IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
CURRICULARTE
EXPERIMENTAÇÕES PÓS-CRÍTICAS EM
EDUCAÇÃO
Gilcilene Dias da Costa
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
CURRICULARTE
EXPERIMENTAÇÕES PÓS-CRÍTICAS EM EDUCAÇÃO
Gilcilene Dias da Costa
(UFPA)
RESUMO: Afirmar a arte como fenômeno estético e motor da criação do novo na
educação consistiu o propósito principal deste trabalho. Em seu conjunto, o texto
expressa a experimentação de uma atividade que conjugou os elementos da arte com as
teorizações pós-críticas do currículo, a partir do pensamento filosófico de Nietzsche e
Deleuze. A atividade proposta possibilitou relacionar diferentes formas de expressão em
arte aos processos de construção de saberes e avaliação no campo do currículo, e
afirmar a idéia de um espírito artístico avesso aos antigos modelos e concepções de
currículo assentados na rigidez tradicional das formas de ensinar, aprender, avaliar em
educação. A utilização de conceitos e teorias pós-críticas do currículo, aliada ao
repertório de idéias e provocações artísticas, constituíram os procedimentos basilares na
consecução do trabalho, que objetivou discutir a presença da arte na educação enquanto
dimensão estético-criadora e condição de possibilidade de construção de novos saberes
em educação. A opção metodológica por práticas artísticas de experimentação/criação
no campo do currículo culminou na construção coletiva de um Curricularte gestado na
intersecção de arte e currículo, dimensão que liga saber e sabor, arte antropofágica
movida pelo desejo de criação do novo na educação.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Arte. Espírito artístico. Experimentação. Criação.
“Só como fenômeno estético podem a existência e o
mundo justificar-se eternamente.” (NIETZSCHE, NT)
Saber e Sabor
Tem sido um lugar comum na educação protestar contra as formas tradicionais
de ensinar e avaliar os conhecimentos e as aprendizagens dos alunos, com a alegação de
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que os processos pedagógicos escolares são desprovidos de vida e de arte, mergulhados
que estão no fazer “tarefeiro” de todo dia. Professores limitados a reproduzir antigos
métodos de ensino (imitação de roteiros de aula, reprodução mecânica de mimeógrafos
sem vida e sem criação). Alunos e crianças desde muito cedo apartados de seu espírito
artístico, alegre, curioso, inventivo. Definitivamente, a contar pelos moldes tradicionais
com que a escola “moderna” costuma ensinar, é muito provável que no interior de seus
muros se petrifique uma educação sem apetites e desejos e ela própria se converta em
apatia e inércia de ensinar e aprender, onde professores e alunos são ordenados a se
reunirem em torno de um trabalho “tarefeiro”, sem saber e sabor, restrito a alguma
finalidade mercadológica no presente ou no futuro.
Na tentativa de saltar para fora desses “sulcos costumeiros” da educação – para
falar numa linguagem deleuziana – e desse quadro reativo de queixas, desânimos e
descontentamentos frente a educação de nosso tempo, podemos fabular uma zona de
enfrentamento em que é necessário, mais do que num sonho, “passar ao ataque” – para
falar numa linguagem nietzschiana – e combater o pessimismo da vontade com as armas
da criação. Eis o desafio: realizar um trabalho de natureza artística, inspirado no
pensamento filosófico de Nietzsche e Deleuze, tentando articular, de modo visceral, arte
e currículo enquanto dimensão estética e antropofágica que liga saber e sabor, desejo
de aprender e potência de saber*.
O trabalho consistiria em desenvolver uma atividade de experimentação artística
no campo do currículo. Nele, buscou-se articular as teorizações pós-críticas do currículo
à perspectiva da arte enquanto dimensão estético-criadora a partir do pensamento
filosófico de Nietzsche e Deleuze. Os desafios não seriam poucos, pois tanto as
teorizações pós-críticas quanto os filósofos e suas eram ainda desconhecidos aos alunos,
e a presença da arte nos currículos escolares vista sob a ótica da utilidade em tempos de
“reprodutibilidade técnica”, diria Benjamin. As questões seriam: Como afirmar a
presença da arte na educação em sua dimensão estética e criadora para além da
tendência atual à homogeneização do gosto estético singular em uma sociedade do
*
O trabalho aqui referido constituiu parte da disciplina Teoria do Currículo, desenvolvido juntamente
com os alunos da Turma de Pedagogia 2008 – Intensiva, do Campus Universitário de Altamira/UFPA,
durante o mês de julho do ano corrente. A idéia inicial de afirmar a natureza artística e antropofágica de
um pensamento criador na educação encontra-se no escopo de minha Tese de Doutorado intitulada:
“Trilogia Antropofágica: a educação como devoração”, apresentada ao PPGEDU/UFRGS em maio de
2008, com orientação de Tomaz Tadeu da Silva.
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consumo cada vez mais padronizada? Como ensaiar a perspectiva da arte em seus
blocos de sensações sem, contudo, formatá-la ou limitá-la ao modelo disciplinar de
estruturação curricular de ensino e avaliação? Como relacionar as diferentes expressões
em arte (plástica, visual, dança, música, teatro, poesia, etc.) aos processos de construção
de saberes e avaliação no campo da educação, sem recorrer à busca de “utilidade” da
arte como fim meramente pedagógico? Como realizar uma “pesquisa do acontecimento”
a partir da articulação entre os componentes conceituais da teorização pós-crítica do
currículo e os blocos de sensações no domínio da arte?
Face aos desafios colocados, o caminho não seria menos desafiador. O
movimento consistiria em afirmar a presença de um espírito artístico na educação
avesso aos antigos modelos e concepções de currículo assentados na rigidez tradicional
das formas de ensinar, aprender, avaliar. Tal dinamismo criador necessitaria de mãos
artesãs e idéias artistas e, com tal propósito, a filosofia estética de Nietzsche e Deleuze
prefigurou uma “fisiologia da arte” altamente sedutora em suas rajadas de criação. Arte
apolínea e dionisíaca, impulsos artísticos conjugados em favor da vida e da criação.
Arte experimental, linhas de fuga e blocos de sensações, atravessamentos entre o
sensível e o imperceptível dos sentidos. Ousadia de pensar e viver a educação
semelhante ao modo como um artista pensa e vive a sua arte – pura indeterminação.
Saber e sabor. Combinação imanente dos elementos heterogêneos entre arte e
currículo para gerir o nascimento do novo de um currículo. Isto tudo orientado por
alguma “Sapientia” no seu fazer: “nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de
sabedoria, e o máximo de sabor possível” (BARTHES, 2004, p. 47). Leçon que nos
ensina que, para viver de novo, a educação precisa esquecer a historicidade de seu
corpo, a finitude de seu tempo, para lançar-se na extemporaneidade do tempo áion da
criação – tempo sempre jovem – frequentemente renascido ao fazer-se novo de novo.
Pensar pelo modo pergunta-problema (apetite, devoração) e não pelo modo
resposta-solução (ingestão das formas). Eis um modo de fazer pesquisa combinando
saber e sabor. Pois, mais vale um pensamento perplexo do que um pensamento
apaziguado, um pensamento faminto do que um pensamento saciado. Importante é não
desperdiçar a força de ter fome com o comer imediato e sem apetite. Não fazer dessa
força viva que é o desejo uma preocupação grosseiramente digestiva em prol de si
mesmo. Ensinamentos de uma educação antropofágica em favor da vida e da criação.
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Com sua “arte da ruminação”, Nietzsche nos ensina a espreitar os pensamentos e
as ações e, junto deles, seus atos de bravura e coragem, de fraqueza e lassidão:
“Ruminando, eu me pergunto, paciente como uma vaca: quais foram, afinal, as dez
vitórias sobre mim mesmo?” (NIETZSCHE, ZA, Parte I, “Das cátedras da virtude”,
2000, p. 55). Por meio dessa arte, opera-se uma substancial transmutação do alimento
em algo novo, suplemento necessário para a vida (alimento para o corpo e para o
espírito); devoração de tipo novo: “arte trágica” a ser cultivada como “arte de si”; ao
mesmo tempo, morte e renascimento, criação e destruição. O importante, nessa arte, é
juntar o desejo com a rebeldia, manter os olhos, a boca e os ouvidos apurados, deixar o
pensamento alçar vôos mirabolantes em suas rajadas de criação. Romper a comodidade
do pensamento para tocar na vida lá onde ela é mais sensível e fazê-la fremir e delirar
até que eventualmente nasça aquilo que ainda não nasceu, mas que pode vir a nascer
dessa inusitada agitação.
Educação antropofágica. Uma educação de tipo novo, subversiva, que se faz
como exercício radical do desejo – desejo de aprender, potência de saber. Atitude
transgressora da vida que torna manifesta à luz do dia o desejo mais audacioso da
condição humana – a devoração. Educação como apetite renovado pela vida: criaçãoalegre que é ao mesmo tempo destruição-alegre dos valores que regem a educação.
Educação como devoração: Currículos e programas, conteúdos e objetivos, a fala douta
e especializada devoradas ao sabor do desejo. Antigos territórios do currículo
deslocados ou mesmo desterritorializados nessa espécie de geografia paradoxal. Saber e
sabor de uma arte como pura criação – arte antropofágica – sentir fome pelo que não é
seu, devorar outrem e seus possíveis transmutando-os no que é seu. Devoração como
desejo, apetite, ímpeto, rebeldia. Deglutição como gosto, sofisticação do paladar,
transmutação do alimento em algo novo, suplemento necessário para a vida.
O apolíneo e o dionisíaco – forças artísticas de um currículo
Nietzsche, pensador-artista, intensificou a sua arte por meio de um modo
singular de fazer filosofia, pautado na liberação da potência criadora do pensamento em
suas vertigens de criação. Ao escrever, subverteu as formas mais convencionais da
filosofia clássica pela utilização de aforismos, máximas, poesias, sátiras, uma nova
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música. Em verdade, a filosofia de Nietzsche deveria cantar – e não falar – pois é de
uma “nova alma” que ela trata; um espírito artístico ou um canto de dança, a música
dionisíaca. Sua perspectiva da arte como fenômeno estético e justificação plena do
mundo e da vida engendrou uma “fisiologia da arte” como a manifestação corpórea do
fenômeno estético capaz de fazer frente aos “desprezadores do corpo” e da vida.
Talvez o ponto de interrogação de Nietzsche na análise do Nascimento da
Tragédia (1872) esteja no questionamento do “valor da existência” que os gregos
atribuíam ao sentido do trágico enquanto necessidade. Isto porque, entre os gregos da
melhor época, o mito trágico sempre esteve associado a uma busca ambígua por um
“anseio de beleza” tanto quanto por um “anseio do feio”. E sobre esse “valor” do trágico
para os gregos, Nietzsche interrogou: “Será o pessimismo necessariamente o signo do
declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados”, ou, “Uma
propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência,
devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude da existência?”
(NIETZSCHE, NT, Prefácio, 1, 1999, p. 14). O que vem a ser, entre os gregos da
melhor época, o descomunal “fenômeno dionisíaco” e aquilo dele nascida, a tragédia?
Do fundo obscuro de suas interrogações, Nietzsche extraiu a duplicidade das
forças que movem o desenvolvimento da arte: o apolíneo e o dionisíaco. Aos deuses da
arte, Apolo e Dionísio, vinculam-se os impulsos artísticos da natureza, conjugados em
misteriosa fusão: o apolíneo, a arte do figurador plástico (a bela forma), e o dionisíaco,
a arte não figurada da música (a embriaguez). “Uno-Primordial” que manifesta a força
artística de toda a natureza: a obra de arte revelada pelo frêmito da embriaguez.
“Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade
superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando
pelos ares” (NIETZSCHE, NT, Aforismo 1, 1999, p. 31). Fusão primordial – o apolíneo
e o dionisíaco – sem a qual o fenômeno estético não poderia manifestar-se em sua força
e espírito. Apolo, o deus plástico, da medida, da bela forma não pode viver sem
Dionísio, o deus da música, da desmedida, da embriaguez, sob pena de, pela separação,
ver-se decretada a própria morte da arte – já que a “obra de arte”, o apolíneo, só pode
manifestar-se pelo “frêmito da embriaguez”, o dionisíaco; por sua vez, a embriaguez
dionisíaca só atinge a sua manifestação de fenômeno artístico por meio da arte apolínea.
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Se, como em tempos antigos, o fenômeno dionisíaco continua como
inteiramente desconhecido e inimaginável, a questão a ser considerada consiste em
como transfigurar a “aparência” ou a forma de um currículo por meio da “embriaguez”
dionisíaca do espírito da arte? Ainda com Nietzsche, talvez o procedimento consista em
vermos o currículo com a ótica do artista, e a arte, com a da vida. Imprimir uma força de
apresentação ao currículo ao ponto de não mais conciliá-lo com o mundo da
representação. Arte como acontecimento, pura manifestação.
Tal é a perspectiva da arte na educação: Criar as condições de possibilidade ao
surgimento do novo, mesmo que as rotas para isto sejam desconhecidas. Dar vazão ao
desejo como uma flecha do anseio lançada à vertigem da criação. Arriscar viver uma
experimentação, em seu próprio risco e criação. Arte enquanto espírito inquiridor,
frêmito da embriaguez, flecha de anseio à espreita do novo. Arte como expressão
existencial, espírito artístico, desejo ou força que reúne “sangue, coração, fogo, prazer,
paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós” (NIETZSCHE, GC,
Prólogo, 3, 2001, p. 13). Arte como cultivo da sensibilidade estética (corpo e espírito);
aprimoramento dos sentidos, das ações, do pensamento, por meio de novas
experimentações. Arte como dimensão transfiguradora de realidades e sentidos;
experimentação que propicia o transbordamento do ser e que eleva o instante da criação
à sua eternidade. Arte por meio da qual nos tornamos livres – “espíritos livres” – e
como tais já não podemos agir de outro modo senão por um rigor e um questionamento
radicais de nós mesmos. Arte que é também uma enfermidade e uma saúde – a
convalescença – de onde “voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais
maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as
coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na
alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais
fôramos antes” (NIETZSCHE, GC, Prólogo, 3, 2001, p. 14) – isto significa deixar às
margens o aprendido para arriscar viver no risco ou viver de outro modo. Arte que diz:
“Basta, eu ainda vivo”! Não quero para mim as verdades mortuárias da educação, muito
menos a ilusão de que as tenho.
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Pesquisa do Acontecimento
Quando se trabalha com pesquisa “do currículo” na educação, é quase certo que
as aspirações de partida do ato de pesquisar sejam para encontrar explicações,
resultados, soluções cabíveis aos problemas educacionais no que diz respeito à
organização do ensino e outras atividades curriculares, isto é, uma pesquisa que forneça
explicações sobre “a Teoria” ou “a Prática” do currículo e sobre como operar com elas.
De modo contrário a esse procedimento investigativo, as pesquisas pós-críticas do
currículo arriscam-se por caminhos incertos no ato de pesquisar, sendo que suas
motivações partem não da busca de resultados e explicações sobre “o que” da pesquisa,
mas sim, das vicissitudes do desejo por novos modos de experimentação e criação,
expressão singular do ato de fazer pesquisa como acontecimento. Assim, o pesquisar
pós-crítico, ao mesmo tempo em que “pesquisa o acontecimento” na experimentação de
um currículo é, também, por ele provocado, intrigado. E aquilo que emana como
acontecimento na experimentação continua em aberto pela possibilidade de outras
linguagens e pelas múltiplas possibilidades de responder às questões desse “um
currículo”, sem pretensões a resultados verdadeiros ou definitivos.
Tal procedimento cria condições para que o/a pesquisador/a trabalhe não sobre
“o Currículo”, com se fosse uma metáfora unificadora de um conjunto de currículos
prestes a ser decifrado, classificado, agrupado em uma resposta unívoca. Mas, sim,
enfatize a descoberta de “um currículo” como uma das possibilidades de respostas à
multiplicidade de quereres e questões que fazem do currículo um campo de
investigação. Pesquisar o acontecimento de um currículo remete à utilização de um
procedimento singular de investigação e criação do novo, pois, é do próprio ato de
pesquisar que se seguem novas maneiras de pensar e de realizar este ser ficcional do
currículo. Assim, para a “Pesquisa do Acontecimento” (CORAZZA, 2007b) os
possíveis significados extraídos daquilo que um currículo expressa enquanto linguagem
e criação estão sempre alhures, suspensos, incompletos em suas semi-verdades, pois
estas foram feitas ou fabricadas para durar apenas a eternidade do acontecimento que
disparou sua criação – tempo áion da criação.
Fazer pesquisa do acontecimento nas confluências da arte com o currículo
implica criar um procedimento informe, inacabado, passagem que atravessa o vivível e
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o vivido nos caminhos incertos da criação; implica admitir que a pesquisa pós-crítica
não tem a pretensão de elaborar saberes para operarem como “verdades” em suas
cátedras de conhecimento, bem ao contrário, os saberes que a pesquisa pós-crítica
elabora são fabricados (tanto quanto a sua linguagem) de modo parcial e não deixam de
ser expressões singulares às criações e experimentações que os laçam como flechas de
anseio para outras inquietações. Dito de outro modo, “a pesquisa pós-crítica é uma
pesquisa de ‘invenção’, não de ‘comprovação’ do que já foi sistematizado. Sua principal
contribuição é apenas a de ser aproveitável por outros/as pesquisadores/as, como uma
‘sementeira’ de sentidos imprevistos” (CORAZZA, 2001, p. 20).
Operar na penumbra do que não se sabe – eis a indeterminação do ato de
pesquisar em educação. Orientados pela flecha do anseio nietzschiano, fomos levados a
percorrer a imensa, longínqua e recôndita região da educação e do currículo “com novas
perguntas, com novos olhos: “isto não significa praticamente descobrir essa região?...”
(NIETZSCHE, GM, Prólogo, 7, 1998, p. 13). Certamente. Daí a importância do método,
que, só se faz no próprio caminho. Perseguir o problema com atitude e coragem.
Perfazer o percurso com os olhos abertos, em todas as direções, importando menos
moralizar o problema ou encontrar verdades e respostas, do que imprimir um tratamento
agudo que o conserve ainda e sempre como problema. Levar ao cume a suspeita para
arriscar – quem sabe! – uma afirmação.
Mantendo a atenção nas perguntas: “Afinal de contas, o que quer um currículo?”
(CORAZZA, 2001). O que um currículo pensa que ele é para querer alguma coisa?
Quem é aquele que deseja no currículo: o que pensa, como vive, o que anseia, quais são
seus desgostos e suas vontades? O trabalho ousou desafiar as próprias vozes do
currículo e seus quereres, invitando-o ao combate e à re-significação. No combate, de
um lado, o currículo que temos: ordeiro, enrijecido, especializado, inerte; de outro, um
currículo que queremos: arteiro, fabuloso, desenraizado, inventivo. Em cena, apenas “as
dez mil e uma expressões do rosto consideradas em estado de máscaras” (ARTAUD,
1999, p. 108), por meio das quais engendramos um “uso polívoco” da linguagem, isto é,
um dizer não mais conferido a um “querer-dizer” ou a um significante, mas somente, a
um acontecer das falas que se improvisam. Professora, alunos, crianças, personagens,
fantasmas, devires... Devir artista de um currículo deslocado de sua própria história e,
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por isso, extemporâneo, intempestivo, desenraizado, desorganizado; expressão de forças
e desejos, sonhos e fantasias entornados de um caldo como pura imaginação.
A utilização de conceitos e teorias pós-críticas do currículo, aliada ao repertório
de idéias e provocações artísticas foram certamente basilares na consecução do trabalho;
por meio deles, ensaiou-se a idéia da arte como justificação estética da existência e
como linha de fuga que percorre os sistemas estratificados e homogeneizantes da
sociedade e da educação de nossos tempos. Em seu desenvolvimento, o trabalho
objetivou discutir e afirmar a presença da arte na educação em sua dimensão estéticocriadora, fruição da sensibilidade estética e condição de possibilidade de construção de
novos saberes e sensações artísticas em educação.
Pesquisar o acontecimento de um currículo implica não apenas indagar sobre o
querer do próprio currículo, mas, sobretudo, descer às profundezas deste “ser falante”
para escutar as vozes desejantes que o compõem como ser de linguagem e, por isso
mesmo, ser fraturado pela própria linguagem. O procedimento consistiu em tornar
“uno” o ser falante deste currículo e o espírito artístico que o move num campo de
experimentações. Pensar a arte como transbordamento dos limites disciplinares de um
currículo, significa conjugá-la a outros elementos do ensino num dinamismo de forças
até a intensa profusão de desejos e sensações – expressão de um modo singular de
viver/estar/fazer/criar planos inventivos na educação. Pesquisar/artistar um tipo
inventivo de educação, implica reafirmar a responsabilidade do agir político da pesquisa
pós-crítica com a promoção de espaços de formação voltados à experimentação artística
de um currículo concebido como a vívida expressão das formas singulares da
sensibilidade estética e da criação do novo na educação. “Como sua principal tarefa
política, a pesquisa pós-crítica quer transformar o funcionamento da linguagem de um
currículo, na direção de modificar as suas condições de enunciação, fornecendo-lhe
planos infinitos de possíveis” (CORAZZA, 2001, p. 20).
A máquina-currículo
Do ponto de vista do pensamento filosófico e estético de Deleuze, a pesquisa
buscou interligar os vários componentes e linguagens do “plano de consistência” do
currículo aos “blocos de sensações” e “agregados sensíveis” da arte – bem ao modo
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como Deleuze & Guattari em O Que é a Filosofia (1991) atribuem relevância à arte
como um campo de experimentações e “criação de conceitos”, destacando a maneira
própria de “filosofar” da arte por meio dos afectos e perceptos que ela engendra em seus
blocos de sensações. Aliás, este é um aspecto diferencial no pensamento de Deleuze, em
que a arte assume um patamar de criação de conceitos tanto quanto a filosofia e a
ciência, respeitadas as suas especificidades. Isto torna possível estabelecer uma zona de
equivalência entre campos distintos, mas plenos de interlocução. Assim, “criar afectos e
perceptos é a maneira de ‘filosofar’ da arte. Criar conceitos é a maneira de ‘fazer arte’
da filosofia” (TADEU, 2007, p. 12).
Da profusão de misturas entre os elementos do plano de consistência, resultou
um composto heterogêneo de conceitos, idéias, linhas, rizomas, sons, cores, imagens,
palavras, intervalos... Composição do próprio “plano de atuação” da pesquisa. A energia
deste plano e desta pesquisa de experimentação proveio de um arsenal multifacetado de
linguagens e sensações colocadas em movimento na máquina-currículo para gerir novas
composições e vibrações no campo da educação. Este, um plano governado não pela
sisudez de um “Sujeito” com sua autonomia no pensar e sua lógica em estabelecer
verdades totalizadoras “do Currículo” (mesmo porque esse “Sujeito” da consciência já
se encontra fraturado em sua autonomia, efeito que é da própria linguagem que o
engendra como seu derivado), mas sim, um plano povoado por uma multiplicidade de
forças e devires, desejos e fantasias, uma necessidade irrevogável de criação do novo de
“um currículo” com espírito artista.
A filosofia de Deleuze é ela própria, criação, à medida que não se limita a
reproduzir ou repetir as intuições de autores clássicos, mas, sobretudo submete-as a uma
verdadeira crítica e recriação. Por isso, ousamos tomar por empréstimo o procedimento
do filosofar deleuziano para compor a construção de nosso currículo. O procedimento
consistiu em fazer o currículo que temos passar, ao mesmo tempo, por uma crítica e
uma clínica, no sentido de tomar a arte como “linha de fuga” (vontade afirmativa) frente
aos sistemas estratificados e homogeneizantes da educação, porém, essa “linha de fuga”
do desejo, que é a arte, não poderia desembocar numa “linha de morte” (vontade
niilista) e corroborar o próprio assassínio da arte e do currículo que queremos. Daí a
necessidade de uma clínica (ou terapêutica social) capaz de transfigurar a fuga dos
estratos em criação do novo, multiplicidade, devir.
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Tal procedimento artístico necessitaria de uma alta dose de fetiche na construção
do novo de um currículo. Fetiche já não entendido como falseamento do “real”, véu que
mascara as relações sociais de produção deixadas no currículo, e para o qual ter-se-ia
que imprimir uma atitude crítica para “desfetichizar” o currículo no que ele tem de
enganador e dissimulado, revelando seus “reais” interesses e propósitos de dominação.
De modo contrário à crítica social (marxista e freudiana), fomos levados ao ponto
originário dos significados primordiais do fetiche no que ele tem de material e espiritual
e, portanto, de irrepresentável em sua constituição: “feitiço”, “feitiçaria”, “fantasia” da
presença do objeto ausente; limite ambíguo entre sonho e fantasia, delírio e realidade,
genuíno e ilegítimo no aparecer. Silva (2001) nos explica a maleabilidade dessa
ambigüidade do fetiche: “Por sua própria índole – escorregadia, manhosa, arteira, lúdica
– o fetiche, como a crítica cultural, navega contra a corrente, contra o estabelecimento e
contra a ortodoxia” (SILVA, 2001, p. 72-73). E se já não estamos do lado da lucidez e
da razão tentando separar o verdadeiro do falso, o legítimo do ilegítimo num mundo
enlouquecido por suas misturas e profusões de sentidos, então, seria o caso de utilizar a
metáfora do fetiche para analisar e pensar o currículo enquanto arte e criação. Afinal das
contas, “num mundo tão estreitamente controlado, o fetiche, sempre inapreensível,
sempre inalcançável, sempre excedente, pode ser, talvez, o último recurso da crítica
cultural” (SILVA, 2001, p. 72-73).
Assim, caberia restituir positivamente a matriz “originária” do fetiche como
“feitiço”, “fantasia” para imprimir uma alta dose de desejo e sedução ao currículo que
queremos. Talvez acabássemos por admitir que o currículo é muito mais misterioso e
indeterminado do que pensamos e, ao mesmo tempo, pudéssemos ser levados a conviver
com nossos próprios fetiches e desejos (já que a escola tem sido essa máquina-órgão
anti-fetiche de fazer educação por apatia e obrigação). Embaraçados nos próprios
fetiches, criamos paisagens de um tempo-outro para um currículo povoado por seres
híbridos com suas múltiplas camadas. De dentro do véu do fetiche do currículo, avistouse não o “real” ocultado ou dissimulado, mas sim, seus próprios anseios e invenções.
Frente ao modelo iluminista de educação, para o qual “inventar, fabricar, criar são
atividades menores frente às atividades de revelar, de descobrir, de fazer aparecer”
(SILVA, 2001, p. 105), fabricar um currículo como fetiche é uma estratégia de
subverter essa hierarquia e restabelecer a ligação entre saber e desejo em sua nascente.
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Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
Curricularte
Desejo, seria esse currículo, mas também, fetiche, fantasia, fabulação. Palavras
para designar a força abissal da vontade em seu apetite pelo desconhecido.
Experimentação que liga o sentido da arte à vida e à criação. Jogo de indetermináveis
que se dá ao acaso dos encontros. Irrupção que move o espírito artístico em direção ao
novo, novas experimentações. Os atos desse “um currículo” fizeram-se por meio de um
deslocamento espaço-temporal e uma “impostura” que desorganizou o organismo
curricular operante nos sistemas de ensino. Uma teatralidade que atravessa e restaura a
existência e a vida no fazer da educação. Currículo-Ato. Currículo-Carne. Teatro da
existência. Teatro de apresentação. Nada de representação, quando se já trata de um
currículo no que ele tem de irrepresentável. Currículo jogado. Nem amo nem escravo do
que diz ou faz. Apenas derivado e efeito da linguagem e da cena que o engendrou.
Curricularte. Expressão cunhada para caracterizar a dimensão estética da arte
ligada ao currículo. Arte experimental que liga saber e sabor, desejo de aprender e
potência de saber. Gagueira da língua que suprime, por devoração, o determinismo do
artigo “o” do currículo hegemônico e normativo em favor de uma fusão visceral de seus
elementos artísticos, espécie de “uno-primordial”, em cumplicidade imanente. Modo
singular de viver-ensinar-aprender, pensar-experimentar-criar em educação. Composto
de forças e formas, fugas e capturas inventivas em torno da idéia de arte. Máquina de
guerra a colocar em funcionamento um arsenal criativo de forças e idéias contrárias às
formas e modelos pré-estabelecidos de educação. Expressão desejante dos elementos
artísticos conjugados no pensar-fazer-artistar a educação. Repertório de idéias e
elementos construídos em meio à fermentação de conceitos: criação, experimentação,
invenção. Composição de uma arte gêmea que manifesta o ofício do figurador plástico –
o apolíneo do currículo – transfigurada pelo frêmito da embriaguez não figurada da
música – o dionisíaco da arte – Curricularte – Misteriosa união que expressa a força
artística do que pode um currículo, revelada como obra sob o frêmito da embriaguez.
Talvez uma música seja o novo, ou então, um canto de dança, a dança dionisíaca, o
frêmito da embriaguez a sacudir a bela forma do currículo em todas as direções. Arte
trágica conjugada pelos impulsos artísticos da natureza, o apolíneo e o dionisíaco,
“serenojovialidade” do espírito em suas rajadas de criação. Liberação das forças
Gilcilene Dias da Costa
5620
Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
artísticas, primordiais e indestrutíveis, em sua “unidade produtiva”. Música dionisíaca
que conduz o pensamento ao alcance da arte, a arte ao alcance do pensamento – como
Nietzsche, exigimos que nos cantem um cântico novo. Cultivo da sensibilidade estética
e da criação para o novo, o extemporâneo, o excepcional. Esforço de elevação de si e
superação de antigos temores que assombram a educação desde um “além-mundo”.
Fidelidade à terra. Fidelidade ao existir da educação neste mundo; afirmação da vida e
do mundo na sua tragicidade. Aspiração ao novo nas trincheiras do humano ou
inumano, pelo não esgotamento das possibilidades de criação.
Foi por uma inusitada agitação entre o velho e o novo do currículo – artimanha
que expôs a nudez do vivível e o saber-fazer de todo o dia – que todos, afinal, lançaramse à vertigem da criação – “serenojovialidade” de um espírito, para lembrar Nietzsche.
Em cena, uma profusão de gestos, movimentos, cores, sons, imagens, falas, formas,
danças, intervalos... Paisagem heteróclita de um currículo como pura fermentação.
Tempo áion da criação. Devir artista das vozes de um currículo prefigurado em desejos,
sonhos, fantasias. Curricularte. Expressão das singularidades sensíveis e dos construtos
ficcionais de um currículo desejado ao avesso da figuração do que se tem. Liberação das
forças dionisíacas da arte e transfiguração da bela forma apolínea do currículo –
Curricularte. Fusão primordial que unifica o apolíneo do currículo ao frêmito da
embriaguez da arte. Experimentação artística gestada no encontro e na profusão de
idéias e sensações entre um currículo desejante e sua arte. Dimensão do sensível que
liga saber e sabor, desejo de aprender e potência de saber. Arte antropofágica movida
pelo desejo de devoração e criação do novo na educação.
Num ato de devoração, suprimiu-se o determinismo do artigo “o” do currículo
propiciando uma atmosfera de leveza na gramática do Curricularte. A indeterminação
da fusão deixou entrever o pluralismo das vozes que compõem um currículo como “ser
falante”, dotando-o de fantasias e delírios. A hipótese de um “ser falante” (CORAZZA,
2001) favoreceu a fabulação de mundos e realidades distintas em letras, sons, cores,
formas até então impensados no interior dele mesmo. A presença das vozes desse “um
currículo” trouxe também um imaginário letárgico de um tempo-antigo (mas
plenamente presente na educação de hoje), cuja demarcação de normas, regras, horários,
rituais, disciplinas, conhecimentos e deveres aprisionam o currículo em suas próprias
grades, impedindo o espírito artístico de manifestar-se em sua embriaguez de criação.
Gilcilene Dias da Costa
5621
Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
Isso ocorre porque, enquanto ser de linguagem e ser fraturado pela própria
linguagem, o currículo carrega as incertezas e desventuras dos que habitam o seu
subsolo, mas ao mesmo tempo torna possível viver no sonho e na fantasia, realizando-se
neles. Em meio a essa indeterminação, pôde-se entrever o velho demônio do
conhecimento, com suas vestes antigas e pesadas, posando de fantasma e tentando
empreender o seu dispositivo poder-saber-verdade: uma linguagem cifrada que ele
utiliza para manter os sujeitos dóceis e separados do espírito artístico pela inércia do
fazer rotineiro de todo dia. Por isso, muitas vezes foi necessário exorcizar esse demônio
da verdade com o seu indesejável “eu penso”, “eu sei”. E, contrariamente, ao ser falante
desse “um currículo”, imprimiu-se o pluralismo de um “nós” desejante e heterogêneo,
sem deixar subsumir a singularidade da experimentação de cada ser em sua
inventividade e criação. Risos, delírios, jogos, cores, sons, formas, histórias, crônicas,
paródias, rimas, hinos, fetiches, fantasias, teatro, dança, música, poesia, gritaria,
alegria... Bálsamo fabuloso de um viver inventivo, recriando nos palcos da arte o existir
da própria educação.
Flechas de anseio...
Reiterando o entendimento de que “o Acontecimento a ser pesquisado é um
dinamismo criador – que permaneceria imperceptível se tentasse ser investigado pelos
canais habituais da tradição” (CORAZZA, 2007b, p. 72), a pesquisa desse “um
currículo” – Curricularte – jamais consistiu em buscar a essência (inexistente) do que
“é” esse currículo, e sim, perceber “o que se passa” nesse novo de um currículo: forças,
devires, linhas, rizomas, diagramas, canais, fluxos, cortes, fugas, passagens,
adjacências... Experimentar a arte como fenômeno estético nos atos de criação desse
“um currículo” foi, talvez, a forma de expressão inerente ao fazer artístico da própria
arte nas dobras da educação.
A arte, como vimos, é o espírito criador que liga, por meio da experimentação
estética, o vivido e o vivível, como puro acontecimento. Intempestiva e extemporânea,
ela habita o tempo áion da criação – morada do devir – povoamento das intensidades,
multiplicidades, sensações, forças, criação. E é como “acontecimento” que ela atinge o
patamar de uma singularidade como marca e ecceidade em cada indivíduo ou
Gilcilene Dias da Costa
5622
Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
sociedade, tempo e lugar. Jamais limitada aos aspectos cognitivos, intelectuais ou
racionais do gosto estético ou da criação humana, por meio dela nos deleitamos em pura
satisfação e entrega, sem a necessidade de medir a experiência por uma finalidade
exterior ou determinante, busca utilitária ou um fim. A experimentação estética, quando
livremente vivida, propicia o desenvolvimento do pensamento artístico tanto quanto da
sensibilidade, da fantasia, da imaginação.
Experimentar a arte como fenômeno estético na educação envolve, basicamente,
a liberação dos sentidos e da sensibilidade para fruir, sentir, perceber, questionar, criar,
transfigurar realidades. Envolve, também, desenvolver a capacidade de resistência
frente aos que a delegam um lugar ordenado e compassivo, mero adereço disciplinar dos
currículos escolares. Pois somente do ponto de vista da arte como manifestação do
fenômeno artístico regida por um “espírito de embriaguez” é que podemos recriar os
processos educativos de ensino-aprendizagem e avaliação, sempre que estes tenderem a
restringir a arte à aquisição de conhecimentos meramente disciplinares.
No seu saber-fazer do ato de educar, o professor-artista é aquele sempre apto a
promover a abertura ao desenvolvimento de atividades artísticas integradas às atividades
pedagógicas, num diálogo interdisciplinar. Trabalho por meio do qual poderá instigar o
espírito artístico dos educandos para novas experimentações de aprendizagens e
criações singulares em seu processo de formação. Ao valorizar a singularidade artística
dos educandos, o professor-artista estará imprimindo novas formas de avaliação das
aprendizagens construídas, de modo a romper com os modelos imitativos de ensino e
avaliação que subjugam a arte ao último plano. E talvez a tarefa do professor-artista
esteja em manter viva a arte como acontecimento na educação, pois, ao contrário, a
morte da arte demarca o momento em que o espírito não tem mais necessidade de
apresentar a si mesmo formas exteriores de provocação e criação.
Gilcilene Dias da Costa
5623
Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARTAUD, Antonin. [1938]. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. – 2 ed.
– São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BARTHES, Roland. Aula. [1977]. Tradução e Posfácio de Leyla Perrone-Moisés. – 12ª
Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2004.
CORAZZA, Sandra. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação.
Petrópolis: Vozes, 2001.
______. O que Deleuze quer da educação? REVISTA EDUCAÇÃO. Ano II – Especial
Deleuze Pensa a Educação. – São Paulo: Editora Segmento, 2007a, pág. 16-27.
______. Para pensar, pesquisar e artistar a educação: sem ensaio não há inspiração.
REVISTA EDUCAÇÃO. Ano II – Especial Deleuze Pensa a Educação. – São Paulo:
Editora Segmento. ISSN: 1415-5486. 2007b, pág. 68-73.
COSTA, Gilcilene Dias da. Trilogia Antropofágica: a educação como devoração. Tese
de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS/PPGEDU, 2008.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. – SP: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado
Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992.
NIETZSCHE, F. [1872]. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo.
Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. – São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
______. [1882]. A Gaia Ciência. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2001.
Gilcilene Dias da Costa
5624
Curricularte – Experimentações Pós-Críticas em Educação
______. [1885]. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
[Tradução Mário da Silva]. – RJ: Civilização Brasileira, 2000.
______. [1886]. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio de
Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto
curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
______. Tinha horror a tudo que apequenava... [Deleuze: biografia intelectual].
REVISTA EDUCAÇÃO. Ano II – Especial Deleuze Pensa a Educação. – São Paulo:
Editora Segmento, 2007, pág. 6-15.
Gilcilene Dias da Costa
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
SOCIEDADE DE CONTROLE, EDUCAÇÃO E
CURRÍCULO
Luiz Pereira de Lima Júnior
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
SOCIEDADE DE CONTROLE, EDUCAÇÃO E CURRÍCULO
Luiz Pereira de Lima Júnior1
RESUMO: O pensamento do francês Gilles Deleuze é singular. Ele representa um novo
horizonte. Apesar de não se debruçar, prioritariamente, sobre a Educação, fornece pistas
para refletir sobre acontecimentos que circulam em seu bojo, singularmente no Brasil
atual. O aludido pensamento servirá de pórtico para situar o advento da sociedade de
controle e, concomitantemente, flagrar a ordem deste novo discurso no lastro das
práticas educativas escolares. A inserção da tecnologia no interior dessas práticas é
materializada em propostas curriculares, como, por exemplo, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Haja vista que a tecnologia desempenha o papel de novo
soberano, pois cria uma nova cultura do rebanho: fundada no controle dos corpos e das
almas dos educandos.
PALAVRAS-CHAVE: Controle. Educação. Currículo.
Sinalizando
Gilles Deleuze tocou-me, inicialmente, com sua forma especial de enxergar a
vida (simples e desprovida de lembranças que não façam jus aos devires), sua postura
generosa, especialmente, ao observar a forma como trata o conhecimento. O processo
de conhecimento e a gama de teorias que dele emanam apenas são necessários quando
são utilizados para fins práticos, que facilitem a vida e os atos de pensar de cada pessoa.
O grande pensador necessita do inesperado como do ar. O pensamento não se reduz à
teoria, mas, fundamentalmente, à vida. Deleuze pensa a relação do diferente com o
diferente sem, contudo, colocá-lo sob a tutela da prática que o faça retornar ao que era.
Não é à toa que, muitas coisas lidas por ele eram esquecidas, uma vez que não tinham
nenhum valor em determinadas circunstâncias de sua vida.
1
Doutor em Ciências Sociais, professor do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal da Paraíba.
Luiz Pereira de Lima Júnior
5629
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
Essa prática do esquecimento que perpassava a vida de Deleuze aguçou a minha
percepção, quando observei que poderia ter saudades e esquecer acontecimentos
desagradáveis, como, por exemplo, a disciplina e o controle que perpassam as práticas
educativas escolares. Esse processo fez parte da minha vida, porque me impulsionava a
olhar para o futuro. Lá, no futuro (futuro – vácuo), estariam novas imagens das práticas
educativas escolares, simultaneamente, livres de disciplinas e controles: perpassadas
pelo desejo.
O desejo, segundo Deleuze e Guattari ([ca. 2000], p.31,33), produz. Se ele
produz, produz real. Ele só pode ser a realidade e da realidade. Ele está presente a nós a
partir de “[...] sínteses passivas, que maquinam os objetos parciais [...]” que nos
circundam, os fluxos e os corpos, funcionando como unidades de produção. Existe
apenas o desejo e o social, pois, mesmo “[...] as forças mais repressivas e mortíferas da
reprodução social são produzidas pelo desejo, na organização que dele deriva em
determinadas condições [...].” O agenciamento de desejo, para Deleuze (1996, p.17-24),
não é uma determinação “natural” ou espontânea. O desejo circula num agenciamento
de heterogêneos, unindo-se a um agenciamento determinado, a partir de um cofuncionamento. Ele implica a constituição de um campo de imanência, de um corpo sem
órgãos, definido apenas por zonas de intensidades, de limiares, de gradientes, de fluxos.
A leitura de Deleuze (1992), sobretudo no que tange à sociedade de controle,
representou uma nova descoberta. Na sociedade de controle, deve-se refletir acerca dos
seus mecanismos, objetivando-se encontrar “novas armas”. A utilização dessas novas
armas voltar-se-á para deter o novo monstro: o controle.
Michel Foucault situou a sociedade disciplinar nos séculos XVIII e XIX, em
pleno funcionamento no século XX, cuja técnica principal é o confinamento. Ela cedeu
espaço, gradativamente, à sociedade de controle, anunciada por Deleuze (1992, p.219220) no século XX, basicamente na década de 1940, ao observar “[...] a instalação das
novas forças que se anunciam.” Ao suceder as sociedades de soberania, a sociedade
disciplinar iria perdendo suas forças, pois uma crise instalar-se-ia em seu interior,
notadamente a partir da segunda guerra mundial. O controle hoje é do planeta, e não
apenas dos corpos, como preconizava a sociedade disciplinar, com base numa
modulação universal. Os tradicionais meios de confinamento, como, por exemplo, a
prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família, passariam por uma crise generalizada.
Luiz Pereira de Lima Júnior
5630
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
Haja vista que a nova forma de controle da sociedade é participar, diferentemente do
controle da sociedade disciplinar que é a resistência. A escola, por exemplo, é um meio
de confinamento. Michel Foucault apontou o controle como um futuro próximo.
As pessoas, de acordo com Deleuze (1992, p.219-226), sempre estão transitando
de um espaço fechado a outro, ou seja, sempre regulamentados por suas leis. O referido
trânsito ocorre entre família – escola, caserna, fábrica e, esporadicamente, hospital e
prisão. As escolas, por sua vez, exercem formas de controle contínuo: avaliações
contínuas, projetos de formação permanente, carência de pesquisas. Há um elemento
que merece destaque: os modelos empresariais fazem-se presentes aos níveis de
escolaridade, para que se possa administrar, disciplinar e controlar os comportamentos,
para que sejam dóceis.
Na sociedade de controle, o dispositivo principal é a participação em fluxo. O
corpo deixa de ser dócil, observando-se que a preocupação é direcionada para a saúde
do Planeta. Estamos no campo de um território ampliado, cuja maior recomendação é
não resistir. Todos participam em favor do aprofundamento. Não há lugar como na
sociedade disciplinar, mas há fluxos. A prisão assume formas diversificadas: a prestação
de serviços. Existem perigos de ordem planetária. Sexo, sangue e racismo, que
predominavam na sociedade disciplinar passam para a sociedade de controle, como
sexo, religião e democracia. A democracia neste cenário é fundamental. Perguntar
acerca do mito que se constrói nesta sociedade é algo que vem instigando reflexões.
O acesso à sociedade de controle ocorre através do poder da cifra ou senha, de
uma chave eletrônica, de um endereço que apontará o locus onde o usuário se encontra.
A linguagem numérica do controle, para Deleuze (1992, p.222-226), é constituída por
cifras, marcando o acesso ou a rejeição à informação. O controle é uma modulação,
circunscrevendo-se em diferentes lugares. São diversificados modos de controle, os
controlatos que operam de maneira inseparável, pois se trata de um sistema geométrico
variável. Os referidos controles se apresentam como uma modulação: uma moldagem
que muda continuamente. Isto ocorre porque a sociedade de controle é fundamentada
numa realidade ou estados metaestáveis, onde dificilmente se termina alguma coisa,
uma vez que a variação é contínua. Se a assinatura e o número de matrícula marcaram a
sociedade disciplinar, na sociedade de controle, o que é determinante é a cifra: uma
senha. Não mais o dinheiro, mas as trocas flutuantes ou modulações. Sua emergência
Luiz Pereira de Lima Júnior
5631
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
ocorre em todas as facetas das práticas sociais, em particular das educativas escolares,
desencadeando novas formas de educação. Deve-se estar atento, pois, de acordo com
Deleuze (1992, p.222, 226), “A velha toupeira monetária é o animal dos meios de
confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. [...] Os anéis de uma
serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.”
Atualmente o controle, para Passetti (1999, p.56,58), efetiva-se sobre o planeta.
Trata-se de um espaço sem lugar, uma vez que o autocontrole perpassa a sociedade de
controle. No bojo desta sociedade em fluxo produzem-se muitos espaços e virtualidades
e, concomitantemente, os que se referem às práticas educativas escolares.
Sinaliza Deleuze (1992, p.223) que adentramos nas sociedades de controle.
Ocorre uma nova mutação do sistema capitalista, onde os mecanismos de produção e
regulamentação das subjetividades (os controlatos) realizam funções de modulação, sob
o controle contínuo e da comunicação instantânea. Estas sociedades não funcionam por
confinamento como antes; mas, essencialmente, por controle contínuo e comunicação
instantânea. Nessa análise, Deleuze (1992, p.219-226) ressalta que:
[...] não se deixou de falar da prisão, da escola, do hospital: essas
instituições estão em crise. Mas se estão em crise, é precisamente em combates
de retaguarda. O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de
sanções, de educação, de tratamento. [...] Pode-se prever que a educação será
cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional – um outro
meio fechado –, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível
formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operárioaluno ou o executivo-universitário. Tentam nos fazer acreditar numa reforma
da escola, quando se trata de uma liquidação. Num regime de controle nunca se
termina nada. [...] A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer
corresponder um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para as
sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as
cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle.
Os processos de formação permanente substituem a escola, assim como o
controle contínuo substitui o exame. Uma vez que a empresa substitui a fábrica,
contrapõe-se o indivíduo, pois ele se torna “divíduo”, passando a situar-se num banco
de dados. Nesta sociedade, encontram-se as máquinas de uma terceira espécie: as de
Luiz Pereira de Lima Júnior
5632
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
informática e computadores. Elas possuem como perigo passivo a interferência e como
perigo ativo a pirataria e a introjeção de vírus.
Com relação às máquinas, elas por si sós não dão uma explicação satisfatória. A
tecnologia, para Deleuze e Guattari ([ca.2000], p.417), enseja máquinas sociais e
máquinas desejantes, umas dentro das outras. Partir-se-á para uma análise dos
agenciamentos coletivos que as constituem. É fundamental, ainda, que criemos vacúolos
de
não-comunicação,
interruptores,
que
propiciarão
escapar
ao
controle,
especificamente no âmbito da Educação e da escola. Desta forma, Gallo (2003, p.9) diz
que o pensamento de Deleuze é útil para [...] fazer interface com temáticas da
educação.”
A sociedade de controle é calcada numa sociabilidade autoritária, na qual a
educação assume papel fundamental constituindo a sua base. Ela está assentada nos
processos de punição e nos direitos universais de igualdade. Desta maneira, surge a
necessidade de refletir acerca deste aparato tecnológico, político e, especialmente,
pedagógico, pois ele se converte numa estratégia pública de ensino.
O discurso da democracia instala-se no interior das práticas educativas escolares,
materializado na relação tecnologia e educação que, a rigor, redimensiona as políticas
de educação, especialmente através do currículo.
Os acontecimentos arrolados situam-se na interface disciplina (FOUCAULT,
1979; 1987) – controle (DELEUZE, 1992), especialmente quando uma das maiores
preocupações é com a relação tecnologia – educação. É a transformação dos
dispositivos de disciplina e de controle, no quadro das práticas educativas escolares e,
singularmente, no dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).2
Materializando
A temática Tecnologia e Educação, ou seja, Tecnologias da Comunicação e
Informação (TICs),3 perpassa o currículo, especialmente os PCNs. Esse texto de política
2
São referenciais curriculares, em vigor no Brasil, a partir da década de 1990.
3
Refere-se “[...] aos recursos tecnológicos que permitem o trânsito de informações, que podem ser os
diferentes meios eletrônicos, que surgiram no final do século XIX e que se tornam publicamente
reconhecidos no início do século XX, com as primeiras transmissões radiofônicas e de televisão, na
década de 20. Os meios eletrônicos incluem as tecnologias mais tradicionais, como rádio, televisão,
Luiz Pereira de Lima Júnior
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Sociedade de Controle, Educação e Currículo
educacional é um dispositivo de poder-saber, que faz surgir novos dispositivos de
controle e, desta forma, novos dispositivos de práticas educativas escolares. Os PCNs se
constituem numa arquitetura organizacional, pois demarcam os espaços para que os
comportamentos respondam a seus objetivos. Trata-se da ingerência dos dispositivos de
controle na educação, caminhando pari passu aos de disciplina.
A partir de 1997, com o surgimento formal dos PCNs (1997), percebe-se uma
ruptura nas tecnologias de poder. Embora exista mais do que resquícios da disciplina,
passa-se desta, para o controle. É uma nova forma de vigilância que surge com os
processos tecnológicos que ocorrem nas práticas educativas escolares.
Quanto ao papel da educação na sociedade tecnológica, os PCNs (BRASIL,
1999, p.25) dizem que os processos que envolvem disciplina, obediência, respeito
restrito às normas vigentes, aspectos fundamentais para que ocorra a inclusão social nos
processos de profissionalização no atual momento, deixam de ser tão importantes, por
surgirem novas demandas oriundas da tecnologia e da sociedade. A sociedade
proveniente da revolução tecnológica e seus reflexos na área da produção e da
informação, possibilitam a educação ter autonomia, até então não obtida. As novas
competências cognitivas e culturais requeridas para o processo de desenvolvimento da
humanidade referem-se, também, ao que ocorre no âmbito da produção.
Os PCNs aparecem no cenário como o projeto capaz de reordenar as práticas
educativas escolares, justificando que a tecnologia é fator preponderante. Desta forma,
salienta-se seu objetivo geral:
[...] tanto para o ensino fundamental (primeiro grau, com oito anos de
escolaridade obrigatória), quanto para o ensino médio (segundo grau nãoobrigatório), proporcionar aos educandos a formação necessária ao
desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização,
preparação para o trabalho e para o exercício consciente da cidadania
(BRASIL, 1997, p.14).
No Ensino Fundamental, encontram-se as bases da tecnologia, basicamente no
terceiro e quarto ciclos, estabelecendo a ponte para o Ensino Médio (BRASIL, 1998,
p.135).
gravação de áudio e vídeo, além de sistemas multimídia, redes telemáticas, robótica e outros.” (BRASIL,
1998, p.135).
Luiz Pereira de Lima Júnior
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Sociedade de Controle, Educação e Currículo
A justificativa é que o processo de desenvolvimento tecnológico gerou diversas
transformações no âmbito da sociedade contemporânea, sobretudo nas duas últimas
décadas. O usufruto da tecnologia pela sociedade é detectado ao observar-se que em
suas atividades fazem-se presentes os recursos tecnológicos, envolvendo diferentes
meios de comunicação e de informação. As tecnologias da comunicação são canais de
informação que propiciam a reordenação de processos cognitivos e a ação das pessoas
com o meio que a circunda.
Há um aspecto que merece destaque no Ensino Fundamental da 5ª. à 8ª. série.
Refiro-me à questão das TICs, como um dos últimos conteúdos enfatizados neste nível e
séries de ensino. A abordagem desta temática prepara as bases da discussão que, a rigor,
perpassará a trajetória do Ensino Médio (BRASIL, 1998, p.133-157).
No que concerne ao Ensino Médio, numa carta4 destinada ao professor, comenta
este nível de ensino:
[...] parte da educação básica. Isso quer dizer que ele é parte da formação que
todo brasileiro deve ter para enfrentar a vida com mais segurança. Por isso,
propomos um currículo baseado no domínio de competências básicas e não no
acúmulo de informações. [...] O Ensino Médio no Brasil está mudando. A
consolidação do Estado democrático, as novas tecnologias e as mudanças na
produção de bens, serviços e conhecimentos exigem que a escola possibilite
aos alunos integrarem-se ao mundo contemporâneo nas dimensões
fundamentais da cidadania e do trabalho (BRASIL, 1999, p.9-11).
Os produtos do mercado da informação, tais como, revistas, jornais, livros, CDROM,5 programas de rádio e televisão, home-pages,6 sites,7 e correio eletrônico,8
4
Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza (BRASIL, 1999, p.9).
5
“[...] sigla que significa compact disc-ready only memory (memória apenas para leitura). Trata-se de um
dispositivo que possui capacidade para armazenar grandes quantidades de dados, textos, gráficos,
imagens e sons. Tem o mesmo formato de um CD de música. O kit multimídia é composto por uma
placa de som, caixas de som, o drive do CD e acompanha disquetes de instalação.” (BRASIL, 1998,
p.136).
6
“[...] é uma página, ou páginas da Web, documentos que utilizam linguagem de hipertexto. Web é um
sistema baseado em hipertextos, similares a páginas de revista, que podem conter textos, fotos,
ilustrações, áudio, vídeo e até animação. Atualmente existem mais de 20 milhões de páginas da Web.”
(BRASIL, 1998, p.136).
Luiz Pereira de Lima Júnior
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Sociedade de Controle, Educação e Currículo
proporcionam diferentes formas de comunicação, pois produzem novas formas de
produção de conhecimento. Atualmente existe a possibilidade de comunicação on-line,9
bem como a de uma aprendizagem intermediada pelo computador (BRASIL, 1998,
p.135-136).
Apesar de os meios eletrônicos de informação disponibilizarem imagens e
informações no Planeta, salienta-se que não implica um processo de acesso democrático
às informações, nem tampouco uma visão crítica do mundo por parte dos usuários. O
que mudou foi a maneira de comunicar informações globais com velocidade e em
diversificadas formas (BRASIL, 1998, p.136). Desta forma,
[...] a educação pode contribuir para diminuir diferenças e desigualdades, na
medida em que acompanhar os processos de mudança, oferecendo formação
adequada às novas necessidades da vida moderna. As demandas atuais exigem
que a escola ofereça aos alunos sólida formação cultural e competência técnica,
favorecendo o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes que
permitam a adaptação e a permanência no mercado de trabalho, como também
a formação de cidadãos críticos e reflexivos, que possam exercer sua cidadania
ajudando na construção de uma sociedade mais justa, fazendo surgir uma nova
consciência individual e coletiva, que tenha a cooperação, a solidariedade, a
tolerância e a igualdade como pilares (BRASIL, 1998, p.138).
No que diz respeito à importância dos recursos tecnológicos na Educação, são
evidenciadas a tecnologia na vida e na escola e a melhoria da qualidade de ensino e
aprendizagem. A partir da constatação de que o mundo está em constante
desenvolvimento, onde a tecnologia se faz presente, direta ou indiretamente, isto
repercute nas atividades práticas. Uma vez que a escola se insere neste contexto, ela
contribuirá para que as pessoas desenvolvam sua cidadania, participando de todos os
processos que perpassam a vida cotidiana: os de cunho tecnológico. Dentre as diferentes
7
“[...] é um lugar em que se tem acesso a informações, usando um computador e um programa de
navegação.” (BRASIL, 1998, p.136).
8
“Correio eletrônico ou e-mail: mensagens criadas, enviadas e lidas em computadores. O correio
eletrônico normalmente envolve o envio de mensagens para outros usuários do mesmo tipo de rede.”
(BRASIL, 1998, p.136).
9
“[...] significa estar conectado a outros computadores, ou a uma rede de computadores. Termo também
utilizado para descrever serviços oferecidos pela Internet.” (BRASIL, 1998, p.136).
Luiz Pereira de Lima Júnior
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Sociedade de Controle, Educação e Currículo
possibilidades que se apresentam no cenário educativo, as referidas tecnologias da
educação possibilitam as alternativas de educação à distância, proporcionando a
formação contínua, cooperativa, e interativa (BRASIL, 1998, p.138,140).
Quanto à melhoria da qualidade de ensino e aprendizagem, percebe-se que
incorporar as inovações tecnológicas só tem fundamento se isto atender a este mister. A
tecnologia propiciará o enriquecimento do espaço educacional, para que seja possível
construir conhecimentos, de forma ativa, crítica, e criativa, envolvendo alunos e
professores (BRASIL, 1998, p.140). Neste encaminhamento,
A tecnologia eletrônica – televisão, videocassete, máquina de calcular,
gravador e computador – pode ser utilizada para gerar situações de
aprendizagem com maior qualidade, ou seja, para criar ambientes de
aprendizagem em que a problematização, a atividade reflexiva, atitude crítica,
capacidade decisória e a autonomia sejam privilegiados. Os meios eletrônicos
de comunicação oferecem amplas possibilidades para ficarem restritos apenas à
transmissão e memorização de informações (BRASIL, 1998, p.141).
Os PCNs colocam as diferentes potencialidades educacionais dos meios
eletrônicos. Livros, jornais e revistas são tecnologias informacionais que estão presentes
à escola há algum tempo. Os meios eletrônicos de comunicação e informação, na maior
parte das escolas do país, ainda se constituem em novidades, mesmo que sejam de
conhecimento de muitos e até mesmo utilizados, com exceção do computador, que é um
instrumento recente para as pessoas. Embora em muitos Estados desta nação já existam
projetos em nível da tecnologia educacional, as potencialidades destes recursos não são
bem reconhecidas pelos educadores. Desta maneira,
Essa é uma realidade que precisa mudar em curto espaço de tempo, em virtude
da necessidade da escola acompanhar os processos de transformação da
sociedade, atendendo às novas demandas. É premente que se instaure o debate,
a implantação de políticas e estratégias para o desenvolvimento e disseminação
de propostas de trabalho inovadoras utilizando os meios eletrônicos de
informação e comunicação, já que eles possuem um enorme potencial
educativo para complementar e aperfeiçoar o processo de ensino e
aprendizagem (BRASIL, 1998, p.142).
Luiz Pereira de Lima Júnior
5637
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
Dentre as referidas potencialidades educacionais, destacam-se: a televisão, o
videocassete, a vídeo-gravadora, a câmera fotográfica, o rádio, o gravador, a
calculadora, o computador (BRASIL, 1998, p.142-146). Salienta-se este último, por
possibilitar novas formas de trabalho, proporcionando a criação de ambientes de
aprendizagem, para que construam novas maneiras de aprender. Concebido como um
instrumento de aprendizagem excepcional, ele poderá auxiliar os processos de educação
especial. Ele ainda pode ser visto, simultaneamente, como ferramenta e instrumento de
mediação, uma vez que pode facilitar o desenvolvimento de tarefas que seriam de difícil
realização. É, ainda, considerado como mediador, pois leva ao estabelecimento de
relações novas que conduzem à construção de conhecimentos, dentre outras funções. A
utilização de computadores nos processos de ensino não é concebida, unicamente, como
informatização dos referidos processos até então existentes, pois não diz respeito à aula
com efeitos especiais. Ele criará ambientes e espaços de aprendizagem para que possam
surgir formas de pensar e aprender (BRASIL, 1998, p.141-142,146-147).
No rol das contribuições que o uso do computador propicia, salientam-se: o
favorecimento da interação com uma gama de informações; a problematização de
situações através de programas; o favorecimento da aprendizagem cooperativa, ativa e
controlada pelos alunos; motivação dos alunos para a utilização de procedimentos de
pesquisa de dados; construção de objetos virtuais; publicações (BRASIL, 1998, p.147149).
No que tange aos aludidos recursos, o documento ressalta que eles ocorrem em
graus diversificados de aplicação, considerando-se as especificidades das práticas
escolares e, sobretudo, dependendo-se da atuação de professores e alunos.
A emergência da tecnologia nos processos de ensino e aprendizagem, de acordo
com a análise de Mattos (1995), não é precisa. Logo, é difícil situá-la no espaço da
Educação. Isto denota que ela foi definida de diferentes maneiras. Comumente ela é
designada de tecnologia educacional. O surgimento da imprensa é concebido,
parcialmente, como acontecimento crucial. Haja vista a avalanche de conhecimentos
provenientes. No que tange à aplicação de conhecimentos mais sistematizados no
campo
educacional,
mencionam-se
aqueles
provenientes
da
psicologia
da
aprendizagem, a partir da instrução programada de Skinner. Este acontecimento revela a
Luiz Pereira de Lima Júnior
5638
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
marca das concepções tecnicistas. Desta forma, a tecnologia educacional comumente é
compreendida como a utilização de recursos audiovisuais: slides, filmes, entre outros.
A década de 1980 geralmente é apontada como marco do surgimento dos
indícios de informática na educação, particularmente nos espaços da reserva de mercado
para a informática. Nos dias atuais, falar de tecnologia, tanto na sociedade, quanto na
educação, diz respeito à automação de serviços. Segundo Ribeiro (1992), utilizam-se
recursos das redes mundiais de televisão, da Microeletrônica, da Microbiologia, da
Energética,
e
da
Informática,
destacando-se
os
microcomputadores.
Os
microcomputadores, especialmente, são um dos recursos mais viáveis para a resolução
dos problemas educacionais. Ele agrega aspectos e processos que se fazem presentes à
vida das pessoas: a inteligência, os afetos, os comportamentos.
No que se refere à ingerência da Telemática e de outros dispositivos no âmbito
escolar, Veiga-Neto (2000, p.210) diz que isto tem proporcionado “[...] um
revigoramento das pedagogias tecnicistas, cujas implicações nas políticas de
subjetivação são diretas e profundas [...].” Elas assumem um papel decisivo na mudança
das práticas de vida cotidianas, inclusive na prática escolar. Estas tecnologias invadem
as escolas e desempenham papéis didático-pedagógicos. Esse acontecimento deve ser
tomado como ponto de partida para se avaliarem as relações que essas novas práticas
estabelecem com o currículo, pois elas, além de proporcionarem novas relações de
poder e saber, alteram as percepções acerca do espaço e do tempo.
O país, atualmente, implementa estratégias de controle utilizando-se da
educação, e leva às escolas públicas os microcomputadores. Na ocasião, os profissionais
devem ser treinados em tempo limitado, especialmente os professores, para materializar
as ações previstas na sua cartilha: os PCNs. O Ministério da Educação e do Desporto
(MEC) vem desenvolvendo programas de tecnologia educativa, como o vídeo-escola, e
outros. Além deste programa, mencionam-se, ainda, a instrução assistida por
computador, as informações em rede e o aprendizado à distância, cujas bases são os
métodos pedagógicos tradicionais.
Quanto às novas tecnologias, segundo Costa (2000, p.129), observa-se a
existência de uma “[...] preocupação com o desenvolvimento de sua ‘inteligência
emocional’, com sua ‘educação permanente’, com seu marketing (SIC) pessoal etc. Sair
da moral para ingressar na ética [...].”
Luiz Pereira de Lima Júnior
5639
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
A presença da tecnologia na escola, mesmo contando com um grande arsenal de
software, traz consigo enigmas que podem causar danos às pessoas, a Terra, e ao
Planeta. Além destes, os professores não se sentem suficientemente estimulados para
problematizar suas práticas e as formas de ensino utilizadas no cotidiano. Com a
Informática, é bem provável que a figura do professor desapareça! Os alunos também
não se sentem estimulados, uma vez que não partem para a adoção de formas de
aprender que levem a problematizar o papel da própria Informática e de suas relações
com a vida. Existem práticas avulsas que dão conferem estatuto a cada pessoa. Surgem
redes de informação e de fluxo. No que concerne à inteligência, apresenta-se uma
questão: ela está no sujeito ou na rede? É um aspecto que requer reflexão.
Nesta sociedade fundamentada na tecnologia, os processos educativos existem
sob um formato diferente. Nela, não se educa como antes, ou seja, pautados na
conversação e na escrita; entretanto, fundamentalmente, ocorre através dos mass,
percebendo-se que a produção da verdade está hoje na TV, que tem aproximadamente
quatro décadas de existência. Ao refletir sobre a TV, Pgnatari (1995, p.487) diz que ela
“[...] é olho contra olho, olhar contra olhar.” Ela é uma espécie de endoscolpia vídeoeletrônica que invade as salas e as almas. É um veículo insuportável e insubstituível. Ela
é mais um vício do que paixão ou afeição.
O lema dos PCNs no cotidiano das escolas é o da responsabilidade, da
participação. A educação fundada nestes dois dispositivos, não educa as pessoas para
serem livres, nem tampouco para serem amigas, únicas e felizes. Os sujeitos são
“divíduos”, aninhados em bancos de dados, emoldurados por discursos universais que
primam pela amizade (amizades virtuais), e não pela presença de amigos. Trata-se de
uma prevenção geral, que tenta não apenas interditar comportamentos, mas também
fazê-los proliferar numa outra velocidade: virtual, on-line. Esta prevenção geral no
ciberespaço é exercida para a manutenção dos governos. São diferentes formas de
governamentalidade, com um novo formato. Desta forma, indaga-se com Passetti (2002,
p.34): “O que teria levado ao enraizamento de nossa vontade de servir, esta vontade de
ser súditos, de assujeitar-se, de criar entre nós esta condição de reprodução do soberano
para além de sua existência?.”
Luiz Pereira de Lima Júnior
5640
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
A tecnologia na educação vem-se apresentando como uma forma de religião. A
sua materialização ocorre, singularmente, com a inserção e com a utilização do
microcomputador e dos demais aparatos informacionais.
A educação neste cenário vem assumindo papel de destaque, em função da
inteligência que assume uma dimensão universal, para servir de coadjuvante nos
projetos cibernéticos. Ela é coadjuvante, pois quem materializa sua pauta é o
profissional que lá se instala: o professor. A educação ainda ocorre com a ameaça e com
o castigo: ameaça o sujeito em não acessar por causa de falta de senha; castiga-o quando
ele burla os códigos para o acesso à nova forma de amizade. Ademais, o saber é
humanista, universal e desenvolvimentista – prepara o campo do conhecimento, da
infância até a morte. É, de acordo com Passetti (2002, p.25), um saber contínuo e
civilizatório. Os discursos que giram em torno da Educação se referem à inserção da
tecnologia enfatizando o papel do computador.
Uma vez que o Estado se encarrega da educação, através dos PCNs, infere-se, a
partir de Stirner (1979, p.87), que a sua maior meta é (de) formar a personalidade dos
educandos. Tomando as crianças como objeto primário dos processos educativos
formais, o Estado se interessa pelos indivíduos desde o início da escolarização, visando
à normalização de seus comportamentos. O saber passa a ser “[...] uma posse e uma
propriedade enquanto não desaparecer no ponto invisível do Eu [...].”
O Estado, a Pedagogia e os profissionais envolvidos com a execução de práticas
educativas e escolares, sob o pensamento de Stirner (1979, p.88-89) não buscam “[...]
desenvolver pessoas livres, caracteres soberanos.” Eles se firmam no desejo de civilizar,
de veicular a instrução geral para sufocar o instinto infantil. O Estado, ao observar o
potencial transgressor das crianças, sua firmeza e prática centrada no Eu/egoísmo/uno,
na subversão às normas e práticas instituídas, ou seja, na sua “insubordinação e
teimosia”, tenta cooptá-las. As crianças são seres livres. Desta forma: “Desde que a
criança não aprenda a sentir-se falta-lhe precisamente o principal.” Ao faltar-lhes o
principal, elas munem-se de um impulso natural, instintivo, centrado no eu, o que lhes
confere o exercício da criatividade e da força. Faz valer a sua liberdade, em todos os
aspectos, inclusive o sexual.
Observa Stirner (1979, p.89) que os “defeitos da formação escolar”, a
“autoridade” do Estado, dos profissionais que a materializam no cotidiano escolar,
Luiz Pereira de Lima Júnior
5641
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
através de programas e currículos rígidos, revelam que esses mecanismos são ínfimos
diante do Eu infantil. Recorrer à autoridade é uma fraqueza. Assim: “[...] erra-se quando
se acredita que se melhora o insolente, submetendo-o pelo temor.” O temor alerta as
crianças para a instauração de mais insolência, e para busca de novas fontes de prazer.
Uma das inúmeras questões que levam o Estado a ter medo de crianças e tentar
barrá-las, de acordo com Stirner (1979, p.92-93), é que elas abalam o arsenal de
moralidade que lhe é peculiar. Ele tem medo, ainda, porque, “[...] só o ponto de vista da
pessoa é justo.” Isto se aplica à criança. Ela mostra que “[...] o saber deve morrer para
ressuscitar como vontade, recriando-se como pessoa livre cada novo dia.”
Fundamentado no exposto, nota-se que o Estado, ao ter medo de crianças, na
perspectiva de Stirner (1976, p.177,264-265), procura domar o individualismo e o
egoísmo. A vontade individual destrói o Estado. Este, por sua vez, desmerece a referida
vontade, nomeando-a de indisciplina. As pulsões, a carga instintiva infantil, a vontade
individual, são adversas ao Estado. Isso denota que entre elas não há lugar para a paz
eterna.
Apesar das interdições oriundas do Estado, da Educação, da escola, as crianças
não se defendem como os adultos, que, muitas vezes, se assujeitam e carecem de
reflexões para resistir. A defesa da criança é natural (embora seus corpos padeçam),
escorregadia, móvel e plástica. Fogem, escapam num estalar de dedos. Esquecem rápido
como os animais e sempre recolocam o prazer em suas vidas: sentir-se é a sua
necessidade principal.
As
crianças,
alheias
ao
tempo,
munidas
de
clivagens
perceptivas,
movimentando-se nos espaços, sempre apontam o inusitado. Desmontam aparatos
normalizadores, criam e (re) criam práticas afetivas, eróticas, sexuais, instintivas.
Desconhecem interdições, limites, fronteiras. Encontram saídas. Fogem, escapam.
Vislumbram novas possibilidades de enfrentamento do monstro que assola suas vidas: o
controle. Elas são acontecimento: o vácuo. O Eu infantil mostra que a Terra vive. Elas
são passageiras do futuro.
Luiz Pereira de Lima Júnior
5642
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
REFERÊNCIAS
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série).
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nacionais: bases legais. Brasília: MEC; SEF, 1999. 188 p. (Ensino médio).
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COSTA, S. de S. G.; VERAS, A. (org.). Nietzsche e Deleuze: intensidade e paixão. Rio
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Luiz Pereira de Lima Júnior
5643
Sociedade de Controle, Educação e Currículo
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Luiz Pereira de Lima Júnior
5644
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
ESCOLA, MULTIPLICIDADE E DESEJO:
AGENCIAMENTOS NECESSÁRIOS
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
ESCOLA, MULTIPLICIDADE E DESEJO: AGENCIAMENTOS
NECESSÁRIOS
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
RESUMO: Este texto é resultado da experiência de um ano convivendo com crianças
ribeirinhas que moram na Campina, região labiríntica do pantanal mato-grossense. A
pesquisa fora desenvolvida em dois espaços onde as crianças se movimentam: o
pantaneiro e o escolar. Conversamos, observamos, brincamos, fotografamos,
cartografamos e questionamos: como as crianças da Campina burlam as regras do
processo de subjetivação capitalístico, fazendo acontecer a experiência coletiva? Em
que medida a experiência coletiva, enquanto multiplicidade que compõe o processo de
subjetivação das crianças da Campina, seduz com maior intensidade aquelas almas, em
relação às experiências individuais, veiculadas pelo discurso disciplinar? É possível
conciliar escola, multiplicidades e desejos? Essas questões são analisadas tendo como
interlocutores principais Manoel de Barros, Walter Benjamin, Michel Foucault, Gilles
Deleuze e Felix Guattari.
PALAVRAS-CHAVE: criança, espaço pantaneiro, currículo escolar.
Introdução
Acordar, solear, verdejar, brincar, riolar, pantalear, saranzar, assobiar, brejear,
pescar, passarear, quebrantar, benzer, grunir, cevar, nadar, rezar, sorrir, gritar, pular,
andar, ir, escolear, silenciar, escutar, obedecer, comer, tentar, falar, contar, voltar,
trepar, laranjear, arear, zumbir, escurecer, dormir... Ações cotidianas de Ana, uma
menina de 9 anos que movimenta esta pesquisa. Ana, que mora na Campina, região
labiríntica do Pantanal mato-grossense, espaço que se constrói a todo instante, e que,
num piscar de olhos, se transforma em outro. Ana, que dá mais respeito às coisas que
vivem de barriga no chão, que entende o sotaque das águas, que valoriza as coisas e os
seres desimportantes, que preza mais os insetos que os aviões, mais a velocidade das
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5648
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
tartarugas que a dos mísseis. Que gosta de passarinhos e, apanhando desperdícios em
seu quintal, que é o seu mundo, vive a alegria de ser feliz sendo, simplesmente, Ana 1.
Emprestando de Ana a sua experiência coletiva2, que enquanto tal poderia ser,
também, a de seus irmãos e primos, Alex, Jaqueline, Duda, Catarino, Odair, Michel,
Alaor, Sibele, Sinara, ou a de seus pais e avós, todos moradores tradicionais da
Campina, apresentamos, neste texto, uma pequena porção da intensa experiência ali
vivida. Elegemos a parte da pesquisa que se refere ao espaço escolar, mais
especificamente, à concepção disciplinar de currículo selecionada pelo professor de
Ciências de uma escola pública do município de Cáceres-MT, que atende à
multiplicidade das crianças ribeirinhas, como passamos a relatar.
1
Trocadilho com a Poesia de Manoel de Barros “O apanhador de desperdícios”: Uso as palavras para
compor meus silêncios. Não gosto das palavras, fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de
barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas
desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das
tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar
de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um
apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um
formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para
compor meus silêncios” (Barros, 2003: IX).
2
A experiência coletiva, neste texto, é concebida como Erfahrung, alegoria (ou categoria) estudada por
Walter Benjamin (1993;1994) que traz como princípio a narrativa enquanto tradição compartilhada,
marcada pela continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho, típicas das sociedades artesanais,
que se contrapõe às experiências individuais, Erlebinis, típicas das sociedades modernas.
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5649
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
Educação Escolar: mapa ou decalque? Estrada ou trajeto?
Em uma segunda-feira, cheguei à porteira da fazenda Campina 3 logo cedo e
esperei as crianças para pegarmos o ônibus que nos levaria à escola. Pouco tempo
depois as avistei, correndo em minha direção. Recebi beijos, abraços e um buquê de
flores do mato. Vieram com uma sacola plástica nas mãos que continha, além do
material escolar, o uniforme. Perguntei ao Alaor por que não vinham vestidos de
uniforme e ele respondeu: “nós vem correno, aí soua [sua] na ropa da escola e aí os
professor num gosta. Agora, que ta tudo cheio é pió ainda. Nós passa na vazante e móia
tudo”. Dirigiram-se às moitas espalhadas em volta da porteira e trocaram as roupas
molhadas pelos uniformes branco-amarelos, cores do governo municipal.
Assim que o ônibus chegou, o grupo se dividiu. Os que iam em direção à
Cáceres (estudam em uma escola da cidade), ficaram na estrada a espera de outra
condução e os outros (que estudam em escola da zona rural), entraram no ônibus,
comigo. No caminho – um percurso de aproximadamente 50 quilômetros – cantamos,
conversamos, brincamos. Passada a euforia, ocasionada, talvez, pela minha presença no
ônibus, todos se aquietaram nas poltronas. Silenciaram, quando perguntei à Duda se
gostava de estudar nessa escola. Ela respondeu: “ah, tia, até que é bom porque os
professor são bom, a escola é boa e a merenda tamém. Mas eu não gosto é de tê que i de
3
É possível chegar à Campina pelo rio e pela Rodovia. Pela BR 070 – que liga o Brasil à Bolívia –
partindo de Cáceres-MT, atravessa-se a ponte Marechal Rondon, que cruza as margens do rio Paraguai,
percorre-se 5 km e, à margem direita da rodovia encontra-se a fazenda Campina. Passando pela porteira
principal, a aproximadamente 500 m de distância, andando por um pasto de humidícula plantado de
maneira regular e plana, sem árvores ou arbustos, chega-se à sede. Passando por ela, sempre à frente, em
direção ao rio, há um corredor em meio a uma cordilheira, aberto com máquina de esteira, onde o pasto é
também plantado. Em seguida, avista-se uma vazante que, na época da cheia, impossibilita o acesso de
carro. Após a vazante, a uma distância de 1 km, aproximadamente, adentra-se, através de uma trilha, em
uma mata que dá acesso à localidade onde vive aquela comunidade. Em seguida, um clarão torna visíveis
as casas das famílias que ali vivem, bem como aquela cobra de vidro – o rio Paraguai – que acompanha o
grande quintal, cenário das meninices, criancices, infantilices que faz com que as crianças ultrapassem as
marcas, os sinais, os signos, os símbolos, os significantes instituídos, e criem metamorfoses às metáforas
dos conceitos dominantes, como os de Manoel de Barros: “ver com o ouvido”, “escutar com a boca”,
“escrever com o corpo”.A outra maneira de chegar à Campina é pelo rio Paraguai – “empeixado e cor de
chumbo, o rio Paraguai flui entre árvores com sono...” (Barros, 2002: 15). O porto localiza-se rio
Paraguai acima, partindo da cidade de Cáceres, aproximadamente a 30 minutos de barco, motor 15 HP.
No sentido Cáceres-Campina, localiza-se à margem direita do rio, o lado por onde o leito passa. Da
barranca da Campina avista-se, na outra margem, uma ilha que, no período da seca estava margeada por
praia de areia fina e clara. Contrasta essa paisagem com o verde da vegetação pantaneira, com os roxos,
amarelos-ouro e rosas dos Ipês que florescem na primavera. É possível enxergar da barranca da Campina
até a curva onde o rio se esconde, com águas profundas, abundantes e vagarosas.
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5650
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
ônibus. Nóis anda todo dia um caminho bem bom para pegá o ônibus, nóis brinca de
pega-pega, nóis sobe nas árvore, nóis esconde do otro, aí eles fica preocupado e, quando
nós volta da escola, dá até pra tomá banho na vazante”. Interrompi, perguntando: mas,
por que, não gosta do ônibus? E ela respondeu: “num tá veno tia, aqui é meio triste, tem
que ficá meia hora sem fazê nada, veno o tempo passá. Mas, quando estraga o ônibus e
nóis tem que descê, aí é legal”.
Essa fala de Duda me levou a reportar à idéia que Manoel de Barros traz de sua
experiência com a estrada:
(...) Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas e bichos. (...)
Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela:
uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós.
Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo:
deixe, deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai
desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma
estrada... Deixe, deixe meu amor”.
A estrada que Duda percorre no ônibus que corre sobre o asfalto em direção à
escola é lisa, cinza e reta. Trata-se da rodovia (BR 070), que liga o município de
Cáceres a San Matias, na Bolívia. A escola localiza-se no meio do caminho. Manoel de
Barros também saía do Pantanal em direção ao internato. Talvez a estrada do poema
seja a estrada que o menino Manoel percorria ao sair de casa e, Carlitos seja a linha que
liga dois mundos: o pantaneiro e o escolar. Mas Carlitos ia desaparecendo no fim da
estrada carente de pessoas e bichos. Duda ia aquietando-se na estrada e torcendo para
que algum acontecimento a desviasse de seu fim. No entanto, não eram todos os dias
que o ônibus quebrava e o fim, ao certo, chegava. Duda ia à escola.
A estrada de Duda e de Manoel de Barros, carente de pessoas e bichos, difere
dos trajetos que as crianças traçam em seu cotidiano. As crianças da Campina, em
particular, exploram o meio de maneira intensa e traçam os mapas correspondentes a
esse percurso todos os dias. Segundo Deleuze (1997), “os mapas dos trajetos são
essenciais à atividade psíquica”. No meio onde o trajeto é percorrido estão as
qualidades, substâncias, potências e acontecimentos (id). Podemos citar, como exemplo,
a realidade das crianças da Campina: o bugiu que urra no amanhecer, a figueira caída
onde se constrói casinhas de brinquedo, o sol pela metade que mede o tempo de Ana, o
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5651
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
mastro da santa da reza de Nossa Senhora Aparecida. Os trajetos percorridos
cotidianamente pelas crianças se confundem com elas e são, ao mesmo tempo, alterados
a todo instante. Deleuze prossegue:
o trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um
meio mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete
naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre o percurso e
o percorrido (Id: 73).
Duda traçou o mapa do trajeto que percorre para chegar ao ponto onde pega o
ônibus para ir à escola. Repetindo: “(...) nóis brinca de pega-pega, nóis sobe nas árvore,
nóis esconde do oitro, aí eles fica preocupado e, quando nós volta da escola, dá até pra
tomá banho na vazante”.
No entanto, quando pegam o ônibus, dá a impressão de que o trajeto dá lugar à
estrada, e o mapa dá lugar ao decalque. Vale parar. Mapa ou decalque? Estrada ou
trajeto? Essas questões são fundamentais para compreender a “alma” da criança da
Campina que vai à escola. As crianças da Campina fazem rizoma com o seu mundo,
aumentam seus territórios por desterritorializações constantes, criam linhas de fuga,
alongam-nas, esticam até quebrar e, desse rompimento, criam novos rizomas. Em seus
trajetos na Campina correm, caem, levantam, nadam, brigam, trepam, se constituem,
montam seus mapas e asseguram a desterritorialização do Pantanal. Asseguram a
desterritorialização do Pantanal? É isso mesmo. No momento em que o Pantanal entra
na alma daquelas crianças, ele é desterritorializado. Assim, o real e o imaginário passam
a ser vistos como duas partes de uma mesma trajetória, duas faces que não param de se
intercambiar. Segundo Deleuze, “o imaginário é uma imagem virtual que se cola ao
objeto real, e inversamente, para constituir um cristal de inconsciente” (1997:75). Como
dissemos acima, o mapa, entendido aqui como o cristal do inconsciente, se opõe ao
decalque. O mapa “acontecimento-pantanal” é o cristal de inconsciente das crianças da
Campina. O rizoma é mapa e não decalque. Se o mapa se opõe ao decalque é porque,
segundo Deleuze e Guattari (1995: 22), está inteiramente voltado para uma
experimentação ancorada no real.
“O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o
constrói (...) ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5652
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber
modificações constantemente.” (id).
O mais importante no mapa, ou no rizoma, é que ele tem múltiplas entradas,
assim como o labirinto em que vivem as crianças, o Pantanal, a Campina. O trajeto do
retorno da escola, com a possibilidade de tomar banho na vazante, de subir na árvore e
até de cair e se machucar, com a possibilidade de encontrar uma onça – esse é o maior
desejo das crianças – , de cutucar um jacaré ou de puxar o rabo da sucuri que passeia
pelas vazantes do pantanal, múltiplas entradas no mapa, no rizoma, no inconsciente da
criança da Campina.
O contrário do mapa, do rizoma, é o decalque. O decalque, assim como a estrada
de Manoel de Barros e de Duda, volta sempre “ao mesmo”. A multiplicidade inexiste aí.
Entrar no ônibus para ir à escola requeria das crianças uma mudança de roupa no corpo
e na alma. Colocar o uniforme, esperar a sua vez de entrar no ônibus, sentar-se em seus
lugares, conversar com o colega, e, às vezes, fazer a tarefa que não havia, por falta de
tempo, terminado; às vezes, ainda, dormir até chegar à escola. Tudo volta “ao mesmo”
todos os dias no ônibus. Deleuze e Guattari relacionam o decalque à tarefa da
psicanálise “que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma
estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios
sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura”(id). Os franceses relacionam essa
análise à tarefa, também, da lingüística. Podemos relacioná-la à Educaçao, à Escola?
Decalque ou mapa? Estrada ou trajeto? Aonde chegar através do ônibus que conduz à
escola? Aonde chegar através da escola?
Escola, Multiplicidade, Desejo: uma relação possível?
Durante o acompanhamento das crianças da Campina na escola, vivenciei um
momento em que o professor de ciências da terceira série do Ensino Fundamental disse
que daria continuidade ao conteúdo trabalhado na aula anterior, sobre “Árvores e o
Meio Ambiente”. Solicitou às crianças que desenhassem a árvore da sua vida e
escrevessem um texto sobre ela. No final da aula, o professor recebeu as atividades,
avaliou, selecionou e me disse: “olha professora, meus alunos até que estão bem de
Ciências. A maioria foi bem. Separei aqui para você ver. A maioria soube escrever tudo
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5653
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
sobre a árvore além de desenhar suas partes e os efeitos da fotossíntese. Só alguns não
entenderam a nossa proposta e não conseguiram alcançar o nosso objetivo, aliás, acho
que não entenderam o conteúdo da aula passada”.
Com o material em mãos, em um primeiro contato, percebi que o professor
valorizou os decalques, os saberes disciplinares que foram representados pelos alunos,
em detrimento aos mapas. Valorizou as cópias dos livros didáticos que trazem as partes
da árvore – em forma de “pom-pom” – em detrimento às árvores da vida, que algumas
crianças criaram. Selecionamos duas imagens criadas pelas crianças para prosseguir a
análise.
Imagem 14
4
Transcrição do texto - Imagem 1: “A árvore da minha vida é aquela que me da frutos e ate vida aliais
todas me dão vida mais não é todas que me dá frutos como a: mangueira, bananeira, morangueira,
mamoeiro, coqueiro, cajueiro, jabuticabeira, ateira, etc. bom e tem a quelas que dão só flores como a:
roseira e etc. eu acho que todo mundo gosta dela só que nós não tamo sabendo cuidar dela como ela cuida
da gente. Como todo mundo sabe a árvore tem: tronco, raiz, galhos, flores, frutos, calles e etc. Como eu
amo as plantas as plantas elas respiram o gás carbono e soltam o oxigeno. Nós todo mundo chamamos
elas de pulmão do mundo viu poriso eu digo eu adoro as plantas as plantas presinsam muito da gente e
sem elas aquelas lindas maravilhosas plantas agente morre e não é só elas que precisam da gente mais o
resto do meio ambiente bom em tão eu acho que não é só eu que gosto da natureza das arvores não so eu
como todo mundo”.
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
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Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
Imagem 25
A imagem 1, pertencente ao grupo que o professor selecionou como sendo boa,
coerente com o conteúdo de Ciências estudado em momentos anteriores, pode ser
relacionada à concepção disciplinar de currículo, que Deleuze chama de decalque.
Nessa concepção, considerada por Deleuze como arqueológica, o inconsciente é
profundamente vinculado à memória – subjetividade cartesiana; “é uma concepção
memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre pessoas e objetos, sendo os
meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los, autentificá-los”(Deleuze,
1997:75). Nesta concepção, o objeto real (no caso, a árvore) evocou uma imagem
semelhante à guardada na memória. A árvore desenhada, com suas estratificações, perde
5
Transcrição do Texto – Imagem 2: “Otro dia eu ia pescá daí eu xamei meu colega e nós peguemo umas
um moite [monte] de laranjinha daí nos peguemo uma pêra [peixe Peraputanga] e nós comemo ela poriso
eu acho que a arvou da minha vida é o pé di laranjinha que tem lá em casa”.
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
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Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
a força de se verificar no real. A árvore-decalque sucumbe o mapa a uma imagem no
inconsciente. Organiza, estabiliza, neutraliza as multiplicidades segundo eixos de
significância e de subjetivação que são seus (id,1995:23). Quebra o rizoma, “limpa” o
mapa e o coloca em um “bom lugar”. Um lugar que bloqueia qualquer saída que não
seja a volta ao mesmo. Deleuze prossegue: “deixarão que vocês vivam e falem, com a
condição de impedir qualquer saída” (id).
Vale, aqui, um destaque para com a maneira hegemônica de conceber a criança e
a infância foi sendo constituída no decorrer da história, enfatizando o papel da
discipliniralizaçao dos saberes e do corpo, como mecanismo imprescindível para que a
alma infantil alcançasse a plenitude da dominação. Reportamo-nos ao pensamento de
Rousseau, no século XVIII, que recomenda ao mestre: “A pobre criança que não sabe
nada, que não pode nada, que não conhece nada, não está à vossa mercê?”, e prossegue,
“sem dúvida não deve fazer senão o que quer; mas não deve querer senão o que
quiserdes que ela faça; não deve dar um passo que não tenhais previsto; não deve abrir a
boca sem que saibais o que vai dizer”. (Id, 1995:114). A árvore-decalque, representada
na Imagem 1, permitiu à criança falar. Falar que língua? A língua universal, a língua
disciplinada, esquadrinhada, ordenada. Falar a língua da experiência individual
(Erlebnis). Falar a língua do livro didático. Falar a língua que o professor e Rousseau
gostariam de ouvir.
O desenho trazido na imagem 2 foi selecionado dentre aqueles que estavam
caracterizados como não corretos pelo professor. Deveria ser refeito para alcançar o
objetivo da aula. Não é por acaso que o trouxemos aqui. Trata-se do pé de laranjinha e
seu entorno desenhado por Alaor, uma das crianças da Campina. O desenho e o texto
feitos por Alaor apresentam-se, a meu ver, como mapa, aquele que se opõe ao decalque
na visão de Deleuze. A essa concepção risomática, o filósofo dá o nome de
cartográfica, que se opõe à concepção arqueológica, disciplinar de que falamos
anteriormente. Na imagem 2, o imaginário pode ser comparado à imagem virtual do real
que se desprendeu, que se desterritorializou em Alaor. Ele desenhou aquilo que sentia
como a árvore da sua vida. A visão trazida por Alaor se traduz na duplicação, no
desdobramento, na coalescência do real e do imaginário.
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5656
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
Não basta que o objeto real, que a paisagem real evoque imagens semelhantes
ou vizinhas; é preciso que ele desprenda sua própria imagem virtual ao
mesmo tempo que esta, como paisagem imaginária, se introduza no real
segundo um circuito em que cada um dos dois termos persegue o outro,
intercambie-se com o outro (Deleuze, 1997:75).
Percebemos, na Imagem 2, que Alaor perseguiu a árvore da sua vida. Essa se
desterritorializou nele. A árvore, que está em um ambiente ensolarado, é sombra para as
crianças brincarem, é a casa dos pássaros que comem seu fruto, é produtora de isca para
pegar peraputanga, apresenta entradas e saídas por todos os lados. Um mapa se cruza
com outro. Da árvore ao areal, ao rio, às casas das crianças, ao pássaro em seu galho, ao
peixe. Deleuze e Guattari prosseguem, dizendo: “O mapa não reproduz um inconsciente
fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos (...)”
(Id, 1995: 22).
A pergunta que Deleuze e Guattari fazem é fundamental para o propósito deste
texto: “Entretanto será que nós não restauramos um simples dualismo opondo os mapas
aos decalques, como um bom e um mau lado?” (id). Peguei-me, muitas vezes, refletindo
essa questão antes de ter acesso a esse texto. E esses filósofos me ajudaram a
compreender tal impasse. A questão, na realidade, que devemos analisar é outra. Nada
de certo ou errado. O importante é que educadoras e educadores percebam que as
crianças chegam à escola com seus trajetos traçados, com experiência, multiplicidade,
ancoradas no mundo real. O conhecimento disciplinar que trouxemos aqui como
decalque, já traduziu o mapa em imagem, já o organizou, estabilizou, neutralizou as
multiplicidades. Por isso, segundo os autores, ele é tão perigoso. “Ele injeta
redundâncias e as propaga” (id:23). Se voltarmos novamente à imagem 1 desenhada na
escola, veremos que o que sobressai são as classificações que, talvez, não façam sentido
na vida cotidiana daquela criança. E o desejo?
Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais
passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez
que o desejo segue uma árvore acontecem quedas internas que o fazem
declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por
impulsões exteriores e produtivas (id:23).
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Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
O professor avaliou as atividades da aula de Ciências segundo a perspectiva
disciplinar. Quebrou o rizoma da criança da Campina. Não permitiu ao desejo a
possibilidade de se expressar. Que quedas pode ter produzido naquela criança?
Considerações Finais
Percebemos, assim, que as forças do Pantanal, dobradas na alma das crianças da
Campina convivem com outras forças que querem transformá-las, discipliná-las, inserilas no mundo e no modo de produção capitalístico. As crianças que vivem esse mundo
bruto do desejo, que vivem o mundo de energia, pulsão, instinto, são puxadas pelas
forças que querem ordenar essa “desordem”. Guattari (Guattari e Rolnik, 2005),
compondo a Cartografia do desejo, diz que voltamos sempre à mesma idéia: “opor,
necessariamente, a esse mundo bruto do desejo um universo de ordem social, um
universo de razão, de julgamento, de ego, etc”(: 259). O desejo, esse algo meio
nebuloso, que nada tem a ver com falta, mas sim com produção, com algo que provoca
movimento, que produz, precisa passar pelas malhas de algum tipo de organização para
ser disciplinado. Segundo Guattari (id), uma concepção dominante sobre desejo bastante
nefasta impera em nossa sociedade. Nela, o desejo é concebido como um “fluxo que
terá de ser disciplinado”. Vimos, anteriormente, o conhecimento disciplinar afetando os
corpos e as mentes no sentido de discipliná-los. Mas, disciplinar o que? Na concepção
de Guattari, disciplinar os desejos. E ele prossegue:
Uma criança, por menor que seja, vive sua relação com o mundo e sua
relação com os outros de um modo extremamente produtor e criativo. É a
modelização de suas semióticas através da escola que a conduz a uma espécie
de processo de indiferenciação” (id: 162).
Através da escola, a criança é inserida em um mecanismo de economia
desejante, a criança é inserida na máquina de produção da individualidade, da
identidade. A identidade “é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras
de existir por um só e mesmo quadro de referencia identificável”(:80); a individualidade
é o efeito da alienção dos processos de singularização (:165). A escola é entendida por
ele como um equipamento coletivo que exerce a função de operária na máquina de
formação da subjetividade capitalística. Essa subjetividade capitalística produz uma
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5658
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
nova conduta, um novo modo para as relações humanas. Dita as normas de como
trabalhar, como ser ensinado, como amar, como brincar, como mover, como falar...
Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os fatos, com o
movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado
e com o futuro – em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e
consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque partimos do pressuposto de que
esta é “a” ordem do mundo, ordem que não pode ser trocada sem que se
comprometa a própria idéia de vida social organizada (Guattari e
Rolnik,2005:51).
O conhecimento, aqui, é esvaziado de singularidade. A produção de
subjetividade capitalística tem como propósito eliminar os processos de singularização.
A árvore da vida valorizada pelo professor foi aquela esquadrinhada pela disciplina
saber. “Tudo o que surpreende, ainda que levemente, deve ser classificável em alguma
zona de enquadramento, de referenciação” (id: 52). E Guattari prossegue dizendo que os
professores (não somente eles, mas também os meios de comunicação de massa) são
muito dotados para esse tipo de prática. A escola trabalha incansavelmente para
assegurar esse processo de subjetivação capitalístico.
Não temos como viver fora dessas amarras da relação saber/poder, das amarras
da disciplinaridade, das amarras do processo de subjetivação capitalístico? Esta
pesquisa teve o propósito de mostrar que sim. As crianças, em geral, e as crianças da
Campina, em particular, são a prova de que não estamos mergulhados em uma espécie
de fatalidade. No entanto, nós, educadoras e educadores, precisamos nos dar conta de
que estamos trabalhando nessa maquinaria que tem por intenção produzir a
subjetividade capitalística, mas que também pode produzir algo novo, que quebre, que
rompa com o decalque que nos constitui. Podemos deixar a máscara cair, desviar,
arriscar, tentar, “criar condições para a produção de um novo tipo de subjetividade, que
se singulariza e que encontra as vias de sua especificação” (id:58). Nós, educadoras e
educadores, trabalhamos para o bom funcionamento dessa maquinaria que aniquila com
a singularização. Que continuemos trabalhando nela, sabendo que somos produtores de
subjetividades. Que produzamos um outro tipo de abordagem no processo educacional,
capaz de preservar “toda a riqueza de sensibilidade e de expressão própria da criança”
(id:64)
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5659
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
Propomos, então, que tentemos um processo de singularização no contexto
educacional. Pensamos que um grande exemplo desse processo de singularização, nesta
pesquisa, seja a poesia de Manoel de Barros. Animando as pedras do seu quintal, o
poeta desencadeia uma nova e dinâmica maneira de ouvir. Segundo Guattari,
um processo de singularização da subjetividade pode ganhar imensa
importância, exatamente como um grande poeta, um grande músico, um
grande pintor, que, com suas visões singulares da escrita, da música ou da
pintura, podem desencadear uma mutação nos sistemas coletivos de escuta e
de visão (id: 65).
O poeta desencadeia aquilo que requer Guattari: uma nova cartografia do
desejo. Manoel de Barros, com sua poesia, apresenta o seu devir-criança, os seus
atravessamentos. E mais, sua poesia apresenta seu devir-impessoal, seu acontecimento,
seu agenciamento, sua imanência com a vida, mesmo depois de passar pelo processo de
subjetivação capitalístico. Vale citar o próprio Manoel de Barros (1996a: s/p.) para
compreender o que é fazer essa cartografia do desejo.
(...) Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar
goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão.
Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era
um serzinho mal resolvido igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando
no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu
tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente
fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua
aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu
trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas.
Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a
poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu
ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e
comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O
menino e o rio. Era o menino e as árvores.
Nós, enquanto educadoras e educadores, podemos iniciar um processo de
desencadeamento dessa cartografia, desse mundo de comunhão, sem comparamentos,
ou nos contentar em podar os desejos, reproduzir decalques, atribuir identidades. Nossa
função, enquanto produtores de cartografias, deve permitir “captar todos os impulsos de
desejo, todas as inteligências, não para fazê-las convergir num mesmo ponto central
arborescente, mas para dispô-las num imenso rizoma, que atravessará todas as
problemáticas sociais, tanto em nível local, regional, quanto em nível nacional e
internacional” (Guattari e Rolnik, 2005: 203) Assim, a subjetividade singular da criança
Maritza Maciel Castrillon Maldonado
5660
Escola, Multiplicidade e Desejo: agenciamentos necessários
da Campina, atravessada pelo Pantanal, terá eco em todos os lugares por onde passar,
inclusive na escola.
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IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES
“DIFERENÇA NAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO”
AS CONTRIBUIÇÕES DO PARADIGMA PÓSESTRUTURALISTA PARA ANALISAR AS
POLÍTICAS CURRICULARES
Talita Vidal Pereira
JOÃO PESSOA - PB - BRASIL
10 A 13 DE NOVEMBRO DE 2009
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
AS CONTRIBUIÇÕES DO PARADIGMA PÓS-ESTRUTURALISTA PARA
ANALISAR AS POLÍTICAS CURRICULARES
Talita Vidal Pereira
PROPEd-UERJ/Bolsista FAPERJ
RESUMO: Neste trabalho procuro identificar o cientificismo como marca constituinte
do discurso educacional, que favorece e sustenta o processo de naturalização dos
conteúdos de ensino. Argumento que esta naturalização constituí e expressa uma dada
hegemonia que privilegia um determinado modelo cultural em detrimento de outros
possíveis. O trabalho se estrutura em três momentos. No primeiro procuro caracterizar,
em linhas gerais, o pós-estruturalismo como modo de pensamento que questiona
aspectos centrais do Humanismo e do Renascimento, que se expressam no projeto de
modernidade. Depois busco identificar o processo de escolarização, que se desenvolve a
partir do século XIX, e se consolida no século XX, como um processo a serviço da
propagação do projeto cultural moderno homogeneizador. Neste exercício reflexivo
lanço mão da análise dos relatos colhidos durante as entrevistas que realizei com
professoras da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro no período em que
acontecia a implementação da proposta curricular da rede, a Multieducação (1996).
Destes relatos emergiram as questões que motivam minhas reflexões no doutorado, e
que têm encontrado no paradigma pós-estruturalista um referencial produtivo para
análise.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo- Recontextualização por hibridismo- Identidade e
Diferença.
Meus estudos de doutorado são motivados, dentre outros objetivos, pela
necessidade de buscar compreender os processos de naturalização dos conteúdos de
ensino, que foi uma das questões suscitadas durante o mestrado a partir da análise dos
relatos de carreira das professoras que entrevistei (PEREIRA, 1998).
Parto do pressuposto que essa naturalização mascara as disputas existentes no
processo de seleção e objetivação dos conteúdos de ensino (SACRISTÁN, 1999) e
sustenta a legitimidade dos projetos de mundo vitoriosos nos embates. A naturalização
dos conteúdos de ensino constituí e expressa uma dada hegemonia.
Talita Vidal Pereira
5667
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
Nesta comunicação apresento parte das reflexões que venho desenvolvendo a
partir das abordagens pós-estruturalistas. Nela procuro destacar que os textos
curriculares, ainda que apresentem uma concepção de conhecimento como construção
social, são carregados de ambiguidades e tendem a reforçar uma concepção naturalizada
dos conteúdos de ensino. Defendo que esta ambigüidade é constituinte do processo de
legitimação do conhecimento científico que se confunde com o processo de
consolidação da escola moderna. Dessa forma, procuro identificar o cientificismo como
marca constituinte do discurso educacional. Marca em torno da qual se articulam
projetos de mundo diferenciados em disputa por hegemonia (LACLAU, 2000).
Caracterizo o cientificismo como uma atitude prática em que a ciência é
concebida como fonte do conhecimento verdadeiro e a racionalização total do saber um
objetivo a ser perseguido, pois é condição de emancipação humana (JAPIASSU e
MARCONDES, 1996).
Estruturo o texto em três momentos. No primeiro procuro caracterizar, em linhas
gerais, o pós-estruturalismo como modo de pensamento que questiona aspectos centrais
do Humanismo e do Renascimento que se expressam no projeto de modernidade.
Depois busco identificar o processo de escolarização, que se desenvolve a partir do
século XIX, e se consolida no século XX, como um processo a serviço da propagação
do projeto cultural moderno homogeneizador. Nesta identificação procuro também
explicitar o cientificismo com marca da modernidade, questionada pelos pósestruturalistas, e demonstrar como ela permanece presente, ainda que de forma
ressignificada, no discurso educacional dominante contemporâneo.
Por fim, busco compreender o discurso educacional dominante como produtor
de sentidos que expressam uma lógica cultural considerada como mais adequada ao
atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, sem abandonar uma marca cara da
modernidade que contribuiu para a consolidação desta instituição social: o
cientificismo, a racionalização das ações e do pensamento humano, a homogeneidade de
ritmos e práticas pedagógicas. Interessa compreender esta dinâmica como uma operação
discursiva em que se busca fixar alguns sentidos mais adequados ao projeto de
sociedade neoliberal que se pretende hegemônico (LACLAU, 2006).
Ao utilizar a designação discurso educacional dominante procuro demarcar que
me refiro àqueles discursos que se organizam em torno das orientações das agências de
Talita Vidal Pereira
5668
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
fomento internacionais para as reformas educacionais em diversas partes do mundo, e
que se disseminam socialmente ganhando legitimidade, apesar de seu caráter
potencialmente colonizador. Busco compreender este movimento de disseminação a
partir das contribuições de Bowe et al (1992) e Ball (1994) sobre a circularidade da
política educacional. Dessa forma, concebo as políticas educacionais, e os discursos que
lhes dão sustentação, como textos produzidos em um processo de disputas e embates,
assumindo-os como tentativas provisórias de atribuir um sentido único à política que, no
entanto, não conseguem impedir ou limitar a emergência de outros sentidos possíveis.
Entendo, pois, que os discursos são constituídos em um processo relacional e que
produzem sentidos que não estão dados a priori. Os sentidos produzidos por um
discurso são sempre contingentes e provisórios (MENDONÇA, 2007), e funcionam de
forma a posicionar e reposicionar os sujeitos (LOPES, 2005).
Neste exercício reflexivo lanço mão da análise dos relatos colhidos durante as
entrevistas que realizei com professoras da rede municipal de ensino da cidade do Rio
de Janeiro no período de 1997/1998, período em que acontecia a implementação da
proposta curricular da rede, a Multieducação (1996). Naquele momento meu objetivo
era compreender, pela análise dos relatos das professoras, que significados elas estavam
atribuindo à proposta (PEREIRA, 1998). O questionamento ao tratamento dado aos
conteúdos emergiu desses relatos e desencadeou uma série de reflexões que têm
orientado meus estudos e produções no doutorado.
Segundo Peters (2000), o pós-estruturalismo pode ser caracterizado como um
modo de pensamento que expressa uma tendência à superação da perspectiva de análise
presente no estruturalismo. O termo descreve uma postura filosófica diferente do
estruturalismo e, como este não se refere a uma escola de pensamento definida, ao
contrário, corporifica diferentes formas de prática crítica, estruturalismo e pósestruturalismos não podem ser compreendidos como movimentos homogêneos
singulares.
O autor também afirma que, mais do que um movimento de contraposição ao
estruturalismo, o pós-estruturalismo pode ser entendido como um esforço de
radicalização da perspectiva estruturalista que, como método de análise procura
investigar as relações existentes entre os elementos que constituem um sistema em
transformação, concebe esse conjunto de relações como uma estrutura.
Talita Vidal Pereira
5669
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
Tanto estruturalistas quanto os pós-estruturalistas entendem a linguagem e a
cultura como sistemas simbólicos e nesta perspectiva desenvolveram estratégias de
análise de artefatos culturais como textos carregados de sentidos. A realidade é
considerada como uma construção social subjetiva. No entanto, diferem na medida em
que os estruturalistas afirmam a independência e a superioridade do significante em
relação ao significado, e os pós-estruturalistas concebem significante e significado em
mútua relação.
Os estruturalistas procuram investigar como determinados significados culturais
são produzidos nas inter-relações que se estabelecem em uma estrutura, e como estes
significados posicionam os sujeitos. Neste processo os estruturalistas constroem
metanarrativas em que pretendem explicar constituição e o funcionamento de uma
estrutura, definindo-a em função de conceitos binários como tentativa de eliminar as
ambigüidades.
Por sua vez, os pós-estruturalistas questionam a possibilidade de qualquer
discurso mestre poder ser “considerado neutro ou que possa representar uma síntese,
qualquer discurso que possa expressar qualquer suposta unidade ou universalidade
epistemológica ou que permita decidir entre visões, asserções ou discursos em conflito”
(PETERS, 2000, p. 43-44).
É nesta perspectiva que Laclau (1996) afirma a indecidibilidade como
característica constitutiva das estruturas. Para o autor as decisões tomadas dentro de
uma estrutura não seguem a nenhuma regra pré-estabelecida, ela são sempre
contingentes. Assim, esses autores reconhecem a ambiguidade como característica
inerente às ações humanas (BAUMAN, 1999, 2005), e negam a possibilidade de
existência de um privilégio epistemológico fundamental, como o que é atribuído à
ciência, por exemplo.
Uma outra diferenciação
importante, que decorre da construção de
metanarrativas, diz respeito à centralidade do sujeito. Tanto estruturalistas quanto pósestruturalistas rejeitam os pressupostos universais da racionalidade e da autonomia que
sustentam a concepção de sujeito humanista. Ambos questionam concepções que
desconsideram a importância das estruturas sócio-culturais nos processos de formação
dos sujeitos. Afirmam a “constituição discursiva do eu (...) e a localização histórica e
cultural do sujeito” (PETERS, 2000, p. 36).
Talita Vidal Pereira
5670
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
Essa forma de pensar
representou uma vigorosa crítica tanto ao sujeito humanista,
constituído como indivíduo autônomo, livre e criativo, quanto ao
modelo de texto e de interpretação textual que tenha seu centro nesse
sujeito, um modelo que vinculava o significado do texto às intenções
conscientes de seu suposto autor (idem, p.45).
Mas o pós-estruturalismo radicaliza essa compreensão, pois além de rejeitar uma
concepção essencialista de sujeito que, segundo Laclau (1996) está presente no
pensamento Iluminista 1, procura desconstruir a concepção de sujeito centrado,
posicionado a partir de determinadas relações estruturais. Para os pós-estruturalistas, ao
buscar identificar estruturas universais comuns a todas as culturas, os estruturalistas
acabam afirmando a existência de um sujeito universal.
É Laclau (1996) quem observa que este dilema se manifesta no pensamento de
Marx quando este propõe o corpo do proletariado como corpo universal, assumindo a
existência de um agente privilegiado da história, cujo corpo particular era o veículo de
uma universalidade.
O descentramento do sujeito anunciado pelo pós-estruturalismo possibilita
pensar nas formas pelas quais múltiplas experiências que são vivenciadas em diferentes
contextos e neste movimento vão constituindo identidades que nos definem como
sujeitos. Nesta perspectiva, o pós-estruturalismo reafirma a importância da estrutura,
não na constituição do Sujeito, mas sim na determinação das diferentes posições de
sujeito, que emergem nos momentos de tomada de decisão (LACLAU, 1996).
Para o autor o sujeito passa a ser concebido como resultado de finitudes
concretas, que se expressam na multiplicação de novas identidades que são o resultado
da dissolução dos lugares antes ocupados pelo sujeito universal.
O cientificismo pode ser caracterizado como um discurso mestre sobre a ciência
e as suas possibilidades, e nesta perspectiva é questionado pelos pós-estruturalistas. Por
outro lado, várias teorias estruturalistas, como as teorias críticas em educação, por
exemplo, expressam marcas do cientificismo que se revelam na crença na capacidade de
1
Iluminismo é um movimento de ideias que sintetza diversas tradições filosóficas e correntes intelectuais
que tiveram seu apogeu nos séculos XVIII e XIX e que tem seu foco na tendência à racionalidade, própria
do pensamento humano (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1995).
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5671
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
transformação social pelo conhecimento, concebido como instrumento de emancipação
social.
No entanto Laclau (2006) questiona a possibilidade de emancipação. Segundo o
autor, o discurso emancipatório constrói seus fundamentos a partir de uma situação de
opressão e idealiza uma identidade capaz de trilhar um caminho em direção de sua
emancipação, que pressupõe a eliminação do seu pólo antagônico e opressor
(MENDONÇA, 2008). Não acontece diferente com o sujeito da modernidade, a
diferença está nos significados que os diferentes projetos em disputa na modernidade
atribuem ao discurso emancipatório. Este entendimento permite pensar a emancipação
como um significante vazio (Laclau, 1996) em torno do qual se articulam diferentes
demandas sociais, o que foi essencial para a consolidação da escola como instituição
fundamental para propagação e consolidação do projeto de modernidade, pois esta ficou
encarregada da formação do sujeito emancipado.
Compreendo a modernidade como um movimento de “ruptura autoconsciente
com o velho, o clássico e o tradicional, e uma ênfase concomitante com o novo e no
presente” (PETERS, 2000, p. 12). Um “movimento baseado na crença no avanço do
conhecimento, desenvolvido a partir da experiência e por meio do método científico” (p.
13), e que implicou em um projeto social que tinha como pressuposto não apenas na
modernização da máquina estatal, mas também no redimensionamento da própria vida
em sociedade fundamentado em uma postura cientificista. No entanto, não se trata de
um movimento homogêneo, pelo contrário, diferentes concepções de mundo partilham e
expressam o desejo de transformação e procuram construir metanarrativas que
emprestam diferentes significados à modernidade, como o liberalismo e do
materialismo histórico, por exemplo.
Podemos conceber a modernidade como projeto cultural que se tornou
hegemônico se constituindo como universal na medida em que conseguiu articular, em
torno de seus princípios, inúmeras demandas diferenciadas (LACLAU, 1996, 1998,
2006), todas buscando, discursivamente, fazer valer os sentidos que, particularmente,
atribuem aos princípios gerais.
É nesta perspectiva que busco compreender a escola moderna como instituição
responsável pela propagação de um projeto cultural (SACRISTÁN, 1999), em
contraposição ao existente que encarnava a tradição de um passado a ser superado.
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5672
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
Antes de prosseguir, é necessário ressaltar que considero que os ideais da
modernidade imprimiram características fundamentais à escola e estas persistem até a
contemporaneidade, e me permitem pensar em uma escola moderna, mas sem deixar de
considerar que se trata de uma generalização.
Retomando a análise, entendo que é possível pensar que o projeto de uma nova
sociedade que se gestava sob influência do Iluminismo, pressupunha a formação de um
novo sujeito, e o discurso educacional, que deu sustentação à escola moderna, é
carregado dessa influência.
A aposta radical no conhecimento científico como elemento propulsor do
progresso representado pelo alcance de determinados níveis de desenvolvimento
democrático e moral das sociedades é uma marca importante para a compreensão dos
processos de organização da escola e dos seus mecanismos de funcionamento, além de
oferecer pistas fundamentais para a avaliação do potencial efetivamente inovador das
propostas que visam reformar/reestruturar a instituição.
Assim, a consolidação da escola moderna acontece em um contexto em que
emergia uma nova visão de mundo fundada na defesa da ciência e da razão, contra a
superstição que aprisionava os seres humanos na ignorância, tornando-os presa fácil do
autoritarismo. A essa situação de opressão se contrapunha um novo sujeito emancipado
cuja formação passava pela apropriação da ciência. “Todos os povos têm direito à
ciência. Se o sujeito social já não é o sujeito do saber científico é porque foi impedido
nisto pelos padres e tiranos. O direito à ciência deve ser reconquistado” (LYOTARD,
1986, p. 58).
Essa crença na ciência como instrumento de emancipação é reforçada na medida
em que o conhecimento científico se constituiu como um tipo de saber capaz de oferecer
uma explicação racional e objetiva da realidade, estabelecendo relações universais entre
os fenômenos observados e ampliando a capacidade humana para alterar e explorar a
natureza (SANTOS, 2008).
A fé a priori na ciência vai ser afirmada pelo estruturalismo e questionada pelo
pós-estruturalismo que busca investigar os mecanismos pelos quais, no exercício do
poder, os saberes são produzidos. Saberes que são concebidos como práticas discursivas
(PETERS, 2000), em sistemas mais ou menos hierarquizados. Essa compreensão
permite analisar os processos discursivos operados pela e na modernidade, que
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As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
procuraram estabelecer uma suposta neutralidade metalinguística em torno do
conhecimento cientifico, e que implicou em determinado modelo de organização da
escola orientado para a constituição de uma nova visão de mundo pautada pela
racionalidade científica.
Pontuado este aspecto, cabe analisar em que medida o discurso educacional
dominante na contemporaneidade se afasta ou reforça a racionalidade científica.
Experimentamos padrões de desenvolvimento científico e tecnológico nunca
antes experimentados pelos seres humanos. Avanços que têm determinado novas formas
de perceber o tempo e o espaço alterando os modos de ser e estar no mundo.
As novas tecnologias proporcionam a intensificação dos processos de automação
e provocaram profundas alterações nos processos de produção e de consumo
determinando a reestruturação da economia. O capital se concentra nas mãos dos
grandes conglomerados financeiros que se apropriam dos processos de produção
científica direcionando-os segundo seus interesses e concentrando cada vez mais poder.
Todas essas transformações passam a determinar novos padrões de qualificação
requeridos dos sujeitos, que precisam se adequar, não apenas como mão-de-obra, mas
principalmente como consumidores com um perfil mais adequado às novas exigências
de mercado.
A nova sociedade do conhecimento (GARCIA CANCLINI, 2005) não pode
prescindir da ciência e da tecnologia, principalmente porque sua sustentação depende de
sujeitos capazes de, em algum nível, consumi-la. A importância que as tecnologias de
informação assumem no contexto de desenvolvimento do projeto neoliberal pode
também ser identificada pelo duplo papel que elas cumprem neste processo: são
incorporadas como alternativa mais barata para atender às necessidades de formação do
consumidor e, ao mesmo tempo, reforçam o discurso que supervaloriza o seu uso o que
é fundamental para o processo de reestruturação do capital. A informatização emerge no
discurso como a possibilidade de salvação da sociedade.
É nesta perspectiva que afirmo que o discurso educacional dominante se
reconfigura de forma a manter o privilégio epistemológico do conhecimento científico.
A apropriação da ciência e da tecnologia continua sendo difundida como condição
essencial para o desenvolvimento e para superação das desigualdades sociais entre
pessoas e países.
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As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
A escola é reafirmada como instituição responsável por maiores possibilidades
de inclusão no grande mercado globalizado, mas para isso acontecer precisa passar por
um processo de reestruturação tornando-se tecnicamente mais eficiente.
O discurso educacional dominante ganha força e se legitima socialmente em
torno de um consenso social que associa nível de escolarização com condição de
plenitude humana. Os relatos das professoras entrevistadas na pesquisa apresentada
acima expressam essa compreensão. Neles, provavelmente influenciadas pelas
produções das teorias críticas, as professoras questionam a capacidade da escola real
promover a igualdade e a justiça social, mas vislumbram uma escola ideal em que a
apropriação do conhecimento se realiza como possibilidade de emancipação. Os
conteúdos de ensino não são questionados, pelo contrário, todas as entrevistadas
defendem a existência de conteúdos formais que precisam ser ensinados e criticam a
Multieducação que, segundo Ângela, professora de Ciências Naturais:
“tem que ser um projeto paralelo. O problema é que essas atividades paralelas
tomam muito tempo prejudicando a educação formal, da qual eu não abro mão.
Eu acho que o conteúdo tem que ser dado. Se o aluno não dominar o conteúdo
não tem nem como conversar”.
Já para Luciana, professora de Geografia, a proposta reduz os conteúdos e não
atende as necessidades de formação dos alunos:
“A maior parte dos colegas achou que a Multieducação não leva a nada, pois, a
nossa realidade é muito diferente. A escola não pode oferecer só aquilo aos
alunos, pois na vida real eles serão cobrados em termos de conteúdos, então o
professor tem que dar conteúdos”.
Elba, professora de Educação Física tem opinião semelhante, e estabelece
relação com a realidade da escola privada em que trabalha:
“Acho que o conteúdo deve ser dado. Eu acabo comparando muito com o colégio
particular. Lá tem aula sempre e o conteúdo é sempre todo dado. Eu acho que
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5675
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
isso é fundamental. Fico preocupada com a forma de falar dos meus alunos, com
as dificuldades que eles têm para explicar as coisas, para comunicarem-se”.
De forma ambígua, as professoras também afirmam que não têm a pretensão de
formar especialistas em suas áreas (História, Matemática, Ciências, Francês) ou atletas
como declarou a professora de Educação Física, por isso relatam a preocupação em
buscar estratégias para desenvolver os conteúdos de suas disciplinas de forma a tornálos mais significativos para os alunos e alunas (PEREIRA, 1998).
Os relatos expressam uma postura naturalizada dos conteúdos de ensino, que
têm origem nos saberes de referência, mas que precisam ser simplificados para que
possam ser assimilados pelos alunos (CHERVEL, 1990). No entanto, esta naturalização
não é exclusiva das professoras que entrevistei. Ela também está presente em autores
críticos como Forquin (2000), por exemplo, que apresentam em suas análises a ideia de
que existem conteúdos que, pelo seu valor universal, não poderiam deixar de constar
dentre aqueles selecionados para fazer parte dos processos de escolarização. Entendo
que ao questionar a existência de qualquer privilégio epistemológico, os pósestruturalistas oferecem uma perspectiva de análise bastante promissora para
investigação dos processos de naturalização dos conteúdos escolares, esforço de
reflexão que Apple (2006) procura realizar quando insiste que é necessário indagar a
quem interessa e porque interessa ensinar determinados conteúdos em detrimento de
outros.
Na Multieducação é anunciada uma concepção de conhecimento como
construção social e em função disso são desenvolvidos argumentos e apresentadas
propostas de atividades que buscam expressar um texto curricular integrado por uma
perspectiva interdisciplinar. No entanto, a apresentação dos elementos de planejamento
e execução das atividades pedagógicas obedece à lógica da organização do currículo
disciplinar. O núcleo curricular básico da proposta preserva as disciplinas tradicionais 2.
Essa ambiguidade do texto expressa um processo de recontextualização por
hibridismo, em que a força das comunidades disciplinares não pode ser minimizada
(LOPES, 1999, 2007), entretanto, interessa aqui indagar em que medida, ao preservar as
disciplinas se reforça uma concepção naturalizada dos conteúdos de ensino. A
2
Entendo disciplina escolar como rubrica que classifica as matérias de ensino, e que expressam
combinações de saberes e de métodos pedagógicos (CHERVEL, 1990).
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5676
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
integração curricular proposta no texto privilegia a revisão dos métodos pedagógicos
sem expressar questionamentos sobre os saberes que devem ser integrados
interdisciplinarmente.
A manutenção de uma estrutura curricular disciplinarizada, nos moldes
propostos pela Multieducação, expressa um processo de hibridismo que mescla modelos
de currículo diferenciados, em que as disciplinas escolares tradicionais são incorporadas
como dado inquestionável (GOODSON, 1997), como se elas não fossem produtos de
um processo seleção e objetivação cultural resultantes de relações assimétricas de poder
(APPLE, 2006).
Não há, como sugere o autor, nenhum questionamento sobre os interesses que
determinam quais os conteúdos culturais que devem ser selecionados e objetivados para
serem transmitidos pela escola. Concebidas como artefatos culturais, as disciplinas
escolares expressam mais do que elementos cognitivos, elas estão carregadas de
princípios e valores, estão a serviço de um projeto cultural.
As abordagens pós-estruturalistas permitem radicalizar o questionamento
proposto por Apple, na medida em que contribuem para rompermos com a concepção
do currículo como texto impositivo. As ambiguidades do texto curricular expressam a
saturação de sentidos necessária para que ele possa constituir sua legitimidade social.
Neste sentido ele possibilita leituras diferenciadas e dessa forma se constituí em
território de luta por fazer valer determinados sentidos possíveis (MACEDO, 2003).
Não acontece de forma diferente com a Multieducação cujo texto foi elaborado
em meio a disputas e embates em torno de concepções de mundo e de educação
diferenciados (BALL, 1994).
Ela se enquadra como artefato cultural em que se busca forjar novos modos de
ser e estar no mundo, mas para se legitimar precisa incorporar significados presentes em
discursos classificados como críticos e alternativos que propõem outros modos de ser e
estar no mundo. Assim, sua leitura possibilita deslizamentos de sentidos e a proliferação
de múltiplos significados. São processos de recontextualização por hibridismo que
conferem ambigüidade ao texto curricular possibilitando a produção de consensos
capazes de orientar as mudanças para determinadas finalidades (LOPES, 2005).
É também como recontextulização por hibridismo que podemos analisar a
incorporação das dimensões cognitivistas presentes na Multieducação e a aplicação de
Talita Vidal Pereira
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As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
padrões de aferição de desempenho dos alunos como acontece atualmente na rede
municipal de ensino com a aplicação bimestral da PROVA RIO3, que busca garantir
determinados critérios de eficiência baseado em competências.
Para Ramos (2001) o conceito de competências é apropriado, nas políticas
curriculares em curso, como mecanismo ideológico que constrói e contribui para a
consolidação de uma cultura neoliberal.
Discutindo a centralidade do conceito de competências na reforma curricular da
formação de professores no Brasil nos anos de 1999 Dias e Lopes (2003) apontam
elementos que podem ser generalizados para as demais propostas curriculares em curso.
As autoras afirmam que o conceito de competências não se constitui propriamente em
uma inovação, pois pode ser encontrado em diferentes tempos e espaços educacionais.
Elas defendem, no entanto, que o conceito é utilizado nas propostas curriculares atuais a
partir de um processo de recontextualização (BERNSTEIN, 1998) de uma matriz norte
americana fortemente marcada pelo tecnicismo, tendência pedagógica em que os
objetivos da educação se restringem, fundamentalmente, à formação de indivíduos com
habilidades técnicas exigidas pelo mercado, e que teve forte influência nas políticas
educacionais nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil.
Ainda que a Multieducação não possa ser definida como texto curricular
organizado por competências, os critérios de aferição de desempenho dos alunos são
fundamentados em determinados descritores que se assemelham às competências, e
associados à aplicação de uma prova unificada elaborada pelo órgão central, possibilita
um maior controle do tipo de formação que está sendo realizada nas escolas, de forma a
garantir um tipo de eficiência curricular que faz do estado o guardião dos direitos em
matéria de educação a partir da “criação dos standards científicos de medida”
(PACHECO, 2001, p.11). Aqui emerge a questão da homogeneização cultural que passo
a abordar.
No contexto da globalização as fronteiras entre culturas e estilos de vida são
rompidas e as múltiplas identidades eclodem impedindo o silenciamento das questões
que envolvem identidade e diferença (WOODWARD, 2004).
3
Art.2º O nível central da Secretaria Municiapal de Educação enviará às escolas, bimestralmente, provas
para serem aplicadas a todos os alunos, visando o acompanhamento de seu processo de aprendizagem
(Resolução nº 1014 de 17/03/09, Diário Oficial do Municipio do Rio de Janeiro em 18/03/09).
Talita Vidal Pereira
5678
As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
Se por um lado, é preciso levar a cabo um projeto de homogeneização cultural
necessária à formação de um mercado global, por outro existem especificidades
culturais locais que precisam ser incluídas no mercado, sem necessariamente abrir mão
das suas posições de identidade. É nesta perspectiva que Garcia Canclini (2006) define
os
processos
de
hibridismo
como
movimentos
de
desterritorialização
e
reterritorialização em que a diferença é transformada no mesmo, ao mesmo tempo em
que o mesmo continua sendo percebido como diferença (MACEDO, 2003).
Lançando mão do termo circularidade entre culturas, cunhado por Carlo
Ginzburg e Bakhtin, Tura (2002) procura compreender como, no interior de uma
determinada hierarquia de poderes, múltiplos significados e mensagens emergem no
espaço cotidiano fazendo com que o que é central na cultura globalizada precise ser
negociado com a cultura local.
Moreira (1996) afirma que nas propostas curriculares em curso no Brasil esse
dilema é enfrentado a partir de uma postura assimilacionista em que as demandas que
emergem da diversidade cultural são incorporadas em uma lógica em que as diferenças
são, ao mesmo tempo em que se procura integrá-las a um determinado projeto cultural
privilegiado.
Assim, continuam sendo desconsideradas as formas pelas quais
os alunos se situam dentro do espaço escolar, que relações
estabelecem entre si e com os demais membros da comunidade
escolar, que similaridades/distinções existem entre as relações sociais,
as formas de agrupamento, as normas explícitas e implícitas de
comportamento estabelecidas no interior da escola e as do seu meio
social (BUENO, 2006, p. 111-112).
Esse movimento de homogeneização cultural se expressa na intensificação dos
mecanismos de controle que buscam orientar a formação, estabelecendo os padrões de
competências a serem alcançados em diferentes níveis de escolaridade e que são
avaliados nacionalmente de forma sistemática, como a PROVA RIO. São tentativas de
homogeneizar os processos instituídos pelo desenvolvimento técnicocientífico em geral e, em especial, pelas tecnologias da informação
que comandam a criação de sistemas estandardizados, padrões
absolutos de julgamento e preferência estética. É assim que diversos
particularismos e regionalismos convivem e entram em conflito com a
matriz hegemônica. (TURA, 2002, p. 153-154).
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As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
A definição de competência e o estabelecimento dos mesmos padrões de
aferição das mesmas expressam um projeto cultural que implica na “produção de
significados por meio de sistemas representacionais, em sua conexão com o
posicionamento dos sujeitos e com a construção de identidades no interior de sistemas
simbólicos” (WOODWARD, 2004, p. 67). Uma identidade se define por aquilo que ela
não é (LACLAU, 1998), por isso sua construção acontece pela demarcação com as
diferenças. É essa demarcação que determina o que é, e o que não é legítimo. Dessa
forma, o critério de competência se define pela invalidação cultural social e política do
outro. No entanto, mais uma vez é Laclau (1996) quem afirma, a negação do outro,
antes de significar a sua eliminação, implica em um processo de negociação constante
das formas de presenciá-lo, pois, a identidade do outro que corporifica a diferença é
constitutiva da própria identidade que se pretende pura.
Para finalizar é preciso ter claro que sem atacar os problemas crônicos da
educação brasileira, que tem raízes estruturais no modelo de desenvolvimento, as
reformas educacionais tendem a intensificar esses problemas, principalmente porque são
elaboradas num contexto de aprofundamento das contradições do próprio modelo de
desenvolvimento social e econômico, decorrentes do esvaziamento do papel do Estado
como instituição garantidora dos direitos sociais. Sem as mudanças estruturais
necessárias, as políticas e os discursos de sustentação das mesmas vão permanecer a
serviço do mesmo modelo de desenvolvimento. No mérito, as propostas reconfiguram e
mantém a mesma marca cientificista que foi fundamental para consolidação da escola
como produtora e reprodutora de uma dada hegemonia que limita as possibilidades de
pensarmos a escola em uma perspectiva que reconhece e acolhe a diversidade humana
em uma rede de solidariedade (BHABHA, 2003).
No entanto, essa constatação não deve nos levar a posições derrotistas, que o
discurso do pensamento único tenta impor, posto que na tentativa de legitimação, as
políticas acabam por incorporar demandas diversificadas. É nesta perspectiva que
podem ser pensadas para além de mera imposição do Estado, elas são produzidas em
um processo de disputas e embates, e expressam tentativas provisórias de atribuir um
sentido único à política que, no entanto não conseguem impedir ou limitar a emergência
de outros sentidos possíveis (BOWE et al, 1992; BALL, 1994).
Talita Vidal Pereira
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As Contribuições do Paradigma Pós-Estruturalista para Analisar as Políticas Curriculares
O texto curricular pode, portanto, ser assumido como território da luta política, de
disputa de poder, em que é possível imprimir marcas culturais que possam atender às
reivindicações populares. A força do potencial transformador da escola é
inquestionável, e é esse potencial que faz dela arena de luta por hegemonia (LACLAU,
2006).
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