ISSN 2175-8255
TRANSFORMAR
Revista do Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE)
Novembro – 2008
FUNDAÇÃO EDUCACIONAL E CULTURAL SÃO JOSÉ
Faculdades Integradas Padre Humberto – EAP – CenPE
Transformar
Itaperuna
n. 5
Pág. 1-142
2008
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
A Transformar é publicada anualmente pelo Centro de Pesquisa e
Extensão (CenPE) e pelas Faculdades Integradas Padre Humberto
da Fundação Educacional e Cultural São José.
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Editores
Juçara Gonçalves Lima Bedim
Leandro Garcia Pinho
Lucia Alvim Couto
Ficha catalográfica
_____________________________________________________________________________________
TRANSFORMAR – Revista do Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) / Fundação Educacional e Cultural São
José – Faculdades Integradas Padre Humberto. - - v. 5, jan./dez. 2008 - - - Itaperuna, RJ: Centro de Pesquisa e
Extensão (CenPE), 2008, www.fsj.edu.br.
ISSN 2175-8255
Ciência-Periódicos. 2. Conhecimento-Periódicos. 3. Pesquisa – Periódicos. 4. Extensão - Periódicos
_____________________________________________________________________________________
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
2
PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL E CULTURAL SÃO JOSÉ
José Carlos Mendes Martins
FACULDADES INTEGRADAS PADRE HUMBERTO
DIRETORA
Suely de Paula Coutinho
VICE-DIRETOR
Leandro Garcia Pinho
SECRETÁRIO
José Maria Cardozo
CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA TRANSFORMAR
Profª Drª Speranza França da Mata (UFRJ)
Prof. Dr. Mário Eduardo Toscano Martelotta (UFRJ)
Profª. Drª Maria Moura Cezário (UFRJ)
COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA DA REVISTA TRANSFORMAR
Juçara Gonçalves Lima Bedim
Leandro Garcia Pinho
Lucia Alvim Couto
REVISÃO TEXTUAL DESTE NÚMERO
Dulce Helena Pontes-Ribeiro
Juçara Gonçalves Lima Bedim
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Seções
Sumário
6 Apresentação
Da construção do conceito à formalização:
operações matemáticas sem traumas, com
apoio de tecnologias educacionais
10
Natercia de Souza Lima Bukowitz
9 Educação
24 Lingüística e Literatura
94 Política e Sociedade
O Tempo (cronos) e os tempos verbais 25
Dulce Helena Pontes-Ribeiro
O ensino de Língua Portuguesa e as
concepções de Linguagem
Eliana Crispim França Luquetti
36
Modo de Comunicação Gramaticalizado e
Aquisião de L2: associações
39
Roberto de Freitas Junior
Maria Maura da Conceição Cezario
Crônica: nos limites da Literatura
Lenise Ribeiro Dutra
52
Imprensa, memória e variação lingüística:
uma leitura diacrônica no Monitor
Campista
61
Carla Cardoso Silva
“O Corvo” de Poe visita o Brasil: a
tradução criativa e genial de Machado de
Assis
74
Ana Lúcia Lima da Costa
O Auto da Compadecida: uma Rosa no
Sertão de Guel Arraes
87
Eusébio Dornelles
Mimetismo: uma tática de sobrevivência
adolescente?
95
Francineide Silva Sales
Parceiros no olhar sobre a memória do
Exército Brasileiro
104
Rogério Ribeiro Fernandes e José
Francisco Melo Laurindo
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
4
Propaganda Nazista: Análise de discurso
de cartaz do Projeto Aktion T4
112
Marcos José Vieira Curvello
Ética jornalística: entre a evocação e a
conciliação de interesses
121
Jacqueline da Silva Deolindo
Imprensa e discurso político: o caso do
Jornal Brasil Novo, em Itaperuna, e o
Golpe de 1937
132
Jacqueline da Silva Deolindo
Emerson Tinoco
Normas para publicação
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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5
Apresentação
A preocupação com a divulgação democrática do saber deve ser premissa fundamental
para o universo acadêmico. É neste intuito que o presente número da Transformar inaugura
uma nova etapa de uma iniciativa iniciada no ano de 2003. Com a publicação de quatro
números de nossa Revista, passamos agora com este para nossa quinta tentativa de
contribuição com a produção do conhecimento acadêmico-científico que tem por base o
Centro de Pesquisa e Extensão (CenPE) da Fundação Educacional e Cultural São José (FSJ).
A chegada dessa nova iniciativa, qual seja, a divulgação em meio eletrônico da
Transformar, vem no sentido de propagar com o mesmo crivo e preocupação editoriais os
resultados de trabalhos de pesquisadores das Faculdades Integradas Padre Humberto (FIPH)
mantidas pela FSJ e de diferentes instituições de Ensino Superior de todo o Brasil. Por meio
desta nova proposta almeja-se levar o conhecimento aqui selecionado a um público cada vez
maior, oportunizando a muitos, através da internet, o acesso irrestrito ao conhecimento
veiculado pela Transformar.
Mantendo uma estrutura organizacional semelhante aos números anteriores, o presente
número da Transformar inicia-se com a seção Educação. Nesta, o artigo de Natercia de Souza
Lima Bukowitz discute aspectos acerca “Da construção do conceito à formalização: operações
matemáticas sem traumas”. A idéia da autora é propor oficinas na formação inicial e
continuada de professores objetivando atender à demanda dos docentes das séries iniciais do
Ensino Fundamental e dos cursos de formação de professores, no que se refere às estratégias
didáticas que favoreçam a construção de conceitos necessários à aquisição das técnicas das
operações fundamentais da matemática.
A segunda seção, Lingüística e Literatura, abre-se com o texto “O Tempo (cronos) e
os tempos verbais”, de Dulce Helena Pontes-Ribeiro. Sua idéia é apresentar uma interpretação
semântica dos tempos verbais, restritos ao modo indicativo, com foco na situação do presente.
Sua proposta envolve, dentre outros aspectos, a reflexão sobre os tempos verbais como uma
das vias de redirecionamento de análises e interpretações de textos, até mesmo para se
reavaliar a própria tipologia do discurso. Roberto de Freitas Junior e Maria Maura da
Conceição Cezario são autores do segundo texto desta seção. Discutindo o “Modo de
Comunicação Gramaticalizado e Aquisição de L2” em suas associações, os autores
apresentam a relação existente entre modos de comunicação, com base na concepção da
lingüística funcionalista, e aquisição de L2.
“O Ensino de Língua Portuguesa e as concepções de Linguagem” é o título do artigo
de Eliana Crispim França Luquetti. Neste texto, a autora, motivada por suas observações em
prática da sala de aula, discute a relação entre o ensino de Língua Portuguesa e as concepções
de linguagem.
Lenise Ribeiro Dutra reitera a importância da análise sobre a crônica em seus limites
com a literatura, no terceiro artigo da seção Lingüística e Literatura. Em sua perspectiva,
pode-se perceber a presença significativa da crônica na literatura brasileira, observando-se
suas origens, a relevância que o gênero assume na imprensa, a posição da crítica literária em
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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relação ao texto cronístico e a verificação da presença da expressividade poética num texto
considerado, por muitos, apenas de caráter jornalístico.
“Imprensa, memória e variação lingüística: uma leitura diacrônica no Monitor
Campista” é o título do estudo de Carla Cardoso Silva. Tendo como fonte de pesquisa recortes
de textos do jornal Monitor Campista, terceiro mais antigo em funcionamento no país –
quinto, neste patamar, na América Latina – que, com 173 anos de existência, desde 1936
pertence ao grupo dos Diários Associados, a autora analisa comparativamente as reportagens
do referido jornal, evidenciando algumas das variações que assumiu a língua portuguesa, em
sua versão escrita, ao longo de mais de um século e meio.
Em seu texto “O Corvo de Poe visita o Brasil: a tradução criativa e genial de Machado
de Assis”, Ana Lúcia Lima da Costa observa a tradução criativa que o genial escritor
brasileiro Machado de Assis fez da poesia O Corvo, de Edgar Alan Poe, tratando-a com a
reverência que um texto canônico como o de Poe merece, mas sem servilismo. Preocupada
em perceber o Machado tradutor, a autora discute a relação entre tradução e processos
criativos como prática fecunda capaz de possível revelação de talentos nacionais.
A obra de Guel Arraes, versão cinematográfica de “O Auto da Compadecida” é foco
de análise de Eusébio Dornellas, tendo por objetivo refletir sobre a intertextualidade no filme
em questão, ao inserir em um novo contexto a obra do escritor Ariano Suassuna.
A terceira e última seção, Política e Sociedade, é aberta pelo instigante texto
“Mimetismo: uma tática de sobrevivência adolescente?” de autoria de Francineide Silva
Sales. Por um trabalho campo original, a autora identifica aspectos que envolvem a relação
entre adolescentes cariocas e o consumo no processo de construção da imagem que têm de si.
O segundo texto dessa seção traz a assinatura de Rogério Ribeiro Fernandes e José
Francisco Melo Laurindo, que discutem aspectos referenciados à construção da memória pelo
do Exército Brasileiro. O texto resulta de um trabalho de parceria realizado entre professor e
ex-aluno do curso de Graduação em História da Fundação Educacional e Cultural São José e
levanta elementos que nos fazem pensar a forma com a qual o Exército legitima sua memória
institucional a partir de sua inserção em momentos marcantes da História do Brasil, em
particular a participação de nossas tropas na 2ª Guerra Mundial.
Marcos José Vieira Curvello, em “Propaganda Nazista: Análise de discurso de cartaz
do projeto Aktion T4”, desenvolve uma análise do discurso contido em uma peça de
propaganda do projeto Nazista Aktion T4, mostrando como valores e idéias subentendidas
alcançam o público alvo sem que seja necessário explicitá-las; e como o “não dito” pode ter
grande importância na construção e respaldo do discurso presente numa peça publicitária.
“Ética jornalística: entre a evocação do ideal e a conciliação de interesses” é o título do
artigo de Jacqueline da Silva Deolindo que também compõe a presente seção. O artigo
apresenta os resultados da pesquisa de campo realizada com jornalistas, estudantes de
jornalismo e outros profissionais da área, para verificar sua convicção pessoal acerca da ética
jornalística. A análise dos resultados é amparada por uma fundamentação teórica pautada no
entendimento do jornalismo enquanto um serviço público e no código de ética dos jornalistas
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
7
brasileiros. Também co-autora do artigo “Imprensa e discurso político: o caso do Jornal Brasil
Novo, em Itaperuna, e o golpe de 1937”, Jacqueline da Silva Deolindo divide com Emerson
Tinoco a assinatura do último artigo deste número de Transformar. Neste texto, os autores
fazem uma breve revisão bibliográfica sobre a imprensa política da primeira metade do século
XX e refletem sobre a formação da opinião pública nesse período. Caracterizada
principalmente pela adesão a partidos políticos e pela defesa declarada de ideologias, essa
imprensa guarda características peculiares relacionadas à temática das peças jornalísticas, à
abordagem dos fatos, à linguagem empregada nos textos e ao relacionamento com os leitores.
Assim, como proposta inovadora para o contexto histórico-geográfico no qual se
insere o CenPE, o veículo que agora se disponibiliza faz com que possamos atingir um
público cada vez mais amplo oferecendo uma porta aberta ao diálogo entre a produção do
conhecimento e a recepção do mesmo. Aguardamos novas contribuições, na certeza de
estarmos trilhando um caminho por vias cada vez mais democráticas.
Itaperuna, 30 de novembro de 2008.
Juçara Gonçalves Lima Bedim
Leandro Garcia Pinho
Lucia Alvim Couto
Comissão Editorial Executiva
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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EDUCAÇÃO
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
9
W
a construção do conceito à formalização:
operações matemáticas sem traumas, com apoio de tecnologias
educacionais
Natercia de Souza Lima Bukowitz∗
____________________________________________________________________Resumo
O artigo apresenta proposta de oficinas na formação inicial e continuada de professores objetivando
atender à demanda dos docentes das séries iniciais do Ensino Fundamental e dos cursos de formação de
professores, no que se refere às estratégias didáticas que favoreçam a construção de conceitos
necessários à aquisição das técnicas das operações fundamentais da matemática. Para tanto, foram
considerados os aportes teóricos de Bruner e Piaget em relação ao cognitivismo, assim como as
concepções de Lacerda acerca da tecnologia educacional.
Palavras-chave: Formação inicial e continuada de professores. Oficinas. Operações matemáticas.
Construção de conceitos. Formalização.
__________________________________________________________________________
1 INTRODUÇÃO
Pesquisas educacionais realizadas em todo o mundo, na última década, têm revelado a
necessidade e a relevância da formação continuada dos professores: “Para a implantação de
qualquer proposta que se proponha uma renovação das escolas e das práticas pedagógicas, a
formação continuada dos professores passa a ser um aspecto essencialmente crítico e
importante.” (CANDAU, 1997, p. 51).
Dados desses estudos evidenciam a precariedade dos cursos de formação de
professores, tanto em nível médio, quanto nos cursos de graduação em pedagogia. A queda da
qualidade do ensino, oferecido tanto pelas instituições públicas quanto pelas privadas, tem
sido atribuída ao descaso e sucateamento das primeiras, como também causada pela expansão
das características mercantilistas das últimas. Tais fatores têm conduzido ao aligeiramento dos
cursos em discussão, que passam a visar quase que exclusivamente a concessão de titulação
aos graduandos, preocupados tão somente com a obtenção do diploma para ingressar no
mercado de trabalho.
Face ao exposto, verifica-se freqüentemente nestes espaços de formação a abordagem
superficial dos conteúdos curriculares, e consequentemente, a dicotomia teoria e prática,
concorrendo para que os objetivos desses cursos não sejam satisfatoriamente atingidos, isto é,
formam-se docentes que, em sua maioria, não se encontram aptos para exercer o magistério
dessas disciplinas na educação básica.
No que se refere ao ensino da matemática direcionado às séries iniciais do Ensino
Fundamental, o quadro se agrava, o que pode ser comprovado não só por pesquisas
internacionais (PISA, 2003) como principalmente pelos resultados das Avaliações do SAEB
(2005). Tais avaliações têm demonstrado que mais de 50% das crianças, ao concluírem a 4a
∗
Parte deste artigo é fragmento da tese de doutoramento da autora (BUKOWITZ, 2005).
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.Email: [email protected]
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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série do Ensino Fundamental, não conseguem resolver problemas simples que envolvem as
quatro principais operações matemáticas. Sabe-se do expressivo volume de estudos nessa
área, no entanto, quando se observa a matemática nas escolas, constata-se que poucas
modificações têm havido neste campo (BUKOWITZ, 2005). A partir destas considerações,
percebe-se a importância da formação continuada de professores, em diferentes âmbitos,
objetivando a renovação da prática pedagógica desses docentes, para que possam promover a
tão propalada revolução copernicana a que se refere Kamii (2002) em sua obra “Crianças
pequenas reinventam a aritmética”. É nesta direção que a presente proposta se encaminha,
visando especificamente apresentar estratégias e oferecer recursos que favoreçam a
construção de conceitos matemáticos necessários à aquisição de técnicas diversificadas para
as quatro operações matemáticas fundamentais.
2 APORTES TEÓRICOS
2.1 O COGNITIVISMO
A consecução dos objetivos traçados para esta proposta pressupõe a busca por
respostas à indagação de como ocorre a aprendizagem. Esta busca tem suscitado incontáveis
pesquisas desenvolvidas por cientistas das mais diversas procedências e de distintas áreas de
estudo. Conhecer e aprender implica um movimento de constante investigação e esta
afirmação por si só já representa uma posição epistemológica, a de que o conhecimento não é
um bem herdado ou doado. Neste trabalho, assumiu-se esta posição e para fundamentá-la
recorreu-se ao cognitivismo, que entre tantas outras teorias psicológicas, representa oposição
às correntes inatistas1 e às vertentes ambientalistas2. Nesta parte, serão apresentados os
princípios básicos do cognitivismo e em seguida será feita uma exposição da teoria de
aprendizagem de Bruner.
As posições cognitivistas surgiram no início da segunda década do século XX como
reação ao behaviorismo de Watson, rejeitando o condicionamento e a perspectiva atomista, isto
é, a compreensão do universo mediante o estudo de elementos individuais. Chadwick e Rojas
(1980) destacam duas tendências dentro da corrente cognitivista: a do behaviorismo cognitivista
de Tolman (EUA), e a do gestaltismo alemão, citando Wertheimer, Kholer, Kokfa e Lewin
como seus representantes principais. Nos EUA, os cognitivistas enfatizaram que os indivíduos
não respondem tanto aos estímulos, mas atuam com base em crenças, atitudes e desejos de
alcançar metas (compreensão do universo por meio de princípios de ordem); a pessoa aprende
conceitos, signos especiais, programas, mapas, cursos de ação. Partindo de elementos e
problemas perceptuais, elaboram uma teoria que inclui todos os conhecimentos possíveis. O
termo cognoscere origina-se do latim e significa conhecer. Para os cognitivistas – primeiro a
pessoa conhece o ambiente que a rodeia e si mesma, depois, utilizando-se desse conhecimento,
relaciona-se com o meio. As relações, a estrutura e a ordem devem ser impostas pela pessoa
sobre o material caótico da experiência sensível.
Cognitivistas definem inteligência como a capacidade de responder a situações reais
com base em uma antecipação das possíveis conseqüências com o objetivo de controlar os
1
Correntes inatistas ou aprioristas consideram exclusivamente a razão como fonte do conhecimento.
Correntes ambientalistas ou empiristas consideram que toda a fonte do conhecimento procede apenas das
informações do ambiente, captadas pelos sentidos.
2
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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efeitos e resultados da conduta. Para o gestaltismo, a segunda influência à teoria cognitivista,
há algo mais que simples relações “estímulo-resposta”. Gestalt significa aproximadamente
“configuração”. A tese fundamental da Gestalt consiste em afirmar que o que ocorre em uma
totalidade não pode ser derivado das características de pequenos fragmentos separados. O que
ocorre a uma parte da totalidade é determinado pelas leis da estrutura dessa mesma totalidade.
Dessa forma, pode-se concluir que aprendizagem é uma mudança na estrutura cognitiva, na
motivação, no conceito de ideologia, podendo ser vista também como alcance de um controle
voluntário sobre a coordenação física, tal como defendido por Piaget (1976).
O nome de Jerome Bruner, psicólogo, eclético e evolutivo, encontra-se associado tanto
ao campo cognitivista quanto à posição evolucionista de Jean Piaget. Bruner (1973)
desenvolveu uma teoria na qual o aprendizado é um processo ativo: os aprendizes constroem
novas idéias, ou conceitos, baseados em seus conhecimentos passados e atuais. O aprendiz
seleciona e transforma a informação, constrói hipóteses e toma decisões, contando, para isto,
com uma estrutura cognitiva. A estrutura cognitiva, constituída por esquemas e modelos
mentais, fornece significado e organização para as experiências e permite ao indivíduo “ir
além da informação dada”.
Definindo a aprendizagem como “um processo essencialmente social”, Bruner (1973,
p. 50) focaliza os fatores sociais, motivacionais e pessoais que interferem no desejo de
aprender e de solucionar problemas. Tais considerações remetem a valorizar a relação
professor-aluno e o contexto cultural onde ocorrem os procedimentos instrucionais. Por este
motivo, professores e alunos devem se engajar em um diálogo ativo. A tarefa do professor
consiste em traduzir a informação a ser aprendida em um formato apropriado ao estado
verdadeiro de compreensão do aluno. Diz Bruner (1973, p. 51) que: “toda idéia, problema ou
conjunto de conhecimentos pode ser suficientemente simplificada para ser entendida por
qualquer estudante particular, sob forma reconhecível”. O currículo, organizado em espiral,
constitui-se em outro recurso para que o aluno construa continuamente sobre o que já
aprendeu.
A teoria cognitivista de Bruner oferece uma estrutura geral para o ensino referenciada
em Piaget. Orientando-se para a pesquisa do desenvolvimento infantil, estabeleceu-se sobre
quatro pilares principais: (1) predisposição na direção do aprendizado, (2) modos nos quais
um corpo de conhecimento pode ser estruturado, para que seja facilmente compreendido pelo
aluno, (3) seqüências mais efetivas para apresentar o material e (4) recompensa e motivação
intrínsecas. Métodos eficazes para estruturar o aprendizado devem resultar em simplificação,
geração de novas proposições e aumento da manipulação da informação. Em trabalhos mais
recentes, Bruner (1997) expandiu sua estrutura teórica para abranger os aspectos sociais e
culturais do aprendizado, o que representa uma interessante inovação para a aprendizagem
nos países em desenvolvimento, dentre os quais o Brasil, por apresentarem vasta diversidade
cultural.
A abordagem ao ensino da matemática, por meio de oficinas, é uma estratégia que se
adequa às formulações teóricas de Bruner (1973) e Piaget (1976). Para Bruner, a dificuldade
ou facilidade na aprendizagem de determinado conteúdo depende não só das diferenças
individuais, da natureza da matéria e das informações de que o aprendiz dispõe, mas também
do estágio de desenvolvimento em que o sujeito se encontra. Por isso, argumenta que há
necessidade de apoios concretos para se chegar à abstração:
Chegamos à conclusão de que provavelmente seria necessário à criança que
aprende matemática ter não só um sentido firme da abstração subjacente à sua
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
12
tarefa, mas também uma boa coleção de imagens para ilustrá-la; sem tal coleção
é difícil achar correspondências e verificar o trabalho simbólico (BRUNER,
1973, p. 70).
Sendo assim, a conscientização de que “o processo normal do desenvolvimento
intelectual passa da representação ativa do mundo para a icônica e depois para a simbólica”
(BRUNER, 1973, p. 56), oferece subsídios para o desenvolvimento de uma prática docente
mais criativa e com resultados mais positivos no ensino da matemática.
CONTRIBUIÇÕES DE BRUNER E PIAGET
As contribuições de Bruner têm sido expressivas para os que se interessam e se
dedicam ao estudo e ensino da matemática. Como teórico da aprendizagem, Bruner realizou
inúmeras pesquisas em parceria com físicos e matemáticos, dentre os quais Dienes3 e Polya,
em Harvard, opondo-se frontalmente aos preceitos próximos aos das “teorias do
condicionamento estímulo-reação, quer as baseadas na idéia de contigüidade, quer na de
reforço, como forjadores dos elos entre estímulos e respostas” (BRUNER, 1973, p. 27).
Bruner aproximou-se do pensamento de Piaget no que diz respeito “à idéia da necessidade
lógica, um processo de tratar com a natureza de proposições ao invés de fazê-lo diretamente
com a experiência, uma maneira de ir além das propriedades empíricas”, possibilitando à
criança “passar do comportamento de adaptação para o uso consciente da lógica e do
raciocínio” (p. 29).
Bruner (1973, p. 30) atribui relevância aos significados e aos contextos culturais
sugerindo que “o crescimento mental depende em grau considerável do crescimento de fora
para dentro – em dominar técnicas que estão incorporadas na cultura e que são comunicadas
em um diálogo contingente com agentes da cultura”. O que de mais substancial e basilar
Bruner ensina aos professores de matemática é a noção de que a estrutura didática da
matemática deve respeitar sua estrutura histórica e epistemológica. Diz Bruner (1973, p. 75)
que: “a simplicidade do currículo de matemática se baseia na história e no próprio
desenvolvimento da matemática”. Isto significa que, a transposição didática, para possibilitar
o real aprendizado do aluno deve seguir um percurso processual, não pode ser meramente
uma transmissão de conhecimentos já formalizados e processados. Podem ser usados dois
exemplos da matemática básica que esclarecem este argumento – referem-se à compreensão
do Sistema de Numeração Decimal e do algoritmo da divisão. Os professores precisam
conhecer a gênese da construção dessas estratégias de cálculo de modo a permitir que o aluno
tenha a possibilidade de percorrer o mesmo caminho dos elaboradores dessas técnicas:
Um corpo de conhecimentos, entesourado numa universidade e corporificado
numa série de competentes volumes, é o resultado de intensa atividade
intelectual anterior. Instruir alguém nessa matéria não é levá-lo a armazenar
resultados na mente, e sim ensiná-lo a participar do processo que torna
possível a obtenção do conhecimento: ensinamos não para produzir
minúsculas bibliotecas vivas, mas para fazer o estudante pensar,
3
Dienes, (1975, p. 19-20) matemático húngaro, pesquisador e criador dos “blocos lógicos”, afirma que “na
grande maioria dos casos, o que os estudantes comunicam, anotando ou expressando sinais matemáticos, é
meramente os sinais em si, e não as estruturas para as quais os sinais são supostos símbolos”.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
13
matematicamente, para si mesmo, considerar os assuntos como o faria um
historiador, tomar parte do processo de aquisição de conhecimento. Saber é
um processo, não um produto (BRUNER, 1979, p. 75).
Sobre essa temática, torna-se obrigatório evocar teses de Piaget. Este epistemólogo
desenvolveu em sua teoria, o princípio de que todo o conhecimento é construído. Argumenta
que para haver esta construção, há necessidade de a inteligência passar por constantes
desafios. Além de ter pesquisado em profundidade questões epistemológicas relativas ao
“desenvolvimento das quantidades físicas na criança”, Piaget (1975) esteve, tal como Bruner,
em diversos momentos de sua vida, buscando informações ou realizando pesquisas conjuntas
com cientistas de outras áreas do conhecimento, físicos e matemáticos tais quais Einstein e
Abele. Dessa forma, Piaget observando e acompanhando o desenvolvimento de crianças, pôde
contribuir para o esclarecimento de aspectos ignotos da ciência.
Distinguir e caracterizar as fases ou estágios do desenvolvimento infantil é, dentre
tantos outros contributos da teoria de Piaget, essencial para nortear as ações do professor no
que diz respeito ao conhecimento de como se constrói a noção de número na criança. São
assim apresentados por Piaget (1976, p. 13) estes estágios:
[...] período da lactância até por volta de um ano e meio a dois anos, isto é,
anterior ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento. O estágio da
inteligência intuitiva, [...] (de dois a sete anos, ou segunda parte da “primeira
infância”). O estágio das operações intelectuais concretas (começo da lógica)
e dos sentimentos morais e sociais de cooperação (de sete a onze-doze anos).
O estágio das operações intelectuais abstratas, da formação da personalidade
e da inserção afetiva e intelectual na sociedade dos adultos (adolescência).
Apesar de toda a divulgação da teoria piagetiana, nos meios acadêmicos, assim como
dados da pesquisa realizada pela autora desta proposta, é possível constatar que estes
fundamentos teóricos ainda não se incorporaram ao repertório de conhecimentos e à prática de
um universo expressivo de docentes do Ensino Infantil e das séries iniciais do Ensino
Fundamental.
Sobre a construção do número, Piaget assevera:
Sabe-se que durante a primeira infância, apenas os primeiros números são
acessíveis ao sujeito, porque são números intuitivos, correspondentes a
figuras perceptivas. A série indefinida dos números e, sobretudo, as operações
de soma (e seu inverso: a subtração) e de multiplicação (com seu inverso: a
divisão), ao contrário, só são acessíveis, em média, depois dos sete anos. O
motivo é simples: na verdade, o número é um composto de certas operações
precedentes e supõe, em conseqüência, sua construção prévia (PIAGET,1976,
p. 55).
Piaget explica que as correspondências termo-a-termo permanecem intuitivas durante
a primeira infância. Somente passam a constituir-se em operações numéricas a partir do
momento em que a criança é capaz de perceber simultaneamente as relações das partes nos
todos, quando então elabora os números. Sobre essa questão, Piaget (1976, p. 56) conclui que:
“a passagem da intuição à lógica, ou às operações matemáticas, se efetua no decorrer da
segunda infância pela construção de agrupamentos e grupos”.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
14
Estes aportes são relevantes para mostrar a importância da utilização de estratégias de
trabalho, a partir de agrupamentos, em situações problematizadoras. Pode-se admitir então
que o êxito ou fracasso do ensino da matemática se prende não apenas ao fato de o professor
ser ou não profundo conhecedor da matemática. Além desse aspecto, é necessário contemplar
se o professor dispõe também de conhecimentos referentes às diversas expressões e
manifestações da mente humana.
Sobre essas manifestações, cabe mencionar o estudo desenvolvido por Piaget (1976)
sobre a capacidade operativa e adaptativa da inteligência. Ghiraldelli (2004, p. 20) enfatiza
estas características intelectivas quando demonstra compreender a criança piagetiana como
um “ser práxico”: O que Piaget conclui, passando da psicologia à pedagogia é que, além de
colocar as crianças em ação com a manipulação de materiais, deve-se também levá-las a
“tomar consciência” da ação.
2.2 TECNOLOGIA EDUCACIONAL: CONFLUÊNCIA DE UM DOMÍNIO INTERDISCIPLINAR
Para conferir legitimidade às argumentações apresentadas na seção precedente, cabe
enfatizar que a aprendizagem não decorre apenas de fatores biológicos e sócio-culturais, mas
que as funções psicológicas se articulam com esses fatores, desempenhando papel relevante
nessa interação. Coerente com esta posição, considera-se a tecnologia educacional como
confluência de um domínio interdisciplinar que abriga contribuições dos mais diversos
campos do conhecimento, dentre os quais, a informática, a psicologia e a educação,
ultrapassando o mero “contexto da aplicação pedagógica de meios áudio-visuais”
(LACERDA, 1992, p. 23).
A publicação da obra “The science of learning and the art of teaching”, de Skinner, em
1954, constituiu-se num marco para que emergisse uma concepção renovada e ampliada da
tecnologia educacional. De início, essa área de estudo restringiu-se aos materiais e aos
produtos tecnológicos. O crescente avanço de pesquisas sobre cognição e aprendizagem,
dentre elas destacando-se as de Bruner (1973) e Lapointe (1989), deslocou, porém o foco da
atenção sobre os recursos e as máquinas, direcionando-se para relações mais humanizadas
entre professor-aluno-produtos tecnológicos. Desta feita, passou a ser enfatizada a atividade
do sujeito que aprende e a mediação do professor nesse processo interativo entre o homem e a
tecnologia.
As novas tecnologias possibilitam superar modelos tradicionais, mudando o
foco da instrução para o processo de aprendizagem, colocando em suas
prioridades a adoção de formas inovadoras de relacionamento e interação
entre os participantes, que enfatizem a aprendizagem contextualizada, a
solução de problemas, a construção de modelos e hipóteses de trabalho e,
especialmente, o domínio do estudante sobre o seu próprio processo de
aprendizagem (STRUCHINER, et. al, 1998, p. 4).
Concebe-se então, neste trabalho, uma visão próxima à de Lacerda (1992, p. 23) para
quem o processo de ensino “pode então ser definido como a organização de todos os meios
humanos e tecnológicos disponíveis para facilitar a aprendizagem”, identificando-se “com o
objetivo de resolver problemas concretos ligados à aprendizagem e ao ensino”, conforme
sugestão das oficinas descritas na seção subseqüente.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
15
3 AS OFICINAS
A oficina4, uma forma de trabalhar simultaneamente conteúdo e metodologia do
ensino da matemática, encontra-se descrita por Carvalho (1990, p. 24), que a caracteriza por:
colocar o aluno diante de uma situação-problema cuja abordagem o leve a
construir o seu conhecimento. É desejável que a situação desencadeadora seja
suficientemente rica e aberta, de maneira que o próprio grupo-classe possa
levantar inúmeros problemas cuja resolução permita abordar, num sentido
amplo, os conteúdos que se deseja estudar.
Nesses momentos de diálogo e problematizações, sobressai o aspecto
investigativo da proposta: emergem questões esclarecedoras quanto ao nível de
conhecimentos matemáticos do grupo, propiciando o surgimento de alternativas para fazer a
turma avançar.
3.1 OFICINA: DIVISÃO
A abordagem ao cognitivismo de Bruner, fundamentação teórica desta proposta,
enseja a realização de oficinas em que são utilizadas tampas de garrafa PET, em substituição à
idéia original dos feijões sugeridos por Bruner (1973, p. 60). A proposta do autor, conforme
indicado em seu texto, consistiu em favorecer a construção de conceitos, tais quais, os de
números primos, múltiplos, divisores, fatores e fatoração. Além da construção destes
conceitos, é possível não só resgatar, mas até mesmo oportunizar uma perspectiva distinta das
usuais para a apreensão dos princípios das operações de multiplicação e divisão.
O aprendizado da “técnica operatória” da divisão é um desses estigmas, responsável
pela evasão e pela reprovação, principalmente na segunda metade do primeiro segmento do
Ensino Fundamental. Isto pode ser observado em reportagem de Letícia Lins (O Globo,
03/06/2004), por intermédio do depoimento de Railson Silva, de 15 anos, estudante de 5ª série
em Recife, como bolsista no Colégio Marista. Ele já foi reprovado duas vezes e afirma:
“divisão é muito complicado”.
Devido a todas essas considerações precedentes, o trabalho a ser realizado na oficina
com as tampinhas PET faz emergir um estudo aprofundado e abrangente da “técnica
operatória” da divisão. Uma abordagem histórico-cultural torna-se necessária para responder
às indagações do grupo sobre como teria sido o início desse processo, e não apenas isso, mas
também conduz à pesquisa da origem das dificuldades das crianças quando precisam realizar
estas operações.
Sabe-se hoje que os processos históricos que originaram a “técnica da divisão” são
similares aos processos que facilitam a elaboração individual para a compreensão dessa
4
Para que no registro das oficinas possam ser identificadas as vozes dos participantes, adotou-se a seguinte
formatação:
- elaboração teórica da autora: a mesma fonte utilizada no desenvolvimento do texto;
- citações dos autores fundamentadores: a fonte recomendada para tal fim, de acordo com as normas da
ABNT;
- intervenções da autora do trabalho: mesma fonte do texto, em itálico;
- participantes e reflexões da autora: mesma fonte do texto, porém em itálico, tamanho menor e com recuo.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
16
operação e dessa técnica. Admite-se, portanto, ser fundamental conhecê-los para realizar esta
abordagem5 no ensino da matemática na Escola Básica.
Desta feita, oferece-se à turma uma sacola contendo um número desconhecido de tampinhas,
propondo-se a seguinte problematização:
– Como distribuir estas tampinhas para todos, de modo que cada um receba a mesma
quantidade, sem que se efetue nenhum cálculo?
Sem que haja demora, a solução, em geral, surge simultaneamente de alguns alunos ali
presentes.
– É só ir dando uma para cada um, de cada vez, até esgotar todas as tampinhas.
A partir desta resposta, a sacola vai sendo passada, de mão em mão, cada um retirando uma
tampinha por vez. Como há um volume de tampinhas consideravelmente grande, em relação ao
número de participantes da oficina, em determinado momento formula-se uma outra questão:
– Será que para agilizar a distribuição, poderiam ser retiradas duas tampinhas de uma
só vez?
Ao que geralmente respondem:
– Poderiam.
– E se faltar para alguém?
– Então devolvemos para a sacola e voltamos de novo a tirar uma tampinha de cada vez.
(Nesta oportunidade, a pesquisadora propõe a inserção do tema transversal “ética e
cidadania”, fundamentando-se na teoria do desenvolvimento moral6 de Piaget. O tópico divisão
presta-se para este tipo de convergência e deve ser aproveitado pelos educadores para despertar nos
educandos noções de justiça e respeito ao outro).
Na próxima rodada, são retiradas então duas tampinhas de uma só vez, sobrando tampinhas ou
não. Pergunta-se então:
– Quantas tampinhas cada um recebeu? Sobrou alguma? Com estas que sobraram (no caso
de ter havido sobra), poderia haver uma nova distribuição igualitária?
– Não, porque nem todos irão receber as tampinhas (uma possível resposta).
– Pode-se agora saber quantas tampinhas havia?
– Sim, efetuando adições do número de participantes, repetidamente em parcelas, tantas
quantas foram as tampinhas recebidas por cada um e somando com as que restaram. Ou
ainda, efetuando a multiplicação do número de tampinhas de cada um pelo número de
participantes e somando com o resto.
Este procedimento serve para mostrar como os egípcios deram início ao processo de
construção da “técnica operatória” da divisão. Este processo sofreu várias evoluções ao longo
da história, sendo possível distinguir 3 etapas principais.
Estas etapas podem ser vistas e vivenciadas nesta oficina quando se propõe que seja
reiniciado o processo da distribuição das tampinhas. Já sabida a quantidade das tampinhas, este
registro é possível da seguinte forma, caso o número de tampinhas tenha sido, por exemplo, 230, e 53
o número de participantes.
5
“Piaget chega mesmo a supor que para se explicarem os fenômenos às crianças, talvez a melhor forma seja
fazê-las percorrer os modelos explicativos históricos, uma vez que, provavelmente seja esse o caminho das
equilibrações que ocorrem ao longo do desenvolvimento da criança” (LIMA, 1998, p. 44).
6
“O respeito, [...] está na origem dos primeiros sentimentos morais. Com efeito, é suficiente que os seres
respeitados dêem aos que os respeitam ordens e, sobretudo avisos para que estas sejam sentidas como obrigatórias e
produzam assim o sentimento do dever”. (PIAGET, 1976, p. 40).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
17
230
-53
177
-53
124
-106
18
| 53___
1+1+2
Resultado: 4 tampinhas para
cada um e sobram 18.
Este registro se constitui na primeira etapa do processo de construção da “técnica
operatória” da divisão. Hoje se denomina esta estratégia de cálculo de “divisão por estimativa”. A
vivência desse processo possibilita ao grupo derrubar “mitos”, dentre eles o de que, “para dividir, é
preciso saber todas as tabuadas de multiplicar”. Percebe-se que é possível realizar qualquer
operação de divisão bastando utilizar, nesse cálculo por estimativa, os quocientes 1 e 2 de acordo
com o desejo do operador. Além disso, pode-se entender a lógica interna da operação divisão.
A segunda etapa da evolução da construção dessa técnica origina-se da primeira, exigindo
porém do operador um conhecimento mais sofisticado da “técnica operatória” da multiplicação.
Assim, realizam-se sucessivas multiplicações para saber quantas vezes o 53 “cabe” no 230:
230 | 53__
-212
4
18
Cálculos auxiliares:
53
x1
53
53
x2
106
53
x3
159
53
x4
212
53
x5
265
Esta segunda etapa (ou processo) tornou-se conhecida como ”técnica operatória da divisão
pelo processo longo”.
Durante a elaboração desse registro, surgem freqüentemente questionamentos de participantes
da oficina, como o que segue, argumentando que:
– Ah! Mas muitos pais vão dizer que isso está errado! E também muitos professores da 5ª série
que não irão aceitar estas maneiras de fazer a conta.
Tais comentários caracterizam os embates enfrentados por professores de matemática quando
se empenham em propor inovações ao seu ensino.
A terceira etapa (ou processo), como mostrado a seguir, é uma evolução da segunda, é a
“técnica” usualmente “ensinada” nas escolas, sem que seja dada à criança a oportunidade de
participar das etapas anteriores:
231 | 53__
18 4
3.2 OFICINA COM AGRUPAMENTOS, A BASE DO PRINCÍPIO MULTIPLICATIVO
Como exemplificado na seção anterior, as tampinhas de garrafa PET constituem
tecnologia das mais acessíveis ao professor e das mais apropriadas ao universo infantil, por
serem atraentes, tátil e visualmente, e porque possibilitam a manipulação em atividades
diversificadas de quantificação. Porém, como já enfatizado nas discussões teóricas
precedentes, a tecnologia educacional transcende os materiais, valoriza o processo e a
atividade do aprendiz nas interações que estabelece com o objeto do conhecimento. Para
tanto, são essenciais as intervenções do professor na problematização de situações instigantes
que favoreçam a construção do raciocínio lógico matemático.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
18
Coerente com Piaget (1976), torna-se relevante o trabalho proposto a seguir para a
construção do conceito de multiplicação e de outros conceitos correlatos como os de
múltiplos, divisores, pares, ímpares, números compostos e números primos.
•
Distribui-se um número aleatório de tampinhas para cada criança e em seguida,
problematizam-se as situações: formem grupos de duas tampinhas com as que recebeu.
•
•
Questione os alunos: quantos grupos você formou? Sobrou alguma?
No caso dos grupos de 2, solicite aos alunos para observarem que nem todas as
quantidades possibilitam formar grupos de 2, sem que sobre resto.
Faça os alunos chegarem à conclusão de que o número é ímpar quando sobra uma
tampinha depois de formados os grupos de 2.
Ao final dessas problematizações, solicite que seja feito um registro dessas situações
observadas. O registro pode ser iniciado com desenhos, evoluindo para um registro
“formal”, isto é, uma expressão aritmética elaborada pela própria criança. Exemplo: se
forem 15 tampinhas, são 7 grupos de 2 sobrando uma (2 x 7 + 1 = 15).
A seguir, proponha que com as mesmas tampinhas sejam formados grupos de 3,
questionando: quantos grupos foram formados? Sobrou alguma? Há mais grupos ou
menos grupos do que os que foram formados na situação anterior?
•
•
•
•
•
Em seguida, solicite o registro como na situação anterior, objetivando o desenvolvimento
do pensamento reversível em operações simultâneas e reversíveis, isto é, a multiplicação e
a divisão.
Continue com o mesmo procedimento com quantidades progressivamente maiores,
solicitando a formação de grupos até 10.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
19
Nestas oficinas com agrupamentos, o professor aproveita para explorar outros conceitos
como o de divisores, propondo, por exemplo, a seguinte situação-problema para a criança que
receber 12 tampinhas: quais são todas as maneiras possíveis de formar grupos iguais, sem que sobrem
tampinhas?
Ao final da formação dos grupos de 2, 3, 4, 5, etc. e com quantidades diferentes, cada
aluno, ao fazer seu registro pessoal, poderá montar sua própria tabuada, que será significativa
por ter sido elaborada no contexto de situações problematizadoras.
3.3 OFICINA DE ADIÇÕES E SUBTRAÇÕES COM USO DO MATERIAL DOURADO
O material dourado foi criado por Maria Montessori, nascida em 31 de agosto de 1870,
em Ancona, na Itália. Foi a 1ª mulher a se formar médica em seu país, doutorando-se em
1896. Antes disso, ingressou em um curso de matemática e ciência da Universidade de Roma.
O trabalho realizado com crianças, na época chamadas “retardadas”, em hospital psiquiátrico,
fez com que se aproximasse da educação, e em 1901, cursa Pedagogia, Higiene e Psicologia,
também na Universidade de Roma. Conhecedora e apaixonada por matemática, interessou-se
por criar materiais que facilitassem, nessa ciência, o aprendizado de crianças com as mais
diversas deficiências, entre elas, motoras, visuais e auditivas. Observando e pesquisando
atentamente sobre como ocorria a aprendizagem das crianças na “Casa dei Bambini”, começa
utilizando objetos coloridos, brilhantes, de fácil manipulação e resistentes para atividades de
quantificação. Chega assim à invenção do Material Dourado, dessa maneira chamado porque
no princípio era confeccionado com macarrões pintados de dourado (POLLARD, 1993).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
20
Um dos objetivos desse material é facilitar a compreensão do Sistema de Numeração
Decimal, cujos princípios fundamentais são a base 10 e o valor posicional. Uma das
características essenciais dessa tecnologia é a versatilidade, já que, além do sistema de
numeração decimal, favorece a construção de inúmeros conceitos e operações matemáticas,
como: adição, subtração, multiplicação, divisão, potenciação, perímetros, áreas, volumes e
números racionais, dentre estes, a porcentagem.
No caso das adições e subtrações, o que há de mais substancial a ressaltar é a
facilidade do entendimento dessas operações com reservas. O trabalho deve ser iniciado com
subtrações simples, sem reservas, isto é, com números cuja junção de suas unidades seja
inferior a 10, ou que a junção das dezenas seja inferior a 100, e assim por diante.
•
Solicite à criança que, com as peças do material dourado, some 35 com 24, registrando
a operação no caderno com desenhos, se assim o desejar, e posteriormente, com a
simbologia matemática.
•
Depois solicite que realize a operação inversa, isto é, subtraindo do resultado da
adição anterior, uma de suas parcelas.
Neste processo de abstração, é fundamental que a cada operação proposta pelo
professor, e realizada pela criança, seja imediatamente registrada para dar início à
formalização.
Nas adições e subtrações com reservas, a criança entrará em contato, de forma mais
aprofundada, com o princípio da “troca”, noção subjacente às normas do sistema de
numeração decimal, ou seja, a base 10 e o valor posicional.
•
Proponha por exemplo a adição de 28 com 12, com o uso do material dourado, para a
compreensão da troca, ou valor posicional na base 10.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
21
Como visto na foto, as unidades foram trocadas pela barrinha de uma dezena,
simbolizando o que os professores tradicionalmente e erroneamente ensinam e chamam de
“vai um”. Dando seqüência à problematização anterior:
•
Solicite a realização das operações inversas, isto é, que do resultado 40, sejam
retiradas 12 unidades, em um primeiro momento, e 28 unidades em um segundo
momento.
Fotos: Beatriz Bukowitz
Este problema pode e deve ser proposto de formas variadas, para que a noção de
subtração possa ser adquirida não apenas como resto, mas também como diferença entre 2
quantidades, ou como excesso de uma quantidade maior sobre uma quantidade menor. A
compreensão dessas três noções é essencial para que a criança domine de forma significativa,
e não apenas mecanicamente, a técnica operatória da divisão, que também pode ser vista
como uma sucessão de subtrações, como aconteceu na oficina da divisão com tampinhas.
Para finalizar, cumpre ressaltar que o uso da calculadora, além de permitido, deve ser
estimulado pelo professor, tão logo os alunos tenham construído os conceitos fundamentais
necessários à aquisição das técnicas operatórias. Defende-se, portanto, que a sala de aula de
matemática não se restrinja à “calculeira”. A aula de matemática é lugar para desenvolver o
pensamento numérico e o cálculo mental na resolução de problemas. As inovações
tecnológicas se prestam então para que o tempo dedicado à repetição de cálculos inúteis seja
economizado e substituído por estratégias didáticas diversificadas, no sentido de estimular o
raciocínio lógico, como aqui sugerido.
REFERÊNCIAS
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_____. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
22
BUKOWITZ, Natercia de Souza Lima. Práticas Investigativas em Matemática: uma proposta de
trabalho no Curso de Pedagogia. Rio de Janeiro, 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Pós
Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
CANDAU, Vera Maria. Formação continuada de professores: tendências atuais. In: _____. (Org.).
Magistério: construção cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1996.
CARVALHO, Dione Lucchesi de. Metodologia do ensino da matemática. São Paulo: Cortez,
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CHADWICK, Clifton B.; ROJAS, Alicia Mabel. Tecnologia educacional e desenvolvimento
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GHIRALDELLI Jr., Paulo. O que é pedagogia. São Paulo: Brasiliense, 2004.
KAMII, Constance e HOUSMAN, Leslie. Crianças pequenas reinventam a aritmética.
Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
LIMA, Lauro de Oliveira. Piaget: sugestões aos educadores. Petrópolis, RJ: Vozes. 1998.
LACERDA, Gilberto. Algumas considerações sobre a tecnologia educativa. Tecnologia
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Quebec, Université Laval, Départament de Technologie de L’enseignement. 1989.
LINS, Letícia. Luta perdida contra a reprovação. O Globo. Recife, 03/06/2004. Primeiro
caderno, p. 18.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.
POLLARD, Michael. Personagens que mudaram o mundo – os grandes humanistas –
Maria Montessori. Rio de Janeiro: Globo, 1993.
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SKINNER, Burrhus Frederic. The science of learning and the art of teaching. In: Harvard
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STRUCHINER, Miriam et. al. Elementos fundamentais para o desenvolvimento de ambientes
construtivistas de aprendizagem a distância. Tecnologia educacional. V. 26 (142)
jul./ago./set. 1998.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
23
INGÜÍSTICA
ITERATURA
A
ÍSTICA E LITERATUR
LINGÜ
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
24
b
Tempo (cronos) e os tempos verbais
Dulce Helena Pontes Ribeiro7
____________________________________________________________________Resumo
Este estudo é uma interpretação semântica dos tempos verbais, restritos ao modo indicativo, com foco
na situação do presente. Faz-se uma reflexão sobre a filosofia existencial, fundamentando-se em
Santo Agostinho (1999) para se chegar ao lingüístico. Retoma-se Reichenbach (1947), interpretado
por Corôa (2000), nos três momentos: o da fala (MF) – correspondente ao acontecimento discursivo;
o do evento (ME) – quando ocorre o evento, tempo da predicação; e o da referência (MR) – momento
dos acontecimentos naturais ou históricos, o chamado tempo do relógio. Comparam-se esses pontos
com a abordagem tripartida (presente/ passado/ futuro) encontrada nas gramáticas e com a distinção
binária (tempo do comentário/ tempo da narração), no dizer de Weinrich (1964), à luz de Koch
(2000), ou tempo da história/ tempo do discurso, para Benveniste (1989), ou ainda, segundo a
terminologia de Fiorin (1996), sistema enunciativo/ sistema enuncivo. Conclui-se que a falta de
correspondência biunívoca entre necessidade semântica e solução gramatical gera uma intrincada
polissemia das formas verbais, ou o seu contrário: uma só forma verbal representando diversas
situações comunicativas. Discute-se também a inexistência do presente, já que é fluxo ininterrupto.
Refletir sobre os tempos verbais é uma das vias de redirecionamento de análises e interpretações de
textos, até mesmo de se reavaliar a própria tipologia do discurso.
Palavras-chave: verbo; presente/ não-presente; agora/ antes/ depois.
___________________________________________________________________________
1 Introdução
O homem é um ser de linguagem. Agindo nela e por ela, constitui-se como sujeito na
ação do discurso, o qual ocorre em determinado tempo e espaço e se forma na prática social e
histórica. Para expressar-se, tornando-se mais competente na persuasão de seu interlocutor,
esse homem enunciador recorre a tempos verbais e a verbos modais que melhor se engajam
em seu discurso, resultando em maior expressão de transparência.
Pondera-se que o tempo, antes de ser uma preocupação dos estudiosos da língua, já o
era dos lógicos e filósofos das idades antiga e média. Entendê-lo sempre foi (e ainda é)
interesse dos homens. Para Fiorin (1996, p. 127), “[...] pensá-lo significa ocupar-se da
fugacidade e da efemeridade da vida e da inexorabilidade da morte”.
Para compreender a natureza, um dos renomáveis gênios da história, Galileu Galilei,
preocupou-se em medir e utilizar o tempo. Mais tarde, um dos pilares da física clássica, Isaac
Newton, mostrou que o tempo passa como um rio que flui uniforme e sempre em caráter
prospectivo, independente do ponto de vista. Inclusive, “[...] a fatalidade da morte mostra a
irreversibilidade do tempo”. (VERNANT, 1973, p. 89-90, apud FIORIN, 1996, p. 128).
Com o século XX, o conceito de tempo, em especial na física, sofre uma brusca
transformação. Albert Einstein sustentou a idéia da indissolubilidade entre tempo e espaço, na
formação de uma unidade.
7
Doutoranda em Língua Portuguesa. Mestre em Educação. Pós-graduada em Língua Portuguesa. Graduada em
Letras. Professora universitária de Metodologia da Pesquisa, Língua Portuguesa e Literatura Infanto-Juvenil.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
25
Retomando, entretanto, o último século da Antigüidade, é Santo Agostinho (1999)
quem faz uma reflexão psicológica de tempo, fonte na qual os gramáticos vão beber para
construir as definições dos tempos verbais – tema deste estudo, com maior destaque para o
presente.
2 O que é o tempo?
Em busca da gênese do conceito de tempo, Lyons (1979, p. 320) presta valoroso
esclarecimento:
O termo gramatical “tempo” deriva-se do lat. tempus, que é a tradução do gr.
Khrónos. A categoria do tempo diz respeito às relações temporais na medida
em que estas são expressas por contrastes gramaticais sistemáticos. Três
contrastes dessa natureza foram conhecidos pelos gramáticos tradicionais na
análise do grego e do latim: “passado”, “presente” e “futuro”. Supõe-se
freqüentemente que a posição tripartida seja um traço universal da
linguagem. Isso é inexato. Na realidade, o “tempo” se encontra em todas as
línguas e, como veremos, a oposição de “passado”, “presente” e “futuro” não
é simplesmente uma questão de tempo, mesmo no grego e no latim. A
característica essencial da categoria de tempo é que ela relaciona o tempo da
ação, do acontecimento ou estado referido na frase ao momento do
enunciado, que é “agora”. O tempo gramatical é, pois, uma categoria dêitica,
é simultaneamente uma propriedade da frase e do enunciado. Muitas análises
do tempo gramatical são viciadas pela hipótese de que a divisão “natural” do
tempo em “passado”, “presente” e “futuro” se reflete necessariamente na
língua.
Embora a noção de tempo permeie, de modo geral, o vocabulário nas línguas indoeuropéias, é no sistema verbal que essa noção aparece fortemente impregnada, e o verbo pode,
ainda, reter em si outros matizes não-temporais. Aliás, há línguas em que o verbo realmente
não incorpora a noção de tempo. Nas línguas românicas, todavia, as desinências de modo e de
tempo são capazes de situar os interlocutores, são categorias dêiticas. Entretanto não é só o
verbo, em português, que dá informação de tempo. Há outras classes como advérbio, adjetivo,
conjunção, numeral que também podem fazê-lo.
Dessa forma, para responder ao questionamento – Quando aconteceu? Agora?
Ontem? Há muito tempo? –, uma interpretação meramente temporal não basta. Há de se
considerar aspecto e distinção entre descrição estrutural e descrição comportamental do
mundo – contribuições imprescindíveis para melhor entender os tempora8 nos verbos.
Sobre o conceito de perspectiva da comunicação, Weinrich (1964 apud KOCH, 2000,
p. 40) assim se expressa:
Não creio que os tempos – na perspectiva comunicativa – sejam formas mais
temporais (de Tempo) que em suas outras características. Ao dizer que os
tempos da linguagem nada têm a ver com o Tempo, isso não quer significar
que os tempos neguem o fenômeno extralingüístico do Tempo, e inclusive o
próprio discurso é um desses processos. Esse tempo físico, mensurável, já
está pressuposto na linguagem ao mesmo tempo que o mundo real. É a coisa
que não tem nada de particular; afinal, a palavra “hora” também pressupõe
8
Tempus (s.), tempora (pl.) – termos empregados aqui para a expressão gramatical de tempo, estabelecendo,
assim, a distinção do tempo, que é o tempo presente na consciência do homem.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
26
Tempo. Da mesma maneira, também as perspectivas de retrospecção e de
prospecção, em alguns tempos, pressupõem Tempo.
Weinrich (1964), interpretado por Koch (2000, p. 37), constatou que as marcas dos
tempos verbais em francês são redundantes. Tais tempora não têm vinculação com o tempo
(cronos); são distribuídos em dois grupos:
1º) indicativo – presente, pretérito perfeito composto, futuro do presente composto e
locuções verbais com esses tempos;
2º) indicativo – pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito, pretérito mais-queperfeito, futuro do pretérito e locuções verbais com esses tempos.
As situações verbais comunicativas também se vinculam a dois grupos, conforme os
grupos temporais:
a) Mundo comentado – a ele “pertencem a lírica, o drama, o ensaio, o diálogo, o
comentário”; estabelece-se uma atitude tensa, tornando o discurso dramático. É o falante
comprometido. Nas palavras de Weinrich (1964), “Comentar é falar comprometidamente”. O
comentário afeta o ouvinte exigindo dele uma reação. São empregados tempos do 1º grupo.
b) Mundo narrado – pertencem os relatos; estabelece-se entre os interlocutores uma
atitude mais relaxada. São empregados tempos do 2º grupo. O destinatário é simples ouvinte.
Pode-se passar do mundo narrado ao mundo do comentário e vice-versa, no entanto
isso não se concretiza bruscamente. Quando se introduz tempo do mundo narrado no mundo
comentado ou vice-versa, ocorre uma metáfora temporal, que consiste em comentar como se
estivesse narrando ou narrar como se estivesse comentando.
Em geral, os gramáticos definem verbo sob o viés semântico, reconhecendo nele uma
dinamicidade que contrasta à estaticidade dos nomes e de outras categorias. Essa posição é,
contudo, falha, pois há substantivos deverbais (o mergulho, por exemplo) muito mais
dinâmicos do que certos verbos, tais como os chamados verbos de ligação (ser, estar,
permanecer...).
A título de ponderação, a seguir serão apresentados três conceitos de verbo.
O verbo expressa um fato, um acontecimento: o que se passa com os seres,
ou em torno dos seres. É a parte da oração mais rica em variações de forma
ou acidentes gramaticais. Estes acidentes gramaticais fazem com que ele
mude de forma para exprimir cinco idéias: modo, tempo, número, pessoa e
voz. (ROCHA LIMA, 1999, p. 122).
Verbo é uma palavra de forma variável que exprime o que se passa, isto é,
um acontecimento representado no tempo. (CUNHA; CINTRA, 1985, p.
366).
Verbo é a criação lingüística destinada a expressar a noção predicativa.
Denota ação ou estado e nas línguas do grupo ariano possui sufixos próprios,
com que se distingue a pessoa do discurso e o respectivo número (singular
ou plural; em alguns idiomas até o dual), o tempo (atual, vindouro ou
pretérito) e modo da ação (real, possível, etc.). (SAID ALI, 2001, p. 101).
Como se percebe, “[...] a gramática tradicional aprisiona os verbos portugueses em
compartimentos estanques e impróprios demais para captar toda a sua significação: os
paradigmas verbais.” (CORÔA, 2005, p. 17).
Para Santos (1974, p.56), verbo é “[...] uma significação em trânsito por determinadas
categorias: voz, modo, tempo, aspecto, pessoa e número caracterizam o verbo como um todo,
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
27
pois individualmente podem ocorrer fora dele. [...] Oposições modais e temporais também se
encontram nos nomes”.
As interpretações temporais sugeridas pela gramática prescritiva são insuficientes para
estabelecer distinção entre verbo e nome, haja vista que as categorias tempo, modo, número e
pessoa presentes no verbo podem existir, mas separadamente nos nomes, nos advérbios, entre
outras, contudo somente nos verbos tais categorias aparecem simultaneamente: tempo/modo,
número/pessoa, voz, aspecto. De qualquer forma, é inegável que a definição de verbo (palavra
em trânsito) está relacionada à noção de tempo, a qual se entrelaça à de aspecto com
considerável freqüência.
Pelo fato de certos nomes até expressarem ação ou estado, as definições supracitadas
tornam-se alvo das críticas de Santos (1974). Para ele o verbo não pode ser definido apenas
pelo seu significado nem só pelo seu significante, mas pelo seu signo como um todo, “[...] em
função de um relacionamento entre seu significante e significado [...]”.
Reichenbach (1947 apud CORÔA, 2005, p. 19-20) foi quem primeiro formalizou
“uma interpretação temporal das línguas naturais”, apontando três pontos teóricos na linha do
tempo: momento da fala (MF), momento do evento (ME) e momento da referência (MR). É a
partir de Reichenbach, portanto, que se têm analisado os tempos verbais em torno do MF,
ME, MR.
Relevante se faz entender que uma interpretação temporal pode ser adequada para uma
determinada língua e não ser para outra, isso porque não há sob esse ponto uma verdade
universal.
No português, por exemplo, que correspondência há entre o conceito de tempo e sua
expressão gramatical? Mais importante que a idéia de tempo na categoria verbal é a categoria
dêitica, uma vez que o verbo relaciona o tempo em que ocorre o evento ao tempo da
enunciação, havendo, pois, uma relação de dependência do verbo para com o sujeito
enunciador.
Santos (1974) postula que a noção de tempo, dependendo do percurso interpretativo
tomado, pode ser orientada para três domínios:
a) cronológico: irreversível, desloca-se de um ponto a outro incessantemente;
b) psicológico: não é linear, é proveniente do interior do sujeito, podendo seguir
adiante (depressa ou devagar), parar e até retroceder;
c) gramatical: expressão formal (radical + morfemas típicos).
Quando se fala de tempo como a mais especial categoria do verbo, pensa-se em termos
de categorias cronológicas (presente/ passado/ futuro). Para os lingüistas (estruturalistas e
seguidores, pelo menos), não há uma correlação necessária entre as categorias cronológicas de
presente, passado e futuro e as categorias gramaticais.
John Lyons (1979) insiste nesse ponto de vista. Salienta que, dependendo da língua, a
divisão deve ser entre duas grandes proporções: a idéia de presente/ não-presente, ou então de
passado/ não-passado (uma oposição binária). Assim, John Lyons é ainda um lingüista adepto
do enfoque binário, característico do estruturalismo.
Em Bechara (2000, p. 221), os tempos do verbo são estes:
a) Presente – em referência a fatos que se passam ou se estendem ao
momento em que falamos: eu canto;
b) Pretérito – em referência a fatos anteriores ao momento em que falamos e
subdividido em imperfeito, pretérito-mais-que-perfeito: cantava (imperfeito),
cantei (perfeito) e cantara (mais-que-perfeito);
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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c) Futuro – em referência a fatos ainda não realizados, subdividido em futuro
do presente e futuro do pretérito: cantarei (futuro do presente) e cantaria
(futuro do pretérito).
Como em Bechara, a abordagem tripartida (presente/ passado/ futuro) nas gramáticas
escolares é voz de consenso entre os gramáticos. O presente é conceituado como tempo atual,
que coexiste com o momento da enunciação, o agora; o passado, como aquilo que precede ao
enunciado; o futuro, como o que se segue ao momento da enunciação.
Harald Weinrich (1964) faz uma distinção binária, não em termos da própria estrutura
do tempo, mas da sua espécie de discurso: distingue o tempo do comentário do tempo da
narração. Nessa mesma linha de raciocínio, Benveniste (1989) fala em tempo da história e
tempo do discurso.
Fiorin (1996), utilizando uma terminologia da lingüística do texto, distingue o sistema
enunciativo e o enuncivo. O enunciativo tem obviamente no aqui e agora da enunciação o seu
eixo, e o enuncivo, tudo o que é permitido para o momento que não é o aqui e agora da
enunciação. “Como o agora é um tempo em que um eu toma a palavra, a organização
lingüística do tempo, como a das demais categorias da enunciação, é [...] egocêntrica. [...] O
agora do enunciador é o agora do enunciatário.”. (FIORIN, 1996, p. 143). Trata-se, pois, da
distinção entre o tempo do comentário (sistema enunciativo) e o tempo da narração (sistema
enuncivo).
Já Benveniste (1989) utiliza as terminologias tempo da história (sistema enuncivo) e
tempo do discurso (sistema enunciativo). A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB)
atentava para essa distinção. Afinal, o que é futuro do pretérito? O que é futuro do presente?
De certo modo, as nomenclaturas “futuro do pretérito” e “futuro do presente” mostram que
são precisos dois eixos: de um lado, um sistema que gira em torno do presente: presente do
indicativo, futuro do presente, pretérito perfeito (como se fosse o da enunciação); de outro
lado, o sistema do passado: pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito, futuro do
pretérito (o tempo da história). São, pois, dois subsistemas bem definidos.
No livro As marcas lingüísticas da enunciação histórica, de Milton José Pinto (1994),
por exemplo, aparecem três sistemas: experiencial (da experiência, enunciativo, do tempo
presente), narrativo (tempo da história, passado, do mundo narrado) e do relato (é o que
envolve as três espécies de discurso: direto, indireto e indireto livre, mais especificamente o
indireto). Este último sistema provém de quando eu relato, eu trago o discurso de outra pessoa
para o meu. Dou a conhecer ao meu interlocutor o discurso de outra pessoa através do meu.
Existem, pois, referências importantes entre o tempo do comentário (encontrado nos
editoriais dos jornais e nos artigos científicos, em que o tempo presente é o eixo básico da
constituição do discurso) e o tempo narrado, como o encontrado nas obras de ficção (Vidas
secas, nas fábulas, nas lendas, nas narrativas tradicionais). São raros os casos em que a
narrativa se desenvolve no presente, sobretudo a narrativa escrita, ou, então, narrativa na 2ª
pessoa, em que há uma interlocução (como, no caso, em Grande sertão: veredas).
Trata-se de um sistema muito complexo, uma vez em que a certeza da existência dos
tempos está muito mais na linguagem do que na estrutura propriamente dita. Daí surge um
vasto elenco de variações. Exemplos: Ele prometeu que virá amanhã / Ele prometeu que viria
amanhã. Há uma diferença de modalidade, isto é, há duas atitudes: um distanciamento e um
envolvimento.
No primeiro exemplo (virá), eu me engajo com esse fato, assumo-o como um
compromisso, com a realização disso. É uma ancoragem no presente. Eu (produtor dessa
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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enunciação) estou no presente e ele, no passado. O personagem da enunciação sou eu. Eu me
coloco como um fiador dessa promessa: ele prometeu e eu afianço o que ele falou. Muda-se aí
o ponto de referência, a ancoragem.
No segundo caso (viria), é só a palavra dele, só um ponto de referência dele; eu como
enunciador não tenho nada com isso. Inclusive, a ancoragem é só no passado. Há um
distanciamento, uma neutralidade do locutor na realização desse fato.
Se na oração principal houver um verbo que exige um subjuntivo, como Ele me pediu
que viesse / Ele me pediu que venha, tem-se o seguinte: no último caso, uma ordem; eu não
sou mais o fiador, já que há uma imposição, portanto sou obrigado a vir. O primeiro exemplo
é mais tênue, não tem o tom de obrigação. O tempo do “viesse” pode ser ontem, hoje ou
amanhã. Há uma flexibilidade. O imperfeito do subjuntivo denota um fato posterior a outro, o
qual é o ato de pedir. Pode ser: Na semana passada ele me pediu que viesse ontem / Na
semana passada ele me pediu que viesse hoje / Na semana passada ele me pediu que viesse
amanhã. Como o tempo pode ser ontem, hoje, amanhã, não há mais compromisso algum. Isso
pode acontecer / ter acontecido ou não.
O pretérito imperfeito do subjuntivo não é pretérito em relação ao momento em que o
fato acontece, mas em relação a seu ponto de ancoragem, que é passado. Ele me pediu que
viesse, e eu não pude (frase gramatical), mas Ele me pediu que venha, e eu não pude (frase
agramatical porque o ato de vir ainda está em aberto). Poderia ser: Ele me pediu que venha, e
eu não posso. No caso, a ancoragem de posso é a mesma de venha. Venha não pode ser
anterior a pediu.
O português é uma língua que distingue o futuro do pretérito do indicativo e do
pretérito imperfeito do subjuntivo. Na verdade, eles não estão em oposição, mas em
distribuição complementar: um não ocorre no contexto do outro. Pediu que viesse / Prometeu
que viria. Prometer é um verbo cujo complemento fica no modo indicativo. Já pedir é um
verbo cujo complemento fica no subjuntivo. Daí a correlação: Se eu pudesse viria (pretérito
imperfeito do subjuntivo + futuro do pretérito do indicativo) / Se eu puder virei (futuro do
subjuntivo + futuro do presente do indicativo, os dois são futuros).
O futuro do pretérito nem sempre remete à noção de futuro, pode ser a hipótese. Por
exemplo, em Quem diria? O que você faria nessa situação?, as formas verbais empregadas
não são de futuro. Segundo os cognitivistas, o futuro do pretérito é um espaço mental, instaura
domínios conceituais, de onde se originam as metáforas (transferência de um domínio
conceitual para outro).
O futuro é um adjetivo derivado de uma das formas do verbo latino esse, que quer
dizer o que há de ser (futurus, antiga forma verbal no latim). A designação presente / passado
/ futuro é pertinente. O passado é o particípio do verbo passar. Presente é a forma que
processa: -nte. Futuro: o que há de ser.
Quando se trata dos tempos dos verbos, está se priorizando os do modo indicativo.
Mas, no futuro do pretérito e mais-que-perfeito, tem-se que introduzir a noção de um ponto de
referência, no entanto as nossas gramáticas não trabalham com isso, ainda que nosso sistema
temporal o trabalhe. O futuro do pretérito e o pretérito mais-que-perfeito têm como ponto de
referência o passado. O primeiro, um momento posterior ao passado; o segundo, um momento
anterior ao passado. Então, o sistema temporal trabalha com um sistema de categorias, com
um ponto de referência, com um momento de enunciação e um momento do acontecimento,
do fato. Nesse momento do fato, temos a idéia da anterioridade, da sobreposição e da
posterioridade.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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O futuro do pretérito não tem ponto de referência em frases como Quem diria?. É aí o
emprego modal do tempo verbal, ou seja, essa forma está sendo usada apenas para projetar
uma situação hipotética, resultando num universo alternativo de raciocínio.
Subjuntivo, imperativo, infinitivo, gerúndio e particípio são considerados por
Weinrich (1964) semitempos, já que não se constituem formas verbais em sua totalidade,
ligam-se a um tempo pleno (indicativo) para lhe determinar a situação comunicativa, uma vez
que tais semitempos não se apresentam isolados, não se sustentam, apóiam-se em formas
completas, isto é, dependem de outras fontes ligadas ao contexto lingüístico.
A idéia de tempo, portanto, não se transmite para as formas de subjuntivo. O que se
chama aí de futuro não é futuro; o que se chama de pretérito imperfeito do subjuntivo não é
necessariamente passado, é um universo alternativo, hipotético, é algo que se afasta não no
tempo, mas em termos de alcance do domínio, do controle, da possibilidade. Em Se eu tivesse
dinheiro não há passado. A diferença entre Se eu tivesse dinheiro e Se eu tiver dinheiro é de
graus, de possibilidades de ter dinheiro. Em Se eu tivesse dinheiro, já estou dizendo de
antemão que não tenho dinheiro, sem possibilidades. Mas, em Se eu tiver dinheiro, há
possibilidades. Em Se eu tivesse dinheiro ontem, é o ontem que está dando a idéia de tempo
passado. Foi preciso a expressão adverbial de tempo para se ter a idéia de passado. Em Se eu
tivesse dinheiro viajava agora, a idéia é de presente, é uma forma de negar a falta de dinheiro.
Com isso, a idéia do tempo da história corresponde à do tempo narrado, e a idéia do
tempo do discurso corresponde à do tempo do comentário. Essa distinção é muito interessante
porque não é estrutural, ela toma como referência os tipos de textos, os focos de organização
do discurso. O discurso da opinião obviamente é o tempo do comentário. Por sua vez, o relato
dos fatos é o tempo da história.
Há o tempo intrínseco (duração do processo) e o tempo do evento (momento em que
ocorre o processo) em relação ao agora do falante/ ouvinte. Por exemplo, entre acordar e
dormir, o tempo intrínseco é menor no primeiro do que no segundo.
O tempo intrínseco, necessário ao desenvolvimento do processo (tempo implicado,
interno, objetivo), é chamado de aspecto, é independente do ato da fala (MF, MR, ME) e
inerente ao desenrolar do evento. Por sua vez, há o tempo da ocorrência do evento (tempo
explicado, externo, subjetivo) que, também chamado tempus, aparece “quando” o processo
ocorre, em relação ao sujeito no momento da enunciação. Falante e ouvinte controlam os
tempora, os quais se comportam como advérbios e pronomes. No verbo, a categoria de tempo
(responsável pela gramaticalização) é a dêitica – o que não se dá com a categoria de aspecto
(não-dêitica).
3 O que é o tempo “presente”, afinal?
Se as coisas só podem existir no presente, como fica a existência delas se o presente
não existe? Esta é, pois, uma questão que não se cala.
Santo Agostinho (1999) salienta que,
Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja suscetível de ser
subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, só a esse
podemos chamar tempo presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao
passado, que não tem nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em
passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço.
Nas gramáticas normativas do português e, curiosamente, nas línguas em geral, o
presente é uma forma não-marcada (sem morfemas de presente), é o não-tempo. A noção do
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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presente é extremamente fugidia e, ao mesmo tempo, é uma idéia óbvia, pois, no momento
mesmo em que eu estou falando do presente, eu estou nele, é o tempo em que me insiro como
falante.
Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o
não posso compreender, sei, todavia, que em qualquer parte onde estiverem,
aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí são
futuras, ainda lá não estão; e, se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão.
Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas
sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os
acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios
acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas
imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no
espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já
não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua
imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no
tempo presente, porque ainda está na minha memória. (SANTO
AGOSTINHO, 1999).
O tempo presente são as minhas circunstâncias, “[...] indica a contemporaneidade
entre o evento narrado e o momento da narração.” (FIORIN, 1996, p.142). Gerado pelo ato de
fala, instaura-se um agora (do enunciador e do enunciatário), reinventado pelo enunciador,
que se organiza num eixo (ordenador do tempo) de concomitância X não-concomitância. E
esta última se articula em anterioridade X posterioridade. A organização lingüística do tempo
fica por conta de um eu, independente do tempo crônico.
Quando, porém, a enunciação e a recepção não são simultâneas, estabelece-se um
ponto de ancoragem (uma data, por exemplo). Os tempos verbais estão dispostos em tempos
enunciativos e tempos enuncivos. Salienta-se que, enquanto o presente é uma abstração do
espírito, uma vez que se compõe de instantes que acabaram de passar e instantes prestes a
acontecer estando desprovido de marcas desinenciais de temporalidade, o pretérito perfeito
apresenta desinências específicas de número e pessoa que, embora sejam DNPs, são
desinências características do tempo pretérito perfeito. Nos verbos irregulares, pode-se,
inclusive, ter uma marca mórfica no radical: saber/ soube, fazer/ fiz. Há neles, portanto,
desinências de número específicas.
Quanto ao futuro, em português, existem as desinências modo-temporais (DMT)
específicas. Elas resultam de uma evolução em que uma parte do infinitivo do verbo e uma
parte do verbo auxiliar se aglutinaram originando essa DMT de futuro. Na língua corrente,
praticamente não usamos o futuro do presente. No caso da língua falada, é mais comum a
utilização do futuro do pretérito do que a de futuro do presente.
Nos atos de comunicação, por seu turno, tempo e espaço são dois elementos
fundamentais da relação do homem com o mundo, como se observa abaixo:
Presente – Tudo que não é passado nem futuro.
Passado – Tudo que não é passado nem futuro.
Futuro – Universo do projeto, promessas, perspectivas.
Coloca-se no presente aquilo que se está deixando de situar no passado e no futuro. É
até possível se dizer o que é passado: é tudo que deixa de ser. E, aquilo que ainda não é é
futuro. Nesse caso, só o passado é concreto. Portanto,
É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas
talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes
três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente
das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente
das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três
tempos e confesso que são três. (SANTO AGOSTINHO, 1999).
Para Santo Agostinho, o que há são três modalidades de presente: a do passado (a
memória), a do presente (o olhar, a visão) e a do futuro (a espera). São três modalidades que
se instalam no espírito e têm sua existência na linguagem, a qual, embora repleta de
impropriedades e imprecisões, “[...] propicia ao homem a experiência temporal, na medida em
que só quando o tempo é semiotizado pode o ser humano apreendê-lo e medi-lo”. (FIORIN,
1996, p. 139).
É na discursivização das ações (na narração: simulacro da ação do homem no mundo)
que a temporalização se manifesta. Melhor dizendo: tudo se presentifica na linguagem. As
categorias da enunciação surgem ao serem enunciadas. É enunciando que o homem cria
tempos, espaços, pessoas. O tempo é, pois, uma categoria da linguagem que se manifesta
diferentemente em cada língua, portanto situar um acontecimento no tempo (cronos) é
diferente de inseri-lo no tempo da língua (organicamente ligado ao exercício da fala).
O tempo presente pode designar: o próprio presente; um hábito; ações atemporais;
coisas passadas; coisas futuras. Para Weinrich (1964), citado por Koch (2000, p. 39), a forma
verbal presente não tem nada a ver com o Tempo: “[...] ela constitui, justamente, o tempo
principal do mundo comentado, designando uma atitude comunicativa de engajamento, de
compromisso”.
Ao narrar uma história, é comum se utilizar o pretérito imperfeito ou perfeito simples,
entretanto se utiliza o presente (junto ou não de outros tempos do 1º grupo9) para se fazer o
resumo, o qual pode servir de base para a crítica, para o comentário da obra ou para facilitar
ao leitor de fazê-lo. O resumo constitui-se numa situação do mundo do comentário, como é o
caso também das manchetes de jornais. É, pois, a partir dos resumos e das manchetes que
vêm, de fato, os comentários. O presente constitui o tempo zero (sem perspectiva) do mundo
comentado; o imperfeito e o perfeito simples constituem os tempos zero do mundo narrado.
O presente não está sujeito à temporalidade, é abstrato. Enunciamos as verdades
científicas no presente porque são atemporais (A terra gira em torno do Sol). O passado são
os fatos; para ser passado tem que ser fato. O presente não tem que ser fato, pode até ser. Em
A manga é a melhor fruta tropical, o falante enuncia uma opinião sobre algo. Neste exemplo
e no anterior, o enunciador não situa tais proposições na linha do tempo; na verdade, ele
simplesmente enuncia algo de modo genérico.
Em Ele vive com os pais e O presidente toma posse na próxima semana, o presente é
um fato não concluído. Já o presente histórico é fato, é um processo que ocorre antes do MF.
Exemplo: Em 1888, a princesa Isabel assina a Lei Áurea. Nesse caso, foi uma ação pontual,
mas poderia não o ser, como em E assim aconteceu: o menino entra sorrateiramente no
quarto dos pais e os flagra num beijo ardente. Em ambos os casos o passado foi
presentificado.
“A noção de presente como tempo gramatical não pode, portanto, ser definida
[simplesmente] como ‘momento em que se fala’.” (AZEREDO, 2000a, p. 127). Também se
usa o presente para expressar ações pontuais e simultâneas ao MF: Vejo bem na minha frente
9
Relembrando os tempos do 1o grupo: presente, pretérito perfeito composto, futuro do presente composto e
locuções verbais com esses tempos.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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uma bela tela de Portinari. Usa-se com freqüência o presente em ação contínua ou periódica:
Ele estuda matemática todos os dias. Ações prestes a acontecer (futuro breve) costumam ser
expressas no presente: Daqui a pouco vou ao médico.
A idéia de presente não existe nitidamente, já que é fluxo o tempo todo. Os
gramáticos, contudo, induzem “[...] o aluno a identificar os conceitos de presente, passado e
futuro com as noções de tempo cronológico [...]”. É um agora, um antes e um depois –
posição esta refutada pelos lingüistas, para quem tal noção é “[...] uma complexa rede de atos
de significação que têm no eu, no aqui, e no agora do discurso seus pontos de referência”.
(AZEREDO, 2000b, p. 203). Como tudo se relaciona segundo o ponto de vista do falante,
para Lyons (CORÔA, 2005, p. 43), a enunciação canônica é egocêntrica, o que Fiorin (1996)
também corrobora.
4 Conclusão
Enquanto o presente não traz em si (nem mesmo no latim) marca morfológica, o nãopresente manifesta-se com marca: se for morfológica é passado, se for locucional (sintática) é
futuro. Como forma não-marcada no tempo, o presente é o não-tempo, só se caracteriza
negativamente: não-passado e não-futuro. Por isso, a idéia de presente não existe, é fluxo
ininterrupto.
Hoje é o instante absoluto em que se vive, em que se é, em que os acontecimentos são
passíveis de enunciação pela língua que lhes dá sentido. Afinal, as categorias estão muito
presentes na maneira como se percebe o mundo, razão pela qual, mesmo que existam tempos
verbais relativos ao passado e ao futuro, tais formas verbais não são capazes de precisar o
tempo em que ocorreu cada ação. Só se tem essa precisão no contexto, pela utilização de
advérbios/ locuções adverbiais e outras categorias. E, nessa contextualização, o ontem e o
amanhã se tornam, respectivamente, memória e esperança, presentificadas na força do aqui e
do agora, tomados como ponto de referência pelo falante.
Há, pois, um grande descompasso entre forma e sentido no que diz respeito às flexões
do verbo e dos respectivos tempos. Temos, inclusive, casos de polissemia das formas
gramaticais (do pretérito imperfeito, do futuro do subjuntivo e, sobretudo, do presente). Não
raro, as formas são limitadas, devido a um sistema (econômico) com poucas ferramentas para
infinitas ocasiões de uso. Aliás, entre necessidade semântica e solução gramatical inexiste
uma relação de exata correspondência. Adverte-se que, mesmo nesse sistema econômico, há
várias soluções gramaticais para uma só necessidade; ora uma única solução atende a várias
necessidades.
Pelas considerações expressas neste estudo, depreende-se que refletir sobre os tempos
verbais poderá, com certeza, redirecionar análises e interpretações de textos, incorporando até
a própria tipologia do discurso.
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BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Revistada e ampliada. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2000.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
34
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et alli.
Campinas, SP: Pontes, 1989.
CORÔA, Maria Luiza Medeiros Sales. O tempo nos verbos do português: uma introdução à
sua interpretação semântica. São Paulo: Parábola: 2000.
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Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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Rosa Virgínia Mattos e Silva e Hélio Pimentel. São Paulo: Nacional, 1979, p. 285-352.
PINTO, Milton José. As marcas lingüísticas da enunciação: esboço de uma gramática
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ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro:
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SAID ALI, M. Gramática histórica da língua portuguesa. 8. ed. Revistada e atualizada por
Mário Eduardo Viaro. São Paulo: Melhoramentos, 2001.
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http://www.paratexto.com.br/files/0003/TEMPOAGOSTINHO_03.doc. Acesso em fev. 2007.
SANTOS, A. J. O tempo e o aspecto verbal no indicativo em português. In: Littera, n.10,
1974, p.55-74.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
35
b
Ensino de Língua Portuguesa e as concepções de Linguagem
Eliana Crispim França Luquetti*
____________________________________________________________________Resumo
O artigo discute a relação entre o ensino de Língua Portuguesa e as concepções de linguagem. Nesse
sentido, a motivação para a discussão apresentada surge com a observação da prática na sala de
aula de Língua, que muitas das vezes não reflete o verdadeiro exercício e aquisição do conhecimento
da língua.
Palavras-chave: Língua, Linguagem, Ensino, Gramática Tradicional, Lingüística
___________________________________________________________________________________
1 Introdução
O presente artigo tem como objetivo discutir a relação entre o ensino de Língua
portuguesa e as concepções de linguagem, visando promover uma reflexão sobre esta relação
que tanto inquieta os estudiosos da língua. Além disso, repensar as estratégias pedagógicas
utilizadas na viabilização do ensino-aprendizagem de língua.
2 Relação entre as concepções de linguagem e o ensino de língua portuguesa
Segundo essa concepção de linguagem, a Gramática Tradicional ou Normativa se
constitui no núcleo dessa visão mais conservadora do ensino da língua, pois vê nessa
gramática uma perspectiva de normatização da língua, tomando como modelo de norma culta
as obras dos nossos grandes escritores clássicos. Portanto, nessa corrente do pensamento
lingüístico, saber gramática, teoria gramatical, é a garantia de se chegar ao domínio da língua
oral e escrita.
Outra concepção corrente no ensino da língua é a que considera a linguagem como
instrumento de comunicação. A língua - como diz Luiz Carlos Travaglia(2003, p.31) - "é vista
como um código, ou seja, um conjunto de signos que se combinam segundo regras e que é
capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um receptor". Francis
Vanoye (1981), em Usos da Linguagem: Problemas e Técnicas na Produção Oral e Escrita,
por exemplo, explora a teoria da comunicação no ensino de redação segundo as funções da
linguagem: emotiva, apelativa, referencial, poética, metalingüística e fática.
Sob a influência da Lingüística Estrutural (de Saussure e Jakobson, entre outros), essa
concepção de linguagem vê no trabalho com as estruturas lingüísticas - separada do homem
no seu contexto social - a possibilidade de desenvolver a expressão oral e escrita. Portanto,
para os estruturalistas, saber a língua é, sobretudo, dominar o código. Ainda dentro dessa
concepção de linguagem, pode-se incluir o transformalismo (de Chomsky e seus seguidores)
que se preocupa com as formas abstratas da língua. Devido a essa vertente do estruturalismo
americano não ter, entre suas preocupações, explicar como o falante aplica sua competência
lingüística em situações concretas de fala e escrita, poucas conseqüências trouxe para o
ensino de Português.
A terceira concepção considera a linguagem como processo de interação. Essa
perspectiva interacionista tem suas origens na abordagem pragmática dos estudos lingüísticos:
*
Doutora em Lingüística pela UFRJ-RJ.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
36
há preocupação com os usos da linguagem, ou seja, o que se faz com ela, em que
circunstâncias e com que finalidades. Segundo essa concepção, o indivíduo emprega a
linguagem não só para expressar o pensamento ou para transmitir conhecimentos, mas
também para agir, atuar sobre o outro e sobre o mundo.
Segundo Elisiani Vitória Tiepolo (2003,p.35): "Perceber a natureza social da
linguagem, enquanto produto de uma necessidade histórica do homem"(...) leva-nos à
compreensão do seu caráter dialógico, interacional". E, considerando o componente
pragmático, essa concepção de linguagem privilegia o estudo da literatura, da leitura e da
produção de texto, uma vez que são explicitadas as condições de produção e recepção de
textos de autores e leitores históricos. As modernas correntes e teorias sobre o estudo da
língua, como a Lingüística Textual, a Análise do Discurso, a Semântica Argumentativa e a
Pragmática, podem oferecer grandes contribuições para o ensino de língua portuguesa,
segundo essa abordagem dialógica/interacional.
Essas concepções de linguagem estão filiadas a correntes filosóficas mais abrangentes
no âmbito educacional. O ensino de Português - segundo a visão de linguagem como
representação do mundo e reprodução do pensamento - está relacionada à Escola Tradicional.
A partir da Reforma do Ensino, com a Lei 5.692/71, que implantou a Escola Tecnicista, de
cunho positivista, preponderaram a influência do estruturalismo lingüístico e a concepção de
linguagem como instrumento de comunicação. No entanto, o exame do material didático e das
práticas do ensino da língua, a partir dessas duas tendências educacionais, tem demonstrado
que não se conseguiu superar um ecletismo pedagógico no ensino de Português. Com a nova
LDB, Lei 9.394/96, que prega a formação do aluno para viver em sociedade, enfatizam-se os
métodos interacionistas de ensino da língua, em que a linguagem é vista como forma de ação
sobre o outro e sobre o mundo.
3 Uma outra perspectiva de ensino de língua portuguesa
Uma outra perspectiva em relação ao ensino de língua portuguesa, ou ainda, há uma
preocupação cada vez mais acentuada com leitura e escrita, decorrente de uma visão mais
crítica e seletiva da gramática normativa, cujo estudo, há algum tempo, dominava as aulas de
Português, como já vimos anteriormente. O estudo mais sistemático dos diversos níveis
sociolingüísticos e a aceitação do princípio segundo o qual se deve respeitar a língua que o
aluno já domina e que traz para a escola, além de eliminar preconceitos de natureza
lingüística, fato bastante positivo, têm obrigado o professor a refletir mais profundamente
sobre o caráter dinâmico da língua e sobre a realidade lingüística regional da realidade em que
atua. Outra tendência que parece firmar-se cada vez mais é a eleição de um lugar privilegiado
para o trabalho interdisciplinar, o que provoca um redimensionamento de toda a grade
currricular da escola em nome de um projeto maior e com objetivos mais amplos e claros.
Finalmente, para ficar em apenas três fatos, a ampliação do conceito de linguagem: hoje, nas
aulas de Português, estudam-se muitos tipos de linguagem, não só a verbal (língua),
incorporando-se temas tratados na linguagem dos quadrinhos, do cartum, do cinema, da
televisão.
A amplitude do universo de informações disponíveis hoje é de uma vastidão
assustadora e cresce com uma velocidade tão surpreendente que a competência mais
importante do indivíduo que busca informação é saber como fazê-lo e como selecionar o que
lhe interessa. Se o professor conseguir levar o aluno a adquirir essas competências básicas
(busca e seleção), metade do caminho terá sido percorrida.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Como última observação, mas não menos importante, já é tempo de a escola assumir
seriamente que capacitar o aluno para bem ESCREVER e LER não é tarefa exclusiva do
professor de Português, mas envolve todas as disciplinas, tem de fazer parte de todos os
planejamentos e deve ser prioridade no projeto pedagógico da escola.
4 Conclusão
Abordadas essas concepções e feitas essas observações, pode-se concluir que o
desenvolvimento do domínio da língua oral e escrita depende, dentre outros fatores, da lógica,
do bom-senso, dos conhecimentos lingüístico, referencial e do mundo, para o qual podem
concorrer as contribuições dessas diversas vertentes do ensino de Português. Nesse sentido, é
importante que se evite ser - como diz Moita Lopes (2001) - um professor dogmático, adepto
de certos modismos de como ensinar a língua, em favor de um envolvimento maior na
reflexão crítica sobre o seu próprio trabalho
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VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita.
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
38
`
odo de Comunicação Gramaticalizado e Aquisição de L2:
associações
Roberto de Freitas Junior (UFRJ)
Maria Maura da Conceição Cezario (UFRJ)
____________________________________________________________________Resumo
O artigo discute a relação entre modos de comunicação, com base na concepção da lingüística
funcionalista, e aquisição de L2. A motivação para a pesquisa apresentada surge com a percepção do
uso da ordem VS no discurso narrativo escrito de alunos brasileiros aprendizes de inglês como L2
(EL2), língua que restringe a posposição do sujeito, ao menos nos contextos observados. Tentou-se
verificar se este fenômeno sinalizaria transferência de uso da língua materna (L1) para a língua alvo
(L2). A hipótese da pesquisa foi a de que o uso desta estrutura nas narrações inglesas seguiria a
mesma motivação discursiva que explica seu uso na língua portuguesa, confirmando a hipótese
funcional apresentada em Naro e Votre (1999), com base em Hopper & Thompson (1981). Associada
a esta hipótese, está a de Givón (1979), que abarca fenômenos de estruturas lingüísticas em L2, a partir
de motivações comunicativas da L1, em especial em estágios iniciais de aquisição com sua diminuição
em estágios mais avançados de uso da língua, em outras palavras, a de que há, no processo de
transferência L1-L2, questões acima do nível sintático-estrutural.
Palavras-chave: Funcionalismo. Planos discursivos. Modo pragmático e sintático. Aquisição de L2.
___________________________________________________________________________________
1) Introdução
O artigo discutirá o uso da ordem Verbo-Sujeito (VS) em inglês como L2, com base na
distinção entre modo de comunicação pragmático e modo de comunicação sintático da
lingüística funcionalista americana e com base nas pesquisas de Votre e Naro com relação ao
uso da ordem VS em português.
A abordagem funcionalista estuda a estrutura gramatical inserida na situação real de
comunicação, considerando o objetivo da interação, os participantes e o contexto discursivo.
Procura, nesses elementos, a motivação para os fenômenos investigados. Segundo essa linha
de estudo,
cada porção do comportamento lingüístico tem um propósito comunicativo
específico que o ativa; [...] a forma é determinada por sua adequação para
expressar esse propósito no interior da organização pragmática geral da
comunicação” (NARO & VOTRE, 1986, p. 454).
Essa citação refere-se ao princípio universal da iconicidade, segundo o qual a forma
lingüística tende a ser motivada pela função. Isto não quer dizer que não haja arbitrariedade
lingüística, mas que o usuário molda o seu discurso de acordo com os seus propósitos
comunicativos, o que pode explicar desvios de uso de estruturas no discurso de L2.
Para explicarmos determinadas transferências da gramática de L1 para a de L2,
utilizaremos (a) a concepção de plano discursivo, conceito definido por Hopper (1979), (b) a
de transitividade, segundo Hopper & Thompson (1981) e (c) a concepção apresentada por
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
39
Givón (1979 e 1995) de que existe um modo pragmático e um modo sintático ou
gramaticalizado de comunicação, que estão estritamente ligados ao princípio da iconicidade.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
40
2) A noção de planos discursivos
Hopper (1979), baseado em pesquisas feitas por psicólogos e em observações de um
grande número de línguas, postulou que, ao contar uma história, seus usuários embalam as
informações de acordo com suas percepções acerca do fato, acerca das necessidades do
ouvinte e dos objetivos comunicativos. Nessa perspectiva de registro da realidade perceptual,
os pontos principais de uma história, ou seja, as ações, são vistos no plano de figura
(foregrounding) e os comentários, as avaliações ou ações secundárias, compõem o plano de
fundo (backgrounding).
As orações figura aparecem ordenadas numa seqüência temporal, pois a mudança de
ordem alteraria a informação sobre o que ocorreu no mundo real. Isso já não ocorre com as
orações de fundo. Inúmeras línguas apresentam morfossintaxe para distinguir esses planos.
Em swahili10, por exemplo, há um prefixo de tempo (ka), que marca as orações figura,
indicando o caminho da linha principal da história. As orações que apresentam ações
simultâneas ou comentários recebem outro prefixo (ki) no verbo. O prefixo sinaliza ao ouvinte
que os eventos assim marcados fogem da linha principal da história. Também no chinês
coloquial da Indonésia, em certos verbos, há diferentes prefixos para marcar os planos: di
indica figura e ng, fundo, por exemplo.
Em línguas como o português, a figura não é marcada morfologicamente, mas as
orações figura também têm características típicas em contraste com as orações fundo. A
seguir, apresentamos as principais características desses dois planos, segundo Hopper, 1979:
FIGURA (FOREGROUND)
Seqüência cronológica. Eventos reais, dinâmicos, pontuais e completos.
Sujeitos previsíveis (tópicos), humanos e agentivos. Codificação
morfossintática: orações coordenadas, principais ou absolutas; formas
verbais perfectivas.
FUNDO (BACKGROUND)
Eventos simultâneos. Eventos não necessariamente completos, irreais e nãopontuais. Situações estáticas, descritivas. Situações necessárias para
compreensão de atitudes (subjetividade). Freqüentes trocas de sujeitos.
Estrutura sintática: orações subordinadas (mas o fundo também pode ser
codificado por orações coordenadas, absolutas ou principais), verbos nãoperfectivos.
Quadro 1: Características das cláusulas figura e fundo.
As orações figura são mais simples, em nível morfossintático, do que as orações
fundo. Além disso, estas são de diferente ordem, pois podem expressar causa, concessão,
tempo, dúvida, hipótese, além de avaliações com simples predicados nominais. Enquanto as
orações figura se referem a situações objetivas, ou seja, ações que aconteceram, as orações
fundo muitas vezes se referem a elementos subjetivos, ligados a comentários do narrador e a
10
Língua banta da família nigero-congolesa, falada na costa oriental e em ilhas da África.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
41
suas avaliações diante das atitudes dos participantes da história. Vale ressaltar que as orações
figura não são necessariamente mais importantes do que as orações fundo. As primeiras são
importantes para o esquema narrativo, mas não propriamente para o objetivo da narrativa.
Podemos contar uma história para avaliar as atitudes de um participante, ou para argumentar a
favor de uma tese, e assim as orações fundo tornam-se mais importantes para atingir os
objetivos comunicativos.
Dentre os diferentes modos de expressar a diferença entre figura e fundo, Naro &
Votre (1999) descobriram que a ordem VS11 está a serviço do fundo em português, em
contextos em que o sujeito não é tópico e é apresentado como novo no discurso.
Com relação à pesquisa aqui apresentada, nossa hipótese principal é a de que os
falantes transfiram para a segunda língua o uso de VS (pelo menos nos níveis mais básicos de
aprendizagem de L2) no mesmo contexto em que a utilizam em português, ou seja, em
situações específicas de fundo12.
3) Modo pragmático e modo sintático/gramaticalizado
Givón (1979 e 1995) postula a existência de dois modos de comunicação: o modo
pragmático e o modo sintático ou modo gramaticalizado. O modo pragmático é mais icônico,
vinculado ao contexto de comunicação, apresenta orações mais justapostas ou coordenadas,
apresenta estrutura de tópico-comentário e ordem de palavras controladas por princípios
pragmáticos. O modo sintático ou gramaticalizado, por outro lado, é menos vinculado ao
contexto imediato de comunicação, apresenta mais coesão, com orações encaixadas,
conectivos variados, estrutura sujeito-predicado e ordem de palavras mais fixa.
Segundo o autor, os falantes utilizam os dois modos de comunicação depois que
adquirem totalmente sua língua materna, mas cada modo tem um contexto específico para
uso. Quando a criança está aprendendo a língua materna, por exemplo, usa mais o modo
pragmático, com estruturas menos subordinadas, ordens de palavras mais livres, etc. À
medida que se insere na cultura dos adultos, aprende a usar o modo sintático, mas não
abandona o modo pragmático. Quando adulto, controla uma escala que vai do extremo
pragmático a um extremo sintático, gramaticalizado. Tal calibragem se dá de acordo com a
tensão comunicativa envolvida no processo comunicativo interacional (cf. Ochs, 1979)13.
Assim, o modo pragmático é retomado em diferentes situações: no uso de um
pidgin, na aquisição de L2 e nas situações mais informais de fala. No caso da aprendizagem
de L2, em cursos de línguas, as regras são, em geral, claramente expressas, são repetidas e o
aluno já tem um conhecimento metalingüístico aprendido nas aulas de L1. No entanto, mesmo
sendo apresentado formalmente às regras, o indivíduo, ao falar a L2, utiliza o modo
pragmático, ao produzir orações soltas, sem conectivos, ordem de palavras mais livre e mais
icônica (do tipo tópico-comentário), repetição de palavras, pouca flexão, tudo isso por estar
11
Como em “Aí ... vinha outra Kombi”
Vale ressaltar que, com exceção de algumas expressões fixas, ou de contextos específicos de língua escrita, em
inglês apenas a ordem SV (O) é gramatical (ou seja, mesmo em construções de fundo, sempre se usa o sujeito
anteposto ao verbo).
13
A autora sugere que “quando falantes não planejam seu discurso, eles se baseiam mais fortemente em
habilidades morfossintáticas e discursivas adquiridas nos primeiros 3-4 anos de vida” e não apresentam as
características do discurso planejado, por sua vez, adquiridas mais tarde, em geral, transmitidas via educação
formal.
12
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
42
numa situação de estresse comunicativo mais acentuado. Quanto à escrita, apesar de Givón
não expressar isso claramente no seu trabalho, podemos dizer que a língua escrita do aprendiz
de L2 se assemelha à língua oral de uma criança aprendendo a escrever em L1: com uso de
frases soltas, com poucos elementos de ligação e pouca subordinação, dentre outras
características; os elementos de ligação existentes são coordenativos e bastante previsíveis
(em português as conjunções e, mas, então, aí e porque são muitos freqüentes). À medida
que imerge nos estudos da L2, este indivíduo adquire o modo sintático daquela língua.
Givón afirma que a diferença entre os modos pragmático e sintático também pode
ser vista na comparação entre a fala informal e a fala formal. Quanto mais planejado o
discurso, menos orações justapostas, menos repetições, menos construções tópico-comentário
há no discurso e vice-versa. Podemos, assim, dizer que sendo a escrita mais planejada que a
fala, na escala que vai do modo mais pragmático ao modo mais gramaticalizado, a fala
informal está em um dos pólos e a escrita formal no outro.
Apresentamos a seguir as hipóteses relacionadas aos modos de comunicação que
estão sendo testadas nessa pesquisa: (a) como a aquisição de L2 pressupõe o uso do modo
pragmático, a ordem de palavras dos textos dos indivíduos que estão iniciando a
aprendizagem de EL2 (Inglês como L2) é mais livre do que a de um nativo de inglês; (b) além
disso, como a ordem VS é motivada em português, os indivíduos tendem a usar a ordem VS
em EL2 nos mesmos contextos semântico-pragmáticos que a utilizam em português.
4) Contribuições funcionalistas para o estudo da aquisição de L2
Como vimos, Givón (1979) apresenta uma proposta sobre o desenvolvimento dos
processos de aquisição de L1 e L2, que consiste na passagem de uma língua com estruturas
discursivas, ditas, frouxas e paratáticas, que evoluem, em estruturas sintáticas, compactas e
gramaticalizadas. Para Givón, as línguas iniciais de L1 e L2 passam de um estágio mais
suscetível a pressões pragmáticas e discursivas, para um estágio de maior estabilização
sintática.
Slobin (1991), referindo-se também à aquisição de L2, afirma que a fala é determinada
por nossas experiências, intuições comunicativas e pelas distinções de sentido definidas nas
gramáticas das línguas. Ou seja, cada língua natural treina seus usuários a atentar de modo
diferenciado para eventos e experiências ao codificá-los lingüisticamente. Tal aprendizado é
de difícil reestruturação no processo de aquisição de L2, por se tratar da forma como nossa
mente se comporta a partir da exposição à L1.
5) A questão da aquisição de língua e da ordenação vocabular: implicações
Com base na hipótese givoniana de que o adulto em processo de aquisição de L2
retorna ao modo pragmático de comunicação e com base na teoria de Slobin a respeito da
fixação da expressão da experiência especificada de língua para língua, desenvolvemos uma
pesquisa funcionalista sobre o uso agramatical da posposição do sujeito (VS) em contextos
narrativos escritos de aprendizes de EL2, como os apresentados nos exemplos (1) e (2) a
seguir, retirados das redações que compõem o nosso corpus:
(1) When we were coming back appeared a thief and stilling the Bank Itaú the police arrived
and arrested them (BAS)
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
43
(2) On the day 21 december, 2001, happened one thing that changed all their lives. The
father was fired from work (BAS)141516.
Vemos que os alunos colocaram os sujeitos “a thief” e “ one thing that changed all
their lives” na posição pós-verbal, o que é permitido em português, mas não no inglês (pelo
menos não em contextos como esses, sem a presença de um sujeito expletivo there).
Acreditamos que os alunos transfiram a posposição do sujeito, fenômeno
discursivamente motivado na sua língua materna, para o inglês como L2, segundo os mesmos
princípios funcionais que direcionam o surgimento de VS na sua prática discursiva diária em
L1.
Para compreendermos o fenômeno, utilizamos os estudos funcionalistas de Naro e
Votre (1999) sobre a co-ocorrência das ordens VS / SV no Português do Brasil (PB). Para
esses autores, a ordem VS possui papel funcional importante, no que diz respeito ao relevo
discursivo do texto do falante por estarem organizadas no plano de fundo das narrativas,
enquanto a ordem SV tende a surgir em trechos discursivos de maior relevância –
pertencentes ao plano de figura – compondo a linha principal de progressão do discurso, não
estando, contudo, restrita a este contexto.
Segundo Pezatti (1994), o pensamento e a comunicação humana registram o universo
individual do falante como “uma hierarquia de graus de centralidade / perifericidade a fim de
facilitar tanto a representação interna quanto a exteriorização para as pessoas”. São os
objetivos comunicativos do falante que determinarão a organização textual: da escolha de
palavras à construção de sentenças específicas, chegando ao texto como um todo. O uso das
cláusulas VS nas narrativas em PB caracteriza tal representação, o que, nas palavras de
Slobin, significaria um tipo de treinamento mental específico da língua portuguesa.
A respeito da associação do uso da ordenação VS com a questão do modo pragmático,
podemos afirmar que o uso da ordem contempla a proposta de Givón apresentada, visto que,
segundo ele, é típico de aprendizes de uma L2 o uso, como já dito, de uma ordenação de
palavras mais frouxa e com reflexos pragmáticos de comunicação. Sendo o inglês uma
língua SV(O), o uso de construções de sujeito posposto seria, a priori, inadequado, se os
informantes, em questão, não fossem aprendizes de um segundo idioma. Em outras palavras,
podemos dizer que o uso agramatical da ordenação verbo-sujeito se deve a motivações
pragmáticas, tais como:
a) a ordem VS apresenta um referente novo no discurso codificado através de sujeito
posposto, e este referente novo não é tópico.
b) a ordem VS, por conta disso, representa o comentário do fluxo de informação – função
discursiva específica do PB de determinar orações de fundo.
Acreditamos que, graças a estas características da cláusula VS, seu uso seja possível na
produção discursiva de brasileiros aprendizes de EL2 (inglês como L2). Teríamos, desta
forma, a associação de dois fatores propiciadores do uso: a transferência comunicativa de um
recurso discursivo típico da L1 para a L2 e a tendência universal de falantes de um segundo
idioma reverterem o modo pragmático de comunicação para dar conta de suas necessidades
comunicativas.
14
Os dados estão apresentados na sua forma original, respeitando-se a produção do aluno, independentemente de
possíveis erros.
15
BAS – nível básico, INT – nível intermediário, AVD - nível avançado
16
(1) Quando estávamos voltando apareceu um ladrão e roubando o Banco Itaú a polícia apareceu e os prendeu.
(2) No dia 21 de dezembro de 2001 aconteceu algo que mudou suas vidas. O pai foi demitido.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
44
6) Análise dos dados
O corpus desta pesquisa foi construído com dados retirados de testes de julgamento
de gramaticalidade (TJG) e de redações feitas por alunos de uma instituição de ensino de
idiomas na cidade do Rio de Janeiro. A amostra final foi composta por 255 testes de
aceitabilidade e 255 redações (narrações), sendo 85 de cada um destes aplicados em
informantes do ciclo básico, 85 em informantes do ciclo intermediário e 85 em informantes
do ciclo avançado.
O teste de aceitabilidade consistiu em um primeiro exercício em que apresentamos 21
frases descontextualizadas, em inglês, todas com algum tipo de erro gramatical. Desse grupo,
apenas 6 sentenças tratam especificamente do fenômeno da VS. Caberia ao aluno classificar
cada frase do exercício como correta ou incorreta. Se o aluno julgasse determinada sentença
como inaceitável, ele deveria corrigir as frases, que, por sua vez, foram cláusulas de cunho
narrativo e possuiam características de orações de fundo, com verbos apresentativos, do tipo
to appear, to arrive17 etc.
Neste mesmo teste, foi aplicado um segundo exercício apenas aos 85 informantes do
ciclo intermediário e aos 85 do ciclo avançado, compondo outra amostra de 170 testes. Neste
exercício, encontramos uma pequena narração,18 de onde foram separadas sentenças
contendo palavras, expressões ou orações assinaladas para que o aluno pudesse identificar
alguma estrutura considerada errada naqueles contextos. Novamente, foram registrados
problemas diversos, sendo que apenas duas sentenças tratavam do fenômeno da inversão de
sujeito, são elas:
a) Agitated, shouted the woman to the man: “The house is in the garage”
b) Ten minutes later, returns the man from the garage with the hose19
Com relação à produção dos alunos, encontramos 23 ocorrências de uso de VS com
verbos intransitivos e 14 com verbos cópula, como nos exemplos (3) e (4) a seguir:
(3) When I went there and opened the door I saw all my friends that was playing with me, all
my family, my friends at school. For me it was a big surprise because I didn’t imagine that
they did one party. When I was talking to my friends on the street, passed a motorcycle and
splilled water all over my body. That day I will never forget. (INT)
(4) For some minutes I thought about their’s opinions, but sudanly appered a man to show
me many aparts at that area, so I became almost convinced, but after the man told me about
the price I became worried and I spoke with the man that the price were very high, after that I
decided to look for other’s apartments to compare with those one. (AVD) 2021
17
18
Aparecer e chegar
Em se tratando de um trabalho de lingüística funcional, a preocupação com o contexto e a situação comunicativa
foram contempladas no teste 2, por se tratar de um texto.
19
a) Agitada, gritou a mulher para o homem: “A mangueira está na garagem” b) Dez minutos mais tarde, retorna
o homem da garagem com a mangueira
20
Só estão numerados no artigo os exemplos de dados produzidos nas redações.
21
(3) Quando eu fui para lá e abri a porta, vi todos os meus amigos que estava brincando comigo, toda minha
família, meus amigos de escola. Para mim, foi uma grande surpresa porque eu não imaginava que eles fizeram
uma festa. Quando eu estava conversando com meus amigos na rua, passou uma bicicleta e espirrou água por
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
45
Nos dados acima, os alunos usaram a ordem VS, ao invés de SV, em ‘passed a
motorcycle’ e appered a man’.
O nivelamento destes alunos foi definido pelo critério de tempo de exposição ao
idioma, conforme o quadro:
Nível
Tempo de Exposição ao idioma
Básico
exposição de até 2,5 anos à língua
Intermediário
exposição de até 4,5 anos à língua
Avançado
exposição de até 7 anos à língua
Quadro 2 – Classificação dos grupos por tempo de exposição à língua
Como dissemos, a expectativa era a de que o tempo de exposição ao input da L2
definisse a percepção de aceitabilidade e o uso de VS por falantes não nativos de inglês. Em
outras palavras, esperava-se que a ordem SV prevalecesse nos discursos de sujeitos fluentes,
o que apontaria para o desenvolvimento do modo de comunicação sintático (Givón 1979).
Assim, o modo pragmático, mais icônico e que atende as necessidades discursivas mais
imediatas do usuário, passaria a ser menos presente na gramática do falante de L2, a qual
apresentaria sintaxe mais fixa, regular e menos sujeita a pressões discursivas típicas da L1.
Da mesma forma, postulou-se que o uso inapropriado da ordem VS em contexto de
aquisição escrito de L2 diminuísse também nas redações numa relação inversamente
proporcional a um maior tempo de exposição ao input. Em termos práticos, este fato refletiria
o encaminhamento do modo sintático em detrimento ao modo pragmático. O falante, por não
mais precisar de estratégias comunicativas que facilitem a expressão de suas vontades, passa
a apresentar um modelo comunicativo de menor variação interna, sintaxe mais estável e com
ordenação vocabular mais consistente e coerente com o sistema adquirido. Logo, o
encaminhamento gramatical do discurso em L2 se reflete pela diminuição de uso da
posposição do sujeito em função da ordem fixa SV.
Para verificar a diminuição do número de ocorrências de cláusulas VS nos textos
escritos pelos alunos em L2, utilizamos um cálculo que verifica a regularidade de ocorrências
do fenômeno dentro de um dado campo amostral, aqui o número de palavras. Verificamos a
ocorrência de VS em cada 1000 palavras produzidas por cada grupo de alunos (cada nível de
aprendizagem). Não era esperado um grande número de dados devido à baixa proficiência de
alunos do nível básico, que representaria uma limitação à produção como um todo22.
Na Tabela 1, encontramos o número de ocorrências de VS por ciclo e sua média a
cada mil palavras de representatividade dentro da amostra:
todo meu corpo. Aquele dia eu não esquecerei. (4) Por alguns minutos eu pensei sobre suas opiniões, mas de
repente apareceu um homem para me mostrar muitos aparts naquela área, então eu fiquei convencido, mas
depois que o homem me falou do preço, eu fiquei preocupado e falei para o homem que o preço estavam muito
altos, depois disso eu decidi procurar outros apartamentos para comparar com aqueles (sic)
22
Vale ressaltar que o fato de estarmos lidando com um fenômeno de cunho sintático e de ordem marcada limitou
o número de achados de dados reais, que foi de 23.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
46
Básico
Avançado
Intermediário
Ocorrências
de VS
N
MP
N
MP
N
MP
10
1,3
6
0,5
7
0,06
5
0,65
3
0,24
6
0,41
V1
V2
Tabela 1 – Ocorrência de VS por nível23
Observando apenas os dados com verbos intransitivos (V1), identificamos a média de
1,3 ocorrências de VS a cada 1000 palavras no ciclo básico, 0,5 no ciclo intermediário e 0,06
no avançado24.
Os resultados revelam que, na passagem do nível básico para o intermediário, há
diminuição de ocorrência de uso VS que passa de 1,3/1000 palavras para 0,5/1000. O
mesmo ocorre na passagem do ciclo intermediário para o avançado, onde se percebeu
diminuição de uso de 0,5/1000 palavras para 0,06/1000. Tais dados mostram, assim,
importante diminuição de uso da estratégia da inversão do sujeito, na passagem entre os três
ciclos. Pode-se inferir que, numa abordagem longitudinal de estudo de aquisição de L2, a
força desta estratégia pragmática diminui em função do domínio da gramática e das
estratégias pragmáticas da L2 adquirida.
Pelos dados, observamos então que a estratégia discursiva de uso da ordem VS
diminui, conforme esperávamos, ao longo do período de exposição à L2, chegando ao índice
de uso mais baixo no ciclo avançado (0,06 /1000) e confirmando a hipótese de Givón sobre o
processo de sintaticização, presente não apenas na passagem de pidgins a crioulos, na
aquisição de L1 e no domínio da linguagem formal, mas também na aquisição de uma L2.
O resultado da análise dos dados das redações converge para a hipótese principal
desta pesquisa de que, ao manifestar a inversão do sujeito em inglês, o aluno aprendiz está
transferindo da L1 uma estratégia discursiva específica. As características do item verbal e
sujeito das cláusulas VS verificadas correspondem àquelas verificadas na pesquisa de Naro e
Votre (1999).
Quanto ao item sujeito, vimos que este geralmente é um dado novo dentro do
discurso, além de (-) volitivo, (-) individuado e extenso. O item verbal, por sua vez, reflete o
uso freqüente dos verbos intransitivos ‘to appear’ e ‘to happen’ nas cláusulas VS em inglês
e apresenta manutenção de tempo e aspecto de forma coerente com a função de informação
de fundo a que se constitui a cláusula VS. Além do mais, percebemos a tendência de que
estes verbos não denotem a informação semântica que isoladamente representam, o que
23
N- Número de Palavras; MP – Média em 1000 palavras; V1 – verbos intransitivos; V2 – verbos cópula
Dados referentes aos verbos intransitivos. Devido as idiossincrasias do verbo cópula, ele foi descartado desta
análise.
24
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
47
também contribui para o aspecto difuso da cláusula25. Tais características estão também
presentes na cláusula (5), produzida por aluno, apresentada a seguir:
(5) I had dinner and go out with my mom […] but, suddenly, appeared the most beautiful and
perfect boy in the world. Wow! What a boy! (BAS)26
Em suma, há uma tendência geral, de que, no discurso em L2, a ordenação VS
também corresponda às circunstâncias fora da seqüência narrativa, ou seja, do plano de
fundo, conforme seu condicionamento em PB como L1 e compondo a porção de comentário
do conjunto textual.
Os resultados dos testes de aceitabilidade também favorecem a hipótese da
transferência do uso motivado de VS e da implicatura da presença do modo pragmático
comunicativo de Givón. Os resultados gerais mostram que a posposição do sujeito passa a ser
mais percebida como uma estrutura não comum no inglês à medida que o aluno internaliza a
gramática deste idioma e identifica a forma SV como a mais recorrente nesta L2. Na Tabela
2 apresentamos os resultados referentes à percepção dos alunos quanto ao uso de VS em
Níveis
Nível Básico
Nível Intermediário
Nível Avançado
Percepção do
aluno
Nãopercepção
Percepção
Nãopercepção
Percepção
Nãopercepção
Percepção
Totais
92%
8%
84%
16%
73%
27%
inglês.
Tabela 2 – Percentuais de Percepção da ordem VS como gramatical no inglês
Estes resultados comprovam nossa hipótese sobre a transferência do uso discursivo da
ordenação VS no processo de aquisição de EL2, visto que, nos três níveis testados durante o
experimento, predomina a percepção de cláusulas VS como gramaticais por parte dos alunos,
já que eles não reconhecem que essas orações estão incorretas.
Percebemos, em linhas gerais, que 92% da totalidade de informantes do ciclo básico,
84% dos alunos do ciclo intermediário e 73% dos alunos do nível avançado aceitam a
ordenação VS como construção do inglês. Consideramos que tal informação indica um
alinhamento com nossa hipótese quanto à relação inversamente proporcional de que quanto
mais alto o nível do aluno, maior exposição ao input da língua inglesa e menor necessidade
pragmática de usos lingüísticos de situações comunicativas específicas, no caso, próprios de
sua L1.
Verificamos que os alunos de nível básico e intermediário tendem a reconhecer a
agramaticalidade da cláusula na L2 em menor escala que o aluno de nível avançado. De
qualquer modo, os dados iniciais também nos surpreendem por revelar uma ampla aceitação
25
Cf. Naro e Votre (1999)
(5) Eu jantei e sai com minha mãe […] mas, de repente apareceu a menino mais bonito e perfeito do mundo.
Uau! Que menino!
26
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
48
da ordem por alunos com tempo mais longo de exposição à língua. Isso parece indicar que,
como eles não estão totalmente expostos à cultura de falantes de inglês como L1, esses
alunos levam mais tempo para adquirir o modo gramaticalizado (de um modo mais
completo) da língua em questão.
Além disso, investigando as cláusulas VS manipuladas nos testes de aceitabilidade,
encontramos evidências de que o grau de transitividade das sentenças foi fator determinante
para a aceitabilidade maior ou menor das orações como estruturas inglesas. As cláusulas que,
segundo Hopper & Thompson (1980), apresentaram menor grau de transitividade detiveram
os resultados de aceitabilidade mais altos (ou seja, os alunos não as viram como incorretas, na
maior parte das vezes), posto que as propriedades de transitividade destas orações revelam
cláusulas mais próximas da VS prototípica que funciona no plano de fundo das narrativas em
PB, como a frase ‘I was in the bank line when crashed two cars in front of the bank’27 que
inclusive foi pouco reconhecida como errada até mesmo pelos alunos do nível avançado. Por
outro lado, as cláusulas que apresentaram os menores índices de aceitabilidade, ao contrário
das primeiras, apresentam graus de transitividade maiores, o que as aproxima mais das
cláusulas do plano de figura. As características de transitividade que se sobressaem quanto à
diferenciação de resultados são as que dizem respeito ao traço de cinese dos verbos, e as
características de volição e agentividade do item sujeito. Cabe ressaltar, no entanto, que todas
as cláusulas foram amplamente aceitas pelos alunos testados nos três níveis de aprendizagem
considerados neste experimento, embora umas tenham apresentado média de aceitabilidade
maior que outras.
Assim, esta pesquisa constata que a transferência de VS existente entre o PB como L1
e o inglês como L2 não fica estanque ao nível sentencial, mas extrapola a questão estrutural
em função das necessidades comunicativas requeridas a um falante aprendiz de L2. Ou seja,
ao aceitar que cláusulas VS de transitividade mais baixa se constituam como integrantes da
estrutura inglesa, o falante de L2 mostra que o uso da estratégia relacionada à ordem VS na
sua língua materna permanece latente durante o processo de aquisição de L2.
7) Conclusão
Como podemos ver, os pressupostos teóricos do funcionalismo americano se alinham
com a pesquisa aqui apresentada, relacionada ao desenvolvimento (ou dificuldade de
desenvolvimento) do modo sintático ou gramaticalizado.
Os indivíduos que aprendem o inglês como L2, quando estão nos níveis iniciais,
apresentam ordens de palavras mais frouxas e usam a ordem VS nos mesmos contextos em
que a usariam em português, ou seja, em situações de fundo quando o sujeito não é tópico,
quando o verbo é não-cinético, etc. À medida que os alunos aprofundam o estudo da língua
estrangeira, deixam de usar o modo mais pragmático e diminuem sensivelmente o uso de
estratégias agramaticais como o uso da ordem VS. Entretanto, apesar da tendência universal
do modo sintaticizado (gramaticalizado) se sobrepor ao modo comunicativo pragmático nas
línguas estabilizadas, o modo pragmático permanece latente na competência lingüística do
falante o que favoreceria o surgimento de VS em níveis mais avançados, embora com menor
destaque.
Postulou-se, então, que a questão da transferência de aspectos oriundos da L1 para a
aquisição de L2 extrapola desdobramentos lingüísticos sentenciais. Verificou-se, a partir dos
estudos funcionalistas de Naro e Votre (1999), que (a) o uso da inversão do sujeito em inglês
27
Eu estava na fila do banco quando bateram dois carros na frente do banco
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
49
reflete características da posposição do sujeito no português brasileiro, ordenação que, nesta
língua, representa uma estratégia pragmática de construção do relevo discursivo narrativo; e
(b) o uso da inversão em contexto escrito de aquisição está de acordo com o princípio da
iconicidade, segundo o qual formas lingüísticas devem ser explicadas, dentre outros aspectos,
pelas motivações cognitivas que levam o usuário daquela língua a usá-las.
Os resultados favorecem a hipótese principal desta pesquisa sobre a transferência deste
recurso pragmático da L1 para a facilitação da comunicação em L2. Em outras palavras, ao
apresentarem índices de aceitabilidade diferenciados para as diversas cláusulas dos TJG, os
resultados confirmam a hipótese da transitividade de Hopper & Thompson (1980), que
apontam para a tendência de orações intransitivas constituírem porções do plano de fundo da
narrativa. O uso da ordenação VS, já descrito por Naro e Votre (1999), exerce no PB esta
mesma função comunicativa, e, ao transferir seu uso para o inglês, o aluno também sinaliza,
para seu interlocutor, que a porção de informação assim codificada pertence ao plano de
fundo. Sobre o uso do modo pragmático por aprendizes de uma L2, proposto por Givón
(1979), podemos dizer que este também é verificado nos resultados, visto que, em todos os
três níveis de aprendizado, houve aceitabilidade da ordenação VS. Isto mostra que, embora o
nível avançado tenha apresentado aceitabilidade menor para todas as cláusulas, o uso do
recurso da ordenação vocabular frouxa e que reflete a função comunicativa das formas
permanece nos três níveis de aprendizado da testagem. Segundo a perspectiva de estudos de
transferência lingüística, temos, então, um processo de transferência que está além do plano
sintático-estrutural, mas no plano pragmático-discursivo, ou seja, no campo de uso de
estratégias eficazes de comunicação.
8) Referências
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um estudo sobre o uso da cláusula VS. Rio de Janeiro, 2006. 128 p. Dissertação (Mestrado em
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
50
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Pragmatics, n. 1, p. 7-26, 1991.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
51
V
rônica: nos limites da Literatura
Lenise Ribeiro Dutra*
__________________________________________________________________________________Resumo
De Fernão Lopes a Caminha, o percurso histórico-documental; com Machado de Assis e José
de Alencar, a presença no espaço do jornal. A presença significativa da crônica na literatura
brasileira, observando-se suas origens, a importância que o gênero assume na imprensa, a
posição da crítica literária em relação ao texto cronístico e a verificação da presença da
expressividade poética num texto considerado, por muitos, apenas de caráter jornalístico são
aspectos que darão suporte ao presente estudo.
Palavras-chave: crônica, crítica literária, literatura.
__________________________________________________________________________________________
Lembrar e escrever: trata-se de um relato em permanente
relação com o tempo, de onde tira, como memória
escrita, sua matéria principal, o que fica vivido – uma
definição que se poderia aplicar igualmente ao discurso
da História, a que um dia ela deu lugar. (ARRIGUCCI,
1987, p.51).
A crônica, na modernidade, exige uma visão bastante atenta para a apreensão tanto de
seus limites quanto de seus alcances. O cronista, desde a Idade Média, na narrativa de caráter
documental à documentação do cotidiano, na modernidade, é dotado do que se pode
considerar livre arbítrio que faz com que sua abordagem temática ultrapasse esses limites do
cotidiano. Este processo de liberdade do escritor tem proporcionado uma visão subjetiva para
a narrativa que assumiu, entre nós, o papel de texto que prima pela linguagem coloquial e
cujos assuntos voltavam-se para as amenidades da vida cotidiana.
Candido (1992) questiona a expressão “gênero menor” e assinala “para os milagres
operados pela simplificação e naturalidade”. Apoiado nestes dois aspectos, este estudo
verifica que a questão da simplicidade, lingüística e temática, e até mesmo o caráter breve do
texto cronístico têm sido elementos propiciadores ao acesso do leitor à visão humana no que
diz respeito ao seu cotidiano. O que Candido propõe, ao dizer que ao não lançar mão da
grandiloqüência e que ainda que a perspectiva do cronista não “seja a dos que escrevem do
alto da montanha, mas do simples rés do chão”, é que a crônica pode assumir caráter de texto
literário e seu comprometimento com a temática cotidiana poderá vir impregnado de
elementos expressivos, que possibilitam perceber outros pactos do texto com aqueles não préestabelecidos. Segundo Portella (1975) “o que interessa é que a crônica acusada injustamente
como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário”.
Este estudo procurará registrar um percurso determinado da crônica para chegar ao foco
principal: o olhar do cronista; o nascimento do folhetim; o espraiamento do gênero pela
literatura na modernidade e a percepção de sua importância como objeto literário.
*
Mestre em Letras, pelo CES-JF-MG.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
52
Cronistas e viajantes: um olhar subjetivo
Na Idade Média aparece a crônica, uma espécie de texto de que se utilizavam os
cronistas para organizar os documentos e as narrativas sobre a história do Reino, em ordem
cronológica. A etimologia do vocábulo pressupõe a marca temporal do texto que não passava
de mero relato sobre uma ou outra personagem, sendo o objetivo primeiro o registro histórico
e a documentação. No universo da documentação, constitui-se, assim, o surgimento da
crônica. Em 1434, Fernão Lopes, além de pesquisador, promovido a cronista-mor do reino
português, incluía em seus relatos não só as ações de reis e nobres, mas submetia os dados a
um criterioso exame.
Vivia-se, a partir deste momento, o limite entre as teorias do Antropocentrismo e do
Teocentrismo: o homem dispôs-se a interferir objetivamente no mundo em que vivia. Passou
a valorizar a própria capacidade intelectual e artística, tornando-se autor de descobertas
científicas e criador de obras que seriam admiradas por séculos. A visão medieval de Fernão
Lopes, entretanto, não impede a inscrição humanística que ele faz da História. A preocupação
analítica, no sentido de colocar o leitor a par dos mínimos detalhes que caracterizam a história
e até a valorização do aspecto plástico que o texto proporciona, faz de Fernão Lopes um
instaurador de um status literário ao texto cronístico.
O estilo elegante e coloquial, entremeado de narrações e descrições faz do texto
cronístico, a partir de Fernão Lopes, um espaço que pode levar o cronista à recordação e a
impressões pessoais ao narrar o fato histórico, registrando, portanto, uma nova espécie
narrativa. Sobre a crônica de Fernão Lopes, Massaud (1990, p.32) registra:
a atividade historiográfica evolui desde o frio e árido rol de nomes até à
narração e interpretação dos fatos. Todavia, somente com Fernão Lopes
adquire superior relevância, graças ao sentido duplo com que é praticada: o
literário e o histórico propriamente dito.
Os primeiros escritos de informação sobre o Brasil têm cunho notadamente descritivo e
objetivam-se em fazer levantamentos gerais da terra nova descoberta. O escrivão, Pero Vaz de
Caminha, imortaliza-se pela Carta ao rei D. Manuel a fim de comunicar a descoberta e
descrever os primeiros contatos entre os europeus e os nativos. Muitos outros relatos foram
feitos, no entanto, é o texto de Caminha que melhor registra a terra brasileira, e ao acrescentar
ao texto impressões pessoais, elementos mágicos, características fantásticas, manipular a
linguagem, por não se limitar ao simples relato impessoal, e por deixar demonstrar o
entusiasmo provocado pelas novas imagens que se apresentam na descrição do novo mundo e
na visão edênica da nova terra, Caminha propicia o caráter literário de seu texto.
É pertinente apresentar um conceito da função poética cujo objetivo é a mensagem por
ela própria para detectar a função literária do texto de Caminha, que ao relatar a história do
descobrimento do Brasil o faz com olhar bastante subjetivo:
De ponta a ponta é toda praia rasa e bem formosa. Pelo sertão, pareceu-nos
do mar muito grande, porque a estender a vista não podíamos ver senão
terra e arvoredos, parecendo-nos terra muito longa. Nela, até agora, não
pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem
de ferro (...) Mas a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados
(...) Águas são muitas e infindas.(...) Mas o melhor fruto que nela se pode
fazer, me parece que será salvar essa gente; e esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza nela deve lançar. (1982, p.12-13).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
53
A esta época a ausência de uma atividade literária que fosse responsável pela construção
da identidade brasileira, fez a crônica, além de registrar o chronos e as imagens grandiosas
fotografadas pelas retinas de seus cronistas, servir de legítima representante para a instauração
do espírito brasileiro.
A crônica assenta suas raízes
Na segunda metade do século XIX, em virtude da situação política por que passava o
país, a imprensa brasileira apresenta uma atividade jornalística bastante conservadora - entre
1830 e 1850, os pasquins começam a desaparecer, visto que desempenhavam papel
importante na realidade política, que a partir daquele momento toma outro rumo: visa à
consolidação do regime escravagista e feudal que se sustenta no latifúndio. Ausente de
motivos desaparece a imprensa de caráter político. A partir dessa época, surge a fusão da
literatura com o jornalismo; a comunhão de homens das letras e de homens do jornal. A
literatura que mantinha, até então, ligação com revistas e jornais especializados, com a
decadência da imprensa política funde-se a esta.
As transformações que se faziam acontecer eram bastante significativas; a burguesia é a
classe consumidora da leitura de emoção e de entretenimento. Chega, até nós, o folhetim que
atende às exigências da democratização do jornal, e divulga de maneira mais ampla o que
antes era restrito a apenas um grupo social. Das duas espécies de folhetim - folhetim-romance
e folhetim-variedades – este último será o responsável pela origem da crônica, tal como surgiu
entre nós. A nova entidade literária, que aparece no Brasil, incorpora-se ao espírito da
imprensa periódica, seu espaço, no jornal, surge fundamentalmente dedicado à amenização,
ao entretenimento, às questões cotidianas. Todas as formas e modalidades de entretenimento
de leitura são absorvidas pelo novo espaço. Ali, registra-se de tudo. Ao folhetinista cabe a
tarefa de preencher seu folhetim, o ofício de registrar os acontecimentos, emprestando-lhes
sua sensibilidade, num exercício de liberdade expressional.
De início – começos do século XIX – le feuilleton designa um lugar preciso
do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé, geralmente de primeira
página. Tem uma finalidade precisa: é um espaço vazio destinado ao
entretenimento. E já se pode dizer que tudo o que haverá de constituir a
matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação
primeira desse espaço geográfico do jornal. ( Meyer, 1992, p. 93).
Ao nascimento da crônica e ao exercício do folhetinista, Machado de Assis faz em 1859,
na revista O Espelho, observa:
Mas comecemos por definir a nova entidade literária. O folhetim,
disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o folhetim nasceu
no jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista. (...) O folhetinista é
a fusão agradável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério,
consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do
novo animal.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
54
Brayner (1992, p.416), sobre a produção cronística de Machado de Assis, mostra um
escritor que valeu-se da crônica durante quarenta anos que contribuiu para a sedimentação de
sua produção literária: “Na obra machadiana a crônica não é um texto-ponte para outros, os
‘maiores’. É a solda capaz de unir uma produção literária de mais de quarenta anos”.
Ao participar, durante muito tempo, como cronista do Diário do Rio de Janeiro,
Semana Ilustrada, O Futuro, Ilustração Brasileira e em O Cruzeiro, a parceria entre a
literatura e o jornal traduz a opinião de Machado de Assis sobre a atividade do jornalista e do
folhetinista: ao primeiro reserva “a luz séria e vigorosa, a reflexão, a observação profunda; ao
segundo, o devaneio e a leviandade”. A obra de Machado de Assis, entretanto, valeu-se
enormemente deste novo veículo de transição, por utilizar-se dela como experimento para o
exercício da narrativa. E desde as frivolidades e amenidades aos assuntos polêmicos e nobres,
Machado emprestou seu olhar de cronista maior.
A referência à novidade que circula nos jornais feita nos textos de grandes escritores
vale como análise da importância que o folhetim toma ao assumir, paulatinamente, um lugar
de atenção entre os espaços dedicados até então a publicações jornalísticas ou literárias, o que
gerou enorme repercussão. O folhetim representa um signo literário diferente. E é Machado
de Assis um dos escritores que talvez mais tenha usado referências sobre o novo objeto em
seus romances e contos.
O gênero ganha espaço: a delícia de ser o que é
Coutinho (1997, p.118) apresenta-nos o ensaio, do inglês essay como uma modalidade
que exige delimitação de significação para o estabelecimento da diferença entre tal objeto e
crônica, visto que, muitas vezes, as definições podem causar confusão – “a essência do ensaio
reside em sua relação com a palavra falada e com elocução oral”. Informal essays e formal
essays definiam a natureza dos ensaios. O primeiro ficava caracterizado pela linguagem oral,
familiar, pela impressão pessoal do ensaísta de suas experiências, lembranças, recordações,
fatos de seu tempo; o segundo, o conceito de estudo de reflexão. Entre nós, o sentido de
ensaio transpôs a significação antes estabelecida: os informal essays, que exprimem o espírito
livre, revelam reações pessoais, tornou-se a crônica. A crônica é, portanto, o texto leve, a
expressão do cotidiano. Não obstante, entende-se facilmente por que a crônica tenha se
aclimatado tão bem no jornal – “fusão admirável o útil ao fútil, o parto curioso e singular do
sério, consorciado com o frívolo”, segundo Machado de Assis, não excluindo a marcada
expressão lírica.
A crônica propaga-se e o folhetim passa a designar o espaço, a seção na qual eram
publicadas as crônicas e outras formas literárias. Neste espaço são publicados, em capítulos,
os textos de ficção. Alencar, que estreou como folhetinista do Jornal do Correio Mercantil,
do Rio de Janeiro, em 1854; Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto são exemplos de
escritores que usaram o espaço para seus exercícios de literatura.
Nessa trajetória, tantas vezes intrincada, e que coloca a crônica como objeto de discussão,
ao se pesquisar sua origem e função, é que o gênero assume um papel de texto
independente, suscitando uma investigação para o questionamento que tantas vezes fica à
deriva de análise: o que seria a crônica. E numa observação mais cuidadosa verifica-se o
que vai representar em termos literários esta nova entidade literária.
O desenvolvimento notadamente técnico e científico marca as primeiras décadas do
século XX. Novas idéias, ao sabor da ciência, ganhavam espaço na vida cotidiana do homem.
Sinais da nova civilização que surgia manifesta-se, na busca, sobretudo na valorização de
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
55
outros modos de expressão. Além da tentativa de ruptura com os valores tradicionais, o
espírito moderno busca uma reinterpretação da vida presente e do progresso; incorporação do
cotidiano e do popular à literatura. O desejo de buscar novos horizontes e caminhos para as
manifestações artísticas e resgate da identidade nacional, o sentimento íntimo brasileiro,
revela ser a crônica um dos recursos narrativos caracterizadores deste momento.
Do espaço reservado ao espírito do jornal, a crônica ganha asas, liberta-se e passa a
viver por si mesma. Com o advento do Modernismo, um grupo substancioso de escritores
adere ao novo prazer e escrevem crônicas: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Vinícius,
Drummond. Cada um deles emprestando ao texto cronístico seu estilo; imprimindo ali suas
emoções, sua visão de mundo, seu olhar bastante subjetivo da realidade, dos fatos e dos
acontecimentos. O plano expressivo do escritor será o elemento que irá traçar a diferença na
maneira de abordar os assuntos. Mais uma vez a crônica servirá de laboratório literário, de
experimentação para a impressão do escritor sobre os acontecimentos que cercam a vida do
homem do século XX.
Seguindo a tendência do momento e de outros e de outros gêneros, a
crônica se convertia num meio de mapear e descobrir um país heterogêneo e
complexo, largamente desconhecido de seus próprios habitantes,
caracterizado pelo desenvolvimento histórico desigual, de modo que o
processo de modernização podia ser acompanhado pelos contrastes entre os
bolsões de prosperidade e vastas áreas de miséria, e o próprio mundo
moderno parecia nascer de mistura com traços remanescentes de velhas
estruturas da sociedade tradicional. É assim que uma consciência mais
abrangente do país passa a reger o espírito da crônica modernista.
(Arrigucci, 1987, p.63).
“A vida além da notícia” como salienta o crítico Portela (1985) vai oferecendo à crônica
outros caminhos a serem trilhados. Do espaço reservado às amenidades, o texto vai ganhando
a força e transcendência e o que era de cunho jornalístico e urbano espraia-se, proporcionando
que a subjetividade do escritor supere a objetividade do cronista. E ela, a crônica, assume
caráter de gênero literário autônomo e substitui, tal como se estabelece entre nós, o essay dos
ingleses.
O espírito de independência e de autonomia da crônica leva Coutinho (1997) a inserila em diversas categorias: a crônica narrativa; a crônica comentário, aquela que visa à
divulgação de fatos, à informação; a crônica metafísica, que possibilita as reflexões filosóficas
e a crônica poema em prosa, em cuja natureza reside o principal enfoque deste trabalho.
De natureza ensaística ou de natureza literária, outros elementos envolvem a crônica e
exigem esclarecimentos e atenção. Crônica e linguagem, crônica e caráter literário, crônica e
livro são reflexões que permeiam a anatomia que o texto assumiu a partir do momento que
ganha adeptos entre a literatura. Num primeiro olhar é preciso investigar o que está
estabelecido como padrão lingüístico da crônica: nela deve-se buscar linguagem da
atualidade, sem, no entanto, desviá-la de expressões características do momento em que é
produzida, são as marcas temporais que a conectam com o chronos, a noção de
contemporaneidade do escritor com seu tempo. A relação entre a sua origem jornalística tem
muitas vezes desviado a crônica do papel literário que ela pode, legitimamente, desempenhar.
Considerada por alguns gênero anfíbio, que tanto vive das páginas efêmeras de um
jornal quanto da “imortalidade” que o livro pode oferecer, a crônica tem escorregado por entre
tantos estudos e definições.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
56
A definição de crônica e suas relações com outros campos do conhecimento atestam a
sua importância no cenário cultural e literário brasileiro, responsável pela importância que a
nova entidade representa, ocupando um lugar tão relevante quanto de outras espécies literárias
de tradição. Esta mobilidade que a crônica se permite somada ao espírito da modernidade a
faze incorporar o status de objeto literário, feito para permanecer:
Então, a uma só vez, ela pode penetrar agudamente na substância íntima de
seu tempo e esquivar-se da corrosão dos anos, como se nela se pudesse
sempre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima,
humana e histórica, impresso na massa passageira dos fatos esfarelando-se
na direção do passado. (Arrigucci, 1987, p.53).
A qualificação literária da crônica
Acreditando não estar a crítica literária presa à investigação subjetiva, nem proceder ao
julgamento insensível do autor e de sua obra, e entendendo estar ela ligada a métodos, o olhar
do crítico parece ter evoluído ao receber a abertura teórica da reflexão contemporânea,
incorporando uma série de orientações que se coadunam em um mesmo pensamento, embora
rigoroso frente ao fenômeno literário. O crítico Portella (1985:42-44) verifica que “quando o
conhecimento da literatura começou a se constituir criticamente, reflexivamente, ele instaurou
uma ampla controvérsia metodológica”, a qual se apoiou em bases científicas: “ a crítica
deixava de ser uma leitura vertical para se converter num levantamento topográfico de
emoções fáceis”(op.cit., 44). A crítica literária de bases científicas encontrava obstáculos.
Entretanto sua evolução tornou-se conseqüência no desenvolvimento no universo da criação
literária.
A crítica literária tradicional mantinha aprisionadas nos porões da não-literatura aquelas
obras de maior receptividade da massa leitora. Benjamim (1969:15-47) quando apregoa a
queda da “aura de sacralidade” do objeto estético, favorece a dessacralização da Arte, abrindo
uma trincheira para a penetração de uma literatura não mais pertencente apenas a uma elite
produtora da obra literária.
A atividade de consumo proporcionou o estabelecimento de uma separação entre o que
era considerado literário pela crítica e o que privilegiava a estrutura de consumo, qualificada
de não-literatura, sub-literatura. Nesse universo as reflexões recaem na classificação de
literatura e paraliteratura. Portella (op.cit.,:150) mostra que
O espaço vazio que separa a literatura exaurida da literatura por vir, é
freqüentemente preenchido por variadas modalidades expressivas a que se
procura denominar paraliteratura ou se poderia chamar preliteratura,
semiliteratura, antiliteratura ou mesmo posliteratura. (...) A paraliteratura ou
literatura de massa é assim qualquer texto de efeito sem ou com reduzida
literariedade.
Mais adiante salienta,
Essa realização imprecisa ou fluida faz a felicidade e ocupa as horas de lazer
do grande auditório do mundo. De um lado porque o fazer literário
artificializado e ocioso assistiu passivamente à sua derrocada. De outro lado
porque os produtos paraliterários emergente foram adquirindo uma total
vibração expressiva (...)
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
57
Assim, a classificação de literatura e paraliteratura parecia observar critérios subjetivos
do crítico e da crítica literária. Em nossa história literária, em virtude de um momento de
crise, a chamada paraliteratura tenha marcado presença pela ausência de um signo poético
legítimo, como já observado anteriormente nos textos dos viajantes. Sermões, anedotas, o
jornal, as revistas constituem a produção paraliterária, exercendo notadamente influência na
massa, amparados pela engrenagem do consumo, despertando aí, talvez, seu caráter de nãoliteratura.
A crônica brasileira, apoiada na produção voltada para a massa, disputa espaço junto
ao romance, o poema e o conto. O caráter transitório deste gênero tem levado a crítica a
refletir sobre a permanência deste objeto estético. Entretanto, ao entender que o discurso
literário se resolve no nível da linguagem e que ela é a fonte da criação, quando rompe as
relações exatas entre o significante e o significado, o signo poético se estabelece. Portanto,
quando o cronista instaura em seu texto a transgressão da linguagem, ele retira a crônica,
antes confinada à paraliteratura, do universo do não-literário.
O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um
desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer
literário. E quando não o é, não é por culpa dela, a crônica, mas por culpa
dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir
uma existência além do cotidiano, este se perde no dia a dia e tem apenas a
vida efêmera do jornal. Os outros, esses transcendem e permanecem. (
Portella, op.cit.,156-157).
A Poética ensina que a essência da poesia consiste nas dimensões translingüísticas
abarcadas pela linguagem literária, refutando uma visão de linguagem como apenas uma
relação de significado e significante. A linguagem poética encontra na Lingüística os moldes
para sua criação, o instrumento que possibilita o estabelecimento do ser literário, entretanto a
linguagem literária rompe o modelo lingüístico e projeta a linguagem a uma outra dimensão.
Para se entender o ser da literatura e o que lhe é inerente, é necessário investigar a linguagem
que alimenta a literatura, na qual ela cria novos significados. A chave já não é mais a
dicotomia saussureana, mas uma relação tridimensional que estabelece o fenômeno literário e
que possibilita o entendimento da literatura: “A expressividade da obra de arte, a novidade de
sua estruturação, reside precisamente nessa força de apresentar dimensões heterogênicas,
deixando sempre transparecer a unidade”. (Portella, op.cit.,67).
A linguagem literária tem-se voltado, cada vez mais, para a natureza do discurso; a
literatura da modernidade descobriu sua função lúdica, afastando-se da pureza estética dos
clássicos e da importância semântica dos românticos, e encontra assim, sua especificidade
poética no Modernismo. Os gêneros e as espécies literárias transpuseram seus limites
metodológicos e são concebidos pelo escritor cada vez mais faminto de novidade. É o que
assinala Teles(1989:331):
(...) Quer dizer, todo o peso das convenções literárias se tornará insuficiente
para redimir a literatura, que começa a reduzir-se a si mesma para a natureza
do discurso. (...) todos os gêneros, todas as espécies – tiveram de uma hora
para outra o seu papel invertido: em vez de serem (...) o ponto de partida da
linguagem, passaram a ser o ponto de chegada.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
58
Considerações Finais
Na descrição dos gêneros literários, a teoria clássica apóia-se na afirmação de que cada
gênero é único e difere quanto à natureza e ao prestígio, e que sua fusão não deve ser
permitida. Já uma teoria moderna acredita na miscigenação dos gêneros. A crônica revitaliza a
segunda teoria, talvez se inserida num posgênero em função de seu transitar pelo universo
literário consagrado pelas grandes obras. Ao apresentar um texto para a apreciação de um
estudo crítico, este procedimento irá suscitar um princípio ordenador, uma aplicação da teoria
dos gêneros para organização de sua estrutura. Contudo, inserir a crônica numa espécie
literária apenas levará tal atividade para um terreno inóspito – o caráter ambíguo da crônica,
sua aproximação com outras espécies, e sua própria caracterização no território dos gêneros,
provará que essa delimitação de cunho didático verificará a certeza de que os gêneros
literários não se excluem, antes, se completam e se miscigenam. Essa é uma característica da
literatura da modernidade e da moderna teoria dos gêneros que não impõe limite às espécies
literárias, nem coloca o autor preso em regras. O prazer do texto literário está ligado à
dilatação das sensações e como fundamenta Wellek (p.299) “O gênero representa, por assim
dizer, uma soma de processos técnicos existente, de que o escritor pode lançar mão e dispor
(...) o bom escritor observa o gênero (...) estende-o, dilata-o”.
Qualquer historiador da fase contemporânea da literatura brasileira que
desconheça a crônica como um fato literário peculiar desse período, estará
sujeito a nos apresentar apenas uma visão mutilada ou incompleta. A
crônica, que invadiu ou foi invadida pela poesia, e se instalou no coloquial
modernista, multiplicando a sua força expressiva, que, mais do que tudo,
desenhou o seu próprio perfil autônomo, é, em face mesmo daquela
ambigüidade congênita, uma manifestação superlativa de literatura.
(Portella, 1985: 158)
No universo da validade e da valoração como observa Wellek (IBIDEM p.302 ) “ os
homens devem dar valor à literatura por ela ser o que é; devem valorá-la em função e no grau
do seu valor literário”, e compreendida desse modo, a crônica como instrumento responsável
pela formação da identidade brasileira, conquistou seu caráter de objeto permanente,
sobretudo com as propostas do Modernismo, alcançando, assim no dizer de Arrigucci
(1987:53) “ a espessura de texto literário, tornando-se, pela elaboração da linguagem, pela
complexidade interna, pela penetração psicológica e social, pela força poética ou pelo humor,
uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa história”.
O estilo coloquial, deliciosamente espontâneo e vivo tornará a crônica fonte prazerosa
de leitura bem apropriada ao espírito do grande público consumidor, que parece preferir tal
formato pela simplificação dos personagens, pela movimentação semântica que a linguagem
oferece à leitura exigente de textos literários mais complexos. Assim o estilo superficial, o
grande acesso e o caráter efêmero aglutinam-se à seriedade e ao cunho literário,
transformando a crônica, sobretudo aquelas de consistência lírica, numa espécie literária de
grande valor.
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sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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WELLEK, René et al. Teoria da Literatura. Lisboa: Biblioteca Universitária, Publicações
Europa América, Lisboa.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
60
\
mprensa, memória e variação lingüística: uma leitura diacrônica no
Monitor Campista28
Carla Cardoso Silva29
__________________________________________________________________________Resumo
O aspecto variante da língua, alvo de estudo da sociolingüística, é a temática deste artigo, que buscou
sua fonte de pesquisa em recortes de textos do jornal Monitor Campista, terceiro mais antigo em
funcionamento no país – quinto, neste patamar, na América Latina – que, com 173 anos de existência,
desde 1936 pertence ao grupo dos Diários Associados. Analisando-se comparativamente as
reportagens do referido jornal, encontram-se algumas das variações que assumiu a língua portuguesa,
em sua versão escrita, ao longo de mais de um século e meio. Para este artigo, apresentam-se
exemplos de reportagens publicadas nas décadas de em 1830, 1910, 1960 e 1990.
Palavras-chave: Jornalismo, Sociolingüística, Variação lingüística, Memória
___________________________________________________________________________
Introdução
Em diferentes sociedades, com o passar do tempo, as linguagens, híbridas e mutáveis,
passam por transformações que, graças a registros históricos escritos, são possíveis de serem
analisadas atualmente. Com isso, enigmas podem ser decifrados e partes obscuras de um
determinado estado lingüístico são trazidas a lume.
Para introduzir o tema, os apontamentos sobre a variante diacrônica em textos do
Monitor, é oportuno, neste referido estudo, ressaltar que os profissionais de imprensa, de um
modo geral, utilizam de forma acessível a linguagem, sendo esta uma fundamental ferramenta
de trabalho. (CALDAS, 2004, p.41) Assim, para se noticiar um fato, comunicar e se fazer
compreender, é necessário que essa notícia seja registrada numa linguagem concisa, clara,
objetiva.
Cabe ressaltar que questões históricas, como o desenvolvimento do discurso
jornalístico, não são o foco dessa pesquisa, e sim, as variações da língua registradas por
jornalistas em alguns textos colhidos, no periódico campista em questão, o qual apresenta, em
seus arquivos históricos, reportagens sobre fatos importantes no desenvolvimento social da
Região Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, além de noticiar assuntos de âmbito
nacional e até mesmo internacional.
Vale lembrar, ainda, que não cabe a este estudo adentrar em questões como o
desenvolvimento dos canais de informação atrelado a interesses econômicos ou políticos, mas
registrar questões quanto à transformação variacionista na linguagem nos textos retirados do
Jornal e sua função de registro memorístico. Também será discutido, a partir dos registros
jornalísticos, o conceito de memória social30.
28
Este artigo é uma versão resumida da monografia de pós-graduação lato sensu da autora, defendida em março
de 2008 no Cefet/Campos.
29
Jornalista e especialista em Assessoria de Comunicação pela Faculdade de Filosofia de Campos e especialista
em Literatura, Memória Cultural e Sociedade pelo Cefet/Campos.
30
Sobre este assunto específico, recomendamos a leitura de História e memória, de Jacques Le Goff (1996).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
61
1
Da evolução da língua
É Ferdinand Saussure (2004, p. 161) que introduz a distinção entre a lingüística
diacrônica, ou histórica (que lida com mudanças ocorridas na língua), e lingüística sincrônica
(que estuda o estado da língua em um determinado período do tempo), nas quais se baseia esta
pesquisa. Para o lingüista, há distinção entre língua (langue), de natureza social, externa ao
falante e coercitiva; e a fala (parole), que seria o exercício individual e pessoal do código da
língua, sendo esta última a verdadeira responsável pelo caráter dinâmico e mutável da
linguagem.
A aquisição da linguagem é tema de especulações e estudos, sendo “pelas suas
indagações, uma área híbrida, heterogênea ou multidisciplinar”, (MUSSALIM; BENTES,
2001, p. 205). Teorias lingüísticas e sociais se complementam, portanto, neste estudo, uma
vez que se baseia na Sociolingüística, um dos ramos da ciência, cujo foco de estudo é a
relação entre língua e sociedade.
Sobre a evolução da língua e sua variação, Bakhtin (1989, p.124) diz que “a língua
vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico
abstrato das formas da língua, nem no psiquismo dos falantes”. As manifestações lingüísticas
estão, portanto, em contínuo processo de mudança.
No entanto, a língua não evolui aleatoriamente e, sim, segundo defende André
Martinet (1955 apud MAINGUENEAU, 1997, p. 40), “pela necessidade de seu sistema
encontrar uma estabilidade óptima”, ora procurando reduzir desequilíbrios, ora buscando o
prestígio em outros modelos lingüísticos, considerados superiores, de alguma forma.
Dominique Maingueneau (1997, p. 41) lembra que “os locutores confundem certas
formas foneticamente muito próximas, simplificam as construções sintácticas complicadas”,
tudo para o menor esforço do ouvinte.
Esse processo de mudança lingüística acontece de maneira gradual, em várias
dimensões, como defende Naro (2003, p. 43). Segundo este sociolingüista, as formas mais
antigas da linguagem costumam ser preservadas pelos falantes mais velhos, “o que pode
acontecer também com as pessoas mais escolarizadas, ou das camadas da população que
gozam de mais prestígio social, ou ainda de grupos sociais que sofrem pressão social
normalizadora.”
É possível, portanto, acrescentar a esses grupos o jornal impresso, nosso objeto. A
imprensa pode ser considerada uma das ferramentas para o registro da memória social.
Portanto, são os profissionais da imprensa31 narradores que cumprem as funções de mediação
entre o passado e o presente. A eles cabe “atualizar e dar sentido ao acontecimento fundador,
ao mesmo tempo em que informar o modo como a sociedade recupera e celebra o passado,
produzindo novos acontecimentos.” (BRAGANÇA; MOREIRA, 2005, p. 65).
31
Um dos aspectos da atividade jornalística é o de fazer e ser um testemunho da História. Desde que se inventou
a imprensa o repórter passou a ser um figurante, quando não entra, ele mesmo, para a História. Como uma
espécie de representante privilegiado da sociedade, ele está lá, no palco dos acontecimentos, com a obrigação de
nos contar o que viu. (CALDAS, 2004, p.36).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
62
2
Análises descritivas dos textos
O aspecto literário tem presença marcante em textos jornalísticos registrados no século
XIX, e seu reflexo pode ser também notado nas matérias do Monitor Campista, não apenas na
linguagem, mas também em outras discussões documentadas pelo periódico. 32
Como sabemos, a língua – neste caso específico, a Língua Portuguesa, oriunda do
Latim – está em constante processo de mudanças que não são sentidas imediatamente por seus
falantes nem estes são obrigatoriamente conscientes dessas (MUSSALIM; BENTES, 2001).
Tais mudanças, que podem acontecer em nível fonético-fonológico (sons), por analogia,
gramaticalmente ou na semântica (significado), são caracterizadas pelos seguintes fatores: “a)
as mudanças são lentas e graduais; b) elas são parciais, envolvendo apenas partes do sistema
lingüístico e não o seu todo; c) elas sofrem influência de uma força oposta, a força de
preservação da intercompreensão” (Ibid., p. 81).
A duplicação de letras, apagamento de outras e surgimento de tantas são alguns
fenômenos apontados nos textos, que registram partes do processo de transição da língua no
decorrer desse último século. A perda, a adição de fonemas (aférese e epêntese,
respectivamente) e a assimilação são as variações mais freqüentes nos textos analisados.
Ao compararmos as mudanças da Língua Portuguesa, observando o registro antigo e o
atual, pudemos observar diferentes marcações como o plural de algumas palavras feito
diferentemente de hoje, e até mesmo as formas escritas de alguns tempos verbais, sendo
grafadas de maneira bem distinta em relação ao que é praticado atualmente. Segundo
Mussalim; Bentes (2001), um item lexical deixa de existir em certa comunidade lingüística
devido, principalmente, à sua baixa freqüência de uso. Em textos antigos – como é o caso dos
textos analisados neste trabalho – não é possível estabelecer com precisão quando o item não
faz mais parte do vocabulário da língua analisada.
2.1
Da inauguração do Monitor a Nilo Peçanha – 1834
O exemplar que marca a inauguração do jornal Monitor Campista, em 4 de janeiro de
1834, apresenta como manchete o editorial “Prospecto”, assinado pelos redatores, que
demonstrava a linha editorial com a qual a equipe do jornal passaria a atuar33:
A tarefa de escrever para o publico, que em todos os tempos foi árdua,
torna-se mais que nunca agora, que passa como por moda calunniar-se,
diser invectivas em vez de admoestar, e combater com decência doutrinas
oppostas.
Tal objetivo propõe combate ideológico levando em consideração as regras da moral,
prometendo um jornalismo sem calúnias, como já era comum à época, conforme demonstra o
recorte: “Censuraremos com energia os actos públicos dos Cidadãos, e com especialidade os
dos Empregados no exercício de suas obrigaçoens, huma vez que não forem conformes com a
ley...”
32
Quanto à história do Monitor, é importante frisar que a marca “Monitor Campista” foi cunhada em 1846, 12
anos após a fundação do jornal que surgiu como “O Campista”, e era bissemanário (publicado às quartas e
sábados). Segundo consta a cronologia do jornal, em 1835, o periódico tinha como título “O Recopilador
Campista”, publicado numa continuação ao anterior. Em 1838, “O Monitor” e em 1839, “o Novo Recopilador
Campista”, também publicado nos mesmos dias. Em 1840, era publicado como “O Monitor Campista”, até
chegar 1846, com o nome atual, “Monitor Campista”, também bissemanário, mas com edições às terças e sextas.
(Arquivo do Monitor Campista, sediado à Rua João Pessoa, 202, Campos, RJ).
33
Ver Anexo 1.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
63
Analisando a linguagem escrita utilizada no texto, é possível destacar variantes
diacrônicas em relação ao registro atual de nossa língua. Notam-se variáveis como os plurais
em “õens”, que, na Língua Portuguesa, passaram por transformações, como registram as
palavras obrigaçoens, produçoens, modificaçoens e paixoens. Neste processo, a letra “N” foi
apagada, ficando a nasalização marcada somente pelo til.
Vale ressaltar que os ditongos decrescentes “EU” e “AI” eram grafados com “EO” e
“AE”, respectivamente. O registro gráfico coincide com o fonológico. Como exemplos desse
fenômeno lingüístico, temos o sintagma nominal “seos principaes”.
Algumas palavras continham letras duplicadas e o encontro “CT”, atual em Portugal,
era vigente, no nosso idioma, no século passado. Vejamos esses fenômenos no fragmento a
seguir. “[...] nosso periódico será composto de matérias variadas. Politica, economia publica,
ou domestica, commercio, agricultura, e artes serão seos principaes objectos”.
2.2
Da “Viagem Presidencial” às duas grandes guerras – 1910 a 1945
Quanto ao aspecto memorialístico, ressaltamos um fato da história política de Campos
dos Goytacazes e região: a visita do presidente Nilo Peçanha a Campos dos Goytacazes, sua
terra natal, e ao Espírito Santo, registrada no jornal, com destaque, em 28 de junho de 1910,
na matéria “Viagem Presidencial”34. Apontamos os costumes nas realizações dos festejos
campistas, registrando, por exemplo, a importância da Ferrovia Leopoldina, um dos principais
meios de condução da época na região.
A estrutura lingüística textual do material que pesquisamos marca, neste momento, a
grafia da palavra “ontem” com H e a duplicação do L, como se lê neste fragmento e em
outros: “Na notícia que demos hontem dos brilhantes festejos realizados nesta cidade em
honra ao Sr. Dr. Nilo Peçanha, illustre presidente da Republica, por omissão deixámos de
mencionar que a banda musical...” Um outro registro curioso foi o da palavra “hino”,
encontrada dessa forma no texto: “Ao chegar o comboio presidencial, executado o Hynno
Nacional pela apreciada banda musical da Sociedade União Operária, sendo ao terminar
levantados enthusiasticos vivas ao Dr. Nilo Peçanha”.
Em 1914, exatamente em 23 de agosto, o periódico publicava “Conflagração Européa
– Guilherme II”.35 O mundo era vítima de sua Primeira Grande Guerra. Em Campos e região,
as notícias sobre o fato podiam ser acompanhadas pelo jornal que, com a linguagem
empolada, demonstrava sua linha editorial e política, com elogios, críticas e, neste caso
específico, com louvor à Alemanha. A adjetivação, portanto, foi a determinante semântica
neste texto:
Eis uma figura que encherá o século XX. O patriotismo do imperador
allemão, fazendo-o desejar fronteiras vastas e dilatadas para a sua pátria, o
domínio dos mares para a sua esquadra, atirou-se numa partida de sahida
duvidosa... Todos viam com interesse o seu progresso estupendo em todos
os ramos da actividade humana, respeitando-a e admirando-a, como
representante perfeita da civilisação...Por isto dizemos que a figura de
Guilherme há de passar pelo século XX como um soberano temerário, ou de
um guerreiro que tornará sua pátria senhora do mundo.
34
35
Ver Anexo 2.
Ver Anexo 3.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
64
Na época da Segunda Guerra, as fotografias já eram publicadas junto com as notícias.
No caso do Monitor Campista, um correspondente cobria a guerra e os campistas podiam
acompanhar o que estava acontecendo em outra parte do mundo, como pôde ser observado na
publicação de 25 de agosto de 1944, na matéria “Tanques americanos penetraram em Paris”.36
Paul Ghali, correspondente dos Diários Associados e do Chicago Daly News, estava
na fronteira francesa nas imediações de Genebra, quando registrou, por via radiotelegráfica,
como os guerrilheiros eram capturados.
Neste caso, já notamos a transformação da língua através de palavras como “pano”
que, em 1914 grafava-se como “panno”, com duas letras N. A palavra “alemã”, também vem
na forma atual de sua grafia, sem os dois L, como também em 1914, quando era grafada como
‘allemã’. O mesmo ocorre com as palavras “anos” (grafada antes como “annos”):
Os guerrilheiros são fuzilados no local, quando capturados pelas tropas
nazistas, mas os ‘maquis’, que viram franceses passarem por torturas
indescritiveis nos quatro anos de ocupação alemã, tratam os prisioneiros
nazistas humanamente [...]. Os franceses sofreram tanto em mãos dos
nazistas, que é difícil para eles não estarem imbuídos do ódio e desejo de
vingança. Mas no seu novo papel de vencedores, eram de vez em quando a
admirável restrição que se impõe [...].
Na década de 40, com as variações pelas quais a Língua Portuguesa e,
conseqüentemente, a linguagem jornalística escrita37, estavam passando – há registros feitos
com características literárias como, por exemplo, o uso da primeira pessoa. Este procedimento
cumpre funções, tipicamente da literatura, como a emotiva e a poética. Quanto às variações, já
encontramos as palavras ‘um’ (anteriormente hum), ‘três’ (anteriormente tres, sem acento) e
‘eles’, que em 1888, por exemplo, grafava-se ‘elles’.
Encontrei-me, por exemplo, com o tenente Breton e o capitão Charles. O
primeiro disse-me que sua esposa, esperando filho, foi arrastada pelos
cabelos nas ruas de Annec pelos nazistas, simplesmente porque ele era um
oficial dos ‘maquis’. Pela mesma razão a casa do capitão Charles foi
arrasada em Vallary, e sua esposa e um de seus três filhos mortos. Esses
dois combatentes são senhores das vidas de centenas de nazistas, e os
cativos são ´bem tratados´- conforme eles mesmos declaram.
2.3
Variações em reportagens da década de 60 e fim do século XX – Ditadura Militar
e Governo Garotinho
No exemplar de 07 de abril de 1964, o Monitor publicava a matéria “Marcha da
Família com Deus constituiu verdadeira consagração à democracia”.38 Num período em que o
país foi marcado por perseguições políticas – a cidade inclusive –, na era da Ditadura Militar,
36
Ver Anexo 4.
Até os anos 40, no Brasil, as matérias jornalísticas eram marcadas por elementos retóricos, presença de
opinião e digressões narrativas, mas, a partir dessa data, por influência do jornalismo americano, que desde o
início do século já havia implantado técnicas de redação mais objetivas, os jornais brasileiros introduzem o lead
e o sublead, que representam uma revolução lingüística e uma nova representação da notícia. (PENA, 2005;
GENRO FILHO, 1987; CORRÊA, 2003; AMARAL, 1997; ERBOLATO, 1992; SCHUDSON, 1978).
38
Ver Anexo 5
37
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
65
o jornal registrava manifestações em busca de paz. O primeiro parágrafo do texto já registrava
as modificações na linguagem, como a palavra ‘um’, que já fora escrita da forma ‘hum’.
Constituiu verdadeira consagração à democracia e às tradições cristãs do
povo a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, realizada domingo
em Campos. O movimento galvanizou a atenção e os sentimentos da
população campista, oferecendo um espetáculo de fé e confiança nos
destinos do Brasil.
No mesmo exemplar, complementando o primeiro texto, o jornal registrava como o
período de perseguição política marcou o município, na matéria “Polícia efetuou ontem em
Campos cerca de 30 prisões.”
Cumprindo ordens superiores, a Polícia de Campos iniciou ontem uma série
de diligencias para prender varias pessoas comprometidas com os ultimos
acontecimentos, notadamente lideres sindicais suspeitos de vinculação com
o comunismo. As prisões estão sendo efetuadas à base de uma lista
fornecida pelo Departamento de Polícia Social. Os presos estão sendo
recolhidos ao quartel do 2º Batalhão de Polícia Rural, onde também se
encontram varias pessoas detidas pelos mesmos motivos. Foram presos
ontem os lideres sindicais João Carneiro, dos SINE, Almirante Costa, da
Industria de Açúcar, Amaro Maciel, dos Ferroviários.
O texto apresenta as palavras “ontem”, que em 1883 e em 1910, como comprovam os
exemplos dos textos, grafavam-se como “ontem”. Foram retiradas ainda como exemplos, as
palavras “uma”, anteriormente registradas como “huma” e “açúcar”, que em 1878 grafava-se
“assucar”. O verbo “foram” também foi selecionado, pois em 1878, grafava-se “forão”, assim
como a palavra “locais”, que em 1883 e 1910 era escrita da seguinte forma: “locaes”.
Para a mostra da linguagem, já na década de 90, foi selecionado o texto intitulado
“Garotinho negocia desfiles de carnaval no mês de julho”, de 23 de janeiro de 1997,
noticiando um fato que marcou o governo de Anthony Garotinho no município de Campos
dos Goytacazes. O texto fala sobre a mudança na data da programação do Carnaval na
cidade.39
Os desfiles de Bois Pintadinhos, blocos e escolas de samba poderão ser
realizados no próximo mês de julho, período de férias escolares e época
previstas pelo prefeito Anthony Garotinho em que as dívidas da Prefeitura
deverão estar sanadas. No momento, ao fazer sua exposição de motivos,
justificando a impossibilidade de ajudar as agremiações, por absoluta falta
de recursos, o prefeito enumerou itens da relação de dívidas do Governo
Municipal, herdadas da gestão passada, totalizando em cerca de R$50
milhões de reais.
39
Ver Anexo 6.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
66
Para exemplificar a mudança, foram selecionadas as palavras “realizados”, que em
1883, era grafada com a letra S ao invés da Z, como na palavra “realisaria”. As palavras
ontem, sem a letra H, e “público”, já acentuado, também podem ser usadas como exemplos.
Este recorte material nos oferece um extrato do desenvolvimento da língua escrita – e
conseqüentemente, a falada – com o passar dos anos. Nosso objetivo, nesta pesquisa, é
demonstrar que o jornal é um veículo que, legitimamente, apresenta um retrato da memória de
um povo, num dado momento, e esta memória é desenhada por um estágio peculiar na
trajetória de uma língua40.
3 Considerações finais
Um texto é uma unidade de linguagem em uso, cumprindo uma função definida em
qualquer jogo de atuação sociocomunicativa. Dessa afirmação, obtém-se uma premissa: a
palavra será sempre o fator de comunicabilidade, e o texto deve ser visto tanto como uma rede
de informações, organizado e estruturado, quanto um objeto de comunicação, fruto de um
contexto histórico e social.
O idioma que chegou ao Brasil, no século XVI, tinha traços próprios e marcantes e,
através de uma natural evolução temporal ou uma tendência à mistura e sobreposição de
outros idiomas, foi sendo inovado.
Vimos, portanto, que a tematização e a abordagem jornalísticas dos fatos
socioculturais de uma sociedade ao lado do seu registro estão de certa forma associados a esse
desenvolvimento da linguagem e suas variantes, de acordo com o passar do tempo. O Monitor
Campista, por meio de sua linguagem jornalística e sua atuação, em 173 anos, contribui para o
registro histórico de Campos dos Goytacazes e região. O texto jornalístico do veículo vai
refletindo a força da indústria e suas letras vão acompanhando esse traçado; portanto, as
mudanças lingüísticas vão se fazendo notar, o que serve como uma rica fonte para esta, e
muitas outras pesquisas sobre o assunto referente à língua.
Entendemos que, se os fenômenos se repetem, existem peculiaridades que podemos
destacar. Para tal análise, recorremos ao pensamento de Paiva; Duarte (2003, p. 81-88), que
concluem haver no passado uma variação sensível de um determinado fenômeno em
diferentes gêneros literários. É de se esperar que o mesmo ocorra hoje.
Referências
AMARAL, Luiz. Jornalismo: matéria de primeira página. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997
40
Entre outros fenômenos lingüísticos, localizamos na pesquisa, entre outros, epêntese do fonema /k/ grafado
com c, quando antecedido pelo fonema /t/; duplicação de consoantes; ausência da acentuação gráfica nas
paroxítonas; grafia da letra s para o fonema /z/ em palavras que atualmente se escrevem com z; ausência do
acento gráfico em proparoxítonas; epêntese da letra h quando não correspondente a um fonema; grafia de aes
para o encontro atual ais; registro gráfico do y para o fonema /i/ (vocálico ou semivocálico); nasalização
registrada com n/m em vez do til em encontros como oens/ões e o contrário como em ão/am; grafia de eo para o
encontro em seus; ausência de acento gráfico em oxítonas terminadas em em; fonema /k/ grafado com ch em
palavras que, hoje, grafam-se com q; acentuação gráfica do ditongo ôa; registro do ditongo ou em vez de oi;
supressão do fonema /i/ no encontro ei; grafia do z para o fonema /z/; “enfim” grafado com m; epêntese do
fonema /k/ grafado com c em predilecção; epêntese do g em signal.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
67
BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1989
BRAGANÇA, Aníbal; MOREIRA, Sonia Virgínia Moreira (org.). Comunicação,
acontecimento e memória. Intercom, Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação, São Paulo, 2005
CALDAS, Álvaro. O desafio do velho jornal é preservar seus valores. In: CALDAS,
Álvaro (org). Deu no jornal: o jornalismo impresso na era da internet. 2ª edição. São Paulo:
Edições Loyola, 2004
CALDAS, Álvaro. Deu no jornal: o jornalismo impresso na era da internet. São Paulo:
Loyola, 2ª edição, 2004
CORREA, João de Deus. Pesquisa em jornalismo. Rio de Janeiro: Mimev, 2003
ERBOLATO, Mario. Técnicas de codificação em jornalismo. São Paulo: Ática, 1991
GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide: Para uma Teoria Marxista do
Jornalismo. 1987. Disponível em www.adelmo.org
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução: Bernardo Leitão. Universidade Estadual
de Campinas/Unicamp, 1996
MAINGUENEAU, Dominique. Introdução à Lingüística. Lisboa: Gradiva, 1997.
MOLLICA, Maria Cecília. Fundamentação teórica: conceituação. In: MOLLICA, Maria
Cecília e Maria Luiza Braga (orgs). Introdução à Sociolingüística – O tratamento da variação.
São Paulo: Contexto, 2003
MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (org.). Introdução à Lingüística 1 –
Domínios e Fronteiras. Cortez Editora: São Paulo, 2001
NARO, Anthony Julius. O Dinamismo das Línguas. In: MOLLICA, Maria Cecília e Maria
Luiza Braga. Introdução à Sociolingüística – O tratamento da variação. São Paulo: Contexto,
2003
PAIVA, Maria da Conceição de; DUARTE, Maria Eugênia L. Mudança Lingüística:
observações no tempo real. In: MOLLICA, Maria Cecília e Maria Luiza Braga. Introdução à
Sociolingüística – O tratamento da variação. São Paulo: Editora Contexto, 2003
PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2004
SCHUDSON, Michael. Discovering the news: a social history of American newspapers.
New York: Basic Books, 1978.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
68
ANEXOS
Anexo 1
Jornal O Campista
Exemplar 01
Ano - 1
Data: Vila de São Salvador de Campos, 4 de Janeiro de 1834
Matéria analisada: Prospecto
Se emprehendendo a redação deste periódico consultássemos unicamente nossas
forças intelectuaes, sem duvida nunca se realisaria esse projecto: tal [...] a convicção que
temos de nossas poucas luzes!
[...] huma consideração maior [...], qual o dever que tem todo o cidadão de concorrer
com o que poder para utilidade commum.
A tarefa de escrever para o publico, que em todos os tempos foi árdua, torna-se mais
que nunca agora, que passa como por moda calunniar-se, diser invectivas em vez de
admoestar, e combater com decência doutrinas oppostas. Nossa conducta será inversa.
Censuraremos com energia os actos públicos dos Cidadãos, e com especialidade os dos
Empregados no exercicio de suas obrigaçoens, huma vez que não forem conformes com a ley;
porem nisto não perderemos de vista os preceitos de moral e as regras de huma boa educação,
cujos limites não ultrapassaremos.
[...] O nosso periódico será composto de matérias variadas. Politica, economia publica,
ou domestica, commercio, agricultura, e artes serão seos principaes objectos.
[...] Desde já observamos que, além dos annuncios sobre commercio, [...] e alguma
exposição suscinta, e decente sobre factos, de cuja historia possa resultar algum bem para o
público, não inseriremos em nossa folha outras produçoens alheias, e mesmo aquellas ficarão
subjectas as modificaçoens, que julgamos útil fasermos. Polemicas sustentadas para satisfazer
paixoens particulares serão absolutamente banidas della.
(Os Redactores)”
Anexo 2
Jornal Monitor Campista
Exemplar nº 152
Anno 74
Data: 28 de junho de 1910
Matéria analisada: Viagem Presidencial
Na notícia que demos hontem dos brilhantes festejos realizados nesta cidade em honra
ao Sr. Dr. Nilo Peçanha, illustre presidente da Republica, por omissão deixámos de mencionar
que a banda musical União dos Operários de S. João da Barra, também tomou parte nas festas,
toando em diversos pontos e a bordo do vapor Cachoeiro, quando conduzia o chefe da nação a
Guarulhos [...].
CACHOEIRO DE ITAPEMERIM
Chegou hoje 27 a esta cidade, as 7 horas e dez minutos da manhã o Exmo. Sr. Dr. Nilo
Peçanha, acompanhado da sua comitiva. Desde ás 5 ½ horas da manhã começaram a fluir á
gare da Leopoldina innumeras Exmas, famílias, commissões, associações locaes, grupos
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
69
escolares e grande massa popular. A cidade achava-se caprichosamente enfeitada desde
hontem reinando indisivel enthusiasmo na população pelo grande e auspicioso acontecimento
de hospedar, embora por poucos momentos, o eminente chefe da nação. Ao chegar o comboio
presidencial, executado o Hynno Nacional pela apreciada banda musical da Sociedade União
Operária, sendo ao terminar levantados enthusiasticos vivas ao Dr. Nilo Peçanha.
Pelo orador da Commissão encarregada da recepeção, Dr. Manuel Alves de Barros
Junior, foi [...] saudado em vibrante discurso, logo ao saltar do carro.
O orador disse sentir-se emocionado pela satisfação que lhe proporcionava a
opportunidade de saudar ao eminente chefe do Estado, cujas qualidades de verdadeiro
republicano e abnegado estadista o emmendam á gratidão de todos os brasileiros patrióticos;
disse que a sua visita a este Estado constitue um facto memorável para a historia do Espírito
Santo.
Anexo 3
Jornal Monitor Campista
Exemplar nº 197
Anno 78
Data: 23 de agosto de 1914
Matéria analisada: Conflagração Européa – Guilherme II
Eis uma figura que encherá o século XX.
O patriotismo do imperador allemão, fazendo-o desejar fronteiras vastas e dilatadas
para a sua pátria, o domínio dos mares para a sua esquadra, atirou-se numa partida de sahida
duvidosa.
Lançou um cartel de desafio a todo o mundo, a quem fez dizer pelo principal de Von
Bulow: ‘inda que o mundo esteja cheio de diabos a Allemanha conservará o seu logar ao sol’.
O logar da Allemanha.
Ninguém se lembrava de disputar a florescente nação o seu justo prestigio.
Todos viam com interesse o seu progresso estupendo em todos os ramos da actividade
humana, respeitando-a e admirando-a, como representante perfeita da civilisação.
Mas um momento houve em que esse progresso foi dirigido, não para o
aperfeiçoamento interno, para a manutenção do seu logar entre as demais potencias.
Passou a ser feito contra ellas.
O governo de Kaiser, quando o seu exercito era um perigo, já um colosso sem falhas,
entendeu de augmental-o demais um terço quasi!
Um imposto sobre a renda, cobrão immeditamente, o que apenas um perigo nacional
autorisaria, foi lançado.
Em verdade os patriotas allemães prestamente pagaram.
Foi toque de alarma que assombrou os outros paizes.
Difficilmente se poderia acompanhar a formidável Allemanha, que de um desemedido
accrescia as suas forças terrestres e marítimas.
Em poucos annos o mundo seria um vasto feudo allemão.
Atemorisadas com essas forças maravilhosas, que tanto custavam e de certo não eram
mantidas para o simples praser das paradas, as potencias européas uniram-se e offereceram
luta ao colosso.
Guilherme acceitou, ou antes provocou-as todas, uma a uma.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
70
Estará elle cônscio da força gigantesca que se lhe vae oppor, da tempestade de ferro e fogo
que soará sobre os seus exércitos?
Poderá a Allemanha, atacando a pequena e estupendamente valorosa Bélgica,
resistindo á França, e á Inglaterra, oppor algum embaraço á avalauche rusra, que virá feroz,
em furacão tudo nivelando em sua passagem?
E ella está só porque o auxílio da Áustria é muito precário. O que em realidade
veremos, há de ser a luta de uma nação contra quatro ou cinco congregadas.
Por isto dizemos que a figura de Guilherme há de passar pelo século XX como um
soberano temerário, ou de um guerreiro que tornará sua pátria senhora do mundo.
Anexo 4
Jornal Monitor Campista
Exemplar nº 204
Anno 110
Data: 25 de agosto de 1944
Matéria analisada: Tanques americanos penetraram em Paris
Roma, 24 (U.P) – O comando aliado emitiu o seguinte comunicado pessoal sobre as
operações da França:
‘No Zona de Toulon, continua a luta na área do porto e algumas partes da cidade. O
inimigo continua sua resistencia desde a península a sudeste da cidade e ao sul de Olliules, na
zona oriental do porto, onde está situado o forte de Saint Louis, e desde a península
fortificada, ao sul de La Pradet.
Em Marselha embora quase toda a cidade se ache em poder dos franceses, bolsões de
resistência inimigos continuam lutando na zona portuária. Ao nordeste, elementos de
avançada se aproximaram a menos de 16 quilômetros do rodano, na direção de Arles. Foram
feitos novos avanços também pata o norte’.
Neutralizados objetivos Germânicos
Roma, 24 (U.P.) – Anunciou-se que navios de guerra norte-americanos, britanicos e
franceses voltaram a canhonear intensamente a zona de Marselha até o golfo de Napoule.
Informa-se mais que um cruzador norte-americano e o francês ‘Goire’ apoiaram
eficazmente as tropas nas cercanias de Toulon. Outro cruzador norte-americano neutralizou os
objetivos alemães nas proximidades de Giens.
[...]
São fuzilados os ‘maquis’
Quando presos, não escapam á morte
Paul GHALI
(correspondente dos Diários Associados e do Chicago Daly News)
FRONTEIRA FRANCESA NAS IMEDIAÇÕES DE GENEBRA, 22 (via
radiotelegráfica) – Os guerrilheiros são fuzilados no local, quando capturados pelas tropas
nazistas, mas os ‘maquis’, que viram franceses passarem por torturas indescritiveis nos quatro
anos de ocupação alemã, tratam os prisioneiros nazistas humanamente. Os próprios cativos
nazistas confirmaram isto durante uma visita que fiz domingo último á cidade libertada de
Annecy. Os prisioneiros tomavam calmamente uma sopa, enquanto os ‘maquis’ os vigiavam.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
71
Os guerrilheiros falaram sobre as varias vezes – que as guarnições nazistas levantaram
bandeira branca, em pretensa rendição, lançando depois granadas quando os patriotas se
aproximavam.
Os franceses sofreram tanto em mãos dos nazistas, que é difícil para eles não estarem
imbuídos do ódio e desejo de vingança. Mas no seu novo papel de vencedores, eram de vem
em quando a admirável restrição que se impõe.
Encontrei-me, por exemplo, com o tenente Breton e o capitão Charles. O primeiro
disse-me que sua esposa, esperando filho, foi arrastada pelos cabelos nas ruas de Annec pelos
nazistas, simplesmente porque ele era um oficial dos ‘maquis’. Pela mesma razão a casa do
capitão Charles foi arrasada em Vallary, e sua esposa e um de seus três filhos mortos.
Esses dois combatentes são senhores das vidas de centenas de nazistas, e os cativos
são ´bem tratados´- conforme eles mesmo declaram.
Anexo 5
Jornal Monitor Campista
Exemplar nº 74
Ano 120
Data: 07 de abril de 1964
Matéria: Marcha da Família com Deus constituiu verdadeira consagração à democracia
Constituiu verdadeira consagração à democracia e às tradições cristãs do povo a
Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade, realizada domingo em Campos. O movimento
galvanizou a atenção e os sentimentos da população campista, oferecendo um espetáculo de fé
e confiança nos destinos do Brasil.
A partir das 15 horas, grande massa popular, incluindo pessoas de todas as classes
sociais, concentrou-se na praça São Benedito, de onde partiu o desfile, percorrendo as ruas
centrais da cidade até à Praça do Salvador.
BANDEIRAS E LENÇOS BRANCOS
Os participantes da Marcha empunhavam bandeiras ou acenavam lenços brancos que
deram um tom festivo e cívico ao comício que se realizou, ao fim do desfile, na Praça do
Salvador.
[...]
Anexo 6
Jornal Monitor Campista
Exemplar nº 18 - Ano 164
Data: 23 de janeiro de 1997
Matéria: Garotinho negocia desfiles de carnaval no mês de julho
Os desfiles de Bois Pintadinhos, blocos e escolas de samba poderão ser realizados no
próximo mês de julho, período de férias escolares e época previstas pelo prefeito Anthony
Garotinho em que as dívidas da Prefeitura deverão estar sanadas. No momento, ao fazer usa
exposição de motivos, justificando a impossibilidade de ajudar as agremiações, por absoluta
falta de recursos, o prefeito enumerou itens da relação de dívidas do Governo Municipal,
herdadas da gestão passada, totalizando em cerca de R$50 milhões de reais.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
72
Ao receber os representantes das agremiações de carnaval, na tarde de ontem na sede
do Governo Municipal, Garotinho deixou também ventilada a possibilidade de Campos fazer
um carnaval patrocinado, assim como a programação de verão no litoral, em que a Prefeitura
nada desembolsou. Por outro lado, destacou ainda a novidade de se promover a maior festa
popular, extraordinariamente este ano, durante o mês de férias escolares, esperando contar
com um público maior na avenida. Até lá, as agremiações deverão procurar fazer promoções
em suas quadras ou clubes, para começar a fazer um fundo de custeio para o Carnaval.
O prefeito começou respondendo ao presidente da Associação de Escolas de Samba de
Campos – Aesc, Ariel Chacar, que encontrou a prefeitura falida, devendo cerca de R$ 3
milhões e 600 mil reais da folha de dezembro dos servidores, cerca de R$2 milhões de reais
contraídos pelo Hospital Ferreira Machado além do rateio de 96 parcelas de R$185 mil reais
por mês, para abater o débito da Prefeitura com o INSS, entre outros itens.
[...].
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
73
“
b
CORVO” de Poe visita o Brasil:
a tradução criativa e genial de Machado de Assis
Ana Lúcia Lima da Costa*
____________________________________________________________________Resumo
Este ensaio observa a tradução criativa que o genial escritor brasileiro Machado de Assis fez da poesia
O Corvo, de Edgar Alan Poe, tratando-a com a reverência que um texto canônico como o de Poe
merece, mas sem servilismo. O cotejo entre os dois textos foi fundamental para confirmarmos como a
tarefa do tradutor, numa literatura periférica como a nossa, pode funcionar como releitura da
dependência cultural, diluição de modelos exclusivos de referência, revisão de conceitos de cópia,
imitação e plágio. A relação entre tradução e processos criativos é fecunda e atua como possível
reveladora de talentos nacionais. Neste ano em que comemoramos o Ano Nacional Machado de Assis
é ainda mais relevante debruçarmos sobre a obra do escritor oitocentista.
Palavras-chave: tradução- poesia- Machado de Assis - transcriação
___________________________________________________________________________
A literatura como Proteu, troca de formas, e nisso está a
condição de sua vitalidade.
Machado de Assis
Introdução
Quando lidamos com tradução de textos estéticos, cuja significação ultrapassa sua mensagem
conteudística e se torna parte de um processo de interação entre o leitor e a obra, fica ainda mais difícil
abarcar toda a riqueza de significados e transpô-la para uma outra língua. Diante desse impasse e de
sentenças taxativas quanto à impossibilidade da tradução de textos literários, chega-se a uma saída
possível: assumir a falta e transformá-la em trampolim para a criação. Esse é o caso da transcriação.
Transcriação é um neologismo cunhado pelo crítico Haroldo de Campos para nomear um tipo
de tradução que ultrapassa os limites do significado e se propõe a fazer funcionar o próprio processo
de significação original numa outra língua. Essa proposta retoma criativamente o “modo de
intencionar” do original e o recria de modo artístico, através de sutilezas da forma e da linguagem em
português.
Nessa tarefa, a voz do tradutor, afônica antes, ganha timbre novo e autonomia dentro
do texto em oposição a uma tentativa de transparência frustrada porque nunca conseguida. O
nosso Machado de Assis, em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as
quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor que
qualquer outro na carreira de um escritor e, respeitando o original, sem servilismo, exerceu
essa atividade durante toda a sua carreira literária .
Machado de Assis principiou sua atividade tradutória escrevendo duas imitações: Minha Mãe
(imitação de Willian Cowper) – poesia, em 1856 e Hoje Avental, Amanhã Luva ( La chasse au Lion,
de Vattier et De Najac) – teatro, em 1860. Aqui neste ensaio trataremos de sua tradução mais famosa O Corvo, poema de Poe escrito em 1845, traduzido por Machado de Assis em 1883. Torna-se
necessário tomarmos, então, tanto o “original” de Poe quanto O Corvo de Machado para melhor
*
Pós-Doutoranda em Ciência da Literatura/ Literatura Comparada (Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ)
Doutora em Ciência da Literatura/ Literatura Comparada (Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ), Mestre
em Letras/ Teoria da Literatura (Universidade Federal de Juiz de Fora- MG).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
74
exemplificarmos as alterações criativas na tradução do escritor brasileiro a fim de confirmarmos a
genialidade de sua transcriação:
The Raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“ ‘Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber doorOnly this, and nothing more.”
O Corvo
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”
No texto de Edgar Allan Poe podemos observar já na primeira estrofe um denso
cruzamento de rimas finais e internas, completado por abundantes aliterações e todo tipo de
assonâncias, constituindo um absorvente desafio a sua tradução.
O nosso Machado traduziu com perfeita transposição do sentido e do clima, além de
algumas artimanhas sonoras, como por exemplo retomar o som “or” de “more” e “Lenore”
de Poe nas rimas “morta”/ “porta”.
Ah, distinctly I remember it was the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
Form my books surcease of sorrow – sorrow for the lost Lenore –
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore –
Nameless here for everymore.
Ah! Bem me lembro! Bem me lembro!
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
75
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.
Quanto à metrificação, verificamos que Poe utiliza versos de 16 sílabas, enquanto
Machado de Assis alterna entre versos de 8, 10 e 12 sílabas.
And the sliken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me- filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart. I stood repeating,
‘Tis some visitor entreating entrance at my chamber doorSome later visitor entreating entrance at my chamber door;This it is, and nothing more.”
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e “Com efeito,
(Disse), é visita amiga e retardada
“Que bate a estas horas tais.
“É visita que pede à minha porta entrada:
“Há de ser isso e nada mais”.
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
“Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore;
but the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
and so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
76
that I scarce was sure I heard you”-here I opened wide the door;Darkness there, and nothing more.
Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo:“Imploro de vós – ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
“Mas como eu, precisando de descanso
“Já cochilava, e tão de manso e manso,
“Batestes, não fui logo, prestemente,
“Certificar-me que aí estais”.
Disse; a porta escancar, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreamind dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was whispered word, “Lenore!”
This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!” –
Merely this, and nothing more.
Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, com um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
“Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice:
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
77
Let me see, then, what thereat is, and this mystery exploreLet my heart be stiil a moment and this mystery explore;‘Tis the wind and nothing more.”
Entro co’a alma incendiada,
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte eu,voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
“Eia, fora o temor, eia, vejamos
“ A explicação do caso misterioso
dessas duas pancadas tais,
“Devolvamos a paz ao coração medroso,
“Obra do vento, e nada mais”.
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance mede he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door –
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door –
Perched, and sat, and nothing more.
Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto, Movendo no
ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
78
“Though thy crest be shorn and shaven, thou, “I said, “art sure no craven,
Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore –
Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagas
“Vens, embora a cabeça nua tragas,
“Sem topete, não és ave medrosa,
“Dize os teus nomes senhoriais;
“Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
Aqui, Poe atribui a origem do corvo ao submundo infernal relacionando-o com a
figura mitológica de Plutão; já Machado não cita tal figura mas em contrapartida acrescenta a
expressão “noite umbrosa” ao seu texto.
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning – little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blest with seeing bird above his chamber door –
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as “Nevermore.”
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
79
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais”.
But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered – not a feather then he flutteredTill I sacracely more than muttered, “other friends have flown before.”
Then the bird said, “Nevermore.”
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
“Tantos amigos tão leais!
“Perderei também este em regressando a aurora”
E o corvo disse: “Nunca mais!”
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store,
caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
followed fast and followed faster till his songs one burden boretill the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of ‘Never – nevermore’.”
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! É tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
“Que ele trouxe da convivência
“De algum mestre infeliz e acabrunhado
“Que o implacável destino há castigado
“Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
“Que dos seus cantos usuais
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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“Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
“Esse estribilho: “Nunca mais”.
But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;Then upon the velvet sinking, I bettok myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yoreWhat this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird of yore
Meant in croaking “Nevermore.”
Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: “Nunca mais”.
Na citada estrofe, constatamos que Poe emprega uma intensa e freqüente adjetivação,
enquanto Machado apresenta uma tendência à concisão de idéias e formas na tradução da
mesma estrofe e diz apenas: “ave do medo”.
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion’s velvet lining that the lamplight gloated o’er,
But whose velvet violet linig with the lamplight gloating o’er,
She shall prees, ah, nevermore!
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; se lhe não falava,
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.
Then methought the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.
“Wretch, “I cried, “Thy God hath lent thee- by these angels the hath sent sent thee
respite – respite and nepenthem from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estava, meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
“Manda repouso à dor que te devora
“Destas saudades imortais.
“Eia, esquece, eia olvida essa extinta Lenora”.
E o corvo disse: “Nunca mais”.
Aqui averiguamos que Poe menciona uma antiga droga dos gregos utilizada para curar
a tristeza: o nepente. Esta droga ajudaria a esquecer a amada Lenore.
Já Machado apenas reforça o fato de esquecer a amada e não cita droga alguma.
“Prophet!” said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil!Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchantedOn this home by horror haunted – tell me truly, I implore!
Is there – is there balm in Gilead? – tell me – tell me, I implore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
“Onde reside o mal eterno,
“Ou simplesmente náufrago escapado
“Venhas do temporal que te há lançado
“Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
“Tem os seus lares triunfais,
“Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
“Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us – by that God we both adoreTell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name LenoreClasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
“Por esse céu que além se estende,
“Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
“Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
“No Éden celeste a virgem que ela chora
“Nestes retiros sepulcrais,
“Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: “Nunca mais!”
Neste ponto, enquanto Poe menciona o Éden como o lar de Lenora, Machado apenas o
chama de “Éden celeste”.
“Be that word our sign in parting, bird or fiend, “I shrieked, upstarting“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Leave my loneliness unbroken!-quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
“Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
“Regressando ao temporal, regressa
“À tua noite, deixa-me comigo...
“Vai-te, não fique no meu casto abrigo
“Pluma que lembre essa mentira tua.
“Tira-me ao peito essas fatais
“Garras que abrindo vão a minha dor já crua”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming,
And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor
Shall be lofted –nevermore!
E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
Considerações Finais
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
84
Pudemos verificar através do cotejo dos dois textos que o “original” de Poe é mais
enxuto porque a estrutura é diferente ( cada estrofe de Poe tem 5 versos longos e um curto,
enquanto Machado aumentou para 10 versos curtos).
E mesmo sendo a mais famosa de suas traduções, há opiniões controvertidas com
relação à tradução feita por Machado.
De acordo com Barroso e Masini (2002), The Raven (1845), é um clássico da poesia
inglesa que desafia tradutores – mais de trinta versões já foram feitas só em português e quase
nenhuma consegue o efeito conseguido no inglês que coaduna os efeitos de som da rima em –
ore ( never more e nothing more ) com Lenore, o nome da morta por quem o poeta sofre.
Para esses especialistas em tradução, manter “nunca mais” em português dá “suadouro
em tradutores de vários calibres” e não pouparam a tradução de Machado do texto de Edgar
Allan Poe afirmando que ela é um “equívoco”.
Em seus trabalhos, Barroso e Masini fazem excelentes compilações e avaliam as
poesias que melhor resgataram a força do original, mas se esquivaram de dizer que cada uma
delas serve de medida exata para mostrar que toda tradução, ainda mais em poesia, é pura
recriação e este ensaio procura reforçar isso mostrando que Machado de Assis entende por
originalidade o efeito da apropriação modificadora da forma de origem, portanto já não se
pode considerar sua tradução de O Corvo um equívoco.
Do mesmo modo que tudo o que se põe em discussão gera opiniões divergentes, com a
tradução não poderia deixar de ser assim, ainda mais de um texto célebre como O Corvo.
Então para Bellei (1992), por exemplo, “Machado universaliza o que Poe reduz a uma
percepção mais limitada da dor da perda no ser humano” (1992, p. 87) , ou seja, produz
originalmente na repetição, porque
enquanto Poe escreve um poema sobre um amante aflito pela perda da
mulher amada e usa o corvo como emblema dessa situação, Machado
reescreve o poema original dando ênfase ao corvo como centro de atenção e
à mensagem secreta que ele tem para oferecer à humanidade (1992, p. 83).
Sem a ambição dar a lista completa podemos garantir que há pelo menos 120 autores
de traduções de O Corvo nas principais línguas neolatinas da Europa ocidental. As traduções
brasileiras são consideradas muito livres do ponto de vista formal; são versões em sonetos, em
oitavas, em décimas e ainda versões em prosa, cordel e mesmo poesia visual.
Analistas da tradução feita por Machado de Assis avaliam desde seu comedimento na
descrição física do ambiente, considerado por muitos como fuga do “compromisso com a
realidade”, à consideração de que este mesmo fato tem justificativa nas características
estilísticas ligadas à sua prosa de segunda fase que valoriza o plano psicológico do amante,
perturbado e melancólico com a morte da amada.
O que podemos constatar é que certas escolhas lingüísticas e literárias assinalam para
maneiras distintas que diferentes tradutores lidaram com o texto de Poe, ou seja,
apropriaram-se dele com intenção de construir novas possibilidades de significação. Em
conseqüência disso, alertamos para o fato de que um texto nunca permanece intacto e
intocável diante de novos indivíduos e contextos, mas ao contrário, é lido e avaliado de modo
diverso a cada olhar, traduzido para uma realidade que jamais se coliga com o mesmo e a
estagnação.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
85
Com estes exemplos, pretendemos demonstrar o uso da citação como parte integrante
da formação intelectual e literária do escritor-tradutor. A tradução de fragmentos de textos
estrangeiros evidencia o importante papel que a tarefa tradutória exerceu não apenas na
carreira literária de Machado de Assis, mas também no contexto cultural da sociedade
brasileira oitocentista.
Referências
BARROSO, I. (Org). O corvo e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998.
BELLEI, S. L. P. “O Corvo Tropical de Edgar Allan Poe”. In: _________. Nacionalidade e
Literatura: os caminhos da alteridade. Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, p. 77-90.
BENJAMIN, W. A Tarefa do Tradutor. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1987.
CAMPOS, A . Poesia, Antipoesia, Antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1982.
CAMPOS, H. de . “Da tradução como Criação e como Crítica”. Metalinguagem. São Paulo:
Cultrix, 1976.
CARNEIRO, C. R. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
COSTA, A. L. L. Dependência Cultural: o caso Machado de Assis. (dissertação de
Mestrado). UFJF, 2001.
_______________ Machado de Assis tradutor: o labirinto da representação. (tese de
doutorado). UFRJ, 2006.
JACQUES, A. Machado de Assis: equívocos da crítica. Porto Alegre: Movimento, 1974.
POE, E. A. “O Corvo”. Tradução de Machado de Assis. In: MACHADO DE ASSIS, J.M.
Obras Completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p. 402-404.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
86
b
Auto da Compadecida:
uma Rosa no Sertão de Guel Arraes
Eusébio Dornellas*
____________________________________________________________________Resumo
O artigo tem como objetivo refletir sobre a intertextualidade no filme O auto da compadecida, do
diretor Guel Arraes, que insere em um novo contexto a obra do escritor Ariano Suassuna, sem perder o
ritmo narrativo da história original. Arraes, ao mesmo tempo em que deixa sua marca registrada na
obra, consegue ludibriar o leitor/espectador, levando-o a enxergar um só texto.
Palavras-chave: Teatro. Literatura Cinema. Ritmo narrativo. Intertextualidade.
___________________________________________________________________________
INTRODUÇÃO
O teatro é uma forma cultural que difere de outras apresentações culturais, pois tem na
oralidade – na maioria das vezes – seu vínculo de comunicação. Uma peça teatral não é a
mesma coisa que uma poesia, um conto ou um romance; esses se encaixam perfeitamente no
gênero literário enquanto tal. O teatro não se restringe a algumas folhas de papel nem à
simples utilização de técnicas teatrais (cenografia, iluminação, ritmo, interpretação etc.) para
acontecer. O palco é o grande suporte para que haja a manifestação teatral; enquanto um
romance, por exemplo, tem como base a sua encadernação, ou seja, folhas impressas e
formatadas que irão compor um livro.
O Teatro Adolescente do Recife apresentou o Auto da Compadecida no Primeiro
Festival de Amadores Nacionais, realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por
iniciativa da Fundação Brasileira de Teatro. Se a interpretação era boa (considerando aquilo
que se pode exigir de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto até
certo ponto inexperientes), o que chamou realmente a atenção foi o texto em si. Escrito por
Ariano Suassuna, a obra desperta fascínio até os dias de hoje e saltou dos palcos de teatro para
a tela de cinema.
O LIVRO
A obra de Ariano Suassuna se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste.
O Auto da Compadecida é uma peça de teatro, em três atos e foi escrito em 1955. A comédia
expõe problemas e situações típicos da cultura nordestina. Mistura religiosidade, cultura
popular, literatura de cordel e circo. É importante esclarecer que o texto mostra uma
representação de circo, em que se utiliza a figura de um palhaço para narrar pequenos trechos
da história entre um ato e outro.
O universo popular que a obra se inspira encanta o mais desatento leitor. As
personagens, independentemente de seus defeitos ou qualidades, assumem uma naturalidade
provinciana assaz original. O argumento se mantém fiel à teatralidade proposta, do início ao
*
Eusébio Dornellas é escritor, Bacharel em Ciências Contábeis (Faculdades Integradas Padre Humberto – FIPH)
e estudante de Comunicação Social / Jornalismo nas FIPH.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
87
fim do texto, com expressões engraçadas, por vezes inesperadas, que dão um colorido
especial à peça.
Os protagonistas João Grilo e Chicó elaboram inúmeros planos para conseguir um
pouco de dinheiro. A luta pela sobrevivência é o motor que os impulsiona a inventar os
maiores absurdos com a finalidade de se obter algum lucro. Enganar os outros era algo que
também os fascinava, como cita o personagem João Grilo:
Muito pelo contrário, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me
fizeram quando estive doente. Três dias passei em cima de uma cama para
morrer e nem um copo d’água me mandaram. Mas fiz esse trabalho com
gosto, somente porque se trata de enganar o padre. Não vou com aquela cara.
(SUASSUNA, 1997, p. 36).
O trabalho em questão foi conseguir com que o padre João benzesse o cachorro da
mulher do padeiro. No entanto, o padre só aceitou o propósito devido à mentira de João Grilo
que afirmara ser Antônio Moraes o dono do cachorro. Nesse mesmo trecho do livro, fica
evidente a predileção do representante da Igreja pelos ricos e poderosos em detrimento dos
pobres.
A peça menciona que o major Antônio Moraes possui um filho. Este é apenas citado,
sequer tem um nome. A única razão de ele existir é para se fazer a confusão entre o filho
doente do major e o cachorro doente da mulher do padeiro, ambos em busca da benção do
padre. Essa informação nos será bastante útil para entendermos a transposição textual da peça
para a arte cinematográfica.
A Igreja descrita por Suassuna tem mais de um representante religioso. Além do padre
João, há um sacristão, um bispo e um frade. O sacristão é um sujeito magro e pedante; o bispo
é um personagem medíocre; e o frade, a quem todos tratam com desprezo mal disfarçado, é a
alegria e a bondade em pessoa, o único elogiado por Jesus, como exemplo de pessoa a ser
seguido.
Identificamos na obra em questão uma aproximação com gêneros de outras épocas que
podem ter influenciado o trabalho de Suassuna. Na Idade Média, por volta do século XIV,
havia peças onde os milagres de Nossa Senhora eram evocados pelo herói que estivesse em
dificuldades, para conseguir se safar de um trágico fim no plano de vida terrana e, às vezes,
no plano de vida espiritual. A Commedia Dell´arte41 também parece ter deixado resquícios
sobre a pena do autor, principalmente na concepção dos personagens, especificamente na
figura de João Grilo, que lembra muito o arlequim.
A visão cristã da vida é apresentada com a simplicidade do espírito popular, sem
complicações, cujo povo de fé simples se agarra em uma religiosidade passada de geração a
geração. Não se percebe questionamentos ou reflexões filosóficas sobre o porquê de as coisas
serem como são; no entanto, a sabedoria popular, aliada a uma religiosidade fervorosa, ajuda
a compreender o que se passa na cabeça do sertanejo. A intimidade entre João Grilo e
Manuel, diante do tribunal, reforça a idéia da simplicidade na relação entre os homens e Deus.
O ponto culminante da peça é o julgamento dos mortos, quando João Grilo, padre
João, Sacristão, Bispo, Padeiro, Mulher do Padeiro, Severino do Aracaju e o Cangaceiro
ficam diante dos acusadores, O Encourado (o Diabo, no linguajar nordestino) e o demônio
41
Commedia Dell'arte (em português "comédia da arte"), famosa comédia improvisada em forma popular de
teatro que começou no séc. XVI e que se manteve popular durante o séc. XVIII.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Commedia_dell%27Arte . Acessado em 19 de outubro de 2007.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
88
(serviçal do Diabo). Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo) é o juiz do tribunal e a Compadecida
(Nossa Senhora) a grande advogada.
O astuto João Grilo, que em vida usou suas artimanhas para enganar as pessoas com o
intuito de sobreviver às dificuldades terrenas, não abre mão de sua esperteza nem mesmo
diante do Juízo Final prestes a se anunciar. Interessante notar que o personagem utiliza a
literatura de cordel para invocar a ajuda de Nossa Senhora recitando um versinho com o
intuito de agradar a sua advogada.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré.
(SUASSUNA, 1997, p. 170).
Fica claro que essa atitude foi bem vista aos olhos de Nossa Senhora que prontamente
assume o papel de advogada dos acusados. Severino do Aracaju e o Cangaceiro são
absolvidos pelo próprio Jesus porque “enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a
família deles, e não eram responsáveis por seus atos”. (Ibidem, p. 180). Após a alegação de
Nossa Senhora em favor do padre João, Sacristão, Bispo, Padeiro e a Mulher do Padeiro, João
Grilo pede a palavra e pergunta se os cinco últimos lugares do purgatório estão vagos. Diante
da afirmativa de Manuel, ele sugere que os amigos sejam enviados para lá.
Sozinho no tribunal, João Grilo se vê nas mãos da Compadecida, que pede uma nova
chance para ele. A esperteza de João livrou todos os personagens de irem para o inferno e,
ainda, lhe concedeu uma nova oportunidade de vida na Terra.
O desfecho da história é uma profusão de lamúrias dos personagens João Grilo e
Chicó. Este havia prometido entregar à Nossa Senhora todo o dinheiro conseguido, caso
aquele se salvasse da morte. Depois de muito discutirem, João Grilo percebe que talvez tenha
sido a mão da Compadecida que o tenha livrado da morte.
O FILME
Baseado na obra de Ariano Suassuna, o filme O Auto da Compadecida, sob direção de
Guel Arraes, procura manter a fidelidade textual da peça com riqueza de minúcias. No sertão
da Paraíba, mais precisamente no vilarejo de Taperoá, João Grilo (Matheus Nachtergaele) e
Chicó (Selton Mello) caminham pelas ruas divulgando o filme “A paixão de Cristo” que será
exibido na Igreja. A sobrevivência dos sertanejos é uma prioridade constante na película.
Novos desafios acontecem com a chegada de Rosinha (Virgínia Cavendish), filha de Antônio
Moraes (Paulo Goulart). Ela desperta a paixão de Chico, ciúmes do Cabo Setenta (Aramis
Trindade) e do valentão Vicentão (Bruno Garcia).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
89
João Grilo arma inúmeras confusões para casar Rosinha e Chicó, com o intuito de
ganhar a metade do dinheiro de uma porca de barro – cofre – que ficou de herança para a
moça. Com a chegada do cangaceiro Severino (Marco Nanini) a Taperoá, os planos de João
Grilo são temporariamente interrompidos. A morte do Padeiro (Diogo Vilela) e de sua esposa
Dora (Denise Fraga), bem como as mortes de padre João (Rogério Cardoso), do Bispo (Lima
Duarte), de Severino e João Grilo, deixa-os cara a cara com o diabo (Luís Melo) diante do
tribunal. O destino deles fica a cargo de Nossa Senhora (Fernanda Montenegro) e de Manuel
(Maurício Gonçalves).
A fidelidade dos diálogos do filme em relação à peça é tamanha, que ousamos dizer
que o trabalho de adaptação do roteiro foi bastante facilitado. O filme exclui alguns
personagens da peça, como, por exemplo: Palhaço, Sacristão, Frade e o Demônio (auxiliar do
Diabo). Em compensação, Guel Arraes proporciona o surgimento de uma filha do major
Antônio Moraes, a bela Rosinha, que direcionará o nosso olhar para uma trama mais
romântica.
Como já havia sido mencionado, o texto teatral nos traz a existência de um filho do
major Antônio Moraes, enquanto no filme, há uma filha. O diretor Guel Arraes “planta” uma
rosa (de nome Rosinha) nesse deserto chamado Taperoá, o que nos possibilita acompanhar
uma trama bem orquestrada, com a finalidade de unir os corações apaixonados de Chicó e
Rosinha.
Assim que a moça chega da cidade de Recife, encontra-se casualmente com Chicó,
próximo à roda gigante de um modesto parque de diversão. No momento em que os olhos de
ambos se cruzam, uma rajada de fogos ilumina os céus do sertão. Um efeito especial que
proporciona ao espectador da cena a certeza de que não seria mera coincidência aquele
encontro.
A película é marcada por algumas inserções de efeitos especiais, principalmente nos
“causos” contados por Chicó. São efeitos esteticamente simples, que se utilizam de recursos
cenográficos marcadamente televisivos. Todas as lorotas de Chicó, quando visualizadas,
evidenciam a origem na TV. Segundo Guel Arraes, em entrevista a Luiz Carlos Merten
(Agência Estado), “esse tipo de artifício cênico também era a marca de um mestre, Federico
Fellini, que nunca precisou mais do que montes de celofane para sugerir o mar”.42 Os efeitos
sugerem uma simplicidade poética em um universo totalmente simplista e, em hipótese
alguma, desinteressante.
Rosa Benigna Vaz de Medeiros (bisavô de Rosinha) deixou como herança uma porca
recheada de dinheiro. O major Antônio Moraes entrega a herança à filha mediante uma única
condição, que ela se case. Todavia, ele só aceita que a filha se case com um homem muito
rico, de preferência que seja “dotô” e valente.
João Grilo, querendo fazer o amigo Chicó se passar por valente na frente de Rosinha,
arma um plano. Pega um broche do Cabo Setenta e um par de brincos de Vicentão para
presentear a moça. Rosinha pensa que os presentes são de Chicó, e ainda fica sabendo que
este vai colocar os valentões para correr da cidade. Está armado o “duelo de três”. Em um
segundo plano de câmera, próximo à porta da Igreja, João diz à moça que Chicó vai enfrentar
os dois valentões da cidade de uma só vez, e desarmado. Já no primeiro plano de câmera,
Chicó está entre as armas de Cabo Setenta e Vicentão. Morrendo de medo, diz a eles que
Rosinha ficará com o presente daquele que sobreviver ao duelo. Os valentões, com medo da
morte, saem correndo e Chicó fica com o louro da vitória.
42
www.terra.com.br/cinema/comedia/compadecida.htm. Acessado em 05 de setembro de 2007.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
90
João Grilo leva Chicó à presença do major Antônio Moraes para apresentá-lo como
pretendente à mão de Rosinha. Mediante as mentiras contadas por João a Antônio Moraes,
este empresta um dinheiro a Chicó para as reformas da Igreja. Como Chicó não tinha
nenhuma garantia a oferecer pelo empréstimo, João Grilo sugeriu que se fizesse um acordo:
caso Chicó não pagasse o empréstimo, o major poderia tirar “uma tira de coro” do futuro
genro.
Em função do romance vivido entre Chicó e Rosinha, o filme ganha um enredo
diferente da trama teatral. O diretor Guel Arraes passa a interferir de forma mais decisiva na
história. O amor impossível entre o rico e o pobre não ganha os ares “clichês” de historietas
de amor. Ao contrário, parece que Guel Arraes bebeu muito da fonte de Ariano Suassuna,
conseguindo manter o mesmo ritmo narrativo e, ao mesmo tempo, conseguiu imprimir sua
assinatura na obra.
No Juízo Final encontramos uma quantidade menor de personagens. São seis acusados
(João Grilo, Padre João, Bispo, Padeiro, Dora e Severino), um acusador (Diabo), a advogada
(Nossa Senhora) e Manuel como o juiz. O julgamento ocorre nos mesmos moldes
estabelecidos na peça teatral. Vale ressaltar que, quando Nossa Senhora vai fazer a defesa de
João Grilo, ela menciona as dificuldades sofridas pelo povo nordestino, dizendo que na seca
eles comem macambira. No mesmo instante, imagens de sertanejos pobres em meio à seca,
surgem na tela. São homens, mulheres e crianças que resistem ao sol e à terra infértil em
busca da sobrevivência. Nesse deslocamento percebemos a intenção de Guel Arraes em deixar
registrado seu “grito” de protesto contra as autoridades que se esqueceram do povo
nordestino. É um momento emocionante que difere da comicidade da história.
O final da película segue o enredo da peça até certo ponto. João Grilo e Chicó
lamuriam a promessa à Nossa Senhora. Entretanto, como o filme tem um ingrediente que a
peça não possui (o romance), a história não termina com as lamentações dos dois amigos.
Depois do casamento de Rosinha e Chicó, João Grilo abre a porquinha e os três percebem que
o dinheiro não valia de nada, pois a moeda já havia sido recolhida. Como Chicó não tinha
dinheiro para pagar o empréstimo feito junto ao major Antônio Moraes, este pega uma faca
para tirar uma “lasquinha do couro” do moço. Diante do fato, Rosinha disse ao pai que ele
tem que tirar o couro sem derramar uma gotinha de sangue, pois não há a palavra sangue no
contrato. Revoltado com a enganação dos três, o major manda que a filha suma de sua vista
até a sexta geração. Saindo pela estrada afora, sem rumo e sem destino, Chicó disse à sua
esposa que ela havia dado o golpe do baú ao contrário. Depois de dividirem o pão com um
mendigo, Rosinha disse que Jesus às vezes se disfarça de mendigo para testar a bondade das
pessoas. Grilo riu a falou que pretinho daquele jeito era difícil de ser. Chicó tentando ratificar
o comentário de Rosinha, contou mais uma de suas mentiras, sobre um homem que havia
visto um “Cristo pretinho” lá pelos lados da Bahia. E quando questionado sobre como ele
sabia daquilo, respondeu: “não sei, só sei que foi assim”.
O LIVRO, O FILME E A INTERTEXTUALIDADE
Na elaboração de um texto literário, a absorção e transformação de uma multiplicidade
de outros textos recebe o nome de intertextualidade. A obra de Ariano Suassuna e o texto de
Guel Arraes, que teve a colaboração de João Falcão e Adriana Falcão, formam uma simbiose,
que trouxe à tela de cinema uma nova releitura de o Auto da Compadecida.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
91
Através da linguagem cinematográfica, o espectador passa a perceber a realidade de
uma forma mais intensa, pois seus sentidos ficam mais vulneráveis diante de uma complexa
linguagem áudio-visual que o livro não pode proporcionar.
O cinema ajuda a pensar na diversidade cultural e não fica restrito simplesmente a uma
noção de estética. Bolz (1991, p. 95)considera as reflexões de Walter Benjamin sobre cinema
cuja estética cinematográfica é concebida como doutrina da percepção humana:
Benjamin não mais pensa no conceito da estética no sentido tradicional para
nós, no sentido de uma teoria das belas artes, nem mesmo no sentido de uma
teoria das artes, mas pensa na estética a partir de sua etimologia grega, isto é,
da “aisthesis”, ou seja, como doutrina da percepção. E, enquanto uma tal
doutrina da percepção, a estética não é um departamento entre outros, mas é
para Benjamin, uma nova ciência diretriz.
Ou seja, o cinema possibilita novos modos de visão; mesmo depois de concluído o
filme, ele ainda dialoga com o espectador. Novas formas de sensibilidade e percepção são
passadas aos espectadores através da sétima arte, o cinema.
A análise intertextual da peça – livro – e do filme em relação à passagem do signo
verbal para o visual indica que não se comprometeu o enredo da história. Acontecem algumas
transformações quando um personagem literário é deslocado para o universo fílmico, pois a
personagem textual é criada na mente do leitor, enquanto a personagem cinematográfica fazse diante do olhar do espectador.
Genette (1982, p. 7-12) entende que
O trânsito intertextual realizar-se-á a partir da percepção do leitor em
reconhecer as marcas ou, simplesmente, os vestígios dos textos para poder,
então, estabelecer as conexões entre eles, nomeando o texto de partida como
hipotexto (texto-origem) e o texto de chegada [...], de hipertexto.
Vale salientar que o filme O Auto da Compadecida tem a sua narrativa bastante fiel ao
texto de Suassuna e, conforme já mencionamos, no deslocamento realizado por Guel Arraes
com algumas personagens, principalmente Rosinha, o ritmo narrativo é tão semelhante que
ficaria um pouco complicado, caso não soubéssemos de onde surgiu a primeira obra (no caso,
a peça), identificar o hipotexto e o hipertexto. Consideramos o filme como uma adaptação, já
que temos como ponto de partida a peça teatral Auto da Compadecida.
O importante é que tanto o leitor quanto o espectador percebam os vestígios,
as marcas de texto anteriores, sendo ainda capazes de completar-lhes o
sentido (já que um texto encontra-se em constante movimento, isto é, aberto
a novas leituras e interpretações), de captar o sentido da ironia, ampliando
assim sua leitura. De fato, a obra de arte submete o leitor/espectador a uma
intensa atividade muitas vezes inconsciente, em que [ele] ora formula
hipóteses construtivas sobre o significado do texto, ora estabelece conexões
implícitas [...], faz deduções [...] sempre baseado no seu conhecimento do
mundo [...] e das convenções literárias. (VOLPE, 1998, p. 15).
A literatura empresta ao cinema uma forma de ver o mundo. O cinema, por sua vez,
toma emprestados textos do universo literário a serem transformados em uma linguagem
cinematográfica, e assim se forma uma constante mescla das duas artes. Importante ainda
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
92
ressaltar é que tanto o livro quanto o filme procuram traduzir o sofrimento do povo nordestino
de uma forma bastante crítica, mas sem perder o humor. A comicidade da peça transportada
ao cinema revela um povo tipicamente brasileiro, que enfrenta seus problemas com muita
luta, sem jamais perder a esperança.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que tanto no discurso literário quanto na narrativa fílmica a história
mantém uma mesma cadência. A comicidade é a força impulsionadora que une as duas artes.
Mesmo com os deslocamentos realizados pelo cinema, o enredo cinematográfico se mantém
fiel à peça teatral. O diretor Guel Arraes conseguiu implementar um romance que deu um
colorido a mais à história, sem fugir ao traçado original de Ariano Suassuna.
A linguagem áudio-visual proporciona ao espectador uma gama de informações que
vai além da composição poética impressa nas páginas do livro. O romance entre Rosinha e
Chicó é de suma relevância para o desfecho da trama, que concede ao filme um toque
refinado de paixão.
A rosa – Rosinha – “plantada” no sertão de Taperoá é o grande achado do diretor, que
pôde explorar habilmente uma trama amorosa em meio aos encontros e desencontros dos
personagens João Grilo e Chicó, eternos mentirosos.
REFERÊNCIAS
BAZIN, André. Por um cinema impuro: defesa da adaptação e teatro e cinema. In: ______. O
cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BOLZ, Norbert. Teoria da mídia em Walter Benjamin. In: Sete perguntas a Walter Benjamin.
Revista USP. São Paulo, 1991.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos; a literatura de segunda mão. Paris: Seuil, 1982. Trad.
Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. In: Cadernos do Departamento de
Letras Vernáculas. 2005. Belo Horizonte.
O AUTO DA COMPADECIDA. Direção de Guel Arraes. Co-produção Globo Filmes, 1999.
Filme de duração de 104m; son; color.
SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1997.
VOLPE, Miriam Lídia. Resgate de um sonho: cidadão Kane e Kubla Kan. São Paulo: Cone
Sul, 1998.
www.terra.com.br/cinema/comedia/compadecida.htm.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Commedia_dell%27Arte
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
93
POLÍTICA E SOCIEDADE
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
94
`
imetismo: uma tática de sobrevivência adolescente?
Francineide Silva Sales∗
____________________________________________________________________Resumo
O presente artigo tem como finalidade abordar alguns elementos discutidos na dissertação de
mestrado defendida em 2005, intitulada “Adolescente-etiqueta: consumo, significados e
conflitos”, cujo objetivo foi identificar aspectos que envolvem a relação entre adolescentes
cariocas e o consumo no processo de construção da imagem que têm de si. Nesse sentido,
serão abordadas, por um lado, a perspectiva da indústria cultural sobre o consumo adolescente
e, de outro, um dos significados do consumo apreendidos durante a pesquisa, ou seja, a tática
de mimetismo.
Palavras-chave: Adolescente. Consumo. Indústria Cultural. Moda.
____________________________________________________________________Abstract
This article´s purpose is to discuss some subjects present in dissertation called “Teen-tag:
consumption, meanings and conflicts” which was defended in 2005. Considering the process
of self image building by cariocas teenagers, as an aim of the dissertation, this paper presents
adolescent consumption through cultural industry view, as well as one of consumptions
meaning caught up during the search, or in another way: mimetism tatic.
Key words: Teenager. Consumption. Cultural Industry. Fashion.
___________________________________________________________________________
Introdução
Nos dias atuais chama atenção a diversidade de produtos anunciados através dos meios
de comunicação, com suas marcas, etiquetas e modelos, circulando, assim, na direção de
jovens, velhos, mulheres e homens. Nesse processo, a última – e efêmera – moda é
apresentada de forma imperativa. A durabilidade cada vez menor dos produtos é assimilada
como a novidade sempre indispensável. Assim, concretiza-se a lógica do individualismo
contemporâneo observada por Wiewiorka (1997, p. 23)43, na qual o sujeito “...tem a intenção
de consumir, continuar a consumir se já o fez, começar a fazê-lo se ele ainda não o pôde.”
Se, por um lado, a expectativa do consumo pode ser interpretada como busca pelo
prazer, de outro, pode ser traduzida como possibilidade de crime, trazendo à tona o medo,
principalmente quando aspirantes a consumidores moram mal, se alimentam mal e trabalham
precariamente, o que reforça a intensa vigilância sobre as estratégias de sobrevivência dos
grupos subalternalizados.
Sobre a inscrição das camadas populares entre duas faces do Estado, afirma João
Ricardo Dornelles (2002, p. 123):
Assistente Social graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Serviço Social pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente compõe a equipe da Gerência Multidisciplinar
de Atendimento ao Adolescente do Hospital dos Servidores do Estado.
43
O autor situa o individualismo contemporâneo ao lado do sistema internacional, dos Estados e das mutações
societais, enquanto níveis de análise da violência.
∗
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
95
Assim é que a implantação do chamado ‘Estado mínimo’, no campo
econômico e da proteção social, é acompanhada do ‘Estado máximo’ no
campo das políticas de segurança, com a retomada do ‘discurso da lei e
ordem’, abrindo espaço para o ‘darwinismo social’ como estratégia de
controle social, e para as políticas criminais de emergência, com base no
eficientismo penal.
O interesse pela investigação sobre a relação entre adolescente e consumo, bem como
da contribuição dessa dinâmica para o processo de construção da imagem que esse segmento
social tem de si, surgiu da experiência profissional em uma entidade filantrópica situada numa
comunidade pobre da zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
Durante o período de atuação profissional na instituição foi possível observar a estreita
ligação entre adolescentes da comunidade e o desejo de consumo manifesto em camisas de
clubes de futebol e de equipes de basquete estrangeiros, além de tênis e roupas de marcas
famosas – originais ou piratas. Da mesma maneira que entre os jovens do “asfalto”, os apelos
publicitários parecem exercer um fascínio tal sobre os meninos da comunidade que o porte de
tais produtos emerge nos discursos, direta ou indiretamente, como algo de grande importância
para o cotidiano daquele grupo social.
Caminhos percorridos ao longo da pesquisa
Em função de diversos fatores, optou-se por realizar a pesquisa no ambiente escolar de
adolescentes da região, tendo sido escolhidos dois estabelecimentos de ensino: um da rede
municipal e outro da rede federal de ensino. O primeiro caracterizado por receber
majoritariamente alunos residentes em comunidades dos bairros do Grajaú, Andaraí e Vila
Izabel, enquanto o segundo pelo atendimento a estudantes também da zona norte, incluindo aí
os mesmos bairros e circunvizinhanças, observando-se, no entanto, uma predominância de
adolescentes pertencentes às camadas médias.
No processo de pesquisa foram aplicados setenta e seis (76) questionários, tendo sido
objeto de análise quarenta e nove (49), em função dos critérios estabelecidos (local de
moradia e faixa etária), além da fala de oito adolescentes divididos em dois grupos focais.
Dessa forma, foram considerados no processo de análise vinte e cinco (25) questionários
respondidos por estudantes da escola municipal vinte e quatro (24) do colégio da rede federal
de ensino.44.
A opção pela abordagem de tal conjunto de estudantes fundamentou-se na
possibilidade de contato com adolescentes oriundos de faixas de renda distintas,
considerando-se a localização das escolas numa região caracterizada por contrastes sócioeconômicos e culturais.
O processo de reflexão sobre elementos simbólicos constituintes do consumo, bem
como de sua relação com o plano das interações sócio-culturais dos adolescentes, se
inscrevem no âmbito do individualismo contemporâneo, além da supervalorização da
mercadoria como instância de mediação das relações sociais. A possibilidade de
concretização do consumo, nos marcos da propaganda – necessidades instantâneas e nunca
satisfeitas, na visão de Bauman (1999) – parece vincular-se à aquisição de um passaporte para
44
Os estabelecimentos de ensino foram a Escola Municipal Presidente João Goulart e Colégio Pedro II – seções
Tijuca e Centro – respectivamente.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
96
a circulação nesse mundo de relações mercantilizadas. A conquista do status de consumidor,
dessa forma, apresenta em sua operação elementos e resultados que aproximam e distanciam
os adolescentes que participaram da pesquisa.
Adolescente e Indústria Cultural
Considerando o lugar de destaque ocupado pela questão do significado do consumo no
interior da pesquisa, a análise de um entretenimento televisivo apresentou-se como
mecanismo relevante, à medida que o mesmo traz em si uma diversidade de elementos
simbólicos, como a linguagem oral e corporal, a imagem, a música, entre outros, ao mesmo
tempo que possibilita empreender uma reflexão sobre a narrativa a respeito da temática do
consumo entre o segmento social adolescente.
Num episódio da série Cidade dos Homens exibido em 200145, pela Rede Globo de
Televisão, são as condições de moradia, a vinculação escolar, a organização familiar e o
grupo social, os elementos apresentados como diferenciais entre os mundos dos personagens
centrais: Uólace e João Victor. Entretanto, a narrativa situa a expectativa de consumo como
um aspecto que atribui mais que uma proximidade, uma homogeneização dos universos
vivenciados pelos adolescentes que protagonizam a estória.
Ana Maria Machado (2004) aborda de forma crítica essa opção por uma perspectiva
que, ao invés de singularizar as relações e os sujeitos nela envolvidos, imprime uma
massificação dos mesmos ao afirmar que:
Uma mídia que utilize uma linguagem única para se expressar está
exercendo, na prática, uma forma de censura – o que costumo chamar de
censura do sim, que não proíbe mas obriga a só aceitar um figurino. Até
mesmo porque reduz qualquer intercâmbio cultural à aceitação de padrões
meramente técnicos, mesmo quando se esquiva do francamente comercial.
(Comunicação oral na IV Cúpula Mundial de Mídia para Criança e
Adolescente)
Uma das cenas marcantes do episódio é aquela onde tanto o menino na favela, quanto
o adolescente de classe média assistem – e são impactados com a mesma intensidade – a uma
propaganda de um tênis da moda. O slogan da matéria publicitária é o seguinte: “Naikel
Double Air: ou você tem um, ou você não é ninguém!”. À parte o exagero promovido pelo
modo caricato como o incentivo ao consumo é apresentado, a cena é perfeitamente plausível
na realidade, embora com contornos mais sutis, tendo em vista as exitosas estratégias da
propaganda.
De hambúrguer a telefone celular, passando por tênis, videogames e roupas de marca,
a relação de produtos preferidos por jovens brasileiros é extensa, o que os leva ao topo da lista
entre consumidores pelo mundo, à frente de franceses, japoneses, argentinos, australianos,
americanos e outros, de acordo com um estudo realizado pela ONU46.
Nesse sentido, as “identidades partilhadas” – consumidores, clientes e públicos –
observadas por Stuart Hall (2001) encontram ressonância no universo adolescente narrado no
episódio. Apesar da distância entre as realidades sociais de Uólace e João Victor, realçadas
nas cenas onde suas condições de moradia (a casa na favela e o apartamento da zona sul) e
estudo (a escola púbica em greve e o colégio particular) são expostas, ambos terminam por
45
46
O episódio em questão é “Uólace e João Victor”, baseado no livro homônimo de Rosa Amanda Strausz.
Parte dos resultados da pesquisa foi publicada na Revista Veja, edição especial, nº 24.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
97
partilhar a identidade de público diante de um aparelho de televisão, de aspirante a
consumidor frente ao apelo publicitário, de adolescente do ponto de vista do aparato legal
constituído.
Assim, o tênis anunciado na TV tem sua dimensão ampliada para além de um simples
calçado, convertendo-se num ícone do novo e, mais que isso, numa alavanca de impacto
social, proporcionando aos meninos que conseguem adquirí-lo uma espécie de incursão numa
nova realidade, cujo passaporte está ligado ao objeto.
A construção de uma identidade, portanto, articulada ao ter (o tênis) e não ao ser (um
garoto) desenvolve-se numa dinâmica, nos termos de Bauman (1999), que ao debruçar-se
sobre a ciranda de desejos nunca satisfeitos na atual lógica da economia – em função da
rapidez com que os produtos são produzidos e substituídos – a relaciona a um movimento que
confere ao ato de consumir os contornos de uma necessidade fundamental. Tal processo
promove uma espécie de esvaziamento crítico, à medida que associa a liberdade estritamente
ao fato de se ter alguma coisa.
Tal primazia da imagem no foco da cena do anúncio do tênis permite, ainda, uma
reflexão sobre uma sociedade de consumo, onde os meios de comunicação ocupam um lugar
de grande destaque. De acordo com Sartori (1997), a geração criada diante da televisão tem
atrofiada sua capacidade de compreensão da realidade, à medida que o privilégio conferido à
imagem destitui a abstração de sua real importância.
Sem dúvida, cabe levar em conta tanto o modo caricato adotado pelo produto da
indústria cultural47 na abordagem do tema, quanto o tom meio “apocalíptico” dos autores,
entretanto, não há como negar o impacto da imagem sobre os adolescentes, os quais exibem
no dia-a-dia – guardadas as devidas proporções em função de diferenças e diversidades – uma
resultante desse contexto observada no modo de vestir, falar e se divertir, que, salvo exceções,
vão sendo substituídos num tempo cada vez menor. Por outro lado, o refazer e as estratégias
de sobrevivência, ou as táticas – nos termos de Certeau (1994) – merecem uma atenção
cuidadosa, considerando as contradições inerentes ao processo de produção e reprodução
dessa imagem.
De um lado, a indústria cultural investe num processo de disseminação da imagem
ideal, num claro movimento de homogeneização de práticas e de sujeitos. Desse modo,
sempre há modelos a serem seguidos, seja do alimento ideal – que tem no fast food seu ícone
–, seja do calçado ideal, cujo valor articula-se diretamente à marca do momento. Em tais
modelos inscreve-se a promessa oculta de transformar o jovem consumidor em alguém
reconhecido e nesse processo, nem mesmo as chamadas “celebridades” são poupadas, pois do
mesmo modo que produtos são expostos em prateleiras de shoppings, supermercados e em
instigantes “reclames” de TV, suas imagens – incluídas aí, seus hábitos e costumes – são
consumidas com a maior brevidade, em tempo de serem substituídas por outras mais
“frescas”.
No interior dessa lógica, a lista dos “dez mais” de hoje – sejam produtos, sejam
pessoas – é substituída por outra amanhã. Tudo se torna perecível numa velocidade
praticamente impossível de acompanhar. A estetização da vida cotidiana, dessa forma,
contribui com o processo de mercantilização das relações sociais, estabelecendo-se como
fator essencial na ciranda do consumo, onde o valor-de-uso é substituído pelo valor estético e
47
Conceito adotado em oposição à idéia de comunicação de massa, a partir da análise de Adorno e Horkheimer
apud ECO (1979).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
98
do status a ele associado. Vale lembrar que a reação empreendida por jovens frente a tal
dinâmica oscila entre o conformismo e a resistência48.
Conformismo manifesto numa aparente rendição passiva aos apelos publicitários, que
se concretiza numa incansável busca pelo item da moda – uma roupa, uma diversão, um
calçado, um ídolo. Resistência expressa através de grupos que se deslocam na contracorrente
do consumo de massa, com estilos49 próprios, através dos que o fazem individualmente, ou,
ainda, daqueles que assim reagem por experimentarem um estado tal de exclusão que se
situam num não-lugar (exclusão que se estende desde o processo produtivo até o consumo
propriamente dito).
Conformismo e resistência num processo ambíguo, característico de interações entre o
público e o meio, adolescentes e adultos, consumidores e não-consumidores. Tal ambigüidade
não constitui um problema, de acordo com Chauí (1993, p. 123), mas “a forma de existência
dos objetos da percepção e da cultura, percepção e cultura sendo, elas também, ambíguas,
constituídas não de elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas...”
Do mesmo modo, Michel De Certeau analisa tal processo de resistência, de
antidisciplina, que apresenta como característica um conjunto de táticas afeitas aos grupos
submetidos às relações de poder presentes na sociedade. Para Certeau (1994, p. 115), no
interior do “monoteísmo aparente a que se poderia comparar o privilégio que garantiram para
si mesmos os dispositivos panópticos, sobreviveria um ‘politeísmo’ de práticas disseminadas,
dominadas mas não apagadas pela carreira triunfal de uma entre elas.”
De acordo com a narrativa adotada no episódio de Cidade dos Homens, entretanto,
persiste uma tendência à exclusão de elementos contraditórios, ao situar os dois adolescentes,
centrais na trama, num mesmo locus não só de consumo, mas de significação do mesmo, o
que implica um movimento legitimador das observações do senso comum sobre as relações
ora estabelecidas na sociedade, que as apreendem como imutáveis e homogêneas. Tal
perspectiva apresenta um risco à medida que não são expostos os limites da utilização da
categoria juventude. Segundo Margullis (1996), há uma verdadeira tentação nas análises
afeitas à juventude que empurra as mesmas a uma postura de exclusão das especificidades de
classe e, conseqüentemente, para uma percepção de que os modelos dominantes são os
legítimos e os únicos, portanto, de todos, sem a possibilidade de alternativas.
Ora, circunscrito sob o disfarce de uma não-ideologia, o consumismo capitalista
dominante é abordado pela indústria cultural numa perspectiva que, retirando elementos
característicos da singularidade, promove uma uniformização que no tocante aos
adolescentes, como no caso de Cidade dos Homens, os associa a um grupo único, fechado e
mobilizado pelas mesmas buscas – tanto em relação aos produtos de consumo, quanto aos
significados a eles associados.
O consumo entre os adolescentes pesquisados
Durante a pesquisa, quando da análise das respostas ao questionário, bem como das
expressões verbalizadas no interior dos grupos focais, algo chamou atenção no interior da
dinâmica singularidade/homogeneização: ainda que moda e marca aparentemente não
48
Nos termos de Marilena Chauí (1993) que resgata o lugar da ambigüidade, frente às tentativas do
“intelectualismo” de superá-la, mediante a determinação de um fenômeno como dado – ou isto ou aquilo.
49
Helena Abramo aborda a contraposição entre o estilo – e a escolha como sua dimensão constituinte – e a moda
na pesquisa realizada a respeito de punks e darks no cenário urbano juvenil.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
99
tivessem mobilizado os adolescentes, quando o assunto era o tênis de marca, quase metade
deles pareceu seduzida pelo desejo do consumo. Tal aspecto analisado isoladamente poderia
levar à conclusão de que a moda aparentemente não exerce grande influência sobre os
adolescentes pesquisados, sejam da escola municipal, sejam do colégio federal. Tal suposição
encontra fundamento na representação socialmente construída em torno da adolescência como
fase da contestação e da rebeldia e, portanto, distanciada de perspectivas de adequação a
normas e padrões. A tabela 1 revela os dados obtidos em relação às perguntas que enfocaram
moda e roupa de marca de uma forma direta.
Tabela 1 – Importância atribuída à moda e às marcas de roupa e de tênis:
Moda
Roupa de marca
Tênis de marca*
Freqüência
%
Se importam
15
30,61%
Não se importam
34
69,39%
Preferem
14
28,57%
Não vêem diferença
35
71,43%
Preferem
22
44,90%
Não vêem diferença
26
53,06%
* Um (1) adolescente do CPII não respondeu à pergunta.
Ao aproximarmos um pouco mais a lente, no entanto, é possível observar que são os
adolescentes da escola da rede municipal de ensino que, em sua maioria, atribuem maior
relevância à moda, enquanto que no tocante à roupa e ao tênis de marca, os índices tendem a
uma inversão. A tabela 2, exposta a seguir, explicita melhor esse aspecto.
Tabela 2 – Importância atribuída à moda, às marcas de roupa e de tênis, segundo a
inserção escolar:
Moda
Sim
Roupa de marca
Não
Sim
Tênis de marca*
Não
Sim
Não
F
%
f
%
f
%
f
%
f
%
f
%
EMPJG 10
40%
15
60%
06
24%
19
76%
09
36%
16
64%
CPII
20,83% 19
05
79,17% 08
33,33% 16
66,67% 13
54,17% 10
41,67%
f= freqüência
* Um (1) adolescente do CPII não respondeu à pergunta.
Tendo em vista que as lojas que comercializam vestuário, calçados e acessórios
jovens, cujas grifes são conhecidas e despertam o desejo de consumo entre os mesmos,
acompanham as tendências da moda, pode-se confirmar a ambigüidade inscrita nas respostas,
bastando adicionar ao número de respostas favoráveis à marca, aquele favorável à moda para
que se obtenha um quadro diferenciado que revela uma tentativa de negação de algo nos
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
100
discursos, mas que, na prática mostra-se de grande importância para os dois grupos
analisados. Tais dados podem ser melhor identificados na tabela número 3.
Tabela 3 – Importância atribuída à moda, segundo o item de marca considerado:
Moda (considerando a roupa
Moda (considerando o tênis de
de marca)
marca)*
Sim
Não
Sim
Não
f
%
f
%
f
%
f
%
EMPJG
12
48%
13
52%
13
52%
12
48%
CPII
10
41,67%
14
58,33%
15
62,50%
08
33,33
* Um (1) adolescente do CPII não respondeu à pergunta.
F= freqüência
Ora, o discurso de negação da possibilidade de adesão à moda como postura
determinante entra em contradição com o peso conferido à marca, seja de roupa, seja de tênis,
fato este ainda mais marcante entre os alunos da instituição federal de ensino. Diante de tais
elementos empíricos, cabem algumas perguntas, entre elas: seria a maior facilidade de contato
com os tais itens de marca que favoreceria uma presença maior de respostas que admitem a
importância da marca entre os alunos do estabelecimento federal de ensino, considerando
haver entre os mesmos um contingente maior de adolescentes pertencentes às camadas média
e média alta? ou seria o discurso midiático relativo a tais produtos mais eficaz entre este
último grupo?
Outro dado relevante trabalhado na pesquisa foi o de que quase 49% dos adolescentes
manifestaram o desejo de investir uma quantidade de dinheiro na aquisição de roupas.
Entretanto, levando-se em conta a postura vigilante de não incorrer no risco da
homogeneização das expectativas, foi possível observar que, embora, a princípio resida em
tais discursos uma tendência linear de simples adaptação passiva à moda, tornando os
adolescentes iguais em demandas, desejos e sonhos, a significação do enquadramento a uma
tendência não é a mesma.
De outro modo, constatou-se que entre os alunos do estabelecimento de ensino da rede
municipal que se “renderam” à moda, tanto os limites sociais – que se configuram como
impeditivos à adesão cega à moda – quanto a tática de mimetismo, ou seja, de confundir-se
com uma paisagem hostil a suas características (sócio-econômicas e culturais), aparecem em
proporção maior do que a vinculação ou não da moda a um estilo ou mesmo a uma forma de
pertencimento ao grupo. Por outro lado, entre os alunos do colégio da rede federal, os limites
sociais sequer figuram entre as preocupações, enquanto que o mimetismo ocorre num grau
muito inferior.
Cabe nesse momento, portanto, um aprofundamento quanto à questão da tática de
mimetismo. Os discursos de lei e ordem, bem como os olhares do medo e do preconceito,
segundo Vera Malaguti Batista (2002) sempre estão apostos quando da análise e
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
101
enfrentamento de situações protagonizadas pelas camadas populares e, nesse caso,
adolescentes e jovens a elas pertencentes não estão imunes. Nesse sentido, foi possível
observar, seja no discurso, seja nos silêncios, uma preocupação com a aparência entre aqueles
que, pertencendo às camadas menos populares, revela um cuidado especial com o modo
através do qual são vistos. O olhar do outro, portanto, constitui um dado relevante para o
grupo. Um olhar vigilante e atento ao que não se enquadra aos padrões estéticos, que, por sua
vez, detecta elementos sociais, econômicos e culturais avessos, ou melhor, em descompasso
com o padrão dominante, aceitável, tolerável. A adesão – ou pelo menos a tentativa de – à
moda, nesse sentido, situa-se como tática de mimetização de segmentos que seriam alvos
fáceis de tal olhar vigilante e, muitas vezes, preconceituoso.
Tal processo explicaria a argumentação de alguns adolescentes, como por exemplo:
“Porque você se sente melhor e não diferente”; “Porque aparência conta muito nos tempos
atuais”; “Pra não pagar mico de estar com roupas desatualizadas, que não estão na moda”;
“Porque todo mundo olha diferente para você e não me sentiria bem toda ‘brega’...”; “Acho.
Você é melhor visto pelos outros”; “Me deixa com uma aparência melhor, na rua”; “Porque
gosto de estar sempre na moda. Acrescentam boa aparência”.
Assim, o consumo de determinados produtos e dos símbolos a ele agregados,
permitiriam que tais adolescentes fossem confundidos com a paisagem ambiente, resultando
numa possibilidade de redução das pressões exercidas pelos olhares vigilantes, seja da
indústria cultural, seja da sociedade como um todo, aí incluídos os seus pares sociais, bem
como aqueles pertencentes a outros contextos sócio-econômicos. Tal movimento de
antidisciplina protagonizado pelos adolescentes encontra-se situado diante do poder
constituído pelas estratégias da indústria cultural, portanto, como uma tática que é “a arte do
fraco”, como define Certeau (1994).
Sem dúvida, outros elementos se inserem nessa dinâmica, descortinando os limites e
fragilidades desse movimento, conforme a análise de Certeau (1994). Ora, a questão da etnia,
por exemplo, expõe tais limites de forma contundente em nossa realidade. Um incidente
ocorrido num shopping da zona sul do Rio de Janeiro ilustra bem tais fragilidades. Em
fevereiro de 2004, um jovem negro acompanhado de mais dois rapazes brancos, foi expulso
do shopping por um suposto segurança. Apesar de estar acompanhado dos demais jovens e de
estar vestido “adequadamente” ao ambiente, o rapaz foi abordado e retirado do local, sem que
maiores explicações fossem dadas. De acordo com matéria assinada por Rubem Berta e
publicada no jornal O Globo (2004), o homem que suspeitou do jovem seria um policial
militar.
O fato de o rapaz ter uma relação de proximidade com a família de Caetano Veloso
contribuiu para que o caso tivesse uma cobertura de mídia intensa, levando o incidente a
diversos jornais impressos, além da mídia eletrônica. Entretanto, é sabido que o cotidiano de
nossas cidades está repleto de situações onde preconceitos e estigmatizações são dirigidos a
adolescentes e jovens das camadas populares, os quais, a partir de táticas de enfrentamento
(articuladas ou não) dessa realidade prosseguem na busca de um viver para além do peso dos
olhares do medo, na busca por uma inserção social que, passando pelo consumo, reserva-lhes
uma porta estreita. No interior de uma sociedade desigual, onde o antagonismo de classes vem
sendo disfarçado pela ideologia do ter, que faz proliferar o mercado dos empréstimos (fáceis
de contrair e de juros difíceis de engolir) e do vestuário a ser pago em suaves e esticadas
prestações – ultrapassando o prazo de validade da moda –, investigar o reflexo da coisificação
das relações entre o segmento juvenil constitui tarefa relevante no sentido de buscar situar
seus espaços de socialização e modelos de participação social na atualidade.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
102
Referências
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Parceiros no olhar sobre a memória do Exército Brasileiro
Rogério Ribeiro Fernandes*
José Francisco Melo Laurindo**
___________________________________________________________________________Resumo
O presente artigo resulta de um trabalho de parceria realizado entre professor e ex-aluno do curso de
Graduação em História da Fundação Educacional e Cultural São José. O trabalho em si começou no
campo ou, antes mesmo, na preparação para se ir ao campo – no caso, o Forte de Copacabana que fica
assentado num promontório ao final da praia de mesmo nome, na cidade do Rio de Janeiro. A história
foi longa: professor e ex-aluno se conheceram na lida acadêmica e, desde então, vem se
desenvolvendo entre eles uma afinidade intelectual. José Francisco concluiu seu curso de Graduação
com a monografia intitulada “Memória Institucional do Exército Brasileiro”. Contou com a ajuda das
alunas Bárbara Gomes e Bernadete Ribeiro, e também com a orientação do professor Rogério para
refletir sobre como o Exército legitima sua memória institucional a partir de sua inserção em
momentos marcantes da História do Brasil, em particular a participação de nossas tropas na 2ª Guerra
Mundial.Como o resultado final dessa reflexão foi bastante satisfatório, resolveu-se estendê-lo para
um trabalho de campo no Museu Histórico do Exército, atualmente alojado no Forte de Copacabana.
O texto que se segue é a conseqüência imediata de tudo isso, reúne e sintetiza um conhecimento
construído a partir da associação entre observação direta e reflexão com base bibliográfica. Tudo isso
feito a quatro mãos.
Palavras-chave: História do Brasil. Exército Brasileiro. Memória Nacional.
________________________________________________________________________________________
Janeiro de 2008 era para ter sido um mês de férias, mas não foi totalmente. Depois de
um ano inteiro dedicado ao trabalho acadêmico que resultou, entre outras coisas, na realização
e defesa da monografia História Institucional do Exército Brasileiro, ficou a sensação de que a
reflexão desenvolvida naquele trabalho de conclusão de curso merecia ter continuidade.
Dentre os seus autores – Bárbara Gomes, Bernadete Ribeiro e José Francisco – com certeza o
rapaz era o mais afinado com o tema. Zé Francisco nunca escondera de ninguém sua paixão
pelo Exército. Ao longo dos três anos em que cursou Graduação em História na Fundação São
José, ele deu mostras sinceras de seu caso de amor, sem afetações. Vez ou outra usava
camisas de campanha, quepes ou buttons com motivos militares; numa ocasião, vestiu-se dos
pés à cabeça como expedicionário para conduzir um seminário sobre Segunda Guerra
Mundial; mesmo sendo tímido, debatia animadamente sobre história militar com seus colegas
e professores. Mas foi num trabalho de campo que realizamos em Tiradentes e São João Del
Rei que a atitude de Zé Francisco me chamou atenção: no centro de São João, ele descobriu
um museu dedicado à FEB (Força Expedicionária Brasileira) que não estava em nosso roteiro
original de visitação; ficou empolgado como criança diante de seu brinquedo preferido e só
sossegou quando teve a oportunidade de passar uns poucos 20 minutos no espaço interno do
museu; saiu de lá abarrotado de folders e souvenirs que lhe custaram o dinheiro do lanche que
ainda iria fazer na viagem. Mas ficou feliz, faminto e feliz!
*
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense; Jornalista.
Graduado em História pelas Faculdades Integradas Padre Humberto da Fundação Educacional e Cultural São
José.
**
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
104
Na academia, existe o consenso de que a paixão não é boa conselheira para a ciência.
Uma é movida pelo coração, outra deve se restringir à frieza da razão. Mas será que é bem
assim? Eu mesmo, hoje professor, fui um aluno apaixonado pelos objetos de minha reflexão.
Até onde sei, isso não comprometeu minha visão crítica. Quando presenciei o Zé Francisco
diante do objeto de sua paixão na distante São João Del Rei, interroguei a mim mesmo sobre
onde aquilo iria acabar. Um ano depois, tive a resposta: o Zé juntou um grupo e resolveu
refletir sobre sua paixão na forma de uma monografia de conclusão de curso. Convidou-me
para ser orientador da empreitada. E o resultado final de tudo isso foi a elaboração de um
texto no mínimo coerente, síntese dos esforços do coração e também da razão.
Quanto ao mês de janeiro que era para ter sido de descanso e não foi, três de seus dias
seguiram a lógica desta síntese de coração e razão. Convidei o Zé Francisco para irmos juntos
ao Rio de Janeiro, onde iríamos percorrer alguns dos museus e centros culturais vinculados ao
Exército Brasileiro. Nosso objetivo seria conhecer de perto esses espaços de divulgação de
uma memória institucionalizada. Faríamos um trabalho de campo, com as devidas leituras
prévias acompanhadas de uma observação direta. Queríamos dar continuidade à reflexão
iniciada com a monografia História Institucional do Exército Brasileiro. Diante das inúmeras
opções que a cidade do Rio de Janeiro nos oferecia como espaços culturais do Exército,
concentramo-nos no Forte de Copacabana e, mais especificamente, no Museu Histórico do
Exército cujo acervo se encontra em exposição nas dependências do Forte. Como o tempo nos
permitiu ir um pouco além, não descartamos uma visita rápida ao Panteão de Caxias e
também à Casa do Marechal Deodoro, mas ambos se encontravam fechados. Estivemos sim
no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, onde Zé Francisco pôde fotografar
as lápides onde se encontram os restos mortais de três bonjesuenses, conterrâneos seus que
tombaram na Campanha da Itália. Zé ainda conseguiu dar uma esticada a Niterói para
conhecer a Fortaleza de Santa Cruz. Mas, com certeza, o foco de nossas reflexões recaiu sobre
o Museu Histórico do Exército.
Como se pode construir uma memória institucional
Ao contrário do que pensamos, a memória não é simplesmente um objeto pronto e
acabado, estacionado no tempo. A memória, enquanto discurso coletivamente reconhecido,
resulta de um processo permanente de construção e reconstrução que varia de acordo com as
necessidades e os interesses de certos grupos ou de determinada sociedade. É necessário
observar que a construção da memória acontece através da escolha e também do descarte de
determinados fatos, isto é, ela depende de mecanismos de seleção e descarte.
[...] Se a memória costuma ser automaticamente correlacionada a
mecanismos de retenção, depósito e armazenamento é preciso apontá-la
também como dependente de mecanismos de seleção e descarte. Ela pode,
assim, ser vista como um sistema de esquecimento programado [...]
.(MENESES, 1992, p.6)
Diante desse conflito entre o que deve ser lembrado ou esquecido, surge a amnésia
social que pode ser definida como: “a memória expulsa da mente pela dinâmica social e
econômica da sociedade e vítima de um processo de reificação” (MENESES, 1992, p. 17). A
amnésia, portanto, deve ser considerada tanto como um produto social, quanto oficial. Com
efeito, se determinado fato ou acontecimento ameaça a unidade do grupo, seu
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
105
desenvolvimento ou a sua identidade, ele deve ser “esquecido”. Esse esquecimento acontece a
partir da seleção dos fatos mais relevantes para o próprio grupo.
A partir das experiências e das vivências de indivíduos de um determinado grupo ou
de uma determinada comunidade surge a memória coletiva e, com base nessa memória
coletiva, é formada a memória institucional ou nacional. Ou seja, de certa forma a memória
nacional resulta da memória coletiva. É necessário ressaltar que, através da memória nacional,
os fatos e acontecimentos são direcionados através de um processo de seleção em que
prevalecem os interesses de certos grupos. Além disso, vale dizer que a memória é
“construída” ou “resgatada” de acordo com as necessidades do presente.
A tradição também se destaca como importante mecanismo para a produção de
memórias. É através dela que certas memórias são relembradas e transmitidas através do
tempo, fortalecendo assim a identidade de um determinado grupo, de uma determinada
sociedade ou até mesmo de uma nação.
A memória do Exército e a História do Brasil
Atualmente, o Exército Brasileiro pode ser considerado como um dos poucos
exemplos de instituição que mantém suas características tradicionais. É através da tradição
que o Exército vem conservando e transmitindo certos valores que estão impregnados em sua
própria razão de ser, como patriotismo, hierarquia, disciplina e voluntariado. O Exército vem
tentando resgatar esses valores e transformá-los em valores sociais, fazendo-os ultrapassar os
limites de seu campo institucional e avançar sobre a sociedade como um todo. Numa tentativa
de alcançar esse objetivo, procura construir uma memória através de sua ótica, vinculando a
sua própria história aos grandes acontecimentos da história nacional.
Por meio de uma memória institucional ordenadamente construída e transmitida de
maneira tradicional, o Exército pretende ressaltar sua presença em alguns dos principais
acontecimentos da história nacional. Isso é perceptível em pelo menos quatro momentos que
são tradicionalmente considerados como essenciais dentro de um processo de construção de
nossa nacionalidade: a Batalha dos Guararapes (1648); a Guerra do Paraguai (1865-1870); a
Proclamação da República (1889); e a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB)
na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Segundo o próprio Exército, a sua gênese estaria totalmente ligada à Batalha dos
Guararapes. De acordo com uma visão tradicional da História do Brasil, seria nessa batalha,
ocorrida em Pernambuco por volta de 1648, que surgiriam as primeiras manifestações
nativistas. Seria em Guararapes que os primeiros habitantes da Colônia teriam se unido contra
um inimigo comum, no caso os holandeses. Mais ainda: teriam obtido uma vitória
significativa contra invasores estrangeiros de nosso território.
Tal união realizada em Guararapes seria a síntese daquilo que se convencionou chamar
de “povo brasileiro’’, ou simplesmente o resultado da miscigenação das três ‘raças’
formadoras da nação: o índio, o branco e o negro. O mito das três ‘raças’ é enfatizado na
figura de três heróis militares da Batalha de Guararapes: o (índio) Antônio Felipe Camarão, o
(branco) João Fernandes Vieira e o (negro) Henrique Dias. Para o Exército, a gênese de sua
existência se daria a partir desta união em defesa de uma mesma causa: simbolicamente, a
instituição seria o resultado da própria síntese formadora do povo brasileiro.
A página na internet criada pelo Exército, em 1998, para as comemorações
dos 350 anos da Batalha apresenta Guararapes como “Berço da
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Nacionalidade e do Exército Brasileiro” e seus heróis como representantes
das “três raças formadoras da essência do povo brasileiro” E também:
“Prodígio de criatividade, ousadia e bravura, a 1ª Batalha dos Guararapes é
mais do que um memorável feito militar de nossos antepassados. Neste
duelo, em que o Davi Caboclo abateu o Golias estrangeiro, assentam-se as
raízes da nacionalidade e do Exército brasileiros, que caminham juntos há
350 anos.” (CASTRO, 2002, p. 72)
Em 1822, 174 anos após a Batalha de Guararapes, o Brasil se tornaria um país
independente. Em 1824, dois anos após a emancipação política, o Exército Brasileiro foi
institucionalizado. A partir daí, ao longo da história do Império, o Exército iria participar de
inúmeros conflitos internos e externos, como a Confederação do Equador, a Guerra da
Cisplatina, a Farroupilha, a Revolução Praieira e especialmente a Guerra do Paraguai.
Dentre esses conflitos, o ocorrido no Paraguai de 1865 a 1870 foi sem dúvida o maior
de todos, o mais brutal! A Guerra do Paraguai, que se estendeu por mais de cinco anos,
provocou grandes perdas humanas e materiais para ambos os lados. Mesmo assim, o Exército
Brasileiro sagrou-se vitorioso; em contrapartida, o Exército Paraguaio foi praticamente
dizimado, e a população de seu país reduzida a 50% do que era antes do conflito. Ou seja, do
ponto de vista militar, a vitória do Brasil foi inquestionável. Mas a Guerra do Paraguai
representou algo mais para o Exército Brasileiro: a experiência de nossos militares no conflito
chegou a ter um caráter demiúrgico, inaugurando uma nova etapa de nossa história militar e
alterando sensivelmente a visão que a sociedade brasileira tinha das instituições militares, em
particular do Exército. O conflito forneceu uma base tradicional que, ainda hoje, fortalece a
memória institucional do Exército Brasileiro.
Não por acaso, a experiência da Guerra do Paraguai serviu de ponto de partida para
uma nova etapa na produção de memórias sobre a instituição militar. A partir de diversas
situações dramáticas de batalha que ocorreram no Paraguai, emergiram histórias de heróis
que, atualmente, compõem a galeria de patronos das diversas armas do Exército, como aponta
Celso Castro(2004, p.30):
O processo de escolha de (...) patronos – a “corte de heróis” de Caxias –
estendeu-se pelas armas do Exército. As principais receberam como
patronos personagens que haviam se destacado na Guerra do Paraguai,
principalmente em Tuiuti, hoje referida como batalha dos patronos:
Sampaio (infantaria), Osório (cavalaria), Emílio Luiz Mallet (artilharia).
Esse processo continuou através dos anos.
Após a Proclamação da República, em 1889, fortaleceram-se os mecanismos
simbólicos e tradicionais da memória institucional do Exército. Esses mecanismos – a maioria
deles produzidos ainda a partir das experiências da Guerra do Paraguai – foram ganhando
cada vez mais corpo e espaço. O próprio regime republicano, recém-instaurado no Brasil,
tinha sua gênese ligada à atuação de militares do Exército Brasileiro. Muitos deles,
influenciados pelo Positivismo, atribuíam a si mesmos e à própria instituição uma missão
quase messiânica, a de conduzir os desígnios da República.
A partir de 1890, o Exército começou a apoiar escritores militares que produziram
inúmeras obras que, de certa forma, resgataram e também formaram parte da memória atual
do Exército: ´´eles produziram um fluxo constante de histórias de campanhas, freqüentemente
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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bem-documentadas, ainda que muitas vezes abordadas de forma estreita’’(CASTRO, 2004,
p.15).
Essa história militar do final do século XIX foi sendo registrada, principalmente,
através de memórias pessoais de militares que participaram de determinados eventos, como
guerras ou campanhas. Muitas dessas obras compilavam experiências vividas pelos próprios
autores ou pelos regimentos dos quais fizeram parte. O texto biográfico se destacou, então,
como um dos vários recursos utilizados para ressaltar aspectos patrióticos, além de registrar
eventos ou acontecimentos vividos por diferentes personagens. Vale lembrar que alguns
eventos, mesmo vividos individualmente, podem expressar uma experiência coletiva.
Em 1888, havia sido fundada, por Franklin Américo de Meneses Dória, o Barão de
Loreto, a Biblioteca do Exército. Anos mais tarde, em 26 de junho de 1937, ela foi
reorganizada por decreto pelo General de Divisão, Valentin Benício da Silva. A partir dessa
reorganização, o Exército passou a ter também a sua própria editora, aquela que atualmente é
denominada Biblioteca do Exército Editora ou Bibliex. Dessa forma, o Exército passou a
publicar diretamente os assuntos de seu interesse ou simpatia.
Mesmo tendo ativa participação política em vários momentos cruciais de nossa
história, durante os séculos XIX e XX – como a queda do Império, os movimentos tenentistas
e a Revolução de 30 – foi a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
que inspirou a produção de nova safra de memórias, e de certa forma, fortaleceu o vínculo do
Exército com a sociedade. O Estado Novo (1937-1945), também pode ser considerado como
um dos maiores responsáveis pela disseminação de memórias e tradições, hoje presentes em
várias manifestações militares.
Em 1939, o mundo foi marcado pela eclosão de um grande conflito mundial, que se
estendeu por seis anos. Esse conflito foi a Segunda Guerra Mundial e gerou inúmeras
transformações, tanto geográficas como ideológicas. Transformações essas que atingiram até
o Exército Brasileiro.
Inicialmente o Brasil se manteve neutro diante desse conflito, mas o afundamento de
navios brasileiros, ocorridos em 1942, colocou nosso país em estado de beligerância contra
os países do Eixo (Alemanha, Itália, e Japão). Após pressões internas e externas, o Presidente
Getúlio Vargas, através de um acordo com o líder norte-americano, Franklin Roosevelt,
decidiu enviar tropas brasileiras para a Europa. Apesar das inúmeras dificuldades de
recrutamento, devido às precárias condições sanitárias da população brasileira, foi formada,
em agosto de 1943, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que participaria do conflito
somente em julho de 1944. Como mostra FERRAZ (2005, p. 51): “o primeiro escalão (da
FEB) partiu do porto do Rio de Janeiro em 2 de julho de 1944, no navio USS General Mann.
Poucos sabiam que o escalão iria para Itália”.
No total, foram enviados para a Itália cinco escalões de militares brasileiros, sendo o
primeiro composto por, aproximadamente, cinco mil homens. Com os outros quatro, o Brasil
completaria a Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE) que seria incorporada ao 4º Corpo
do 5º Exército Norte-Americano, comandado pelo General Mark Clark.
Muito dos combatentes que foram para a Europa faziam parte de uma miscigenação
social, eram estudantes universitários, lavradores, operários. Apesar de suas diferenças
étnicas, profissionais e de formação escolar, todos pareciam se sentir unidos por uma mesma
causa: a “democracia mundial”.
A participação do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial, além de ter sido
uma nova etapa na história da instituição, gerou também uma vasta produção de memórias
sobre o próprio Exército. A atuação dos militares brasileiros no conflito trouxe grandes
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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mudanças para a instituição e elevou o seu valor a ponto de gerar diferenças entre o Exército
da FEB e o Exército de Caxias , como analisa FERRAZ (2005, p. 52):
[...] de um lado o ‘’Exército de Caxias’’, aquele que ficara no país,
caracterizado por seus quartéis pouco higiênicos, pelas exteriorizações
excessivas de disciplina, com pouca serventia para a guerra real, pela maior
importância que conferia a perdas materiais do que às baixas de combate,
do outro, o ‘’Exército da FEB’’, baseado no modelo militar norteamericano, mais democrático, no qual as relações humanas entre os oficiais
e praças visavam à eficiência em combate, e não à exteriorização de uma
superioridade iminente do oficialato.
Além disso, a doutrina militar brasileira, que era baseada no modelo francês, passou a
ser inspirada no modelo norte-americano, que, de certa forma, se adequava às necessidades
dos combates mais modernos. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiram várias
memórias sobre a participação de brasileiros no conflito. Foram produzidas, em sua grande
maioria, por ex-combatentes.
Devemos observar que a FEB era, na sua quase totalidade, composta por gente
simples, ou seja, pessoas com pouca escolaridade ou nenhuma. Diversos expedicionários
vinham do campo e das mais remotas regiões do país. Muitos deles não tinham uma
compreensão exata da dimensão do conflito de que participavam. Portanto, a maioria dessas
memórias foram escritas por oficiais e alguns “intelectuais”, que analisaram o contexto em
que viviam através de sua ótica particular.
De certa forma, essas novas memórias serviram para reforçar a imagem do Exército
Brasileiro perante os olhos da sociedade, como instituição presente nos momentos decisivos
da história nacional.
O Museu Histórico do Exército sob um olhar crítico
Através dessa pequena análise histórica, percebemos que o Exército Brasileiro tenta
construir sua própria história apropriando-se de eventos da História Nacional. O Exército
pretende ser considerado como um dos poucos exemplos de instituição que, no Brasil,
consegue manter-se íntegra e até mesmo se fortalecer com o passar do tempo. Mesmo
sofrendo inúmeras transformações no decorrer de sua existência, o Exército se esforça no
sentido de exercer uma espécie de monopólio sobre a guarda das virtudes da nação, através de
uma imagem institucional construída histórica e socialmente. No entanto, para manter essa
imagem institucional, o Exército tem que se subordinar à dinâmica social.
Através de museus e espaços culturais, o Exército Brasileiro tenta inserir na sociedade
seus próprios valores e torná-los universais. Para atingir esse objetivo, a instituição procura se
imiscuir no processo de formação de nossa própria identidade enquanto brasileiros,
ressaltando sua participação em momentos-chave da História Tradicional do Brasil. A
estratégia usada é então recortar e reforçar momentos em que o Exército teve uma
participação mais efetiva em acontecimentos de relevância social. Procura-se destacar a idéia
de que os militares tiveram um papel fundamental na construção da nacionalidade e também
da sociedade brasileira como um todo.
Ao observarmos alguns museus e centros culturais, percebemos como o Exército
organiza, em determinados espaços de visibilidade pública, uma memória ordenada e
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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tradicionalmente construída. Além disso, essa memória é apresentada ao público de uma
forma acessível, compreensível e totalmente didática, por meio de imagens, placas
explicativas e objetos estrategicamente posicionados. No Brasil, existem atualmente inúmeros
museus e centros culturais mantidos pelo próprio Exército. Só na cidade do Rio de Janeiro,
ex-capital do país e palco preferencial de inúmeros acontecimentos que envolveram a
instituição militar, podem ser citados os seguintes: Museu Histórico do Exército, Museu
Conde de Linhares, Panteão de Caxias, Casa de Deodoro, Forte de Copacabana, Forte do
Leme, Fortaleza de São João. Um caso à parte é o do Monumento aos Mortos da Segunda
Guerra Mundial, localizado no Aterro do Flamengo pois a gestão e a guarda de seu
patrimônio, que inclui os restos mortais dos pracinhas que haviam sido originalmente
sepultados em território italiano, no Cemitério de Pistóia, são compartilhados pelas três
Forças Armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica.
Dentre esses espaços de solidificação de uma memória institucional, o Museu
Histórico do Exército merece uma atenção especial, devido à maneira como se apresenta à
sociedade. Atualmente, o acervo do museu se encontra localizado no Forte de Copacabana,
que fica no final da praia de mesmo nome. Desde 1987, quando foi desativado
operacionalmente, o Forte funciona como espaço cultural. Suas dependências acham-se
abertas à visitação pública e elas próprias chamam atenção por terem servido de palco para
acontecimentos marcantes da História do Brasil, como a Revolta de 1922 e o episódio dos 18
do Forte, ambos identificados com a gênese do movimento tenentista. Atualmente, o Forte de
Copacabana abriga um acervo de mais de dez mil peças, entre armamentos, projéteis,
mecanismos hidráulicos, uniformes, bandeiras e outros objetos característicos da vida militar.
Desde 2000, conta com um salão de exposições temporárias e espaços alternativos como casa
de chá e loja de souvenirs. Um de seus espaços mais requisitados pelos visitantes é composto
por dois amplos salões e pequenas salas contíguas que abrigam o acervo específico do Museu
Histórico do Exército.
A exposição permanente do Museu do Exército foi inaugurada em 1996. Atualmente,
ela divide em dois módulos cronológicos e temáticos a História do Exército Brasileiro. Existe
na organização do acervo uma clara preocupação de ressaltar a participação de militares em
eventos tradicionais da História do Brasil.
O primeiro módulo, concluído em 1996, focaliza a História do Exército no longo
período que vai do início da colonização portuguesa em nosso território até a Proclamação da
República (1500-1889). Os stands da exposição parecem verdadeiros dioramas em tamanho
natural; cuidadosamente montados como se fossem cenários, eles misturam objetos de época
com bonecos de cera e placas de identificação. Cada uma das vitrines temáticas representa a
atuação de homens de armas em momentos significativos de nossa história, todos eles
selecionados de acordo com critérios que ainda hoje inspiram os livros didáticos mais
tradicionais. Os bandeirantes monopolizam o stand da Expansão Territorial; a maquete de
uma fortaleza se destaca na vitrine de Defesa e Integração Territorial; o stand das Primeiras
Manifestações Nativistas merece um tratamento especial no espaço da exposição, com os
bonecos de cera de Felipe Camarão, João Fernandes Vieira e Henrique Dias encenando o mito
das três raças formadoras do povo brasileiro. Outro espaço cênico que se destaca é o da
Guerra do Paraguai, em que aparecem a maquete da Batalha de Tuiuti e as faces pintadas dos
patronos das três armas do Exército (Infantaria, Artilharia e Cavalaria); bem ao lado, uma
vitrine expõe objetos pessoais de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, este sim
reconhecido como patrono do Exército Brasileiro como um todo; mais adiante, o mesmo
Caxias é relembrado através de um quadro que mostra a fazenda em que viveu seus últimos
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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dias com a família. Outros militares que merecem destaque na exposição são os marechais
Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, todos protagonistas dos stands
dedicados à Crise do Império e ao Advento da República.
O segundo módulo, inaugurado dois anos mais tarde, em 1998, segue o mesmo padrão
do primeiro. Os espaços cênicos se sucedem em ordem cronológica e temática, do início do
período republicano até meados do século XX. Ali também são ressaltadas as atuações dos
militares em eventos de destaque da História do Brasil, como são os casos da Proclamação da
República, da Campanha de Canudos, das Revoltas Tenentistas. O módulo termina com o
stand da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, este acompanhado de uma sala
especial onde se encontram expostos espólios de guerra e objetos diversos de militares que
estiveram diretamente envolvidos com a Força Expedicionária Brasileira. Curiosamente,
outros momentos da História do Brasil Republicano em que os militares se fizeram presentes
são deixados de lado. Não há stands dedicados ao Estado Novo (1937-1945) e muito menos à
Ditadura Militar (1964-1984). Nesses casos, vale lembrar aquilo que já se sabe sobre o
processo de construção de uma memória institucional: ela se faz a partir de escolhas e
descartes. A omissão desses momentos polêmicos de nossa história pode então confirmar o
que ressaltamos desde o início deste artigo: o Exército Brasileiro parece querer solidificar
uma memória positiva de si próprio a partir de sua atuação em eventos que contribuem para a
construção de nossa sociedade. Não seria prudente misturá-los com outros eventos, ainda
recentes dentro do tempo histórico, que remetem a atitudes de desrespeito aos direitos civis e
ao Estado fundado em bases democráticas que, hoje em dia, vigora no país.
Como já foi dito, o Exército Brasileiro, para garantir sua legitimidade e reforçar sua
presença junto à sociedade, procura resgatar certos valores e atrelá-los ao próprio exercício da
cidadania. Nesse sentido, a instituição militar se vale de mecanismos simbólicos que
valorizam e até mesmo glorificam a sua relação, a princípio indissolúvel, com a sociedade
brasileira. Concluímos, portanto, que mesmo numa sociedade em constante mutação como é o
caso da nossa, o Exército se esforça para manter viva a chama de sua própria identidade,
reafirmando a cada dia sua presença no fazer social. Mesmo adequando-se a novas dinâmicas
que exigem outras escolhas, outros descartes, a memória institucional do Exército Brasileiro
procura seguir com rigor as suas bases históricas mais tradicionais.
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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c
ropaganda Nazista:
Análise de discurso de cartaz do Projeto Aktion T4
Marcos José Vieira Curvello*
____________________________________________________________________Resumo
O presente artigo tem por objetivo desenvolver a análise criteriosa do discurso contido em uma peça
de propaganda do projeto Nazista Aktion T4, mostrando como valores e idéias subentendidas alcançam
o público alvo sem que seja necessário explicitá-las; e como o “não dito” pode ter grande importância
na construção e respaldo do discurso presente numa peça publicitária.
Palavras-chave: Propaganda, Política, Análise de discurso, Nazismo, Adolf Hitler.
___________________________________________________________________________
I Introdução
O conflito que mais fez vítimas em toda a história da humanidade, a Segunda Guerra
Mundial, foi marcado pelo totalitarismo e intolerância racial dos alemães. A busca por seu
próprio übermensch50 elevou as questões raciais européias a um novo patamar. Dentre tantos
outros fins, a propaganda nazista trabalhou arduamente em prol da suposta purificação racial,
gerando cartazes anti-semitas, agressivos a outras minorias e condenando os deficientes
físicos e mentais, mesmo germânicos. Um destes projetos, o Aktion T4, foco deste estudo,
produziu um cartaz que, através de um apelo monetário dirigido a cada um dos indivíduos da
nação, pretende justificar todo um morticínio.
Para tanto, serão usadas as fundamentações lançadas por Milton José Pinto em seu
sucesso de vendas Comunicação e Discurso, da Hackers Editores, e a pesquisa desenvolvida
pela jornalista Paula Diehl, em seu livro Propaganda e Persuasão na Alemanha Nazista, além
de outros volumes relacionados à propaganda, política e história.
Apesar de abordar e delinear de forma sucinta todo um período histórico, não é a
intenção do artigo se perder em debates sobre a Segunda Guerra Mundial per se ou promover
quaisquer juízos de valor a respeito da política totalitária desenvolvida na Alemanha naqueles
anos. As informações sobre a criação do Partido Nazista e sobre a política e pensamentos de
seu líder, Adolf Hitler, visam unicamente uma contextualização espaço-temporal do objeto a
ser analisado e não configuram, de qualquer maneira, apologia ou censura, procurando ater-se
unicamente ao caráter científico da obra.
II Surgimento e ascensão do Partido Nazista
O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) surgiu em um
conturbado momento da história daquela nação. A derrota germânica na 1ª Guerra Mundial
*
Marcos José Vieira Curvello é aluno do curso de Comunicação Social – Jornalismo nas Faculdades Integradas
Padre Humberto.
50
Homo superior, super-humano. Conceito filosófico formulado por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 a 1900),
em seu livro Assim Falou Zaratustra (publicado originalmente entre 1883 e 1885), que foi erroneamente
associado à causa racial nazista.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
112
inaugurou um período de grande instabilidade política que culminou na abdicação do Kaiser
Guilherme II. O estabelecimento da República de Weimar colocou a social-democracia em
conflito com os socialistas da Liga Spartakus, intensificando a insegurança e as lutas internas
no país. Não bastasse tamanha desordem, a Alemanha ainda se viu coagida pela comunidade
internacional a aceitar o Tratado de Versalhes.
As mortes de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo selaram a vitória de Weimar sobre
a revolução, porém, não puseram fim a todos os seus problemas. Segundo a jornalista Diehl
(1996, p.27), o Tratado ainda teria conseqüências muito maiores.
Carregado de culpa e vergonha, ele impunha aos alemães uma humilhação
constante, ainda mais agravada pelo tratamento dado pela imprensa dos
países vitoriosos. O Tratado obrigava os alemães a se declararem os
“causadores da guerra”, os “agressores”; esse parágrafo do artigo 231 era
chamado de “a Cláusula de Culpa da Guerra”. Isso só contribuiu para
aumentar a força das tendências direitistas e anti-semitas, que viram no
Tratado de Versalhes um avanço franco-judaico sobre a Alemanha.
Em meio a este caldeirão borbulhante de ufanismo e xenofobia, o ferreiro Anton
Drexler e o jornalista Karl Harrer fundam, a 5 de janeiro de 1919, na cidade de Munique, o
Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei ou DAP), mais um “‘...estilhaço
da direita’, seguindo todos os pré-requisitos da direita fragmentada alemã. Como preceitos
básicos de seus ideais estavam o anti-semitismo, o nacionalismo exacerbado e o
anticomunismo ferrenho” (Ibdem, p. 41).
Adolf Hitler não participou da fundação do DAP. Seu ingresso se deu apenas oito
meses mais tarde, em 12 de setembro de 1919. Enviado pelo exército, sua função era espionar
as atividades do Partido devido às suspeitas de cumplicidade de seus membros com
comunistas. Contudo, o então Cabo, acabaria seduzido pela atividade política. Ascendendo na
hierarquia do DAP, Hitler tornou-se o responsável por toda a sua propaganda. Sob seu
comando, o Partido dos Trabalhadores Alemães passou a realizar comícios periodicamente,
abordando assuntos de grande apelo junto ao público alquebrado, como “a ‘humilhação do
pós-guerra’, o anti-semitismo e o nacionalismo” (Ibdem, p. 42). No mês de outubro,
“conseguiu atrair mais cem pessoas ao comício de Hofbräuhaus, duzentas em novembro,
quase duas mil em 24 de fevereiro de 1920, quando ilustrou os 25 pontos do programa do
partido” (FEST; 2004, p. 35).
Em abril de 1920, Adolf Hitler deixou o exército e o Partido recebeu o nome pelo qual
entraria para a história: Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães
(Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei ou NSDAP). Após firmar contato com outros
movimentos nacionalistas em Berlim, Hitler retornou a Munique e modificou o estatuto do
NSDAP centralizando todos os poderes nas mãos do presidente do Partido, cargo que ele
próprio passou a ocupar a partir de então.
Este primeiro passo abriu caminho para o Putsch da Cervejaria51, golpe que, apesar de
fracassado, serviu de vitrine ao ideário político do Partido Nazista. Condenado a cinco anos
de prisão, Hitler cumpriu apenas os primeiros oito meses, tendo recebido liberdade
condicional já em dezembro de 1924. Novamente em liberdade, reorganiza o combalido
51
Tentativa de aplicar um golpe de Estado engendrada por Adolf Hitler e seus comparsas a 8 de novembro de
1923. Durante os oito meses em que esteve preso iniciou a escrita de seu manual político, o livro Minha Luta
(Mein Kampf).
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Partido e, nos anos seguintes, se utiliza habilmente da crise econômica gerada pela quebra da
bolsa de Nova Iorque para ganhar espaço entre os eleitores.
O fechamento do Reichstag52 por parte de então chanceler53 Heinrich Brüning acaba
na antecipação das eleições e, mesmo com campanhas marcadas pelo violento embate entre
esquerda e direita, nazistas e comunistas aumentam consideravelmente o número de assentos
no novo Parlamento, eleito em 1930. Este seria o primeiro degrau da ascensão nazista. Os
meses seguintes viram uma acirrada competição eleitoral entre Adolf Hitler e Hindenburg
pelo cargo de chanceler do Reich54, porém, em 30 de janeiro de 1933, na confluência de
interesses de vários membros poderosos do quadro político alemão, dentre os quais o próprio
oponente, Hitler assumiu o tão cobiçado cargo. Logo, o pluripartidarismo encontrou seu fim.
As liberdades individuais e o exercício da democracia se viram ameaçados por uma série de
decisões arbitrárias. O Parlamento foi novamente eliminado e Hitler concentrou o poder
legislativo em suas mãos. As perseguições a alvos políticos garantiram que apenas indivíduos
simpáticos às idéias nazistas permanecessem nas estruturas do poder. Iniciou-se assim o
período de governança de Adolf Hitler, que teria fim apenas em 30 de abril de 1945, quando o
Führer55, na iminência da derrota na Segunda Guerra Mundial, cercado em seu bunker56 em
Berlim por soldados russos, tira a própria vida.
III Propaganda
Uma atividade de origem irrastrável, a propaganda ganhou novas proporções na era
pós-industrial. O advento das massas e o aprimoramento dos meios de comunicação
possibilitaram às idéias e ideais veiculados um alcance nunca dantes concebido. A
propaganda configurou-se como grande impulsionadora da atividade comercial, além de
potencial transmissora de valores, guardiã de velhos juízos e construtora de celebridades.
Sampaio (2003, p. 26) define propaganda como “a manipulação planejada da
comunicação visando, pela persuasão, promover comportamentos em benefício do anunciante
que a utiliza”. Embora seu livro trate principalmente da chamada “propaganda comercial”, o
princípio pode ser aplicado universalmente à atividade propagandista, não importando se o
“anunciante” é uma marca que acaba de entrar no mercado ou um governo ditatorial, como no
caso aqui examinado.
Durante os primeiros 50 anos do século XX viu-se um intenso e inovador uso da
propaganda, desta vez na esfera política. Partidos tornaram-se “anunciantes” e se puseram a
“vender” seu produto/ideário à opinião pública em desfiles organizados e comícios
inflamados, tentando cooptar seus votos e militância. Os processos que culminaram na
Revolução Russa e nas duas Guerras Mundiais serviram de incubadoras e laboratórios nos
quais novos métodos de convencimento se desenvolveram e aprimoraram.
Os Partidos Comunistas empregaram técnicas avançadas de propaganda e organização,
técnicas estas que, apropriadas pelo Partido Nazista nos anos que precederam a Segunda
52
O Parlamento alemão.
Chefe de governo da Alemanha.
54
Império, em alemão. O I Reich refere-se ao Sacro-Império Romano-Germânico (de 962 a 1806), II Reich ao
Império Alemão (a 1871 a 1918) e III Reich ao período que durou regime nazista (de 1933 a 1945).
55
Líder, em alemão. O termo foi cunhado por Adolf Hitler para designar a posição que ocupava, a de chefe
máximo do Reich e do Partido Nazista.
56
Também chamados casamatas, os bunkers são unidades militares fortificadas para proteção. Geralmente são
subterrâneas e variam de tamanho, chegando a enormes complexos.
53
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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Guerra Mundial, foram refinadas e transformadas em assustadoras armas de persuasão. De
acordo com Sant’Ana (1995, p. 45) “foi em grande parte devido a ela [a propaganda] que
Lenine logrou instaurar o bolchevismo; Hitler deveu-lhe, essencialmente, suas vitórias”.
De fato, o Partido Nazista via na propaganda o mais potente instrumento de
convencimento e, nas massas, o corpo de seu ideal. Adolf Hitler encarava estes aglomerados
como algo manipulável, inserido numa lógica quase pavloviana de estímulo e resposta,
conforme deixa claro no excerto adiante:
As grandes massas têm uma capacidade de recepção muito limitada, uma
inteligência modesta, uma memória fraca. Para que uma propaganda seja
eficiente, deve basear-se, pois sobre pouquíssimos pontos repetidos
incessantemente, até o homem mais rude ser induzido e repeti-los
continuamente a fim de imprimi-los no íntimo de sua consciência inocente.
(Regra de ouro do bom demagogo)
Esta certeza vai ao encontro do que Sant’Ana (opus cit., p. 51) sustenta:
O hitlerismo corrompeu a concepção leninista de propaganda. Transformoua numa arma em si, utilizada indiferentemente para todos os fins. As
palavras de ordem apresentavam base racional. Quando Hitler se dirigia às
massas invocando o sangue e a raça, importava-lhe apenas sobreexitá-las,
nelas incutindo profundamente o ódio e o desejo de potência. Essa
propaganda mais visa objetivos concretos, ela se derrama por meio de gritos
de guerra, de imprecações, de ameaças, de vagas profecias e, se faz
promessas, essas são a tal ponto malucas que só atingem o ser humano num
nível de exaltação em que a resposta é irrefletida.
Para tanto, seu ferramental incluía uma série de alegorias, símbolos e ritos elaborados
para impressionar e embevecer. Comícios, discursos e passeatas altamente organizados, as
tropas SA57 e SS58 em seus uniformes, a Suástica e a Águia, as bandeiras e as saudações, eram
todos elementos na construção de uma imagem forte, hierarquizada, intimidadora e fascinante
que se deitava sobre todo o III Reich.
IV Análise de Discurso
José Pinto (2002, p. 11) define análise de discurso como um processo que, “a partir de
corpora de produtos culturais empíricos [...], procura descrever, explicar e avaliar
criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles
produtos na sociedade”. Contudo, para termos um maior entendimento sobre como se dá a
análise de discurso, se faz necessário compreender o que o que o autor entende por “produto
cultural empírico” e “discurso”.
Para Pinto, a expressão “produto cultural empírico” abrange uma série de produtos,
midiáticos ou não, tais quais: cartazes; outdoors; programas televisivos; spots de rádio; capas
de revistas, livros e outras publicações; textos políticos e jornalísticos; folders de divulgação e
57
Sturmabteilung: Tropas de Assalto, em alemão. Eram tropas para-militares do Partido Nazista. Durante a
“Noite das Longas Facas” foram substituídas definitivamente pelas SS.
58
Schutzstaffel: Esquadrão de Proteção, em alemão. Inicialmente criados para atuarem como a guarda pessoal de
Adolf Hitler, as SS ganharam grande prestígio após a queda das SA. Ao longo da guerra se tornariam a maior
força para-militar do III Reich, sendo, inclusive, os responsáveis pelos campos de concentração.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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informação, entrevistas médicas e de emprego; entre tantos outros. Estas peças “são
entendidas como textos, como formas empíricas do uso da linguagem verbal, oral ou escrita,
e/ou de outros sistemas semióticos no interior de práticas sociais contextualizadas histórica e
socialmente” (opus cit., p. 11) e, quando abordadas desta forma, “dizemos que foram
analisadas como discursos” (opus cit., p.12).
Frente à multiplicidade de métodos e fundamentos de que dispõem aqueles que se
aventuram pela análise de discurso – mais notadamente os arcabouços teóricos desenvolvidos
por estudiosos franceses, como Michel Foucault e Michel Pêcheux, e anglo-americanos, como
Bernard Berelson e Harold Lasswell – Pinto (opus cit., p. 14) se aproveita de observações de
ambas as correntes e propõe um modelo próprio de análise que
(1) depende do contexto, (2) (deve ser) crítico (...), (3) não confia na letra do
texto relacionando-o às forças sociais que o moldaram, (4) não procura
interpretar conteúdos, (5) usa um conceito de ideologia ao lado do de
discurso, (6) trabalha comparativamente, (7) não usa técnicas estatísticas no
sentido acima, e (8) trabalha com as marcas formais da superfície textual.
É este mesmo modelo que contemplaremos no presente trabalho.
O primeiro item, a fundamentação de seu contexto, ou “condição social de
produção”59, se iniciou nos capítulos anteriores e é importante para entendermos os motivos
que levaram à criação da peça e como ele professa suas idéias, pois “a análise de discursos
não se interessa tanto pelo que o texto diz ou mostra, mas sim em como e porque o diz e
mostra” (Ibdem, p. 27).
Caberá ao capítulo seguinte dar fim à fundamentação e cumprir as demais etapas do
processo.
V Análise da Peça
A Segunda Guerra Mundial deixou um saldo de aproximadamente 28 milhões de
mutilados e 60 milhões de mortos, dentre os quais 10% eram de origem judaica. Ainda assim,
os judeus não foram os únicos a padecerem com as políticas raciais nazistas. Diversas outras
minorias e grupos foram severamente atacados desde a ascensão do NSDAP ao poder.
Comunistas, ciganos, homossexuais, Maçons e Testemunhas de Jeová sofreram em campos de
concentração. Junto deles, deficientes físicos e mentais de origem alemã somavam outros 6
milhões de mortos.
Esta tentativa de se efetuar uma higienização racial por meio da aplicação de conceitos
eugênicos60 de reprodução controlada havia sido prevista em Minha Luta: “Deve-se
providenciar para que só pais sadios possam ter filhos. Só há uma coisa vergonhosa: que
pessoas doentes ou com certos defeitos possam procriar, e deve ser considerada uma grande
honra impedir que isso aconteça” (HITLER; 1962, p. 253) e foi posta em prática tão logo
Hitler teve condições para tanto.
59
Pinto (2002, p. 12) esclarece que contexto ou condição social de produção representa as “práticas
socioculturais no interior das quais (um determinado discurso) surgiu [...] [e] incluem todo o processo de
interação comunicacional – a produção, a circulação e o consumo dos sentidos”.
60
Eugenia é a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie
humana.
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Como resultado, uma série de projetos foi criada pelo governo nazista para impedir o
rassenselbstmord61 que supostamente se abateria sobre os arianos. Numa ponta do espectro,
estava o programa Lebensborn62, da SS, cuja preocupação era garantir a diminuição dos
abortos, cerca de 600.000 por ano, e preservar a herança racial do III Reich. Na outra ponta
vinha o Aktion T4. Era função dos envolvidos no programa a esterilização – ou mesmo
extermínio, dependendo do grau da inabilidade ou doença – daqueles física ou mentalmente
deficientes. O Aktion T4 fez algo entre 75.000 e 250.000 vítimas, em meio a adultos e
crianças sofredoras de deformidades congênitas, esquizofrenia, epilepsia e Mal de
Huntington, entre outras aflições.
A peça63 que analisaremos, um cartaz colocado em circulação por volta de 1938, faz
parte do esquema de propaganda do Aktion T4 e apresenta uma estrutura bem definida com
quatro blocos de texto do lado esquerdo e uma grande imagem a ocupar todo o lado direito.
Acompanhando o sentido da leitura, o canto superior esquerdo é dominado pela presença de
um valor monetário, 60.000 Reichsmarks64, que ocupa todo o primeiro bloco. Impresso em
tipos grandes e numa forte cor amarela que contrasta com o fundo amarronzado, a pesada
quantia salta logo aos olhos de quem observa a peça. Seu tamanho e colocação são
estratégicos, uma vez que o montante serve como argumento de sustentação e legitimação do
chamado que proclamará adiante.
O segundo e o terceiro blocos de textos encontram-se colocados sob uma caixa
amarela que providencia destaque aos dizeres em tipos menores. Suas mensagens dizem
respectivamente: “É o que pessoas que sofrem de defeitos hereditários custam à comunidade
durante toda a sua vida” e “Companheiro alemão, é seu dinheiro também”. A tipologia gótica
e cor preta com que é grafada a primeira frase dão peso e força a uma informação que, supõese, levará o leitor à ponderação. A segunda frase, escrita em tipologia cursiva e cor vermelha,
torna-se mais leve, pois fala diretamente ao indivíduo, implicando-lhe na situação ao lembrarlhe que o dinheiro dos seus impostos está sendo “desperdiçado” nos cuidados a estes doentes,
deixando implicitamente entendido que ele poderia estar sendo mais bem aplicado em setores
outros que melhor lhe aprouverem. A mensagem tem impacto ainda maior sobre aqueles que
não possuem deficientes entre familiares e amigos mais chegados, o que, certamente, abrange
a maior parte da população.
O quarto bloco de texto é divido em quatro linhas. A frase, toda grafada em tipos
góticos, interpela novamente o leitor, desta vez, de uma forma imperativa tão comum às
propagandas publicitárias: “Leia Um Novo Povo, a revista mensal do Escritório de Políticas
Raciais do NSDAP”. Desmembrada em três linhas, o nome da publicação ocupa quase todo o
canto inferior esquerdo, escrito em tamanho grande e fonte branca – dando suporte à idéia de
“Um Novo Povo” igualmente grande e branco –, enquanto que as partes anteriores e
posteriores mantêm-se na cor negra e em tamanho modesto, que bastam para passar o restante
das informações.
A imagem impressa do lado esquerdo completa o apelo lançado pela peça, expondo
uma clara situação de comparação. Um homem belo, bem constituído, vestido de branco, se
põe atrás de uma criatura feia, disforme e aleijada, encolhida sobre a cadeira de maneira torta
e pouco confortável, vestida dentro de um traje negro. Ambos olham diretamente para frente,
61
Suicídio racial prenunciado pelo declínio de nascimento entre as raças ditas superiores.
Fonte da Vida, em alemão.
63
Para uma visualização do cartaz, consulte o Anexo I.
64
Moeda que circulou na Alemanha entre 1924 e 1948.
62
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
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incisivamente para o leitor do cartaz, abordando-lhe uma vez mais. A postura do homem de
branco é a de quem oferece o aleijado à apreciação do leitor, um exemplo de como estas
pessoas podem ser repugnantes, além de caras a seus bolsos. Uma série de dicotomias acentua
a discrepância entre ambas as figuras, a exemplo do maniqueísmo do preto (sujo, mal e
impuro) contra o branco (limpo, bom e puro, mais uma vez, a cor da “raça dominante”); e a
diferença de altura, com o aleijado pequeno, numa posição inferior e submissa, enquanto o
saudável é alto, forte e imponente. O semblante de infelicidade do pequeno serve como
atestado de que a vida que leva não é digna ou mesmo desejada.
VI Considerações finais
Como é possível perceber, as técnicas de análise de discursos nos proporcionam
formas de desvelar e entender uma série de fatores contidos nas entrelinhas da criação de um
discurso, presentes não no enunciado, mas nas condições que influenciaram sua produção e
impregnam sua própria constituição, seja por uma vontade ativa de seu criador empírico ou
por influência que este tenha recebido do ambiente sócio-cultural ou histórico que habita no
momento de sua concepção.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
118
Anexo I: Cartaz
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
119
Bibliografia e referências
DIEHL, Paula. Propaganda e Persuasão na Alemanha Nazista. São Paulo: Annablume,
1996.
FEST, Joachim. Livro-Clipping: Hitler por Ele Mesmo. São Paulo: Martin Claret,
2004.
HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Mestre Jou, 1962.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret,
2003.
PINTO, Milton José. Comunicação & Discurso. São Paulo: Hacker Editores, 2002.
SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda.,
2003.
SANT’ANA, Armando. Propaganda: Teoria, Técnica e Prática. São Paulo: Pioneira,
1999.
Regra
de
ouro
do
bom
demagogo.
Disponível
http://www.geocities.com/Athens/Thebes/7046/hitler.htm. Acessado em: 20/11/2007.
em:
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
120
ñ
tica jornalística:
entre a evocação do ideal e a conciliação de interesses
Jacqueline da Silva Deolindo*
____________________________________________________________________Resumo
O artigo tem por objetivo apresentar os resultados da pesquisa de campo realizada com jornalistas,
estudantes de jornalismo e outros profissionais da área, para verificar sua convicção pessoal acerca da
ética jornalística. A análise dos resultados é amparada por uma fundamentação teórica pautada no
entendimento do jornalismo enquanto um serviço público e no código de ética dos jornalistas
brasileiros. Este artigo é uma versão resumida da pesquisa de mestrado da autora, defendida em maio
de 2008 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e orientada pelo Prof. Drº Hugo Lovisolo. A
pesquisa de campo foi restringida aos participantes de um encontro de jornalistas que reuniu
profissionais das regiões Norte, Noroeste e Lagos do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, em
dezembro de 2007.
Palavras-chave: Ética, Moral, Jornalismo, Códigos Deontológicos
___________________________________________________________________________
Introdução
É a partir do século XIX, articulando a herança deixada pelas Luzes, que celebrava a
liberdade de opinião e expressão do pensamento como um dos mais importantes direitos do
Homem, que o jornalismo desenvolve o ethos da atividade como interesse público, um quarto
poder, um produtor e divulgador de informações, a partir de uma técnica peculiar, que tem
como principal baliza a busca pela verdade dos fatos a fim de atender a demanda dos cidadãos
por notícias que lhes informem sobre o que se passa na sociedade.
Trata-se, portanto, de uma atividade que, à semelhança de tantas outras, ao se
profissionalizar, assume valores, objetivos e tarefas que são compartilhados com o público,
que, inclusive, reconhece nos jornalistas as pessoas devidamente habilitadas para tal. Assim,
há uma opinião que serve de base para a reflexão sobre o jornalismo: o entendimento da
atividade como um serviço público, mediadora da informação, cujo principal objetivo é
manter os cidadãos cientes dos fatos, garantir seu acesso aos diversos pontos de vista a
respeito das temáticas mais atuais e servir de canal entre o público e as diversas instâncias de
poder na sociedade. Entre os profissionais da área diz-se que, se perder de vista esse papel, a
imprensa fará tudo, menos jornalismo. De nossa parte, percebemos que, se perder de vista a
perspectiva ética, de um lado, e, de outro, as rotinas e demandas que moldam a produção
jornalística65, o pesquisador não poderá compreender o que é o mundo das notícias e por que
elas são como são66.
*
Jornalista. Mestre em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
A respeito das teorias do jornalismo que versam sobre as rotinas produtivas da notícia e sua influência sobre o
produto noticioso, ver coletânea de artigos organizada por Nelson Traquina (1993), na qual se encontram
traduzidas para o português os artigos originais dos principais teóricos adeptos à linha do newsmanking.
66
Em Teorias do Jornalismo (2005), Felipe Pena reúne e discute as principais teorias do jornalismo.
65
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
121
É, portanto, tendo em vista a deontologia jornalística, que esta pesquisa procurou
investigar, entre outras situações, como hoje se sustenta o jornalismo ideal enquanto
representação entre os profissionais da área. Como veremos, muitos jornalistas e estudantes
de jornalismo dizem ser difícil a observância do código de ética feito para conduzir a
atividade dentro dos ideais seculares de compromisso com a democracia e a cidadania. Dizem
ser quase impossível desenvolver um “bom jornalismo” dadas às circunstâncias
contemporâneas, em que os negócios da comunicação pautam-se pelas leis de mercado,
visando o lucro e a proteção dos anunciantes67. Contudo, o ideal ético pode sobreviver apesar
das influências, vistas como desvios ou deturpações, do modo real de funcionamento68. Tudo
indica que, sem o ideal ético, a profissão perde sua legitimidade. Ele deve ser elogiado,
fundamentado e, quando possível, perseguido, ainda que realizado de forma parcial ou
imperfeita.
1 – Moral, deontologia e ética jornalística
Noções como notícia, verdade, independência, objetividade e serviço ao público para
atender as demandas do interesse público por inteirar-se do que se passa amadureceram junto
com a profissionalização da atividade e a transição do jornalismo artesanal, de campanha,
despretensioso, para uma realidade capitalista, de alta especialização, onde o título de quarto
poder e de porta-voz dos cidadãos convive com a idéia de ser esta uma ocupação rentável.
A partir do século XIX, com sua profissionalização e a transformação das redações em
empresas capitalistas69, o jornalismo passou a ser orientado por um discurso de tipo ethos,
regido por regras e por uma deontologia toda particular70. O discurso legitimador do papel
profissional e público da atividade jornalística toma como missão dos jornalistas contribuir
para o desenvolvimento da sociedade e para a manutenção dos valores democráticos,
fornecendo informações e análises acerca do andamento da vida, da sociedade, da política.
Para realizar-se como dispositivo da cidadania, o jornalismo procura circular em torno de
balizas que indicam o que a atividade deve ser, um dever-ser historicamente construído que
regula e dirige a atividade.
Já faz quase cem anos que os primeiros códigos de ética – ou deontológicos, como
preferimos71 – foram escritos, e hoje eles já estão presentes em praticamente todos os países
do mundo. Hoje, já não se pode conceber a vida em sociedade sem meios de comunicação que
permitam às pessoas saber o que se passa; necessita-se não apenas de mídia, mas de mídia de
qualidade. Para especialistas como Claude-Jean Bertrand (1999), a maioria dos problemas que
67
Sobre a influência do mercado na produção da notícia jornalística pode ser elucidativo o livro de Meyer (1989)
que serviu de inspiração para esta pesquisa de campo.
68
Sobre ética, ver Valls (2006). Já Karam (1997) oferece uma distinção bastante clara a respeito dos termos
ética, moral e deontologia.
69
A esse respeito do profissionalismo no jornalismo, ver Soloski in TRAQUINA, 1993: 91-100.
70
Segundo esse discurso, “é missão dos jornalistas contribuir para o desenvolvimento da sociedade e
manutenção dos valores democráticos.” (ALDÉ, 2005, p. 198) O jornalismo determinaria os acontecimentos com
direito à existência pública, noticiando os fatos com objetividade e definindo o significado dos acontecimentos
através da oferta de interpretações de como compreendê-los.
71
Preferimos o termo “código deontológico” porque concordamos com Alberto Dines quando diz que “a Ética é
uma porção da Filosofia e da Moral que não pode ser comprimida ou reduzida a um conjunto de normas
pragmáticas de conduta. Ética situa-se numa esfera superior e íntima, obviamente mais abrangente e muito mais
complexa.” (ARGOLO, 2002, p. 15). A deontologia seria o nome mais apropriado para uma disciplina que
estuda a conduta e os deveres profissionais.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
122
impede a mídia de alcançar esse padrão de qualidade é a sua natureza tríplice, que faz dela, ao
mesmo tempo, indústria, serviço público e instituição política. É por isso que a deontologia
preocupa-se com deveres, regras que decorrem de um conjunto de princípios morais, que
atuam em conformidade com a moral social72. São adotados em larga medida, aceitos, porque
as pessoas que os adotam compartilham de uma determinada visão dos homens, do mundo e
da vida em sociedade.
O código deontológico nem sempre apresenta regras fáceis ou coerentes, mas nisso os
teóricos do jornalismo estão de acordo, estabelece-se, ao menos, um ideal. “Tenta-se armar a
consciência individual de cada profissional enunciando valores e princípios unanimemente
reconhecidos. O código dá a cada um, um sentimento de segurança, de força coletiva.”
(BERTRAND, op. cit., p. 81). Karam (1997) acrescentaria que o código “é apenas uma
referência que não esgota a constante criação de uma prática profissional, com os novos
problemas e posturas que sugere. É mais um eixo que norteia a ação profissional, tanto no
sentido de cumprir quanto negar um princípio.” (KARAM, op. cit., p. 53)
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros versa sobre o direito à informação (o
jornalista brasileiro trabalha pelo interesse público, deve ter total acesso às informações e não
admitir qualquer tipo de impedimento nesse sentido)73; dá diretrizes para a conduta
profissional do jornalista (deve ser uma conduta pautada pelo código de ética, em
conformidade com o interesse público e a verdade; o jornalista deve honrar e dignificar a
profissão, lutar pela liberdade de expressão; combate a corrupção e tudo aquilo avilta os
direitos humanos)74; reafirma sua responsabilidade social (o parágrafo sobre a presunção de
inocência é um dos pontos de discussão mais aflorada, para alguns autores)75; orienta sobre o
relacionamento entre colegas (não aceitar remuneração abaixo do piso estabelecido ou
acúmulo de função, para não prejudicar os colegas, por exemplo)76; e dá as sanções para
aqueles que desobedecerem ao código77.
2 – A pesquisa de campo
A amostragem aqui relacionada foi obtida através da aplicação de questionários entre
os participantes do II Encontro Regional de Jornalistas do Norte/Noreste/Lagos Fluminense,
realizado no município de Quissamã, a 233 km do Rio de Janeiro, capital do Estado, no dia 1º
de dezembro de 2007.78 Durante uma palestra sobre ética jornalística e o novo Código de
Ética dos Jornalistas Brasileiros, proferida pela jornalista e professora-mestra Carmem
Pereira, da Comissão de Ética da FENAJ (Federação Nacional de Jornalistas), foram
72
Pode ser elucidativa a leitura de Hall at. al. na obra citada de Traquina (1993).
Artigos 1º e 2º.
74
Artigos 3º, 4º e 6º.
75
Artigo 9º. O professor Venício de A. Lima tem um artigo no site do Observatório da Imprensa relacionando a
importância da reafirmação da presunção de inocência no código de ética dos jornalistas para as reflexões sobre
a cobertura da imprensa dos escândalos políticos no Brasil, quando a mídia se coloca como um tribunal
independente. O referido artigo está disponível em
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=449IMQ002
76
Artigo 15º
77
Artigo 16º em diante.
78
As três regiões englobam mais de 30 municípios, 12 deles representados no evento.
73
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
123
distribuídas no auditório 200 fichas.79 Desse número, 112 retornaram com respostas,
validadas nesta tabulação.
O questionário apresentou ao respondente 12 questões objetivas, reunindo perguntas a
respeito de sua convicção pessoal acerca de dilemas éticos sobre o relacionamento entre os
departamentos editorial e comercial de uma empresa jornalística, a invasão de privacidade, o
sensacionalismo e a função política da imprensa – a maioria dos respondentes, 44, eram
declaradamente jornalistas profissionais, que atuavam em diversos cargos, entre eles o de
assessor de imprensa. O segundo grupo mais numeroso foi o de estudantes de jornalismo,
formado por 35 pessoas, sendo que a maioria declarou já atuar como estagiário em algum
veículo de comunicação. Para efeitos de amostragem neste artigo, trabalharemos com as
respostas desses dois grupos mais representativos. O terceiro grupo de respondentes foi
formado por 23 pessoas que se declararam como “outro”, ou seja, não eram jornalistas
profissionais, nem estudantes, nem proprietários de meios de comunicação ou ocupante de
qualquer outra função prevista no questionário80. As demais fichas não continham
identificação por função. Entretanto, os respondentes que eram jornalistas profissionais ou
estudantes de jornalismo que fazem estágio, ou seja, que já atuam como profissionais,
declararam unanimemente atuar em empresas com no máximo 10 equipes de jornalismo. A
maioria vinda de jornais impressos, emissoras de TV e empresas privadas com serviços de
assessoria de imprensa.
A primeira pergunta do questionário pretendia saber o que os respondentes pensavam
sobre o uso de fotografias que, de alguma forma, eram apelativas ou grotescas, como imagens
de acidentes ou assassinatos. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros determina que o
jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário
aos valores humanos” (Artigo 12, inciso III). No entanto, a maioria das respostas do
questionário (46%) foi de que essas imagens deveriam ser usadas nas chamadas principais,
mas com edição que diminuísse o impacto e/ou dificultasse a identidade das vítimas. Outros
26% decidiriam usar as imagens apenas nas páginas internas, em caso de veículo impresso, e
20% disseram descartar as imagens apelativas para dar lugar a outras menos impactantes do
mesmo fato. Apenas 3,9% das respostas totais indicaram a opção por publicar as imagens nas
chamadas principais, sem restrição. Esses resultados indicariam uma reserva generalizada ao
sensacionalismo ou uma tendência a proteger fontes, personagens e leitores da exposição
pública da miséria humana, mas a tabulação das respostas por grupos, indicou que os
jornalistas profissionais, em sua maioria (80%), decidiriam usar as imagens tal como foram
feitas. O equilíbrio do resultado geral foi definido pelos estudantes de jornalismo, que, nas
respostas por grupos, dividiram-se entre editar as imagens (55%) ou usar apenas nas internas
(54,5%), o que faz pensar sobre uma ética mais conservadora, pautada no jornalismo ideal,
modelo balizado, talvez, pela Academia. A maioria dos demais respondentes demonstrou uma
restrição relativa ao sensacionalismo, julgando que as imagens grotesco-apelativas devem
estar nas internas, sem edição.
79
O número de participantes foi calculado em 300 pelos organizadores. Informações disponíveis em
www.jornalistasnflagos.blogspot.com.
80
O questionário trouxe as seguintes opções de identificação por função: repórter ou repórter fotográfico, editor,
editor-chefe, proprietário, assessor de imprensa, estagiário, estudante de comunicação e outro. Em algumas
fichas, foram encontradas anotações como “colunista social” e “professor de jornalismo”, o que dá uma idéia de
outros profissionais presentes, como também locutores de rádio ou operadores de web, que possivelmente não
teriam se identificado com as opções de função apresentadas.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
124
Outra questão dizia respeito ao relacionamento entre os departamentos comercial e
editorial de uma empresa jornalística. O Código de Ética dos Jornalistas não orienta o
profissional de forma objetiva, dizendo apenas, no Artigo 12, inciso I, que o jornalista não
deve divulgar informações “visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica.”
Entretanto, desde a segunda metade do século passado é tradicional no jornalismo brasileiro a
divisão que Bucci (2000) chama de igreja-estado, em que se administra a empresa jornalística
como uma estrutura bipartida, com dois lados autônomos, independentes. Esse modelo
prescreve que o repórter não tenha nenhum tipo de relacionamento com quem negocia
publicidade e vice-versa, porque há clientes distintos e seus interesses são antagônicos. Mais
uma vez, houve diferença entre os ideais traçados por jornalistas profissionais e estudantes de
jornalismo. Os resultados gerais deram conta de que o ideal para 60% dos respondentes era
que os dois departamentos colaborassem entre si sempre que necessário. No entanto, quando
são verificadas as respostas por grupos, conclui-se que a maioria dos jornalistas profissionais
(40%) declarou não tolerar a proximidade entre redação e publicidade uma vez que o
departamento comercial poderia interferir na produção jornalística isenta. Os demais
jornalistas profissionais (30,7%) que responderam a esta questão da pesquisa admitiram a
colaboração; já estudantes de jornalismo ficaram divididos: 46% votaram pela independência
dos departamentos e 48% acham que a colaboração entre os dois é bem-vinda e só tem a
somar. Sobre a diferença na relação entre os departamentos editorial e comercial em pequenas
e grandes empresas, a maioria das respostas gerais (59%) acredita que esta existe e implica a
política administrativa e editorial do veículo. Dos integrantes do grupo “outro”, a maioria
opina pela colaboração mútua.
O questionário da pesquisa de campo deixou espaço em aberto para os respondentes
dissertarem sobre algumas questões específicas, como foi o caso daquela que inquiria sobre a
convergência do comercial e do jornalismo e a que pretendia saber sua opinião a respeito da
presença do dono da empresa na redação. Alguns corresponderam à proposta. O respondente
do questionário número 13, por exemplo, identificado como “outro”, escreveu que “quanto
mais próximos os dois setores, menos imparcialidade”, embora seja “preciso que o empresário
saiba o que acontece em todos os setores da empresa”, fazendo-nos entender que a presença
do dono ou do publisher ou do editor-executivo não deva necessariamente implicar no fim da
autonomia dos departamentos. O respondente do questionário número 70, por sua vez,
identificado como repórter e assessor de imprensa, considerou que quanto maior a empresa,
mais forte a pressão mercadológica, ficando visível a tendência do veículo que “diz sim ao
mercado”. Já nas pequenas empresas, os departamentos apresentam “limites muito mais
tênues” e “geralmente o dono se sente editor”, fazendo com que a administração do veículo de
comunicação seja “mais pessoal que mercadológico”. O respondente do questionário 45,
identificado como estagiário, considerou que “no interior essa relação (jornalismo/comercial)
é muito mais comprometida com o poder, principalmente com o poder público, como as
prefeituras e câmaras”. Sobre a presença do dono ou de seu representante na redação, o
respondente do questionário número 100, identificado como estudante de jornalismo e
estagiário, admitiu que este acompanhamento aconteça “para que haja uma valorização do
trabalho do jornalista, mas sem interferir no seu raciocínio”, reiterando a imagem do jornalista
como trabalhador intelectual e detentor de direitos, como a autonomia do pensamento e a
liberdade autoral. O respondente do questionário número 87, identificado como repórter,
escreveu
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
125
que a prioridade nas empresas jornalísticas é o comercial, que, segundo eles
(os membros do departamento), alimentam financeiramente a instituição.
Dessa forma, se estabelecem os espaços de publicidade e depois se decide o
que sobrará para as matérias, vulneráveis ao limite imposto, podendo ser, e
sempre sendo, encurtada (sic). Além disso, são raros os donos de empresa
que se preocupem (sic) mais com o produto do que com a folha de
pagamento.
No Brasil, tradicionalmente, as atividades de repórter e de assessor de imprensa não
são vistas como incompatíveis por muitos profissionais, e mesmo o Código de Ética dos
Jornalistas Brasileiros admite dupla matrícula81. Entretanto, o assunto provoca polêmica em
algumas instâncias da classe. A quinta pergunta do questionário inquiria os respondentes a
respeito dessa dupla função do jornalista. Das respostas totais, 68% indicavam que o
jornalista que exercesse também a assessoria de imprensa deveria ter o cuidado de não atuar,
na redação, cobrindo assuntos da área de interesse de seu assessorado, de modos a manter sua
isenção; 16%, que o jornalista deveria escolher entre uma atividade e outra e 16% defendia
que o jornalista-assessor de imprensa deveria não só exercer as duas funções
despreocupadamente, como também aproveitar na redação os próprios releases para pautar
reportagens. As respostas por grupo não variaram das gerais, resguardadas as devidas
proporções, o que reforça que, pelo menos entre os participantes do evento onde a pesquisa
aconteceu, a dupla matrícula não constitui problema ético para a maioria dos profissionais.
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, no inciso VIII do Artigo 6º, diz que “é
dever do jornalista respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do
cidadão”. Quando questionados a respeito dos limites à invasão de privacidade, no entanto, as
respostas gerais indicaram uma tendência a legitimar a violação da privacidade de uma pessoa
quando seus atos privados interferem na vida dos cidadãos (43%), embora o uso de métodos
clandestinos para investigar/obter informações sigilosas, mas de interesse público, seja
rejeitado pela maioria (64,9%). As respostas por grupo permitiram um outro olhar: os
estudantes mostraram-se mais ousados do que os jornalistas profissionais no que se refere à
invasão de privacidade: enquanto 37% dos últimos admitiram a invasão de privacidade, os
primeiros saíram à frente com 53,7% das respostas. Os estudantes também demonstraram uma
maior aceitação dos métodos clandestinos nas repostas individuais: “a moralidade da fraude é
inversamente proporcional à imoralidade do crime e ao valor-notícia do fato” para 60% dos
estudantes e 25% dos jornalistas. Tão contraditórias são as respostas como o é o próprio
Código quando diz que o jornalista não pode divulgar informações “obtidas de maneira
inadequada – como o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos –
a, salvo em caso de esclarecimento de informações de relevante interesse público e quando
esgotadas todas as possibilidades que o profissional possa recusar o seu uso.” (Artigo 12º,
inciso III, grifo nosso) Ficaria por conta do arbítrio, do bom senso ou de que outra instância a
decisão do limite dessa linha fina?
81
Diz o artigo 7º, inciso XII: “O jornalista não pode exercer atividades jornalísticas no órgão de comunicação
em que trabalha, no interesse de instituições públicas, privadas e não-governamentais de que seja proprietário,
assessor, empregado ou terceirizado”.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
126
No que se refere à ação da imprensa na formação e orientação da opinião pública82, os
respondentes dividiram-se entre o dever de apenas noticiar com relatos objetivos e emitir
interpretação e opinião em suas reportagens: 53% das respostas gerais reivindicavam
informações objetivas e imparciais, enquanto 47% reclamavam um papel mais ativo para o
jornalista (nas respostas por grupo, os estudantes demonstraram-se mais propensos a defender
essa posição). Mas o mesmo não ocorreu quando foi perguntado se o jornal deveria ou não
declarar sua posição política: nas respostas gerais a maioria dos respondentes (75,2%) disse
“não, o jornalismo deve ser neutro para melhor servir o interesse público” e apenas 24,8%
disse “sim, seria o mais honesto comportamento para com os leitores”. Também nas respostas
por grupo, apesar de um maior equilíbrio entre esses dois pólos, tanto jornalistas profissionais
quanto estudantes de jornalismo e o grupo “outro” apresentaram maior inclinação para o
apartidarismo e a imparcialidade. Contraditório? Talvez não, se interpretarmos essas respostas
como uma repulsa dos jornalistas e estudantes ao jornalismo partidário, mas não ao
jornalismo engajado na causa social. O desprezo, aqui, parece ser à política partidária, à
possível manipulação do jornal pelos ideais do partido, não à ação concreta no meio social
para o benefício dos cidadãos.
Os jornalistas e estudantes entrevistados, no entanto, queixaram-se de falta de
liberdade criativa para exercer seu trabalho. Tanto nas respostas gerais quanto nas repostas
por grupo, a maioria dos entrevistados disse que a liberdade do jornalista é limitada pela linha
editorial do jornal e pelas forças do mercado. Os estudantes parecem cientes do futuro que os
aguarda, mas entre este o fatalismo parece mais exacerbado: nas respostas por grupo,
enquanto 33,3% dos profissionais disseram que o “jornalista é escravo do seu trabalho”, esse
número sobe para 66,7% entre os estudantes. Tanto para uns quanto para outros, bem como
para o grupo “outros”, entretanto, assim a qualidade do jornalismo praticado é razoável ou de
boa qualidade (85% das respostas totais). A este respeito, o Código de Ética é vago. O artigo
14 computa à cláusula de consciência quando diz que o jornalista pode se recusar a executar
uma atividade jornalística que confronte com os princípios previstos no presente Código, ou
que agrida as suas convicções filosóficas ou morais, desde que isso não seja argumento,
motivo ou desculpa para não ouvir pessoas com opiniões contrárias às do próprio profissional.
Sabe-se, entretanto, o destino de quem se insurge contra as ordens da direção, bem como os
caminhos para burlar a vigilância da hierarquia, o que será discutido à diante.
O curioso, nisso tudo, é a certeza de que o jornalista não cumpre seu código de ética
(opinião de 86,2% dos entrevistados nas respostas totais). A desconfiança maior a este
respeito está entre os estudantes: 48% de estudantes críticos contra 31% de jornalistas
igualmente desacreditados dos colegas.83 Só quem parece acreditar nos jornalistas é o grupo
“outros”, que, para nós, parece representar o público servido com a notícia produzida nas
redações.
82
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros entende o jornalismo como uma atividade de natureza social
(artigo 3º), cujo compromisso fundamental é com a verdade dos fatos. O trabalho do jornalista se pauta pela
precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação (artigo 4º). É dever do jornalista não apenas
informar, mas militar pela causa dos direitos humanos, combater e denunciar a corrupção, lutar para que sejam
respeitadas a soberania nacional e os princípios constitucionais (artigo 6º). A opinião no jornalismo deve ser
emitida de maneira responsável (artigo 1º, grifo nosso).
83
Uma enquete online realizada em 2007 pelo site da revista Imprensa, publicação de referência para os
jornalistas brasileiros, perguntou “Você acredita que os jornalistas brasileiros cumprem seu código de ética?”
Dos 382 votos, 87% foi para a resposta “não”.
Disponível em http://portalimprensa.uol.com.br/portal/enquetes/index.asp?idEnquete=4&Resultado=ok
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
127
3 – Pensando os resultados
Observa-se nos resultados da pesquisa de campo realizada em Quissamã/RJ a
disparidade nas respostas de jornalistas e estudantes de jornalismo no que se refere à visão do
papel da profissão e do relativismo das regras deontológicas. O único consenso entre os dois
grupos parece ser a desconfiança quanto à observância do código de ética pelos membros da
categoria84 e o sentimento de limitação criativa para a realização do seu trabalho imposta pela
linha editorial do veículo, a rotina e as leis do mercado.
Aparentemente, o conservadorismo e a ousadia não possuem a mesma natureza em um
grupo e em outro. Entre os estudantes, a reserva é reflexo, aparentemente, de um humanismo
que exige o respeito à integridade do homem, cuja miséria não deveria ser exposta na primeira
página de um jornal; entre os profissionais, a reserva forma um campo de proteção ao
departamento editorial, ao poder que só eles detém de dizer o que é notícia, por exemplo,
quando o assunto é a possível interferência do departamento comercial. A reserva também
aparece na possibilidade do uso de métodos clandestinos para obtenção da notícia de interesse
público, talvez mais por receio de processos judiciais e das conseqüências de iniciativas dessa
natureza do que por respeito à privacidade e à dignidade das pessoas investigadas, já que essa
preocupação com o “personagem” da história não aparece quando é momento de decidir se
ele vai ou não para a primeira página ou as chamadas principais com uma abordagem
negativa.
A ousadia dos estudantes, que querem do jornalismo uma ação política mais intensa e
direcionada para a (in) formação da opinião pública, que defendem métodos mais incisivos de
apuração, sempre em nome da “descoberta da verdade”, que acredita existir diversidade de
interesses entre jornalismo e assessoria de imprensa, de fato não se assemelha à dos
profissionais, que celebrariam altas vendagens de um impresso por conta da exibição de uma
imagem grotesco-apelativa na capa. Estes são apenas alguns exemplos de que a prática da
profissão parece, sim, moldar a moralidade dos que a exercem85, e não o contrário, e indica
que se faz útil repensar as motivações que impulsionam a atividade jornalística hoje.
Refletindo sobre as respostas dos que integram o grupo 3 (“Outro”), por sua vez,
percebemos que o perfil destes parece aproximar mais de um público que recebe as
informações e que está, portanto, do outro lado do processo produtivo da notícia. São, os
“outros”, os que conferem aos jornalistas profissionais o papel de informar os acontecimentos
com objetividade, imparcialidade, correção e ética; são estes os que acreditam que a produção
84
O resultado faz lembrar a pesquisa que Almeida (2007) realizou em nível nacional para provar algumas das
principais teses do antropólogo Roberto DaMatta sobre o povo brasileiro. Para 70% dos entrevistados, nem os
amigos e nem os colega de trabalho merecem confiança. (p. 115)
85
Almeida (2007, op. cit.) investigou, também, a presença do espírito público e do fatalismo entre os brasileiros.
Por espírito público devemos entender o espírito de colaboração com o governo, ou seja, a mentalidade de que
“cada um deve fazer a sua parte em prol da sociedade”, mas podemos interpretar esse termo independentemente
de sua relação com o Estado. “Fazer a sua parte”, no jornalismo, poderia significar ser ético quando nem o
mercado nem o contexto social nem a empresa de comunicação colaboram para tal. Pois bem: também na
pesquisa antropológica o brasileiro mostrou que “paga na mesma moeda” (p. 124): é o comportamento que rege
a vida de 61% dos entrevistados que não moram em capital. Ou seja, o pensamento dominante é o de que “se o
estado (ou os superiores, ou os outros), não fazem a sua parte, eu também não tenho obrigação de fazer a minha,
sozinho.” Quanto ao fatalismo, ou crença no destino ou numa força maior que conduz os acontecimentos e
contra a qual não se pode lutar, para 60% da população, grande parte do que acontece está fora do controle dos
homens: para estes, a vida (ou realidade) é assim mesmo. (p. 114)
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
128
da notícia é um processo ético; são os que desejam ser esclarecidos com relação às
preferências políticas do veículo preferido; são os que acreditam que os jornalistas observam
seu código de ética – justamente o pacto de confiança que torna a profissão possível e aceita
socialmente.
Esta pesquisa mostrou, ainda que de modo limitado, que algo acontece entre a
Academia e a prática sistemática da profissão de jornalista, passando por um público que
acredita nos agentes do jornalismo, ainda que restritamente. A inobservância da deontologia,
quando ocorre, é justificada pela necessidade de sobrevivência, pessoal e empresarial. O
código de ética é reconhecido como um valor, mas torna-se relativo quando pregado no alto
das metas nunca atingidas, tidas como utópicas. O “bom jornalismo” é aquele considerado
pelo pelos próprios jornalistas e pelo público como o que consegue acertar no atendimento
das demandas da sociedade por informação, mostrar “a verdade” do acontecer, oferecer um
leque de leituras do mundo, dar respostas, sem constrangimentos além daqueles autoimpostos pela consciência, por aquilo que o jornalista acha que é certo e que a sociedade
merece ou está pronta para saber. Embora reivindique sua autonomia de pensar e dizer, isto
não implica a negação em produzir acordos ou conciliações.
As discussões filosóficas a respeito do “bom jornalismo”, ou, mais precisamente, as
reflexões éticas86, ficam restrita aos congressos, reuniões sindicais, eventos como o Encontro
Regional de Jornalistas onde os questionários foram aplicados: ao ambiente acadêmico e aos
casos em que a legitimidade da liberdade de imprensa e a ética jornalística são questionadas
nos meios de comunicação, provocando lampejos de mobilização de parte da sociedade e da
categoria e provocando a opinião dos intelectuais. Tais atividades são fundamentais: servem
como ritual reforçador do princípio ético diante das demandas, por vezes pouco éticas, do
princípio de realidade. No cotidiano das redações e da “rua”, a preocupação inscreve-se em
outra seara: na da boa informação como produto bom para ser consumido, isto é, vendido sem
inventar, mentir ou omitir em demasia.
A velocidade em que se movimentam as redações exige a notícia em tempo real, não a
reflexão ética; nem muito menos exige um projeto de longo prazo comprometido com uma
sociedade melhor, formada por homens e mulheres melhores, porque mais bem informados,
porque mais esclarecidos, porque mais conscientes do seu poder de decisão e da sua ação no
mundo.
Se esse projeto “de longo prazo” não existe, nem por isso o jornalismo deixa de ser
jornalismo ou abre mão de seus preceitos éticos: a cada edição a proposta de informar o
melhor possível parece se renovar quando a publicação procura atingir através das
reportagens uma representação da vida, do mundo que acontece, mesmo que a partir do seu
próprio olhar, que nem é tanto seu, mas de uma sociedade consensual, que lhe molda. Não
podemos esquecer que, nela, o mundo dos negócios e do trabalho ocupa um lugar de
destaque.
86
Karam (1997) explica que essa reflexão ética não é redutível nem à moral existente nem aos códigos escritos,
mas inscreve-se acima dessas duas primeiras instâncias. A reflexão ética é entendida por ele como movimento de
desalienação e “transformação do indivíduo em sujeito que, inscrito no mundo, reflete filosoficamente sobre si
mesmo, sobre seu trabalho, suas relações sociais e age politicamente.” (p. 34)
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
129
Referências
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rotina produtiva. In Alceu, v.5 – n. 10. p. 186 a 200 – jan/jun de 2005
ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007
ARGOLO, José do Amaral. Alberto Dines, além do tempo jornalístico (entrevista concedida
por Alberto Dines a José do Amaral Argolo, que assina o artigo). In PAIVA, Raquel (org.).
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BERTRAND, Jean Claude. A deontologia das mídias. São Paulo: Edusc, 1999
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http://www.jornalistas.org.br/download/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf,
última consulta em 23 de maio de 2008
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profissão?
Disponível
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http://portalimprensa.uol.com.br/portal/enquetes/index.asp?idEnquete=4&Resultado=ok,
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TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: tendências, teorias e estórias. Lisboa: Veja, 1993 (p. 224248)
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MEYER, Philip. A ética no jornalismo – Um guia para estudantes, profissionais e
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PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
130
TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: tendências, teorias e estórias. Lisboa: Vega, 1993 (pp.
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TUCHMAN, Gay. A objetividade como ritual estratégico. In TRAQUINA, N. Jornalismo:
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VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
131
\
mprensa e discurso político:
o caso do Jornal Brasil Novo, em Itaperuna, e o golpe de 1937
Jacqueline da Silva Deolindo*
Emerson Tinoco**
___________________________________________________________________________Resumo
O artigo tem por objetivo fazer uma breve revisão bibliográfica sobre a imprensa política da primeira
metade do século XX e refletir sobre a formação da opinião pública nesse período. Caracterizada
principalmente pela adesão a partidos políticos e pela defesa declarada de ideologias, essa imprensa
guarda características peculiares relacionadas à temática das peças jornalísticas, à abordagem dos
fatos, à linguagem empregada nos textos e ao relacionamento com os leitores. Pretendemos ilustrar as
reflexões teóricas desenvolvidas neste artigo e verificar sua aplicabilidade em um jornal do interior
recorrendo, para tanto, a uma edição do semanário Brasil Novo, que circulou em Itaperuna, estado do
Rio, na primeira metade do século passado, com grande empenho de seus redatores e diretores na
construção de um partido social-democrata.
Palavras-chave: Imprensa política. Opinião pública. Jornalismo de partido. Discurso político
__________________________________________________________________________________
1 – Imprensa política: um histórico
A imprensa política no Brasil tem marcas de nascença. Embora alguns autores
divirjam sobre a real influência das primeiras folhas sobre a conscientização e a mobilização
política na transição do Brasil-colônia para o Brasil-império, é inegável que a partir de 1808
encontrem-se a germinar por aqui, mesmo que tardiamente87, as sementes de um jornalismo
que visava, antes de tudo, formar opinião e incentivar posicionamentos frente aos fatos
relacionados principalmente ao governo.
O fato é que o gênero que inaugurou o jornalismo brasileiro foi o tônus da imprensa
que se seguiu à independência e abriu o século XX. Até os primeiro anos da década de 1900,
os jornais eram essencialmente opinativos, de pesada carga panfletária e narrativas mais
retóricas do que informativas (PENA, 2005), sempre com o objetivo de moralizar os
detentores do poder e suas ações, que eles eram considerados maus, num regime tido como
bom. (SODRÉ, 1998).
Por volta dos anos 1930, a proliferação de jornais políticos era um fato, inclusive no
interior do país. Em Itaperuna, a 400 quilômetros da então capital da República, não eram
*
Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Jornalista. Especialista em Literatura, memória cultural e sociedade pelo Cefet/Campos, em Campos dos
Goytacazes. E-mail: [email protected]
87
Tardiamente, considerando que no século XIX o jornalismo já era uma atividade plenamente desenvolvida na
Europa e nos Estados Unidos. Em muitos países, a imprensa remonta ao século XVII. Segundo Melo (2006, p.
78), ao contrário do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos durante os séculos XVIII e parte do século
XIX, “a imprensa não se desenvolveu no Brasil [...] porque carecia de função explícita a desempenhar no
contexto de nossa sociedade”, marcada pela natureza feitorial da colonização, pela predominância do
analfabetismo, ausência de urbanização, precariedade da burocracia estatal e das atividades comerciais e
industriais e pela censura. Ver também, do mesmo autor, Sociologia da Imprensa Brasileira, de 1973. O primeiro
periódico a se incumbir desse papel foi o Correio Brasiliense, em 1808. Sobre o Correio, ler Lustosa (2003) e
Sodré (1998).
**
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
132
poucos os periódicos que atendiam a este fim, informando e opinando a respeito do desenrolar
dos fatos de interesse da nação. Henriques (1954) cita, por exemplo, o semanário Brasil Novo,
cujos exemplares de 1932 a 1945 ainda se encontram disponíveis na biblioteca local.88
Defensor de um ideário social-democrata, a longo prazo o Brasil Novo serviu à missão de
mobilizar a opinião pública em torno da formação e do fortalecimento de um partido local –
em oposição à candidatura de Getúlio Vargas nas eleições frustradas de 1936 –, mais tarde
ligado a um movimento nacional – agora por ocasião da reabertura democrática e das eleições
para 1946. Os líderes do partido eram o proprietário do jornal, seu redator e alguns
colaboradores.
A militância política do jornal itaperunense Brasil Novo ilustra perfeitamente a análise
que Manin (1995) faz da dinâmica da opinião pública na democracia de partido. Lembrando
que nesse tipo de governo representativo os partidos organizam não só a disputa eleitoral
como também os modos de expressão da opinião, o autor ressalta que em tal contexto
As várias associações e órgãos de imprensa mantêm laços com um dos
partidos. A existência de uma imprensa de opinião tem uma importância
especial: os cidadãos mais bem-informados, os mais interessados em
política e os formadores de opinião, obtêm informações por intermédio da
leitura de uma imprensa politicamente orientada. Desse modo, os cidadãos
são muito pouco expostos à recepção de pontos de vista contrários, o que
contribui para reforçar a estabilidade das opiniões políticas. (MANIN, 1995,
p. 22).
Da mesma forma, Manin lembra que “existe algo não controlável pelo partido no
poder: a oposição e seus canais de expressão” (p. 23), ou seja, a liberdade de oposição, o que
faz com que o membro do partido nunca esteja totalmente “protegido” das opiniões
contrárias. Além disso, o autor aponta que o relacionamento do eleitor com o partido é
baseado em “fortes laços identitários”, com relação ao discurso político, e na “confiança” às
pessoas que representam ali seus interesses, muito menos que na plataforma de governo em si
mesma.
O Brasil Novo era, se não o único, provavelmente o mais visado lugar de expressão da
opinião do PSDI (Partido Socialista Democrático de Itaperuna), criado em 1937, mais tarde,
diretório local do PSD nacional (Partido Social Democrata). O jornal era distribuído por
assinaturas. Era através do semanário que seus leitores tomavam conhecimento do resultado
das convenções e dos debates, tanto internos quanto empreendidos por aquele forte grupo
político89 junto a outras instituições classistas.
Fundado em 1930 por Emiliano Silva, jornalista e militante democrata, o semanário
tinha como redator o engenheiro Sadi Sobral, responsável pelos editoriais, também era
88
O jornal circulou entre 1930 e 1954 ininterruptamente, sendo que nas décadas seguintes teve tiragens esparsas,
extinguindo-se nos anos 1980. Segundo funcionários da biblioteca municipal de Itaperuna, as sucessivas
enchentes e mudanças de prédio destruíram parte da hemeroteca, que era composta com outros títulos da
imprensa itaperunense. Atualmente, só há outros exemplares em raras coleções particulares.
89
Refirimo-nos ao grupo político em questão como forte, baseados na representatividade obtida pelo mesmo nas
eleições para vereadores em Itaperuna em 1945, quando diplomou dez dos 19 vereadores da Câmara.
(HENRIQUES, 1954., p. 159).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
133
político90. A defesa dos ideários políticos que norteavam a linha editorial do jornal e a
militância do PSDI e de seus membros era expressa principalmente através dos editoriais
assinados por Sobral, que ocupavam uma coluna na primeira página, com claro objetivo de
orientar a opinião pública91.
2 – O Brasil Novo, o discurso político e a opinião pública
Para diversos teóricos, o conceito de opinião pública está estreitamente ligado ao de
democracia. Como cabe aos cidadãos a tomada das decisões que indiretamente regulam o
funcionamento das coisas públicas, e não sendo possível fazê-lo pessoalmente, o acesso às
informações a respeito do que se passa entre seus representantes torna-se imprescindível a
esse sistema político, uma vez que não seria possível que o povo controlasse o poder sem
saber ao certo de que forma os políticos o manejam em seu nome (BOBBIO at al., 1994, p.
100; MEYER, 1989).
Nesta seção, verificaremos a aplicabilidade das teorias expostas das seções anteriores,
usando como estudo de caso o editorial do jornal Brasil Novo escrito após o golpe de 1937,
um exemplo clássico de discurso político, cuja principal característica é a dialogicidade: “o
choque dos discursos” é uma das principais armas da “peleja” (MIGUEL, 2000, p. 86), repleta
de formas lingüísticas híbridas, que combinam emoção e conhecimento (GOMES, 2004, 295).
Para analisar de que forma a construção do discurso político se dá na prática,
procederemos à transcrição do editorial “Fase de transição”, da edição de número 365 do
jornal Brasil Novo, de 26 de dezembro de 1937, e aplicaremos a análise de texto retórico
proposta por Reboul (2000).
O editorial em questão exprime a visão da empresa e do grupo político por ela
representado naquele momento histórico, tentava situá-lo em um contexto social e político e
ensaiava expectativas com relação às promessas da nova Carta Magna. Ao analisarmos a
estrutura do editorial podemos perceber três blocos argumentativos de natureza a princípio
distinta. Observemos:
BLOCO 1
Para o que vêm apreciando o panorama da evolução nacional, teve
significativo relevo o evento de 19 de novembro.
Esse golpe de Estado atingiu profundas camadas da formação mental de
nosso povo e interrompeu, de chofre, atividades políticas no momento justo
em que elas se manifestavam mais intensamente por estarmos às vésperas
do pleito eleitoral.
O governo resolveu, desde logo, dissolver os partidos políticos, as
agremiações e sociedades que, pela expressão de número de seus prosélitos
ou pela rigidez de sua disciplina, pudessem obstar às suas determinações,
90
Sobral exerceu o cargo de prefeito interventor na cidade entre 1931 e 1933, foi presidente da Câmara
Municipal entre 1947 e 1949, além de vice-presidente em outro mandato. Conforme Henriques (1954, p. 156157).
91
Sobre a abordagem da opinião pública por diversos teóricos ao longo dos séculos, ver Melo, 1971. O autor
conclui que s configurações que tomou a opinião pública é um fenômeno dialético, que resulta do choque entre
opiniões divergentes, diante de um fato, logrando uma delas galvanizar as atenções e as preferências da maioria
dos indivíduos. É o que ele chama de tendência (ver páginas de 53 a 56 da obra citada).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
134
causar-lhes quaisquer embaraços ou pretender entrosar-se por qualquer
formação na nova estrutura estatal.
Na série de medidas com o caráter de centralizar recursos e poderes, a
própria autonomia dos Estados, exceção feita a Minas Gerais, desapareceu
com as intervenções.
Com o simbolismo da queima das bandeiras dos Estados, a pomposa e
soleníssima festa cívica de 27 do mês passado, atendeu-se a uma das facetas
do prisma nacionalista da nova ordem de coisas.
E aí vem, sob a forma de decretos-lei, de códigos e de regulamentos,
providências complementares ao acabamento da obra iniciada.
Mas modificações de tal magnitude ao regime sob que viveu a Nação
durante quase meio século não se podem efetivar tão abruptamente, ao
simples efeito de um decreto e de um gesto, por justas que pareçam ou por
propício que lhes possa parecer o ambiente político e social do país.
BLOCO 2
Qualquer movimento revela a existência de uma força, que é resultante de
ações e reações. É fenômeno que se observa nas órbitas da física, da moral e
da política.
A continuidade do movimento, sua aceleração ou seu retardamento a sua
uniformidade, a sua direção, a sua intensidade, as suas características enfim,
são a função direta da ação que o produz e à reação que se opõe à existência
daquele.
Ao período inicial, segue-se um interréguo necessário ao ajustamento dos
fatores da ação e da reação.
É o que se pode denominar período de transição.
É nesse que nos achamos inelutavelmente neste instante.
BLOCO 3
Através da rádio-difusão, da imprensa investida das honras da função
pública, e de outros meios de propaganda e convicção, o governo procura
consolidar a obra que tomou sobre os ombros, desenvolvendo com rapidez
todos os meios de ação que tornem fáceis os seus movimentos, do mesmo
passo que corta cerce as possibilidades de reações pessoais, de partidos e de
agremiações.
A campanha está hoje dirigida contra o personalismo que predominava na
política nacional transformando-a em pura e simples politicagem. Os
arautos da nova era expõem ao público o erro dessa mística que por tão
dilatados anos corroeu o civismo, e o exprobam com certa dose de razão.
A influência pessoal nas administrações é, de fato, um mal que precisava e
precisa ser extirpado do nosso organismo político. E a oportunidade para o
combate a esse mal não pode ser outra que a dessa fase de transição do
regime, acentuada esta pelas reformas e adaptações dos velhos moldes e
órgãos administrativos aos postulados da nova Carta Magna.
O Estado do Rio de Janeiro tem sido, entre as demais unidades brasileiras,
das maiores vítimas desse mal político: exceção feita a poucos de seus
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
135
governos, tudo nele se tem resolvido ao critério do mais estreito
personalismo; por isso mesmo, sua influência política desaparecera, de há
muito, do quadro nacional.
O governo central tem a responsabilidade das transformações necessárias ao
fortalecimento das novas instituições; a ele compete orientar, nesse período
de transição, as forças vivas da nação para o aperfeiçoamento social e
político.
O mal do personalismo político deve, portanto, sofrer combate sem tréguas
antes do término desse período de transição, também chamado de estado de
emergência, e que, ao nosso ver, findará na data da realização do plebiscito
de que nos fala a nova Constituição.
2.1 – Quem fala, o que fala, de onde, a quem e por quê se fala
O redator do jornal Brasil Novo, Sadi Sobral, é quem assina o editorial, mas ele não
fala apenas por si ou pelo jornal, fala em nome de um grupo político, que tem opinião
formada e uma posição pré-estabelecida com relação à ordem vigente até então e,
conseqüentemente, frente aos novos acontecimentos da política nacional. Esse grupo político
é o Partido Socialista Democrático de Itaperuna (PSDI), que o Brasil Novo intitula como “o
maior partido do interior do Estado do Rio.”92
O PSDI trazia como propostas de trabalho, por exemplo, a defesa da liberdade política
e a defesa dos interesses dos setores agropecuários, como incentivos fiscais e melhorias das
estradas, visando, antes de tudo, o maior desenvolvimento social e econômico da “Terra da
Promissão”93 e dos demais municípios que formam a região Noroeste fluminense, que já teve
as terras de maior produtividade em café em todo o país, e fora o berço da República, além de
ter nomeado diversos deputados e um senador nos tempos áureos de sua representatividade
política.94
O editorial é uma seção que expressa a opinião consensual dos dirigentes da empresa
jornalística a respeito de um fato, sendo esta dirigida não aos leitores comuns, mas a grupos
específicos, como o poder público. (MELO, 2002). No caso de “Fase de transição”, podemos
identificar três construções argumentativas principais ao longo do texto: no primeiro bloco,
percebemos que o editorialista fala em nome de um grupo que se mostra surpreso com os
acontecimentos e se posiciona contrário ao método utilizado para se instalar uma nova ordem
social e política no país. O motivo central do texto é a queixa de quem teve seu curso de
atividade política interrompido incisivamente e sem aviso prévio, mesmo após um apoio
aparente, calculando os conseqüentes prejuízos desse “golpe” em nome de um outro público,
de cuja representação se investe. No segundo bloco, cujo discurso aparentemente é dirigido a
outro auditório, no caso as entidades e instituições “vitimadas” pelo golpe, argumenta-se com
sutileza que o caminho para se chegar ao fim do regime imposto é uma reação à ação do
governo (o momento propício, segundo deixa transparecer o terceiro bloco, seria o plebiscito).
92
FUNDADO O MAIOR PARTIDO DO INTERIOR DO ESTADO DO RIO. Brasil Novo, 20 de março de
1937.
93
O termo é uma referência ao título da obra citada de Henriques, que, por conta da fertilidade das terras de
itaperunenses, chamou a cidade de Terra da Promissão, “por analogia àquela de que nos fala a Escritura
Sagrada.” (HENRIQUES, 1954, p. 14).
94
Conta que Itaperuna foi a primeira cidade do Brasil a ter uma câmara de vereadores de maioria republicana em
pleno Império. Alem disso, até os anos 1950, Itaperuna gozou de numerosos cargos nas câmaras dos deputados
estaduais e federais. (ver Henriques, op. cit.).
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
136
Tal reação seria legítima por ser um fenômeno natural. O argumento central do terceiro bloco,
que inicia com uma crítica contundente à pena alugada dos meios de comunicação
(contratados para construir uma imagem positiva e favorável do governo), é a necessidade de
se lutar contra o “personalismo político”, muitas vezes revestido de aura messiânica, quando,
na verdade, seu o principal objetivo é valer-se do poder em proveito dos próprios projetos.
Em 1937, Itaperuna era o segundo maior reduto eleitoral do Estado do Rio de Janeiro,
contando 160 mil habitantes e 17 mil eleitores, e constituía um importante centro de decisões
econômicas e políticas. O Brasil das décadas de 20 e 30 é um país que tem como meta o
modernismo e a Europa como o seu mais perfeito modelo social, cultural e político. Pela
primeira vez na história do Brasil, os movimentos políticos ganhavam proporção e adesão de
fato nacionais, não só no que se refere às diversas declarações de apoio, mas, agora, também,
à organização de grupos políticos que movimentam o interior e exigem participação na pauta
de discussões sobre o rumo do país. As prometidas eleições de 1938, que eram aguardadas
com entusiasmo por diversos partidos políticos que se organizaram visando à ocasião, são
suspensas em dezembro de 1937. Segundo defendeu na época Fernando Campos, o então
ministro da Justiça, “o regime fora imperativo de salvação nacional” devido às liberdades
dadas pela Constituição de 1934 para a formação de partidos políticos que proliferavam e
faziam o país caminhar para a desordem. (BONAVIDES & PAES DE ANDRADE, 1992, p.
334).
2.2 – Como fala
A presença de metáforas e outros recursos retóricos faz do texto uma peça rica em
possibilidades de leitura. “Fase de transição” é um artigo de fundo de natureza deliberativa,
em cuja categoria quase sempre estão localizados os discursos políticos. (BAUER &
GASKELL, 2003). Vejamos alguns desses recursos retóricos e figuras de linguagem.
Já incorporada ao vocabulário político brasileiro, a palavra “golpe”, na verdade, é uma
metáfora que dá todo um sentido à fala do locutor. Mais do que simplesmente “tomada, mais
ou menos violenta, das instituições mais importantes de um país, tendo em vista a substituição
de um governador por outro”95, até porque, no caso de Estado Novo, o motivo não foi a
substituição, mas a garantia de permanência, “golpe” faz lembrar outras definições, como
“pancada, ferimento, corte, contusão”96, que combinam mais perfeitamente com as figuras de
linguagem médicas usadas por Sobral ao falar das conseqüências da ação: elas teriam atingido
“profundas camadas da formação mental de nosso povo”. Trata-se de uma atitude que teria
prejudicado o corpo social e o bom e fluido funcionamento que esse organismo apresentava
até o momento.
Quando fala nos “arautos da nova era”, Sobral, ao contrário das primeiras figuras de
linguagem que representavam violência, usa com ironia recursos relacionados ao religioso, ao
místico, categorias que, segundo a narrativa mítica, são guardiãs e propagadoras da Verdade.
Mas, ao contrário de reconhecer tal “função divina” no comportamento do governo, o autor
parece construir seu texto de forma a demonstrar que se a intenção do “golpe” é, de fato,
acabar com um problema verídico, a saber os vícios políticos da nação, e se apresentar como
o “predestinado” a instalar no país uma “nova ordem”, então há realmente trabalho a se fazer.
95
96
GOLPE. Língua Portuguesa On line (www.priberam.pt/dlpo). Acessado em 11 de janeiro de 2007.
Ibidem
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
137
3 - Conclusão
O discurso político analisado no editorial “Fase de transição”, do jornal Brasil Novo, é
um exemplo do tipo de peça jornalística que compunha a imprensa política brasileira até a
primeira metade do século passado. Evidentemente, ainda hoje nos editoriais lemos textos que
valem-se de recursos retóricos semelhantes aos identificados, como a metáfora, a ironia, a
lista tríplice, mas há que se notar a linguagem e a disposição dos argumentos nesse texto
histórico específico, que fazem dele um exemplo todo particular da época em questão.
O jornal Brasil Novo é um veículo que não nasceu com fins diretamente políticos, mas
exprimia o pensamento de pessoas que mais tarde se organizaram em um grupo e que fizeram
do jornal seu principal meio de expressão e instrumento de construção de uma opinião pública
favorável aos interesses que representava. No caso, o editorial procura instruir a opinião
pública no sentido contrário ao tomado pelo discurso oficial: enquanto os porta-vozes do
Estado Novo falam de força maior e manutenção da ordem, o Brasil Novo fala de traição e
golpe.
O jornal cumpre claramente o papel de formar um estereótipo do novo regime, ou seja,
ao emitir sua opinião a cerca dos fatos, desenha traços da face do governo, retrato este que é
revestido de solidez graças à legitimidade de que goza a imprensa. Na peça jornalística
analisada encontramos características atribuídas ao Estado Novo que dão conta de um regime
que não dialoga e que toma a si as responsabilidades da transformação da vida social e
política da nação sem permitir a aproximação do povo. Também percebemos que, por ter o
governo “agido à traição”, cortando movimentos políticos que havia incentivado, o jornal
posiciona-se hostil ao poder instituído frente à opinião pública e defende que as entidades
representativas e cidadãos que têm competência para tal devem lutar pela democracia97.
Quando acusa a política brasileira de ser “personalista”, o Brasil Novo demonstra
fazê-lo porque diz ter um compromisso com o coletivo. “Eles clamam representar [...] os
interesses coletivos, do país como um todo”, diz Albuquerque sobre o comportamento
historicamente desenvolvido pelos jornalistas brasileiros. Mas alerta sobre a legitimidade
dessa representação: “A imprensa brasileira pode reivindicar (e o faz efetivamente) a defesa
de causas do interesse geral na nação ainda que elas se confrontem com os interesses de
vastos setores (e em alguns casos da maioria) da sociedade.” (ALB UQUERQUE, 2000, p.
41).
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som. Petrópolis:Vozes, 2003. p. 90-136.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. São
Paulo:Paz e Terra, 1994.
97
Essa situação específica ilustra bem a tese de Afonso Albuquerque (2000), quando fala sobre o “quarto poder”
no Brasil: aqui, a imprensa, historicamente, assumiu um papel semelhante ao exercido pelo Poder Moderador no
Império, constituído para solucionar conflitos entre o Legislativo e o Executivo. No Brasil, como demonstra a
chamada no editorial para uma reação através do plebiscito, a imprensa concebe seu papel político em termos
ativos, com a missão de preservar a ordem pública.
Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
138
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Transformar, Itaperuna, n.5, 2008.
139
a
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