbé Fardulfus se détourna à demi et Cyrus qui s’appuyait sur le coude droit s’appuya
sur le coude gauche.
Les aboiements et le cor se rapprochèrent ; une grande porte, faisant face à celle par ou Pécopin était entré, s’ouvrit à
deux battants, et le chevalier vit venir dans une longue galerie obscure les deux cents valets porte-flambeaux soutenant
sur leurs épaules un immense plat d’or vert dans lequel gisait, au milieu d’une vaste sauce, le cerf aux seize andouillers
rôti, noirâtre et fumant.
En avant des valets, dont les deux cents torches étaient rouges comme braise, marchait le vieux chasseur, son cor de
buffle à la main, à cheval sur le coureur tartare inondé d’écume. Il ne soufflait plus dans sa trompe ; mais il souriait
courtoisement au milieu des hurlements inouïs de la meute qui escortait le cerf, toujours conduite par le piqueur masqué.
Au moment où ce cortège déboucha de la galerie et entra dans la salle, les torches des valets devinrent bleues et les chiens se turent subitement. Ces effroyables dogues aux gueules de lions et aux rugissements de tigres s’avancèrent à la
suite de leur maître, à pas lents, la tête basse, la queue serrée entre les jambes, les reins frissonnants d’une profonde
terreur, les yeux suppliants, vers la table où siégeaient les mystérieux convives toujours blêmes, impassibles et mornes
comme des faces de marbre.
Arrivé près de la table, le vieux regarda en face les lugubres soupeurs et éclata de rire :
— Hombres y mugeres, or çà, vosotros. belle signore, domini et dominée, âmigos mios, comment va la besogne ?
— Tu viens bien tard, dit l’homme d’airain.
— C’est que j’avais un ami à qui je voulais faire voir la chasse, répondit le vieillard.
— Oui, répliqua Nemrod, mais regarde.
En même temps, étendant le pouce de sa main droite par-dessus son épaule de bronze, il désignait derrière lui le fond de
la salle. L’œil de Pécopin suivit machinalement l’indication du géant, et il vit au loin se dessiner sur les murailles noires
des ogives blanchâtres : comme s’il y eût eu là des fenêtres vaguement frappées par les premières lueurs de l’aube.
— Eh bien ! reprit le chasseur, il faut dépêcher.
Et, sur un signe qu’il leur fit, les deux cents porte-flambeaux, aidés par les nègres, se disposèrent à placer le cerf rôti sur
la table au pied du chandelier à sept branches.
Alors Pécopin enfonça les éperons dans les flancs du genêt qui lui obéit, chose étrange, peut-être à cause de l’approche
du jour qui affaiblit les sortilèges ; il poussa son cheval entre les valets et la table, se dressa debout sur les étriers, mit
l’épée à la main, regarda fixement tour à tour les sinistres visages de la grande table et le vieux chasseur et s’écria d’une
voix tonnante : — Pardieu ! qui que vous soyez, spectres, larves, apparences et visions, empereurs ou démons, je vous
défends de faire un pas, ou, par la mort et que Dieu m’aide f je vous apprendrai à tous, même à toi, l’homme de bronze,
ce que pèse sur la tête d’un fantôme le soulier de fer d’un chevalier vivant ! Je suis dans la caverne des ombres, mais je
prétends y faire à ma fantaisie et à ma guise des choses réelles et terribles ! ne vous en mêlez pas, mes maîtres ! Et toi
qui m’as menti, vieux misérable, tu peux bien dégainer en jeune homme puisque tu souffles dans ta trompe avec plus de
rage qu’un taureau. Mets-toi donc en garde, ou, par la messe ! je te coupe les reins à travers le ventre, fusses-tu le roi
Pluto en personne !
— Ah ! vous voilà, mon cher ! dit le vieux. Eh bien ! vous allez souper avec nous.
Le sourire qui accompagnait cette gracieuse invitation exaspéra Pécopin. — En garde, vieux drôle ! Ah ! tu m’avais fait
une promesse et tu m’as trompé !
— Hijo ! attends la fin ! qu’en sais-tu ?
— En garde, te dis-je !
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— Ouais ! mon bon ami, vous, prenez mal les choses.
— Rends-moi Bauldour, tu me l’as promis !
— Qui vous dit que je ne vous la rendrai pas ? Mais qu’en ferez-vous quand vous la reverrez ?
— Elle est ma fiancée, tu le sais bien, misérable, et je l’épouserai, dit Pécopin.
— Et ce sera probablement avant peu un triste et malheureux couple de plus, répondit le vieux chasseur en hochant la
tête. Après tout, bah ! qu’est-ce que cela me fait ? Il faut que les choses soient ainsi. Le mauvais exemple est donné aux
mâles et aux femelles d’ici-bas par le mâle et la femelle de là-haut, le soleil et la lune, qui font un détestable ménage et
ne sont jamais ensemble.
— Holà ! trêve à la raillerie, cria le chevalier, ou je t’extermine, et j’extermine ces démons et leurs déesses, et j’en purge
cette caverne.
Le vieux répondit avec un rire de bateleur : — Purge, mon ami ! voici la formule : séné, rhubarbe, sel d’Epsom. Le séné
balaye l’estomac, la rhubarbe nettoie le duodénum, le sel d’Epsom ramone les intestins.
Pécopin furieux s’élança sur lui l’épée haute ; mais à peine son cheval avait-il fait un pas qu’il le sentit trembler et
s’affaisser. Il regarda. Un froid et blanc rayon de jour pénétrait dans l’antre et glissait sur les dalles bleuies. Excepté le
vieux chasseur toujours souriant et immobile, tous les assistants commençaient à s’effacer. Le chandelier et les torches
se mouraient ; la prunelle des spectres, que la brusque incartade de Pécopin avait un moment ranimée, n’avait plus de
regard ; et à travers l’énorme torse d’airain du géant Nemrod, comme à travers une jarre de verre, Pécopin distinguait
nettement les piliers du fond de la salle.
Son cheval devenait impalpable et fondait lentement sous lui. Les pieds de Pécopin étaient près de toucher la terre.
Tout à coup un coq chanta. Il y avait je ne sais quoi de terrible dans ce chant clair, métallique et vibrant, qui traversa
l’oreille de Pécopin comme une lame d’acier. Au même instant un vent frais passa, son cheval s’évanouit sous lui, il
chancela et faillit tomber. Quand il se redressa, tout avait disparu.
Il se trouvait seul, debout sur le sol, l’épée à la main, dans un ravin obstrué de bruyères, à quelques pas d’une eau qui
écumait dans des rochers, à la porte d’un vieux château. Le jour naissait. Il leva les yeux et poussa un cri de joie. Ce
château, c’était le Falkenburg.
Le coq chanta une seconde fois. Son chant partait de la basse-cour du château. Ce coq, dont la voix venait de faire
écrouler autour de Pécopin le palais plein de vertiges des chasseurs nocturnes, avait peut-être cette nuit même becqueté
les miettes qui tombaient chaque soir des mains bénies de Bauldour.
O puissance de l’amour ! force généreuse du cœur ! chaud rayonnement des belles passions et des belles années ! A
peine Pécopin eut-il revu ces tours bien-aimées que la fraîche et éblouissante image de sa fiancée lui apparut et le remplit de lumière, et qu’il sentit se dissoudre en lui comme une fumée toutes les misères du passé, et les ambassades, et les
rois, et les voyages, et les spectres, et l’effrayant gouffre de visions dont il sortait.
Certes, ce n’est pas ainsi, avec la tête haute et le regard enflammé, que le prêtre couronné dont parle le Speculum historiale émergea du milieu des fantômes après qu’il eut visité le sombre et splendide intérieur du dragon d’airain. Et puisque cette figure redoutable vient d’apparaître à celui qui raconte ces histoires, il convient de lui jeter une malédiction et
d’imposer ici un stigmate à ce faux sage qui avait deux faces, tournées l’une vers la clarté, l’autre vers l’ombre, et qui
était à la fois pour Dieu le pape Sylvestre II et pour le diable le magicien Gerbert.
Vis-à-vis les traîtres et les personnages doubles la haine est devoir. Tout parisien doit en passant une pierre à Périnet
Leclerq ; tout espagnol au comte Julien, tout chrétien à Judas, et tout homme à Satan.
Du reste, ne l’oublions pas, Dieu met invariablement le jour à côté de la nuit, le bien auprès du mal. l’ange en face du
démon. L’enseignement austère de la Providence résulte de cette éternelle et sublime antithèse. Il semble que Dieu dise
sans cesse : Choisissez. Au onzième siècle, en regard du prêtre cabaliste Gerbert il plaça le chaste et savant Emuldus. Le
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magicien fut pape, le saint docteur fut médecin. En sorte que les hommes purent voir sous le même ciel, parmi les mêmes événements et à la même époque, la science blanche dans la robe noire et la science noire dans la robe blanche.
Pécopin avait remis son épée au fourreau et marchait à grands pas vers le manoir dont les fenêtres, déjà égayées d’un
rayon de soleil, semblaient rendre à l’aube son sourire. Comme il approchait du pont, duquel il ne reste qu’une arche
aujourd’hui, il entendit derrière lui une voix qui disait : — Eh bien, chevalier de Sonneck, ai-je tenu ma promesse ?
Il se retourna. Deux hommes étaient debout dans la bruyère. L’un était le piqueur masqué, et Pécopin frissonna en l’apercevant. Il portait sous son bras un grand portefeuille rouge. L’autre était un vieux petit homme bossu, boiteux et fort
laid. C’était lui qui avait parlé à Pécopin, et Pécopin cherchait à se rappeler où il avait vu ce visage.
— Mon gentilhomme, reprit le bossu, tu ne me reconnais donc pas ?
— Si fait, dit Pécopin.
— À la bonne heure !
— Vous êtes l’esclave des bords de la mer Rouge.
— Je suis le chasseur du bois des pas-perdus, répondit le petit homme.
C’était le diable.
— Sur ma foi, repartit Pécopin, soyez ce qu’il vous plaît d’être ; mais, puisque en somme vous m’avez tenu parole, puisque me voilà à Falkenburg, puisque je vais revoir Bauldour, je suis vôtre, messire, et en toute loyauté je vous remercie.
— Cette nuit tu m’accusais. Que t’ai-je dit ?
— Vous m’avez dit : Attends la fin !
— Eh bien, maintenant tu me remercies ; et je te dis encore : Attends la fin ! Tu te pressais peut-être trop de m’accuser,
tu te hâtes peut-être trop de me remercier.
En parlant ainsi, le petit bossu avait un air inexprimable. L’ironie, c’est le visage même du diable. Pécopin tressaillit.
— Que voulez-vous dire ?
Le diable lui montra le piqueur masqué : — Reconnais-tu cet homme ?
— Oui.
— Le connais-tu ?
— Non.
Le piqueur se démasqua : c’était Erilangus. Pécopin se sentit trembler. Le diable continua :
— Pécopin, tu étais mon créancier. Je te devais deux choses : cette bosse et ce pied-bot. Or je suis bon débiteur. Je suis
allé trouver ton ancien valet Erilangus pour m’informer de tes goûts. Il m’a conté que tu aimais la chasse. Alors j’ai dit :
Ce serait dommage de ne pas faire chasser la chasse noire à ce beau chasseur. Comme le soleil baissait je t’ai rencontré
dans une clairière. Tu étais dans le bois des pas-perdus. J’arrivais à temps ; le nain Roulon t’allait prendre pour lui, je
t’ai pris pour moi. Voilà.
Pécopin frémissait involontairement. Le diable ajouta :
— Si tu n’avais eu ton talisman, je t’aurais gardé. Mais j’aime autant que les choses soient comme elles sont. La vengeance se doit assaisonner à diverses sauces.
— Mais enfin que veux-tu dire, démon ? reprit Pécopin avec effort.
Le diable poursuivit. — Pour récompenser Érilangus de ses renseignements, je l’ai fait mon porte-feuille. Il a de bons
bénéfices.
— Mauvais drôle, me diras-tu enfin ce que cela signifie ? répéta Pécopin.
— Que t’avais-je promis ?
— Qu’après cette nuit passée en chasse avec toi, au soleil levant, tu me ramènerais au Falkenburg.
— T’y voici.
— Dis-moi, démon, est-que Bauldour est morte ?
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— Non.
— Est-ce qu’elle est mariée ?
— Non.
— Est-ce qu’elle a pris le voile ?
— Non.
— Est-ce qu’elle n’est plus au Falkenburg ?
— Si.
— Est-ce qu’elle ne m’aime plus ?
— Toujours.
— En ce cas et si tu dis vrai, s’écria Pécopin respirant comme s’il eût été délivré du poids d’une montagne, qui que tu
sois et quoi qu’il arrive, je te remercie.
— Va donc ! dit le diable, tu es content et moi aussi.
Cela dit, il saisit Érilangus dans ses bras, quoiqu’il fût petit et qu’Érilangus fût grand, puis, tordant sa jambe difforme
autour de l’autre et se dressant sur la pointe du pied, il fit une pirouette et Pécopin le vit s’enfoncer en terre comme une
vrille. Une seconde après il avait disparu.
La terre en se refermant sur le diable laissa échapper une jolie petite lueur violette semée d’étincelles vertes, qui s’en
alla gaiement, avec force gambades et cabrioles, jusqu’à la forêt où elle resta quelque temps arrêtée et comme accrochée
dans les arbres, les colorant de mille nuances lumineuses, ainsi que fait l’arc-en-ciel lorsqu’il se mêle à des feuillages.
Pécopin haussa les épaules. — Bauldour est vivante, Bauldour est libre, pensa-t-il, et Bauldour m’aime ! Que puis-je
craindre ? Il y avait hier au soir avant que je rencontrasse ce démon cinq ans précisément que j’e l’avais quittée. Eh bien, il y aura cinq ans et un jour ! je vais la revoir plus belle que jamais. La femme, c’est le beau sexe ; et vingt ans, c’est
le bel âge.
Dans ces temps de fidélités robustes, on ne s’étonnait pas de cinq ans.
Tout en monologuant de la sorte, il approchait du château et il reconnaissait avec joie chaque bossage du portail, chaque
dent de la herse et chaque clou du pont-levis. Il se sentait heureux et bienvenu. Le seuil de la maison qui nous a vus
enfants sourit en nous revoyant hommes comme le visage satisfait d’une mère.
Comme il traversait le pont, i] remarqua près de la troisième arche un fort beau chêne dont la tête dépassait de très haut
le parapet. C’est singulier, se dit-il, il n’y avait point d’arbre là. Puis il se souvint que deux ou trois semaines avant le
jour où il avait rencontré la chasse du palatin, il avait joué avec Bauldour au jeu des glands et des osselets, en s’accoudant au parapet du pont, et que, précisément à cet endroit, il avait laissé tomber un gland dans le fossé. — Diable ! pensa-t-il, le gland s’est fait chêne en cinq ans. Voilà un bon terrain.
Quatre oiseaux perchés dans ce chêne y jasaient à qui mieux mieux, c’étaient un geai, un merle, une pie et un corbeau.
Pécopin y fit à peine attention, non plus qu’à un pigeon qui roucoulait dans un colombier et à une poule qui gloussait
dans la basse-cour. Il ne songeait qu’à Bauldour et il se hâtait.
Le soleil étant sur l’horizon, les valets de conciergerie venaient de baisser le pont-levis. Au moment où Pécopin entra
sous la porte il entendit derrière lui un éclat de rire qui semblait venir de très loin, quoique parfaitement distinct et fort
prolongé. Il regarda partout au-dehors et ne vit personne. C’était le diable qui riait dans sa caverne.
Il y avait sous la voûte un réservoir d’eau que l’ombre et la réverbération changeaient en miroir. Le chevalier s’y pencha. Après les fatigues de ce long voyage qui lui avait à peine laissé sur le corps quelques haillons, surtout après les
secousses de cette nuit de chasse surnaturelle, il s’attendait à avoir effroi de lui-même. Pas du tout. Était-ce vertu du
talisman que lui avait donné la sultane, était-ce effet de l’élixir que le diable lui avait fait boire, il était plus charmant,
plus frais, plus jeune et plus reposé que jamais. Ce qui l’étonna surtout, ce fut de se voir couvert de vêtements tout neufs
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et très magnifiques. Les idées étaient tellement brouillées dans son cerveau qu’il ne put se rappeler à quel instant de la
nuit on l’avait équipé de la sorte. Il était fort beau ainsi. Il avait l’habit d’un prince et l’air d’un génie.
Tandis qu’il se mirait, un peu surpris, mais fort satisfait et se trouvant à son goût, il entendit un second éclat de rire plus
joyeux encore que le premier. Il se retourna et ne vit personne. C’était le diable qui riait dans sa caverne.
Il traversa la cour d’honneur. Les hommes d’armes se penchèrent aux créneaux des murailles ; aucun ne le reconnut et il
n’en reconnut aucun. Les servantes à jupons courts qui battaient le linge au bord des lavoirs se retournèrent ; aucune ne
le reconnut, et il n’en reconnut aucune. Mais il avait si bonne figure qu’on le laissa passer. Grande mine suppose grand
nom.
Il savait son chemin et se dirigea vers la petite tourelle-escalier qui conduisait à la chambre de Bauldour. Tout en franchissant la cour, il lui sembla que les façades du château étaient un peu bien assombries et ridées, et que les lierres qui
étaient aux murailles du nord s’étaient démesurément épaissis, et que les vignes qui étaient aux murailles du midi avaient singulièrement grossi. Mais un cœur amoureux s’émerveille-t-il pour quelques pierres noires et quelques feuilles de
plus ou de moins ?
Quand il arriva à la tourelle, il eut quelque peine à en reconnaître la porte. La voûte de cet escalier était une voûte-quartier-de-vis suspendue en tour ronde, et au moment où Pécopin était parti du pays, le père de Bauldour venait d’en faire
reconstruire l’entrée à neuf avec du beau grès blanc de Heidelberg. Or cette entrée, qui, selon le calcul de Pécopin, était
bâtie depuis cinq ans à peine, était maintenant fort brunie et toute refendue et rongée par les herbes, et elle abritait sous
sa voussure trois ou quatre nids d’hirondelles. Mais un cœur amoureux s’étonne-t-il pour quelques nids d’hirondelles ?
Si les éclairs avaient coutume de monter les escaliers, je leur comparerais Pécopin. En un clin d’œil il fut au cinquième
étage, devant la porte du retrait de Bauldour. Cette porte-là du moins n’était ni noircie ni changée ; elle était toujours
propre, gaie, nette et sans tache, avec ses ferrures luisantes comme l’argent, avec les nœuds de son bois clairs comme la
prunelle d’une belle fille, et l’on voyait que c’était bien cette même porte virginale que la jeune châtelaine n’avait jamais manqué de faire laver par ses femmes chaque matin. La clef était à la serrure, comme si Bauldour eût attendu
Pécopin.
Il n’avait qu’à poser la main sur cette clef et à entrer. Il s’arrêta. Il était haletant de joie, de tendresse et de bonheur, et
un peu aussi d’avoir monté cinq étages. De grandes flammes roses passaient devant ses yeux, et il lui semblait qu’elles
rafraîchissaient son front. Un bourdonnement lui remplissait la tête ; son cœur battait dans ses tempes.
Quand ce premier moment fut calmé, quand le silence commença à se faire en lui, il écouta. Comment dire ce qui s’émut dans cette pauvre âme ivre d’amour ? Il entendit à travers la porte le bruit d’un rouet dans la chambre.
À la rigueur, ce pouvait bien ne pas être le rouet de Bauldour ; ce n’était peut-être que le rouet d’une de ses femmes :
car auprès de sa chambre Bauldour avait son oratoire, où souvent elle passait ses journées. Si elle filait beaucoup, elle
priait plus encore. Pecopin se dit bien un peu tout cela ; mais il n’en écouta pas moins le rouet avec ravissement. Ce
sont-là de ces bêtises d’homme qui aime, qu’on fait surtout quand on a un grand esprit et un grand cœur.
Les moments comme celui où se trouvait Pecopin se composent d’extase qui veut attendre et d’impatience qui veut entrer ; l’équilibre dure quelques minutes, puis il vient un instant où l’impatience l’emporte. Pécopin tremblant posa enfin
la main sur la clef, elle tourna dans la serrure, le pêne céda, la porte s’ouvrit ; il entra.
— Ah ! pensa-t-il, je me suis trompé, ce n’était pas le rouet de Bauldour.
En effet, il y avait bien dans la chambre quelqu’un qui filait, mais c’était une vieille femme. Une vieille femme, c’est
trop peu dire, c’était une vieille fée, car les fées seules atteignent à ces âges fabuleux et à ces décrépitudes séculaires. Or
cette duègne paraissait avoir et avait nécessairement plus de cent ans. Figurez-vous, si vous pouvez, une pauvre petite
créature humaine ou surhumaine courbée, pliée, cassée, tannée, rouillée, éraillée, écaillée, renfrognée, ratatinée et rechignée ; blanche de sourcils et de cheveux, noire de dents et de lèvres, jaune du reste ; maigre, chauve, glabre, terreuse,
branlante et hideuse. Et si vous voulez avoir quelque idée de ce visage, où mille rides venaient aboutir à la bouche
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comme les raies d’une roue au moyeu, imaginez que vous voyez vivre l’insolente métaphore des latins, anus. Cet être
vénérable et horrible était assis ou accroupi près de la fenêtre, les yeux baissés sur son rouet et le fuseau à la main
comme une parque.
La bonne dame était probablement fort sourde ; car, au bruit que firent la porte en s’ouvrant et Pécopin en entrant, elle
ne bougea pas.
Cependant le chevalier ôta son infuie et son bicoquet, comme il sied devant des personnes d’un si grand âge, et dit en
faisant un pas : — Madame la duègne, où est Bauldour ?
La dame centenaire leva les yeux, laissa tomber son fil, trembla de tous ses petits membres, poussa un petit cri, se souleva à demi sur la chaise, étendit vers Pecopin ses longues mains de squelette, fixa sur lui son œil de larve, et dit avec
une voix faible et osseuse qui semblait sortir d’un sépulcre : — O ciel ! chevalier Pecopin ! que voulez-vous ? vous
faut-il des messes ? O mon Dieu Seigneur ! Chevalier Pecopin, vous êtes donc mort, que voilà votre ombre qui revient ?
— Pardieu ! ma bonne dame, — répondît Pécopin éclatant de rire et parlant très haut pour que Bauldour l’entendît si
elle était dans son oratoire, un peu surpris pourtant que cette duègne sût son nom, — je ne suis pas mort. Ce n’est pas
mon ombre qui apparaît ; c’est moi qui reviens, s’il vous plaît, moi Pécopin, un bon revenant de chair et d’os. Et je ne
veux pas de messes, je veux un baiser de ma fiancée, de Bauldour, que j’aime plus que jamais. Entendez-vous, ma bonne dame ?
Comme il achevait ces mots, la vieille se jeta à son cou.
C’était Bauldour.
Hélas ! la nuit de chasse du diable avait duré cent ans.
Bauldour n’était pas morte, grâce à Dieu ou au démon ; mais au moment où Pécopin, aussi jeune et plus beau peut-être
qu’autrefois, la retrouvait et la revoyait, la pauvre fille avait cent vingt ans et un jour.
Pécopin éperdu s’enfuit. Il se précipita au bas de l’escalier, traversa la cour, poussa la porte, passa le pont, gravit l’escarpement, franchit le ravin, sauta le torrent, troua la broussaille, escalada la montagne et se réfugia dans la forêt de
Sonneck. Il courut tout le jour, effaré, épouvanté, désespéré, fou. Il aimait toujours Bauldour, mais il avait horreur de ce
spectre. Il ne savait plus où en était son esprit, où en était sa mémoire, où en était son cœur. Le soir venu, voyant qu’il
approchait des tours de son château natal, il déchira ses riches vêtements ironiques qui lui venaient du diable et les jeta
dans le profond torrent de Sonneck. Puis il s’arracha les cheveux, et tout à coup il s’aperçut qu’il tenait à la main une
poignée de cheveux blancs. Puis voilà que subitement ses genoux tremblèrent, ses reins fléchirent, il fut obligé de
s’appuyer à un arbre, ses mains étaient affreusement ridées. Dans l’égarement de sa douleur, n’ayant plus conscience de
ce qu’il faisait, il avait saisi le talisman suspendu à son cou, en avait brisé la chaîne et l’avait jeté au torrent avec ses
habits.
Et les paroles de l’esclave de la sultane s’étaient sur-le-champ accomplies. Il venait de vieillir de cent ans en une minute. Le matin il avait perdu ses amours, le soir il perdait sa jeunesse. En ce moment-là, pour la troisième fois dans cette
fatale journée, quelqu’un éclata de rire quelque part derrière lui. Il se retourna et ne vit personne. Le diable riait dans sa
caverne.
Que faire après ce dernier accablement ? Il ramassa à terre un cotret oublié par quelque fagotier ; et, appuyé sur ce
bâton, il marcha péniblement vers son château, qui par bonheur était fort proche. Comme il y arrivait, il vit aux derniers
rayons du crépuscule un geai, une pie, un merle et un corbeau qui étaient perchés sur le toit de la porte entre les girouettes et qui semblaient l’attendre. Il entendit une poule qu’il ne voyait pas et qui disait : Pêcopin ! Pécopin ! Et il entendit
un pigeon qu’il ne voyait pas et qui disait : Bauldour ! Bauldour ! Bauldour ! Alors il se souvint de son rêve de Bacharach et des paroles que lui avait adressées jadis — hélas ! il y avait cent cinq ans de cela ! — le vieillard qui rangeait des
souches le long d’un mur : Sire, pour le jeune homme, le merle siffle, le geai garrule, la pie glapit, le corbeau croasse, le
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pigeon roucoule, la poule glousse ; pour le vieillard, les oiseaux parlent. Il prêta donc l’oreille, et voici le dialogue qu’il
entendit :
LE MERLE
Enfin, mon beau chasseur, te voilà de retour !
LE GEAI
Tel qui part pour un an croit partir pour un jour.
LE CORBEAU
Tu fis la chasse à l’aigle, au milan, au vautour,
LA PIE
Mieux eût valu la faire au doux oiseau d’amour !
LA POULE
Pécopin ! Pécopin !
LE PIGEON.
Bauldour ! Bauldour ! Bauldour !
The Legend of Falkenburg
Spencer Lewis
In the imperial fortress of Falkenburg dwelt the beautiful Liba, the most charming and accomplished of maidens, with
her widowed mother. Many were the suitors who climbed the hill to Falkenburg to seek the hand of Liba, for besides
being beautiful she was gentle and virtuous, and withal possessed of a modest fortune left her by her father. But to all
their pleadings she turned a deaf ear, for she was already betrothed to a young knight named Guntram whom she had
known since childhood, and they only waited until Guntram should have received his fief from the Palsgrave to marry
and settle down.
One May morning, while Liba was seated at a window of the castle watching the ships pass to and fro on the glassy
bosom of the Rhine, she beheld Guntram riding up the approach to Falkenburg, and hastened to meet him. The gallant
knight informed his betrothed that he was on his way to the Palsgrave326 to receive his fief, and had but turned aside in
his journey in order to greet his beloved. She led him into the castle, where her mother received him graciously enough,
well pleased at her daughter's choice.
"And now, farewell," said Guntram. "I must hasten. When I return we two shall wed; see to it that all is in readiness."
With that he mounted his horse and rode out of the courtyard, turning to wave a gay farewell to Liba. The maiden watched him disappear round a turn in the winding path, then slowly re-entered the castle.
Meanwhile Guntram went on his way, and was at length invested with his fief. The Palsgrave, pleased with the manners
and appearance of the young knight, appointed him to be his ambassador in Burgundy, which honour Guntram, though
with much reluctance, felt it necessary to accept. He dispatched a messenger to his faithful Liba, informing her of his
appointment, which admitted of no delay, and regretting the consequent postponement of their marriage. She, indeed,
was ill-pleased with the tidings and felt instinctively that some calamity was about to befall. After a time her foreboding
326
No alemão arcaico e médio o termo refere-se a um título nobiliárquico concedido durante o Império Carolíngio aos
“Defensores da Marca”, isto é, o nobre, geralmente Conde ou Duque, a quem o Imperador outorgava poder real para
representá-lo nos territórios situados em regiões fronteiriças, mais sujeitas a ataques. A jurisdição desses nobres expandiu-se algumas vezes por extensões consideráveis, sem estar subordinada a cargos intermediários nem vinculada ao
poder da Igreja. No século XI o termo aparece pela primeira vez na Lotaringia (1086) e continuou em uso como título
subsidiário de determinada nobreza após a instituição do Palatinado, em 1356, quando a função dos grandes príncipes
do Império foi definida em termos eletivos, com a incumbência eleger o Imperador. Assim, a dignidade hereditária de
Conde Palatino do Reno correspondia à dignidade anterior de Palsgrave da Lotaríngia cujo território havia sido continuadamente subdividido em feudos de tamanho variável, confiados em caráter hereditário a outros nobres, com responsabilidades militares nas regiões de fronteira.
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affected her health and spirits, her former pursuits and pleasures were neglected, and day after day she sat listlessly at
her casement, awaiting the return of her lover.
Guntram, having successfully achieved his mission, set out on the homeward journey. On the way he had to pass
through a forest, and, having taken a wrong path, lost his way. He wandered on without meeting a living creature, and
came at last to an old dilapidated castle, into the courtyard of which he entered, thankful to have reached a human habitation. He gave his horse to a staring boy, who looked at him as though he were a ghost.
"Where is your master?" queried Guntram.
The boy indicated an ivy-grown tower, to which the knight made his way. The whole place struck him as strangely
sombre and weird, a castle of shadows and vague horror. He was shown into a gloomy chamber by an aged attendant,
and there awaited the coming of the lord. Opposite him was hung a veiled picture, and half hoping that he might solve
the mystery which pervaded the place, he drew aside the curtain. From the canvas there looked out at him a lady of surpassing beauty, and the young knight started back in awe and admiration.
In a short time the attendant returned with a thin, tall old man, the lord of the castle, who welcomed the guest with grave
courtesy, and offered the hospitality of his castle. Guntram gratefully accepted his host's invitation, and when he had
supped he conversed with the old man, whom he found well-informed and cultured.
"You appear to be fond of music," said the knight, indicating a harp which lay in a corner of the room.
He had observed, however, that the strings of the harp were broken, and that the instrument seemed to have been long
out of use, and thought that it possibly had some connexion with the original of the veiled portrait. Whatever recollections his remark aroused must have been painful indeed, for the host sighed heavily.
"It has long been silent," he said. "My happiness has fled with its music. Good night, and sleep well." And ere the astonished guest could utter a word the old man abruptly withdrew from the room.
Shortly afterward the old attendant entered, bearing profuse apologies from his master, and begging that the knight
would continue to accept his hospitality. Guntram followed the old man to his chamber. As they passed through the
adjoining apartment he stopped before the veiled portrait.
"Tell me," he said, "why is so lovely a picture hidden?"
"Then you have seen it?" asked the old keeper. "That is my master's daughter. When she was alive she was even more
beautiful than her portrait, but she was a very capricious maid, and demanded that her lovers should perform well-nigh
impossible feats. At last only one of these lovers remained, and of him she asked that he should descend into the family
vault and bring her a golden crown from the head of one of her ancestors. He did as he was bidden, but his profanation
was punished with death. A stone fell from the roof and killed him. The young man's mother died soon after, cursing the
foolish maid, who herself died in the following year. But here she was buried she disappeared from her coffin and was
seen no more."
When the story was ended they had arrived at the door of the knight's chamber, and in bidding him good night the attendant counselled him to say his paternoster should anything untoward happen.
Guntram wondered at his words, but at length fell asleep. Some hours later he was awakened suddenly by the rustling of
a woman's gown and the soft strains of a harp, which seemed to come from the adjoining room. The knight rose quietly
and looked through a chink in the door, when he beheld a lady dressed in white and bending over a harp of gold. He
recognized in her the original of the veiled portrait, and saw that even the lovely picture had done her less than justice.
For a moment he stood with hands clasped in silent admiration. Then with a low sound, half cry, half sob, she cast the
harp from her and sank down in an attitude of utter despondency. The knight could bear it no longer and (quite forgetting his paternoster) he flung open the door and knelt at her feet, raising her hand to his lips. Gradually she became
composed. "Do you love me, knight?" she said. Guntram swore that he did, with many passionate avowals, and the lady
slipped a ring on his finger. Even as he embraced her the cry of a screech-owl rang through the night air, and the maiden
became a corpse in his arms. Overcome with terror, he staggered through the darkness to his room, where he sank down
unconscious.On coming to himself again, he thought for a moment that the experience must have been a dream, but the
ring on his hand assured him that the vision was a ghastly reality. He attempted to remove the gruesome token, but he
found to his horror that it seemed to have grown to his finger.
In the morning he related his experience to the attendant. "Alas, alas!" said the old man, "in three times nine days you
must die."
Guntram was quite overcome by the horror of his situation, and seemed for a time bereft of his senses. Then he had his
horse saddled, and galloped as hard as he was able to Falkenburg. Liba greeted him solicitously. She could see that he
was sorely troubled, but forbore to question him, preferring to wait until he should confide in her of his own accord. He
was anxious that their wedding should be hastened, for he thought that his union with the virtuous Liba might break the
dreadful spell.
When at length the wedding day arrived everything seemed propitious, and there was nothing to indicate the misfortune
which threatened the bridegroom. The couple approached the altar and the priest joined their hands. Suddenly Guntram
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fell to the ground, foaming and gasping, and was carried thence to his home. The faithful Liba stayed by his side, and
when he had partially recovered the knight told her the story of the spectre, and added that when the priest had joined
their hands he had imagined that the ghost had put her cold hand in his. Liba attempted to soothe her repentant lover,
and sent for a priest to finish the interrupted wedding ceremony. This concluded, Guntram embraced his wife, received
absolution, and expired.
Liba entered a convent, and a few years later she herself passed away, and was buried by the side of her husband.
Creed en Diós Becquer
Cantiga provenzal
«Yo fui el verdadero Teobaldo de Montagut,
barón de Fortcastell. Noble o villano,
señor o pechero, tú, cualquiera que seas,
que te detienes un instante al borde de mi sepultura,
cree en Dios, como yo he creído, y ruégale por mí.»
Nobles aventureros que, puesta la lanza en la cuja, caída la visera del casco y jinetes sobre un corcel poderoso, recorréis
la tierra sin más patrimonio que vuestro nombre clarísimo y vuestro montante, buscando honra y prez en la profesión de
las armas: si al atravesar el quebrado valle de Montagut os han sorprendido en él la tormenta y la noche, y habéis encontrado un refugio en las ruinas del monasterio que aún se ve en su fondo, oídme.
II
Pastores que seguís con lento paso a vuestras ovejas, que pacen derramadas por las colinas y las llanuras: si al conducirlas al borde del transparente riachuelo que corre, forcejea y salta por entre los peñascos del valle de Montagut, en
el rigor del verano y en una siesta de fuego habéis encontrado la sombra y el reposo al pie de las derruidas arcadas del
monasterio, cuyos musgosos pilares besan las ondas, oídme.
III
Niñas de las cercanas aldeas, lirios silvestres que crecéis felices al abrigo de vuestra humildad: si en la mañana del
santo Patrono de estos lugares, al bajar al valle de Montagut a coger tréboles y margaritas con que embellecer su retablo, venciendo el temor que os inspira el sombrío monasterio que se alza en sus peñas, habéis penetrado en su claustro
mudo y desierto para vagar entre sus abandonadas tumbas, a cuyos bordes crecen las margaritas más dobles y los jacintos más azules, oídme.
IV
Tú, noble caballero, tal vez al resplandor de un relámpago; tú, pastor errante, calcinado por los rayos del sol; tú, en
fin, hermosa niña, cubierta aún con gotas de rocío semejantes a lágrimas: todos habréis visto en aquel santo lugar una
tumba, una tumba humilde. Antes la componían una piedra tosca y una cruz de palo; la cruz ha desaparecido y sólo
queda la piedra. En esa tumba, cuya inscripción es el mote de mi canto, reposa en paz el último barón de Fortcastell,
Teobaldo de Montagut, del cual voy a referiros la peregrina historia.
I
Cuando la noble condesa de Montagut estaba en cinta de su primogénito Teobaldo, tuvo un ensueño misterioso y
terrible. Acaso un aviso de Dios; tal vez una vana fantasía que el tiempo realizó más adelante. Soñó que en su seno engendraba una serpiente, una serpiente monstruosa que, arrojando agudos silbidos, y ora arrastrándose entre la menuda
hierba, ora replegándose sobre sí misma para saltar, huyó de su vista, escondiéndose al fin entre unas zarzas.
-¡Allí está!, ¡allí está! -gritaba la condesa en su horrible pesadilla, señalando a sus servidores la zarza en que se había
escondido el asqueroso reptil.
Cuando sus servidores llegaron presurosos al punto que la noble dama, inmóvil y presa de un profundo terror, les
señalaba aún con el dedo, una blanca paloma se levantó de entre las breñas y se remontó a las nubes.
La serpiente había desaparecido.
II
Teobaldo vino al mundo. Su madre murió al darlo a luz, su padre pereció algunos años después en una emboscada,
peleando como bueno contra los enemigos de Dios.
Desde este punto, la juventud del primogénito de Fortcastell sólo puede compararse a un huracán. Por donde pasaba
se veía señalando su camino un rastro de lágrimas y de sangre. Ahorcaba a sus pecheros, se batía con sus iguales, perse-
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guía a las doncellas, daba de palos a los monjes, y en sus blasfemias y juramentos ni dejaba santo en paz ni cosa sagrada
que no maldijese.
III
Un día que salió de caza y que, como era su costumbre, hizo entrar a guarecerse de la lluvia a toda su endiablada
comitiva de pajes licenciosos, arqueros desalmados y siervosenvilecidos, con perros, caballos y gerifaltes, en la iglesia
de una aldea de sus dominios, un venerable sacerdote, arrostrando su cólera y sin temer los violentos arranques de su
carácter impetuoso, le conjuró, en nombre del Cielo y llevando una hostia consagrada en sus manos, a que abandonase
aquel lugar y fuese a pie y con un bordón de romero a pedir al Papa la absolución de sus culpas.
-¡Déjeme en paz, viejo loco! -exclamó Teobaldo al oírle-; déjeme en paz; o, ya que no he encontrado una sola pieza
durante el día, te suelto mis perros y te cazo como a un jabalí para distraerme.
IV
Teobaldo era hombre de hacer lo que decía. El sacerdote, sin embargo, se limitó a contestarle: -Haz lo que quieras,
pero ten presente que hay un Dios que castiga y perdona, y que si muero a tus manos, borrará mis culpas del libro de su
indignación, para escribir tu nombre y hacerte expiar tu crimen.
-¡Un Dios que castiga y perdona! -prorrumpió el sacrílego barón con una carcajada-. Yo no creo en Dios, y para darte
una prueba voy a cumplirte lo que te he prometido; porque, aunque poco rezador, soy amigo de no faltar a mis palabras.
¡Raimundo! ¡Gerardo! ¡Pedro! Azuzad la jauría, dadme el venablo, tocad el alalí en vuestras trompas, que vamos a darle
caza a este imbécil, aunque se suba a los retablos de sus altares.
V
Ya, después de dudar un instante y a una nueva orden de su señor, comenzaban los pajes a desatar los lebreles, que
aturdían la iglesia con sus ladridos; ya el barón había armado su ballesta riendo con una risa de Satanás, y el venerable
sacerdote murmurando una plegaria, elevaba sus ojos al cielo y esperaba tranquilo la muerte, cuando se oyó fuera del
sagrado recinto una vocería terrible, bramidos de trompas que hacían señales de ojeo, y gritos de -¡Al jabalí! -¡Por las
breñas! -¡Hacia el monte! Teobaldo, al anuncio de la deseada res, corrió a las puertas del santuario, ebrio de alegría; tras
él fueron sus servidores, y con sus servidores los caballos y los lebreles.
VI
-¿Por dónde va el jabalí? -preguntó el barón subiendo a su corcel, sin apoyarse en el estribo ni desarmar la ballesta.
-Por la cañada que se extiende al pie de esas colinas -le respondieron. Sin escuchar la última palabra, el impetuoso cazador hundió su acicate de oro en el ijar del caballo, que partió al escape. Tras él partieron todos.
Los habitantes de la aldea, que fueron los primeros en dar la voz de alarma, y que al aproximarse el terrible animal se
habían guarecido en sus chozas, asomaron tímidamente la cabeza a los quicios de sus ventanas; y cuando vieron desaparecer la infernal comitiva por entre el follaje de la espesura, se santiguaron en silencio.
VII
Teobaldo iba delante de todos. Su corcel, más ligero o más castigado que los de sus servidores, seguía tan de cerca a
la res, que dos o tres veces, dejándole la brida sobre el cuello al fogoso bruto, se había empinado sobre los estribos y
echándose al hombro la ballesta para herirlo. Pero el jabalí, al que sólo divisaba a intervalos entre los espesos matorrales, tornaba a desaparecer de su vista para mostrársele de nuevo fuera del alcance de su arma.
Así corrió muchas horas, atravesó las cañadas del valle y el pedregoso lecho del río, e internándose en un bosque
inmenso, se perdió entre sus sombrías revueltas, siempre fijos los ojos en la codiciada res, siempre creyendo alcanzarla,
siempre viéndose burlado por su agilidad maravillosa.
VIII
Por último, pudo encontrar una ocasión propicia, tendió el brazo y voló la saeta que fue a clavarse temblando en el
lomo del terrible animal, que dio un salto y un espantoso bufido. -¡Muerto está! -exclama con un grito de alegría el cazador, volviendo a hundir por la centésima vez el acicate en el sangriento ijar de su caballo-; ¡muerto está!, en balde
huye. El rastro de la sangre que arroja marca su camino. Y esto diciendo comenzó a hacer en la bocina la señal del triunfo para que la oyesen sus servidores.
En aquel instante el corcel se detuvo, flaquearon sus piernas, un ligero temblor agitó sus contraídos músculos, y cayó
al suelo desplomado arrojando por la hinchada nariz cubierta de espuma un caño de sangre.
Había muerto de fatiga, había muerto cuando la carrera del herido jabalí comenzaba a acortarse, cuando bastaba un
solo esfuerzo más para alcanzarlo.
IX Pintar la ira del colérico Teobaldo sería imposible. Repetir sus maldiciones y sus blasfemias, sólo repetirlas, fuera
escandaloso e impío. Llamó a grandes voces a sus servidores, y únicamente le contestó el eco en aquellas inmensas soledades, y se arrancó los cabellos y se mesó las barbas, presa de la más espantosa desesperación. -Le seguiré a la carrera, aun cuando haya de reventarme -exclamó al fin, armando de nuevo su ballesta y disponiéndose a seguir a la res; pero
en aquel momento sintió ruido a sus espaldas, se entreabrieron las ramas de la espesura y se presentó a sus ojos un paje
que traía del diestro un corcel negro como la noche.
-El cielo me lo envía -dijo el cazador, lanzándose sobre sus lomos ágil como un gamo. El paje, que era delgado, muy
delgado, y amarillo como la muerte, se sonrió de una manera extraña al presentarle la brida.
X
El caballo relinchó con una fuerza que hizo estremecer el bosque; dio un bote increíble, un bote en que se levantó
más de diez varas del suelo, y el aire comenzó a zumbar en los oídos del jinete, como zumba una piedra arrojada por la
honda. Había partido al escape; pero a un escape tan rápidoque, temeroso de perder los estribos y caer a tierra turbado
por el vértigo, tuvo que cerrar los ojos y agarrarse con ambas manos a sus flotantes crines.
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Y sin agitar sus riendas, sin herirle con el acicate ni animarlo con la voz, el corcel corría, corría sin detenerse. ¿Cuánto tiempo corrió Teobaldo con él, sin saber por dónde, sintiendo que las ramas le abofeteaban el rostro al pasar, y los
zarzales desgarraban sus vestidos, y el viento silbaba a su alrededor? Nadie lo sabe.
XI
Cuando, recobrado el ánimo, abrió los ojos un instante para arrojar en torno suyo una mirada inquieta se encontró
lejos, muy lejos de Montagut, y en unos lugares para él completamente extraños. El corcel corría, corría sin detenerse, y
árboles, rocas, castillos y aldeas pasaban a su lado como una exhalación. Nuevos y nuevos horizontes se abrían ante su
vista; horizontes que se borraban para dejar lugar a otros más y más desconocidos. Valles angostos, herizados de colosales fragmentos de granito que las tempestades habían arrancado de la cumbre de las montañas; alegres campiñas, cubiertas de un tapiz de verdura y sembradas de blancos caseríos; desiertos sin límites, donde hervían las arenas calcinadas por los rayos de un sol de fuego; vastas soledades, llanuras inmensas, regiones de eternas nieves, donde los gigantescos témpanos asemejaban, destacándose sobre un cielo gris y oscuro, blancos fantasmas que extendían sus brazos
para asirle por los cabellos al pasar, todo esto, y mil y mil otras cosas que yo no podré deciros, vio en su fantástica carrera, hasta tanto que, envuelto en una niebla oscura, dejó de percibir el ruido que producían los cascos del caballo al
herir la tierra.
I
Nobles caballeros, sencillos pastores, hermosas niñas, que escucháis mi relato: si os maravilla lo que os cuento, no
creáis que es un fábula tejida a mi antojo para sorprender vuestra credulidad; de boca en boca ha llegado hasta mí esta
tradición y la leyenda del sepulcro que aún subsiste en el monasterio de Montagut es un testimonio irrecusable de la
veracidad de mis palabras.
Creed, pues, lo que he dicho, y creed lo que aún me resta por decir, que es tan cierto como lo anterior, aunque más
maravilloso. Yo podré acaso adornar con algunas galas de la poesía el desnudo esqueleto de esta sencilla y terrible historia, pero nunca me apartaré un punto de la verdad a sabiendas.
II
Cuando Teobaldo dejó de percibir las pisadas de su corcel y se sintió lanzado en el vacío, no pudo reprimir un involuntario estremecimiento de terror. Hasta entonces había creído que los objetos que se representaban a sus ojos eran
fantasmas de su imaginación, turbada por el vértigo, y que su corcel corría desbocado, es verdad, pero corría sin salir
del término de su señorío. Ya no le quedaba duda de que era juguete de un poder sobrenatural, que le arrastraba, sin que
supiese adonde, a través de aquellas nieblas oscuras, de aquellas nubes de formas caprichosas y fantásticas, en cuyo
seno, que se iluminaba a veces con el resplandor de un relámpago, creía distinguir las hirvientes centellas, próximas a
desprenderse.
El corcel corría, o mejor dicho, nadaba en aquel océano de vapores caliginosos y encendidos, y las maravillas del
cielo comenzaron a desplegarse unas tras otras ante los espantados ojos de su jinete.
III
Cabalgando sobre las nubes, vestidos de luengas túnicas con orlas de fuego, suelta al huracán la encendida cabellera
y blandiendo sus espadas que relampagueaban arrojando chispas de cárdena luz, vio a los ángeles, ministros de la cólera
del Señor, cruzar como un formidable ejército sobre las alas de la tempestad.
Y subió más alto, y creyó divisar a lo lejos las tormentosas nubes semejantes a un mar de lava, y oyó mugir el trueno
a sus pies como muge el Océano azotando la roca desde cuya cima le contempla el atónito peregrino.
IV
Y vio el arcángel, blanco como la nieve, que sentado sobre un inmenso globo de cristal, lo dirige por el espacio en
las noches serenas, como un bajel de plata sobre la superficie de un lago azul.
Y vio el sol volteando encendido sobre ejes de oro en una atmósfera de colores y de fuego, y en su foco a los ígneos
espíritus que habitan incólumes entre las llamas, y desde su ardiente seno entonan al Criador himnos de alegría.
Vio los hilos de luz imperceptibles que atan los hombres a las estrellas, y vio el arco iris, echado como un puente
colosal sobre el abismo que separa al primer cielo del segundo.
V
Por una escala misteriosa vio bajar las almas a la tierra: vio bajar muchas y subir pocas. Cada una de aquellas almas
inocentes iba acompañada de un arcángel purísimo que le cubría con la sombra de sus alas. Los que tornaban solos tornaban en silencio y con lágrimas en los ojos; los que no, subían cantando como suben las alondras en las mañanas de
Abril.
Después, las tinieblas rosadas y azules que flotaban en el espacio como cortinas de gasa transparente, se rasgaron
como el día de gloria se rasga en nuestros templos el velo de los altares; y el paraíso de los justos se ofreció a sus miradas deslumbrador y magnífico.
VI
Allí estaban los santos profetas que habréis visto groseramente esculpidos en las portadas de piedra de nuestras catedrales; allí las vírgenes luminosas, que intenta en vano copiar de sus sueños el pintor, en los vidrios de colores de las
ojivas; allí los querubines, con sus largas y flotantes vestiduras y sus nimbos de oro, como los de las tablas de los altares; allí, en fin, coronada de estrellas, vestida de luz, rodeada de todas las jerarquías celestes, y hermosa sobre toda ponderación, Nuestra Señora de Monserrat, la Madre Dios, la reina de los arcángeles, el amparo de los pecadores y el consuelo de los afligidos.
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VII
Más allá el paraíso de los justos, más allá el trono donde se sienta la Virgen María. El ánimo de Teobaldo se sobrecogió temeroso, y un hondo pavor se apoderó de su alma. La eterna soledad; el eterno silencio viven en aquellas regiones; que conducen al misterioso santuario del Señor. De cuando en cuando azotaba su frente una ráfaga de aire, frío
como la hoja de un puñal, que crispaba sus cabellos de horror y penetraba hasta la médula de sus huesos, ráfagas semejantes a las que anunciaban a los profetas la aproximación del espíritu divino. Al fin llegó a un punto donde creyó percibir un rumor sordo, que pudiera compararse al zumbido lejano de un enjambre de abejas, cuando, en las tardes del
otoño, revolotean en derredor de las últimas flores.
VIII
Atravesaba esa fantástica región adonde van todos los acentos de la tierra, los sonidos que decimos que se desvanecen, las palabras que juzgamos que se pierden en el aire, los lamentos que creemos que nadie oye.
Aquí, en un círculo armónico, flotan las plegarias de los niños, las oraciones de las vírgenes, los salmos de los piadosos eremitas, las peticiones de los humildes, las castas palabras de los limpios de corazón, las resignadas quejas de los
que padecen, los ayes de los que sufren y los himnos de los que esperan. Teobaldo oyó entre aquellas voces, que palpitaban aún en el éter luminoso, la voz de su santa madre que pedía a Dios por él; pero no oyó la suya.
IX
Más allá hirieron sus oídos con un estrépito discordante mil y mil acentos ásperos y roncos, blasfemias, gritos de
venganzas, cantares de orgías, palabras lúbricas, maldiciones de la desesperación, amenazas de impotencia y juramentos
sacrílegos de la impiedad.
Teobaldo atravesó el segundo círculo con la rapidez que el meteoro cruza el cielo en una tarde de verano, por no oír
su voz que vibraba allí sonante y atronadora, sobreponiéndose a las otras voces en medio de aquel concierto infernal.
-¡No creo en Dios! ¡No creo en Dios! -decían aún su acento agitándose en aquel océano de blasfemias; y Teobaldo
comenzaba a creer.
X
Dejó atrás aquellas regiones y atravesó otras inmensidades llenas de visiones terribles, que ni él pudo comprender ni
yo acierto a concebir, y llegó al cabo al último círculo de la espiral de los cielos, donde los serafines adoran al Señor,
cubierto el rostro con las triples alas y prosternados a sus pies.
Él quiso mirarlo.
Un aliento de fuego abrasó su cara, un mar de luz oscureció sus ojos, un trueno gigante retumbó en sus oídos, y, arrancado del corcel y lanzado al vacío como la piedra candente que arroja un volcán, se sintió bajar y bajar sin caer nunca, ciego, abrasado y ensordecido, como cayó el ángel rebelde cuando Dios derribó el pedestal de su orgullo con un
soplo de sus labios.
I
La noche había cerrado y el viento gemía agitando las hojas de los árboles, por entre cuyas frondosas ramas se deslizaba un suave rayo de luna, cuando Teobaldo, incorporándose sobre el codo y restregándose los ojos como si despertara
de un profundo sueño, tendió alrededor una mirada y se encontró en el mismo bosque donde hirió al jabalí, donde cayó
muerto su corcel, donde le dieron aquella fantástica cabalgadura que le había arrastrado a unas regiones desconocidas y
misteriosas.
Un silencio de muerte reinaba en su alrededor; un silencio que sólo interrumpía el lejano bramido de los ciervos, el
temeroso murmullo de las hojas y el eco de una campana distante que de vez en cuando traía el viento en sus ráfagas.
-Habré soñado dijo el barón; y emprendió su camino a través del bosque, y salió al fin a la llanura.
II
En lontananza, y sobre las rocas de Montagut, vio destacarse la negra silueta de su castillo sobre el fondo azulado y
transparente del cielo de la noche. -Mi castillo está lejos y estoy cansado -murmuró-; esperaré el día en un lugar cercano
-y se dirigió al lugar. Llamó a una puerta. -¿Quién sois? -le preguntaron. -El barón de Fortcastell -respondió, y se le
rieron en sus barbas. Llamó a otra. -¿Quién sois y qué queréis? -tornaron a preguntarle. -Vuestro señor -insistió el caballero, sorprendido de que no le conociesen-; Teobaldo de Montagut. -¡Teobaldo de Montagut! -dijo colérica su interlocutora, que no era una vieja-; ¡Teobaldo de Montagut el del cuento! ¡Bah!... Seguid vuestro camino, y no vengáis a
sacar de su sueño a las gentes honradas para decirles chanzonetas insulsas.
III
Teobaldo, lleno de asombro, abandonó la aldea y se dirigió al castillo, a cuyas puertas llegó cuando apenas clareaba
el día. El foso estaba cegado, con los sillares de las derruidas almenas; el puente levadizo, inútil ya se pudría colgado
aún de sus fuertes tirantes de hierro, cubiertos de orín por la acción de los años; en la torre del homenaje tañía lentamente una campana; frente al arco principal de la fortaleza sobre un pedestal de granito se elevaba una cruz; en los muros no
se veía un solo soldado; y, confuso y sordo, parecía que de su seno se elevaba como un murmullo lejano, un himno religioso, grave, solemne y magnífico.
-¡Y éste es mi castillo, no hay duda! -decía Teobaldo, paseando su inquieta mirada de un punto a otro, sin acertar a
comprender lo que le pasaba-. ¡Aquél es mi escudo, grabado aún sobre la clave del arco! ¡Ese es el valle de Montagut!
Estas tierras que domino, el señorío de Fortcastell...
En aquel instante las pesadas hojas de la puerta giraron sobre sus goznes y apareció en su dintel un religioso.
IV
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-¿Quién sois y qué hacéis aquí? -preguntó Teobaldo al monje.
-Yo soy -contestó éste- un humilde servidor de Dios, religioso del monasterio del Montagut.
-Pero... -interrumpió el barón- Montagut ¿no es un señorío?
-Lo fue... -prosiguió el monje- hace mucho tiempo... A su último señor, según cuentan, se lo llevó el diablo; y como
no tenía a nadie que le sucediese en el feudo, los condes soberanos hicieron donación de estas tierras a los religiosos de
nuestra regla, que están aquí desde habrá cosa de ciento a ciento veinte años. Y vos, ¿quién sois?
-Yo... -balbuceó el barón de Fortcastell, después de un largo rato de silencio-; yo soy... un miserable pecador que
arrepentido de sus faltas, viene a confesarlas a vuestro abad, y a pedirle que lo admita en el seno de su religión.
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Do Conto de Amaro
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CP_ Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Ed.: C. Hartshorne & P. Weiss (v. 1-6); A. Burks (v. 7-8). Cambridge: Harvard University Press, 1931-58. 8 v.
EP_The Essential Peirce: Selected Philosophical Writings. Ed.: N. Houser & C. Kloesel (v. 1: 1867-1893); “Peirce
Edition Project” (v. 2: 1893-1913). Bloomington: Indiana University Press, 1992-98. 2 v.
HL_Pragmatism as a Principle and Method of Right Reasoning: The 1903 Harvard “Lectures on Pragmatism”. Ed.
and Introduced with a commentary, by Patricia Ann Turrisi. Albany, NY: The State University of New York Press, 1997.
MS _Manuscritos de Peirce
SEP (2008) _The Stanford Encyclopedia of Philosophy, ZALTA, Edward N. (ed.), Stanford: Stanford University,
W... _ The Writings of Charles S. Peirce: A Chronological Edition. 8 vols, Bloomington: Indiana University Press,
1980-2000. (o primeiro número depois da letra W indica o número do volume, seguido do número da página e do ano
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