TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
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Organizadoras
TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO
Porto Alegre
2009
© EDIPUCRS, 2009
Capa: Deborah Cattani
Diagramação: Stephanie Schmidt Skuratowski
Revisão: Rafael Saraiva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
T314
Teorias do discurso e ensino [recurso eletrônico] /
organizadoras, Carmem Luci da Costa Silva ... [et al.]. –
Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009.
263 p.
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs>
ISBN 978-85-7430-936-1 (on-line)
1. Linguistica – Teorias. 2. Português – Ensino.
3. Línguas Estrangeiras – Ensino. I. Silva, Carmem Luci da
Costa.
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COLABORADORES
Carmem Luci da Costa Silva (UFRGS)
Claudia Stumpf Toldo (UPF)
Gisele Benk de Moraes (UPF)
Magali Lopes Endruweit (UERGS)
Neiva Maria Tebaldi Gomes (UNIRITTER)
Neusa Maria Henriques Rocha (UPF)
Niura Maria Fontana (UCS)
Roberta Macedo Ciocari
Sônia Litchenberg
Tânia Maris de Azevedo (UCS)
Telisa Furlanetto Graeff (UPF)
Vania Morales Rowell
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 7
PARTE 1 - TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DO PORTUGUÊS
A língua portuguesa como instrumento de aquisição de conhecimentos no
ensino fundamental: algumas reflexões ................................................................. 12
Tânia Maris de Azevedo e Vania Morales Rowell
Teorias linguísticas e o ensino da escrita .............................................................. 34
Magali Lopes Endruweit
Pela inserção do discurso na escola ....................................................................... 51
Sônia Lichtenberg
Argumentação e ensino de língua materna ............................................................ 77
Carmem Luci da Costa Silva
Para resumir textos: uma proposta de base semântico-argumentativa .......... 104
Telisa Furlanetto Graeff
Gêneros discursivos no ensino: o foco na interação verbal ............................. 133
Neiva Maria Tebaldi Gomes
O comportamento dos demonstrativos na organização dos enunciados ....... 153
Claudia Stumpf Toldo e Neusa Maria Henriques Rocha
PARTE 2 - TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DE LÍNGUAS
ESTRANGEIRAS
Construção da autonomia na formação do professor de língua estrangeira.. 175
Niura Maria Fontana
Operadores argumentativos little, a little, few, e a few no ensino inglês como
língua estrangeira ..................................................................................................... 211
Roberta Macedo Ciocari
Uso de pero, sino e sin embargo através da teoria da argumentação na
língua .......................................................................................................................... 236
Gisele Benck de Moraes
APRESENTAÇÃO
Este livro foi organizado por um grupo de pesquisadores que
desenvolvem, com o apoio do CNPq, o projeto “A construção do sentido no
discurso”.
Ao folhar as páginas desta obra, o leitor encontrará reflexões sobre
questões teóricas e práticas acerca da língua e de suas perspectivas no
complexo e heterogêneo mundo da educação. Pensar a realidade da língua é
pensar que todos os discursos se constroem a partir do uso que dela se faz.
Como escreveu Saussure em um de seus rascunhos*, “a língua só é criada com
vistas ao discurso”. Diante disso, queremos, neste livro, divulgar estudos
desenvolvidos sob diferentes perspectivas teóricas do discurso e questionar
alguns aspectos do ensino de língua, tanto materna quanto estrangeira, na
escola, tendo presente que o professor precisa – acima de tudo – ser um
profissional capaz de criar conhecimento e alternativas para a aprendizagem de
seus alunos. Assim, os textos aqui apresentados se propõem a buscar um
diálogo possível entre concepções teóricas, e são dirigidos a estudiosos da
língua, a professores de modo geral e a alunos de Graduação, futuros
professores.
Os textos que compõem este livro estão organizados em duas partes.
Encontram-se, na primeira, estudos concernentes a teorias do discurso,
aplicadas ao ensino da língua materna. Na segunda parte, há trabalhos que
dizem respeito à aplicação de teorias ao ensino de línguas estrangeiras.
Na primeira parte, Tânia Maris de Azevedo e Vania Morales Rowell, em “A
língua portuguesa como instrumento de aquisição de conhecimentos no ensino
fundamental: algumas reflexões”, propõem uma abordagem para o ensino da
língua portuguesa que leve em conta a língua como “ferramenta” para a
aquisição de conhecimentos em todas as áreas. Para tanto, defendem uma
concepção de ensino de língua materna a partir de pressupostos vinculados às
*
STAROBINSKI, Jean. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand Saussure. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
teorias linguísticas enunciativas, que se centram nos sentidos produzidos pela
língua em uso na interlocução.
Em “Teorias lingüísticas e o ensino da escrita”, Magali Lopes Endruweit
reflete sobre a presença da escrita na escola e sua relação com as teorias
linguísticas subjacentes às concepções de escrita. A discussão se dá em três
momentos: o primeiro trata do entendimento segundo o qual a escola é o lugar da
escrita por excelência; o segundo analisa as principais publicações presentes em
sala de aula nos últimos trinta anos e o terceiro procura o significado da escrita
na escola.
Em “Pela inserção do discurso na escola”, Sônia Lichtenberg analisa o
contexto ensino-aprendizagem da língua portuguesa nas escolas de níveis
fundamental e médio, assim como os instrumentos utilizados para esse fim –
gramáticas tradicionais e livros didáticos – questiona os limites de um ensino que
deixa de lado a língua em uso e, em consequência, o discurso. A autora propõe
um ensino centrado no funcionamento da língua no discurso a partir da Teoria da
Enunciação de Émile Benveniste.
No artigo “Argumentação e ensino de língua materna”, Carmem Luci da
Costa Silva discute o saber teórico-metodológico do ensino de língua materna
proposto pelos PCNs, bem como verifica, nessas diretrizes para os ensinos
fundamental e médio, a presença de aspectos que contemplam o funcionamento
enunciativo-argumentativo da língua. A partir disso, mostra análises centradas na
Teoria da Argumentação de Oswald Ducrot para refletir sobre as possibilidades
de exploração do uso argumentativos da língua em sala de aula. Assim, a autora
pontua em seu texto duas questões relacionadas: (1) o tratamento da língua em
uso e (2) a consideração da argumentação no uso da língua.
“Para resumir textos: uma proposta de base semântico-argumentativa” é
um artigo em que Telisa Furlanettto Graeff testa uma metodologia de resumo de
textos expositivo-argumentativos com base nas teorias da Polifonia e dos Blocos
Semânticos propostas por Oswald Ducrot e Marion Carel. A aplicação dessa
metodologia a alunos de Pós-Graduação em Letras em nível de Mestrado
revelou-se adequada, visto que os alunos passaram, a partir dessa metodologia,
a produzir resumos considerando os princípios necessários a esse gênero
8
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
textual: completude (presença/ausência de unidades semânticas básicas),
economia e fidelidade.
“Gêneros discursivos no ensino: o foco na interação verbal”, de Neiva
Maria Tebaldi Gomes, estuda a possibilidade de levar os gêneros discursivos
para a escola. Essa atividade permite, conforme a autora, compreender o espaço
escolar como uma extensão do grande espaço das relações sociais em que se
movem e se constituem os sujeitos. Esse estudo mostra que, independentemente
de perspectivas teóricas, falar de gêneros na Linguística é ter como foco a
interação pela linguagem, é tratar das formas de interação verbal que se
constroem nas práticas sociais, procurando entender melhor o que o homem faz
com a linguagem.
“O comportamento dos demonstrativos na organização dos enunciados”,
pesquisa desenvolvida por Claudia Stumpf Toldo e Neusa Maria Henriques
Rocha, evidencia, à luz da perspectiva linguístico-funcionalista, que a língua tem
de ser tratada no seu contexto de uso e entendida na relação com as diversas
possibilidades de interação. Para tanto, analisa a construção de sentidos no
texto, por meio das relações que se estabelecem, nesse processo, entre os
componentes sintáticos, semântico-discursivos e pragmáticos. As autoras
procuram compreender o comportamento dos pronomes demonstrativos em
enunciados de humor, com o propósito de mostrar que o professor pode levar o
aluno a reconhecer a função referenciadora desses pronomes e o papel que eles
desempenham na construção dos sentidos do texto.
A segunda parte é constituída de textos que abordam o ensino de línguas
estrangeiras a partir de teorias sobre o uso da linguagem. Em “Construção da
autonomia na formação do professor de língua estrangeira”, Niura Maria Fontana
apresenta a noção de autonomia na escola e afirma a necessidade de que o
professor tenha conhecimento de teorias linguísticas para, pela relação da teoria
com a prática, desenvolver essa competência em seus alunos. Propõe, então,
que o professor tenha uma concepção de língua, não como estrutura, mas como
atividade situada, que contemple noções como texto, coesão, enunciação,
gênero e discurso. É apresentado o relato de um experimento com dois grupos
de alunos.
Teorias do Discurso e Ensino
9
Em “Operadores argumentativos little, a little, few, e a few no ensino do
inglês como língua estrangeira”, Roberta Macedo Ciocari estuda o uso dos
chamados quantificadores, destacando que os materiais didáticos comumente
utilizados tornam difícil a tarefa de explicar a diferença existente entre os
componentes de cada par. Por isso, os alunos não conseguem empregá-los com
segurança, visto não os distinguirem. Com o estudo da Teoria da Argumentação
na Língua, a autora propõe uma nova abordagem dos quantificadores em
questão, que ajudaria tanto alunos como professores no entendimento desse
assunto.
Com seu trabalho, “Uso de pero, sino e sin embargo, através da teoria da
argumentação na língua”, Gisele Benck de Moraes constata que uma das
dificuldades que se apresenta a alunos e professores de língua espanhola é o
uso de pero, sino, sin embargo no discurso. A busca de esclarecimentos em
gramáticas, dicionários e até mesmo em livros didáticos parece não ser suficiente
para dar clareza sobre o uso desses termos: a explicação é sucinta e
comparativa e, geralmente, trata só de pero e de sino. Em virtude dessa
dificuldade, a autora faz um estudo em que mostra o funcionamento dos
articuladores pero, sino e do conector sin embargo em textos, com base em
descrições amparadas pela Teoria da Argumentação na Língua (TAL) de Oswald
Ducrot.
Tendo em vista a importância que a Linguística assume no cenário do
ensino de língua e a relevância dos temas desenvolvidos neste livro, as autoras
esperam que os textos aqui apresentados oportunizem reflexões e discussões
que contribuam para o trabalho de professores em sala de aula.
10
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
PARTE 1
TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DO PORTUGUÊS
A LÍNGUA PORTUGUESA COMO INSTRUMENTO DE AQUISIÇÃO DE
CONHECIMENTOS NO ENSINO FUNDAMENTAL: ALGUMAS REFLEXÕES
Tânia Maris de Azevedo *
[email protected]
Vania Morales Rowell **
[email protected]
As palavras só têm significado
na corrente do pensamento e da vida. (Wittgenstein)
1 Introdução
O ensino de língua materna, hoje, parece estar um tanto desfocado em
relação ao seu objetivo, principalmente no que se refere ao Ensino Fundamental:
à metalinguagem é conferido o status de protagonista, quando deveria, no
máximo, ser coadjuvante.
O estudo da língua tem se reduzido à memorização de regras gramaticais
aplicadas a uma única modalidade, a língua escrita, em uma única variante, a
padrão-culta. A língua é tratada como uma dobra sobre si mesma no sentido de
que o estudo da estrutura e da forma é visto como suficiente e até mesmo
essencial para que, como consequência natural e necessária, o sujeito aprenda a
produzir e compreender eficientemente textos/discursos reais, aqueles inseridos
em situações cotidianas de comunicação, quer escolares, quer não.
Obviamente, e a experiência é testemunha disto, essa consequência não é
assim tão natural e, menos ainda, necessária. Muito pelo contrário, a
“aprendizagem” da metalinguagem parece até distanciar o aprendiz das tarefas
de compreensão leitora e de produção de textos/discursos. O estudo da
gramática normativa acaba por inibir e limitar a atividade de produção do aluno,
pois este tem sempre a impressão de não saber escrever, como se a língua
*
Professora do Departamento de Letras de Universidade de Caxias do Sul, Doutora em
Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
**
Mestre em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
escrita fosse uma modalidade a que somente os grandes literatos têm acesso,
longe, portanto, do uso corrente advindo de necessidades cotidianas. Tanto é
assim que é comum ouvir, nos mais diversos meios e nas mais diferentes
profissões – inclusive na de professor –, profissionais afirmando categoricamente
não saber “colocar suas ideias no papel” e ter dificuldade para ler um texto mais
especializado e mais complexo.
É preciso lembrar que a criança chega à escola como usuário da língua e
com uma competência comunicativa de base já bastante desenvolvida em nível
oral, além de contar com uma imaginação prodigiosa e extremamente fértil em
termos de possibilidade de criação e potencialidade de aquisição de recursos
linguísticos para aprimorar sua expressão verbal.
A escola, na contramão desse processo, introduz a criança no mundo do
código escrito, desprezando o que ela já domina linguisticamente e impondo a ela
um registro desvinculado do seu contexto de uso. Unidades desprovidas de
sentido – como letras, sílabas, palavras e mesmo orações – são trabalhadas num
universo totalmente artificial, impondo ao sujeito aprendiz a condição do “não
saber”, da plena ignorância, como se o falante já não dominasse estruturalmente
mecanismos básicos de uso da língua. A língua escrita é colocada ao aluno como
uma ilustre desconhecida, sem qualquer vínculo com a língua que ele já usa, e
usa proficientemente em várias situações enunciativas.
Por outro lado, as demais disciplinas curriculares tratam a aquisição do
conhecimento em suas áreas, cada uma no seu nicho, como retenção de
conteúdos temáticos, de informações específicas, sem que haja consciência de
que a linguagem é o principal veículo de interação, por meio da qual se dá a
construção do conhecimento, e a língua a ferramenta maior de acesso às
informações e de processamento/sistematização delas rumo à construção dos
saberes.
Essa falta de consciência faz com que os professores que atuam com as
outras disciplinas que compõem o currículo do Ensino Fundamental não se
percebam como também professores de língua materna, como se o processo de
apreensão e apropriação do conhecimento não fosse mediado pela língua.
É nesse contexto que se circunscreve o presente trabalho, cujo objetivo é
o de propor uma abordagem instrumental para o ensino de Língua Portuguesa no
Teorias do Discurso e Ensino
13
Ensino Fundamental (mais especificamente, de 5ª a 8ª série), ou seja, uma
abordagem que conceba a língua como “ferramenta” para a aquisição de
conhecimentos em todas as áreas, desde o acesso à informação até a
estruturação do pensamento e dos diferentes raciocínios que cada área impõe ao
sujeito conhecedor.
São diferentes textos, diferentes estruturas, diversos campos semânticos a
serem dominados e mobilizados para que o sujeito possa transitar pelas várias
áreas e pelos múltiplos tipos de conhecimento. São requeridas do aprendiz
diferentes habilidades linguísticas para a construção dos diversos saberes
atinentes a cada forma de conhecer e cabe à escola, a cada professor e, mais
especificamente, ao professor de língua materna a instrumentalização linguística
do aluno para a construção do conhecimento.
O que defenderemos aqui são algumas concepções acerca do ensino e do
ensino de língua materna, algumas formas de conceber a língua como
instrumento de interação humana e mediadora da aquisição de conhecimentos.
Portanto, não filiaremos este trabalho a nenhuma teoria linguística em especial,
mas a determinadas posturas que, transpostas ao ensino, possam dar conta da
real função da língua na construção do conhecimento. Se houver necessidade de
explicitar alguns pressupostos teóricos, certamente, estes estarão vinculados às
chamadas teorias enunciativas, pois cremos que o uso da língua e sua função na
interlocução devam ser a tônica do processo educativo em se tratando do ensino
da língua materna.
Como já foi dito, o Ensino Fundamental não é lugar de discussões
metalinguísticas e muito menos de prescrições gramaticais, mas, se o objetivo é
proporcionar ao aluno situações que o leve a construir conhecimentos e formar
conceitos, nesse nível de ensino a língua portuguesa deve ser tratada desde os
seus diversos usos, quer em termos de leitura, quer de produção, e o aporte
teórico que pode alicerçar essa concepção de ensino só poderá ser aquele
inscrito na perspectiva enunciativa da linguística.
Dados os limites desse estudo, não se tem a pretensão de propor soluções
definitivas para o problema detectado, mas apenas elencar algumas reflexões
que poderão contribuir para que o ensino de língua materna assuma sua principal
função no Ensino Fundamental: a de municiar o aprendiz com os mecanismos
14
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
linguísticos necessários à compreensão e produção dos diversos gêneros
discursivos presentes no cotidiano de qualquer cidadão e daqueles gêneros de
que se valem as demais disciplinas curriculares para tratar o conhecimento.
2 Alguns conceitos de base
No momento em que se concebe a linguagem como responsável pela
estruturação do pensamento e a língua como veículo dessa estruturação e,
portanto, como instrumento fundamental à aquisição de conhecimento, faz-se
mister discutir, mesmo que breve e superficialmente – dadas as limitações
impostas pela configuração deste trabalho –, alguns conceitos que se põem na
base de uma proposta de ensino instrumental da língua materna.
Não há como pensar o ensino de língua sem pensar antes no ensino como
educação formal. E falar sobre a educação formal requer uma breve reflexão
sobre o conceito de homem em suas relações com os conceitos de natureza,
cultura, sociedade.
O homem só difere dos outros animais por ser capaz de, pela interação
com seus semelhantes, agir sobre a natureza no sentido de transformá-la de
acordo com suas necessidades de sobrevivência e também por ser o único a
preservar o fruto dessas constantes transformações – a cultura – ao longo da
história para que as gerações futuras possam se valer delas sem ter que refazer
o caminho já trilhado.
O ser humano distingue-se dos outros animais e assume a
condição de sujeito, principalmente, por ser o ÚNICO:
- dotado de racionalidade, o que lhe possibilita abstrair,
distanciar-se da “realidade” a ponto de, por meio da percepção,
compreensão, interpretação, representar-se e representar o
mundo;
- capaz de, por sua alteridade constitutiva, constituir-se na
intersubjetividade e auto-referir-se, por meio da linguagem;
- a manter sua identidade, independentemente das alterações
físico-químicas, afetivas, de personalidade, de caráter que
ocorrem com ele ao longo da vida;
- a poder refletir sobre si mesmo, pois é dotado de consciência –
consciência esta que lhe permite inclusive ter consciência da
existência de seu próprio inconsciente, de sua experiência
pessoal intransferível;
Teorias do Discurso e Ensino
15
- a concretizar a idéia de liberdade, por ser capaz de conceber e
fazer escolhas e poder operar essas escolhas dentro dos meios
interno e externo, avaliando-as e avaliando sua própria
operacionalização. 1
Essas potencialidades do ser humano que o diferenciam dos outros
animais e o tornam único têm na base – e, ao mesmo tempo, como principal
instrumento de atualização, de concretização – sua capacidade de linguagem, a
competência humana de constituir-se e constituir seu mundo na e pela
linguagem.
Para abstrair, compreender, interpretar, representar-se e representar o
mundo, referir e autorreferir-se, preservar sua identidade, refletir sobre si mesmo,
sobre seu conhecimento e sobre suas próprias formas de conhecer e aprender,
bem como para realizar, tornar concreta a ideia de liberdade, exercendo sua
cidadania, o homem se vale da linguagem, e, mais especificamente, do sistema
linguístico que põe em uso.
A condição social do homem, a interação com os demais da mesma
espécie, bem como a preservação da cultura construída só é possível porque o
homem possui uma linguagem, uma forma de simbolizar, de representar, de
abstrair dos fenômenos conceitos que perduram por meio da linguagem.
Da relação do homem, como sujeito conhecedor que é com a natureza e
com os outros sujeitos, relação desencadeada pelos conflitos que a
sobrevivência cotidiana impõe, surge o processo de educação informal que,
novamente via linguagem, é o grande responsável pela preservação da cultura e
pela consolidação da sociedade.
A educação informal tem por características: (a) a não sistematicidade,
uma vez que não é planejada nem regida por quaisquer preceitos didáticopedagógicos; (b) a espontaneidade, já que acontece na justa proporção da
necessidade, nos diferentes grupos e relações sociais, à medida que os conflitos
surgem como elementos perturbadores da estabilidade do indivíduo/grupo; e (c) a
circunstancialidade, visto que o processo não tem local e hora marcados, efetivase conforme a exigência das situações problematizadoras.
1
SANTOS, PEREIRA e AZEVEDO, 2004, p. 14-15.
16
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Por meio do processo educativo informal, são transmitidos valores,
crenças, mitos, enfim, regras de convivência de um grupo, de geração em
geração.
A educação é o vetor de transmissão da cultura enquanto que
esta define o quadro institucional da educação e ocupa um lugar
essencial em seus conteúdos. A educação, afirma-se, ocupa uma
posição central no sistema de valores e os valores são os pilares
em que se apóia a educação. Postas a serviço das necessidades
de desenvolvimento do ser humano, a educação e a cultura
tornam-se, quer uma, quer outra, meios e fins deste mesmo
desenvolvimento. 2
Da exigência de organizar e disseminar conhecimentos de modo a tornálos comuns a comunidades maiores e mesmo à sociedade como um todo, surge
a educação formal, ou ensino. Com ambiente e horários determinados, com
profissionais especializados, com material apropriado e programas curriculares
estabelecidos, a educação formal, diferentemente da informal, assume a
configuração de processo sistemático – metódica e metodologicamente
organizado para propiciar a aquisição do conhecimento produzido –, programado
– com objetivos e ações planejados previamente e conteúdos hierarquicamente
dispostos ao longo de um currículo – e situado artificialmente – em oposição à
circunstancialidade que define o processo de educação informal, a educação
formal tem tempos e espaços definidos, ocorre por meio da criação de ambientes
de aprendizagem, antecipando necessidades e conflitos.
A educação formal passa a ser, então, um simulacro do processo
educativo informal, no sentido de que tenta reproduzir situações conflitivas na
forma de situações de aprendizagem, para que o sujeito conhecedor tenha
acesso ao conhecimento social e historicamente produzido.
Todo o processo educativo, seja ele formal ou informal, só é possível por
meio da linguagem e, mais especificamente, da língua oral ou escrita.
Conhecimentos matemáticos, físicos, químicos, geográficos, independentemente
de terem uma linguagem própria, um sistema de formalização e representação,
são veiculados pela educação, formal ou não, por meio do sistema linguístico, da
2
NANCZHAO, 1998, p. 257.
Teorias do Discurso e Ensino
17
linguagem verbal, oral ou escrita. Os questionamentos, as explicações, as
definições, os exercícios didáticos têm na linguagem verbal sua forma de
expressão e o meio de decifração/compreensão de símbolos e gráficos
pertinentes às diversas áreas do conhecimento. Qualquer que seja a forma de
educação, da mais sistemática a mais espontânea, tem como veículo mais
utilizado a língua, justamente por ser ela o meio mais viável de transmissão de
informações e de processamento delas rumo à formação de conceitos e,
consequentemente, à construção do conhecimento.
Falando em conhecimento, esse é outro conceito de base a ser aqui
discutido, pois de como o compreendemos e entendemos o ato de conhecer
decorre a concepção de ensino de língua proposta.
O conhecimento é visto aqui como o resultado, o produto do
processamento, da organização, enfim, da sistematização do conjunto de
informações a que somos expostos a todo instante ou a que nos expomos
quando temos um problema a solucionar. Essas informações chegam a nós de
várias formas e por diversas vias, desde o que é percebido sensorialmente até o
que é intelectualmente captado ou acessado.
O que ocorre é que essas informações por si só não se constituem meios
para a solução de problemas, precisam ser inter-relacionadas para assumir a
configuração de conhecimento construído e, então, poder ser adaptadas,
ressignificadas e aplicadas, como instrumentos de resolução, a situações que se
colocam como problemas.
O conhecimento só é conhecimento enquanto organização,
relacionado com as informações e inserido nos contextos destas.
As informações constituem parcelas dispersas de saber. [...]
[A] informação é uma matéria-prima que o conhecimento deve
dominar e integrar. 3
O conhecimento resulta, por conseguinte, de uma ação do sujeito sobre o
objeto a ser conhecido. Não há, pois, transmissão de conhecimento, mas
reconstrução, ressignificação do objeto de conhecimento pelo sujeito por meio da
ação, da interação, que se faz, por sua vez, pela linguagem.
3
MORIN, 2002, p. 16 e 18.
18
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
É a partir de um acontecimento que se institui como desafio/problema ao
sujeito que o processo de conhecer entra em ação, ou seja, que o sujeito, pela
interação com outros sujeitos e com as informações – objeto de conhecimento –,
constrói uma rede de relações entre essas informações e delas com a situação- problema, interpretando-as e convertendo-as em possibilidades de solução ou de
minimização do problema instituído.
O produto desse processo, independentemente da efetiva solução do
problema, é o que se concebe como conhecimento, uma vez que essa rede de
relações estabelecida foi incorporada pelo sujeito e poderá ser o alicerce de
novas relações na busca de outras soluções para outras situações conflitivas. A
cada evento que se apresenta ao sujeito cognoscente, ele localiza e mobiliza o
que já assimilou a respeito, ressignifica e reconstrói o conhecimento que já
possui e, buscando novas informações, realizando novas interações, incorpora
novas
redes
de
relações
ao
seu
conhecimento
prévio,
ampliando-o,
redimensionando-o e/ou sedimentando-o para a solução de novos problemas.
Assim, sucessiva e recursivamente, o conhecimento vai sendo construído,
aprofundado, alargado, e o sujeito vai se tornando mais autônomo, mais senhor
de suas interpretações e ações sobre o mundo e sobre si mesmo.
Como diz Luckesi (1989, p. 47-48),
o conhecimento é o produto de um enfrentamento do mundo
realizado pelo ser humano que só faz plenamente sentido na
medida em que o produzimos e o retemos como um modo de
entender a realidade, que nos facilite e nos melhore o modo de
viver, e não, pura e simplesmente, como uma forma enfadonha e
desinteressante de memorizar fórmulas abstratas e inúteis para
nossa vivência e convivência no e com o mundo.
Desde essa perspectiva, o objeto de conhecimento não se apresenta ao
sujeito como um reflexo do real a ser assimilado, mas como um objeto a que o
sujeito precisa atribuir sentido. Por isso, o conhecimento é sempre, como diz
Morin (2002), tributário da interpretação, logo, da subjetividade, isto é, construído
individual e transitoriamente, não admitindo o caráter de verdade tácita e
imutável.
A linguagem assume no processo de conhecer pelo menos três funções: a
de veicular a interação do sujeito cognoscente com o objeto de conhecimento,
Teorias do Discurso e Ensino
19
possibilitando sua apropriação; a de estruturar e organizar o conhecimento
resultante dessa interação; e a de tornar consciente ao sujeito todo esse
processo.
[...] o homem transforma e é transformado nas relações
produzidas em uma determinada cultura. Mas a sua relação com
o meio não se dá de forma direta, ela é mediada por sistemas
simbólicos que representam a realidade; e a linguagem, que se
interpõe entre o sujeito e o objeto de conhecimento, é o principal
sistema de todos os grupos humanos. 4
Quando o sujeito se questiona sobre algo, quando mobiliza o que já
conhece a respeito do que está investigando e, desde aí, estabelece novas
relações a fim de se apropriar desse objeto de investigação e, ainda, quando
consegue tomar consciência do caminho percorrido para desvendar o objeto que
se lhe põe à frente, bem como do resultado desse desvelamento, o faz por meio
da linguagem, seja ela verbal ou não. Como diz Vygotsky, a linguagem dá forma
ao pensamento, estruturando-o. É por meio da linguagem que o sujeito interpreta,
constrói, reconstrói, ressignifica, redimensiona e socializa o conhecimento.
Para Luria (1987, p. 202),
a presença da linguagem e de suas estruturas lógico-gramaticais
permite ao homem tirar conclusões com base em raciocínios
lógicos, sem ter que se dirigir cada vez à experiência sensorial
imediata. A presença da linguagem permite ao homem realizar a
operação dedutiva sem se apoiar nas impressões imediatas e se
limitando àqueles meios de que dispõe a própria linguagem. Esta
propriedade da linguagem cria possibilidade de existência das
formas mais complexas do pensamento discursivo (indutivo e
dedutivo), que constituem as formas fundamentais da atividade
intelectual produtiva humana.
Se a linguagem é o instrumento fundamental do processo de conhecer e
se
o
conhecer
pressupõe
o
aprender,
a
linguagem
desempenha
na
aprendizagem função igualmente essencial, como mediadora das relações entre
o sujeito e o objeto a conhecer.
4
BEZERRA, 2002, p. 38.
20
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Nesse sentido, quando se pensa uma proposta para o ensino de língua
materna, outro conceito de base a ser repensado é o de aprendizagem. É preciso
saber como se entende o processo de aprendizagem, como se aprende, para
poder conceber uma proposta de ensino, uma vez que este só tem sentido se
pensado da perspectiva do aprender.
Não há espaço aqui para analisarmos todas as formas de aprendizagem,
restringir-nos-emos, pois, à aprendizagem formal, sistematizada, escolar.
Se o ato de conhecer pressupõe a construção de uma rede de
informações interconectadas, faz-se necessário aprender a tecer essa rede. A
aprendizagem,
aqui,
é
vista
como
o
desenvolvimento
de
competências/habilidades essenciais ao ato de conhecer como as de observar,
comparar,
classificar,
estabelecer
analisar,
relações.
sintetizar,
Outra
vez,
o
interpretar,
criticar,
desenvolvimento
descobrir,
de
tais
competências/habilidades tem como principal ferramenta a linguagem e,
essencialmente, a linguagem verbal. Desde a mais simples observação até a
construção da mais complexa rede de relações tem na verbalização o maior
instrumento de representação/sistematização/consolidação.
Segundo Piaget, aprender é diferente de conhecer. Aprender, para o autor,
é saber realizar, ao passo que conhecer é compreender e distinguir as relações
necessárias, é atribuir significado às coisas. Nesse sentido, aprender diz respeito
mais aos procedimentos e às estratégias empregadas pelo sujeito para agir sobre
o objeto de conhecimento e decifrá-lo ou ressignificá-lo.
Novamente,
aqui,
torna-se
essencial
a
consciência
sobre
esses
procedimentos: aprender a aprender, pois, é fundamental para o aprimoramento
das estratégias pressupostas pelo conhecer. A meta-aprendizagem, assim como
a metacognição, é fundamental para assegurar ao sujeito a autonomia do seu
desenvolvimento, uma vez que lhe permite otimizar processos e redimensionar
estratégias em função do objeto a conhecer.
A
aprendizagem
resulta
de
construções
efetivadas
pelo
sujeito
cognoscente por meio de estágios de reflexão, remanejamento e remontagem
das percepções que ocorrem na ação sobre o mundo e na interação com outras
Teorias do Discurso e Ensino
21
pessoas 5. A aprendizagem é resultado de um processo de interação entre o
mundo do sujeito e o mundo do objeto, por uma integração ativada pelas ações
do sujeito 6.
A aprendizagem, por decorrência, só ocorre à proporção que o aluno age
sobre os conteúdos específicos e, desafiado por situações problematizadoras,
tem suas próprias estruturas de pensamento previamente construídas ou em
construção. E, ainda, pelo desenvolvimento de competências/habilidades,
mantém uma relação ativa como o conhecimento, relação essa que produz
transformações no sujeito cognoscente e no próprio objeto cognoscível.
No entanto, a aprendizagem não pode ser vista como um fenômeno
unicamente individual. Se o ser humano é aqui entendido como um ser
essencialmente social, só se pode compreender a aprendizagem como resultado
de um constante processo de interação, não apenas do sujeito com o objeto a
conhecer, mas do sujeito com outros sujeitos. No caso específico do ensino
formal, a aprendizagem decorre fundamentalmente das interações alunoprofessor e aluno-aluno.
Segundo Wood 7, a teoria vigotskiana atribui ao sucesso alcançado pela
cooperação a base da aprendizagem e do desenvolvimento. A instrução, tanto
formal como informal, em contextos sociais variados, realizada por colegas,
familiares, amigos e professores dotados de maior conhecimento, é o principal
veículo de transmissão cultural do conhecimento. O conhecimento encontra-se
inscrito nas ações, no trabalho, nas brincadeiras, na tecnologia, na literatura, nas
artes e na fala dos membros de uma sociedade. E apenas por meio da interação
com os representantes de vários grupos sociais e culturais é que o sujeito poderá
adquirir, incorporar e desenvolver posteriormente aquele conhecimento. Ou seja,
é através das múltiplas inter-relações que o indivíduo mantém com os diferentes
grupos sociais que vai construindo seu conhecimento e incorporando valores,
crenças e atitudes que compõem a cultura e que, por sua vez, fazem-na
perpetuar-se.
5
MORAES, 2000, p. 200.
Id. Ib.
7
1996, p. 45.
6
22
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
O ato de conhecer pressupõe uma ação do sujeito sobre o objeto de
conhecimento, no sentido de compreendê-lo e decifrá-lo, processos que por sua
vez implicam o ato de refletir, já que nem todo o objeto de conhecimento está
disponível sensorialmente. É pela possibilidade de representar simbolicamente, ou
seja, pela linguagem, que o sujeito consegue abstrair, logo, analisar, hipotetizar,
deduzir, generalizar, transferir, projetar, acessar e processar informações,
sistematizando-as e incorporando-as na forma de conhecimento construído.
É pela linguagem que o homem se apropria do conhecimento. E é pelo
questionamento sobre a realidade (esta concebida como um ponto de vista do
sujeito, logo, individualmente percebida e compreendida) que o conhecedor
conhece. Portanto, é a língua que permite ao sujeito assumir uma atitude
investigativa sobre o mundo, questioná-lo e questionar o conhecimento
produzido, e, assim, construir sobre ele seus pontos de vista. É a língua o
principal instrumento de tomada de consciência do mundo pelo sujeito.
Conhecer nada mais é do que atribuir sentido ao que se nos apresenta;
conhecer, portanto, pressupõe a linguagem para tal atribuição de sentido. É por
meio da linguagem que o sujeito conhecedor age sobre o objeto a conhecer e,
nessa ação, construindo hipóteses e generalizações, confere sentido a ele,
apropriando-se desse objeto e tomando consciência do próprio processo de
conhecê-lo, o que, consequentemente, lhe permitirá decifrar novos objetos
cognocíveis e implementar novas formas de conhecer.
De acordo com Vygotsky (1998), quando trata do processo de formação de
conceitos, o signo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento mediador
nesse processo, afigura-se como sua síntese, uma vez que se torna a
exteriorização, a abstração, a formalização do próprio conceito formado. A
linguagem, nesse sentido, assume papel mediador e estruturante no processo de
conhecer. É por meio dela, e mais especificamente por meio da língua, que
significamos e representamos o mundo que se nos dá a conhecer.
É a língua a responsável pela transformação do conhecimento em saber e
em saber-fazer, visto que ela possibilita a socialização de informações e o
desenvolvimento de habilidades que o raciocinar pressupõe. É pela propriedade
de referir pela língua que o sujeito se constitui e constitui o mundo que o cerca.
Teorias do Discurso e Ensino
23
As concepções até aqui discutidas formam o alicerce sem o que não seria
possível delinear uma proposta para o ensino de língua materna no Ensino
Fundamental. Somente quando se tem por base e se acredita que a função da
língua é a de mediar o processo de conhecer em qualquer área pode-se propor
que o ensino de língua configure-se como uma instrumentalização ao ato de
transformar informações em conhecimento e, posteriormente, outra vez por meio
da língua, transformar esse conhecimento construído em ferramenta para a
solução de problemas que o viver e o conviver impõem.
Assim sendo, é hora de repensarmos o ensino da língua materna desde essa
perspectiva: algumas concepções, algumas diretrizes, alguns redimensionamentos.
3 Português instrumental: a língua a serviço da construção de saberes no
ensino fundamental
Se a educação formal é tida aqui como uma simulação dos processos de
ensino e aprendizagem desenvolvidos pela educação informal, o ensino da língua
materna não poderia ser concebido de outra forma. Assim, o ensino da língua
portuguesa deveria seguir na direção da aquisição da linguagem oral, no sentido
de que essa modalidade da língua é apreendida e aprendida em seu uso, pela
interação do sujeito com outros que já a detém. Ensinar língua materna, então,
significa expor o sujeito aprendiz a diferentes situações de emprego da língua,
seja na modalidade escrita para aprendê-la, seja na modalidade oral para
aperfeiçoá-la.
Hoje, as aulas de língua portuguesa estão direcionadas prioritariamente à
aquisição e ao desenvolvimento da língua escrita, quer em termos de
compreensão leitora, quer no que se refere à produção de textos. A língua oral é
relegada a um segundo plano ou nem sequer trabalhada, sendo inclusive
“atrofiado” seu uso no ambiente escolar, já que as interlocuções são limitadas e
rigidamente supervisionadas, e as intervenções dos professores sobre a
oralidade dos alunos vão exclusivamente ao sentido da correção e, ainda, da
correção com critérios do nível culto da modalidade escrita.
Além disso, o ensino de língua está muito longe de priorizar as situações
de uso efetivo da língua a ser aprendida/aprimorada; a descrição ou mesmo a
24
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
normatização do sistema linguístico é o foco dos currículos na Educação Básica.
A língua como objeto de ensino é uma língua atemporal, fora de contexto,
portanto, desprovida de qualquer função, mas plenamente recheada de regras e
normas, cuja infração é sempre motivo de punição; é a língua sobre si mesma e
por si mesma, sem qualquer vínculo com as possibilidades reais de emprego e,
menos ainda, sem qualquer possibilidade de criação sobre ou de rompimento do
sistema que é tido como restritivo e coercitivo; é uma língua fossilizada, sem
ninguém que a atualize, que a realize, que atribua sentido a ela.
Ora, sabe-se bem que o sentido não está na língua, como entidade virtual,
mas no contexto de uso das formas da língua; é o discurso, como diz Ducrot
(2002), que doa sentido, é na parole saussuriana que o dizer se faz dito e,
portanto, pleno de sentido. Então, como conceber um ensino de língua que a
artificializa, que suprime dela o que lhe confere sentido? Como esperar que o
aluno aprenda a usar uma língua, a sua língua, ensinando suas formas e
estruturas descontextualizadas, fora da situação enunciativa que a faz fazer
sentido?
Diante disso e da crença de que a língua é, além do principal instrumento
de interlocução dos seres humanos, o principal mediador na formação de
conceitos e, consequentemente, da construção de saberes pelos sujeitos, o que
se propõe aqui é quase o inverso disso. É um ensino de língua materna (em que
as modalidades oral e escrita tenham o mesmo status e sejam constante e
concomitantemente trabalhadas) cujas bases sejam as situações enunciativas, os
contextos de interlocução, os diferentes objetivos dos locutores, os diversos
perfis dos interlocutores.
Nossos professores de língua – seja por formação profissional,
seja por falta de formação – são muito atraídos pela descrição de
língua e pelo ensino de gramática. Sempre fazemos sucesso na
formação de professores quando discutimos as características
formais e de estilo de um texto ou gênero, a partir de nossos
instrumentos. Por outro lado, nossos alunos não precisam ser
gramáticos de texto e nem mesmo conhecer uma metalinguagem
sofisticada. Ao contrário, no Brasil, com seus acentuados
problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem
acesso letrado a textos (de opinião, literários, científicos,
Teorias do Discurso e Ensino
25
jornalísticos, informativos, etc.) e de poderem fazer uma leitura
crítica e cidadã desses textos. 8
Por isso, acredita-se que os gêneros discursivos, desde a abordagem de
Bakhtin, possam se constituir meios eficientes para o ensino da língua materna
numa perspectiva mais enunciativa e funcional.
A proposta desse autor vem ao encontro da função que se atribui aqui ao
ensino de língua materna no Ensino Fundamental, ou seja, a de instrumento do
processo de aquisição/construção de conhecimentos em todas as demais
disciplinas que compõem o currículo desse nível de ensino.
Como diz Bakhtin,
todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao
uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e
as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da
atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade
nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma
de enunciados 9 (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos
pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
Esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas,
acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses
três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de
um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização
da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominados gêneros do discurso. 10
Cada área do conhecimento – e, por conseguinte, no referido processo de
simulação, cada disciplina do currículo – possui formas específicas de expressar
seus
raciocínios
e
conceitos:
definições,
explicações,
justificativas,
questionamentos, fórmulas, gráficos, mapas, esquemas, enfim, uma grande
8
ROJO, p. 27.
Conceito situado pelo próprio autor no campo da parole saussuriana, significa o ato de enunciar,
de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos, etc. Bakhtin, segundo seu tradutor, usa
indiscriminadamente os termos enunciado e enunciação, sem distingui-los.
10
BAKHTIN, 2003, p. 261-262. Grifos do autor.
9
26
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
quantidade e diversidade de gêneros discursivos aplicados às finalidades e
necessidades de cada área e de cada conceito trabalhado, analisado.
O sujeito aprendiz é exposto a essa multiplicidade de gêneros discursivos
sem que nenhuma instrumentalização linguística lhe seja fornecida. A ideologia
escolar tem a falsa impressão de que o fundamental a ser ensinado é o conteúdo
temático de cada área, como se esse conteúdo não fosse veiculado por um
conjunto de sequências discursivas próprias da área e que requerem domínio,
por parte do sujeito cognoscente, para que possam ser compreendidas e, então,
aprendido, transferido e aplicado o conteúdo que é por elas transmitido.
Desde essa perspectiva, à educação formal cabe não só ensinar o
conhecimento produzido em cada área, mas também instrumentalizar o aprendiz
para que tenha acesso a esses conhecimentos e seja capaz de apropriar-se
deles para construir seus próprios conceitos e produzir novos conhecimentos.
Particularmente, à disciplina de língua portuguesa fica uma dupla tarefa: a
de instrumentalizar o aluno para compreender e produzir os gêneros discursivos
cotidianos, orais ou escritos, dos mais informais aos mais formais; e a de
instrumentalizá-lo também para operar, quer em termos de leitura, quer de
produção, com os gêneros utilizados pelas outras disciplinas, desde aqueles
próprios das várias áreas do conhecimento até os que são didaticamente usados
pelas disciplinas para acesso e construção do conhecimento produzido, a saber:
os relatórios, resumos, resenhas, esquemas, etc.
Ainda conforme Bakhtin,
em cada campo existem e são empregados gêneros que
correspondem às condições específicas de dado campo; é a
esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma
determinada função (científica, técnica, publicística, oficial,
cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva,
específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é,
determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e
composicionais relativamente estáveis. 11
Nesse sentido, o que se propõe aqui é que a função, a finalidade, a
situação enunciativa determinem a forma, os mecanismos linguístico-gramaticais
11
BAKHTIN, 2003, p.266.
Teorias do Discurso e Ensino
27
e textuais a serem trabalhados, ensinados nas aulas de língua materna, e não o
contrário como vem sendo feito. Que a hierarquização dos conteúdos a serem
trabalhados no Ensino Fundamental, principalmente nas últimas quatro séries,
em língua portuguesa, seja feita com base nos gêneros discursivos veiculados
nas outras disciplinas do currículo e que seja assumida pela disciplina de língua
materna a função instrumental que tem em relação às outras que compõem o
currículo.
Não se postula que seja abolido o estudo da forma em função da análise
enunciativo-discursiva, mas que esta seja priorizada e norteie o ensino daquela.
Acredita-se que tanto os recursos textuais (mecanismos que asseguram
coerência e coesão nos níveis macro e microtextual) quanto os aspectos
gramaticais sejam tratados em função do gênero analisado, de acordo com o que
é requerido pela situação enunciativa.
De acordo com Rojo,
toda prática de linguagem se dá numa situação (de comunicação,
de enunciação, de produção ou circulação) que é própria de uma
determinada esfera social, em um dado tempo e espaço
históricos. Esta esfera neste tempo/espaço admite determinados
participantes (com relações específicas), temas e modalidades de
linguagem e de mídia, e não outros. Estes participantes articulam
seus enunciados em gêneros específicos dessa esfera e as
propriedades composicionais e estilísticas desses enunciados em
gêneros (forma composicional, formas lingüísticas) serão
dependentes das relações entre estes participantes. Em especial,
das apreciações de valor que estes façam sobe o tema e sobre
seus interlocutores. 12
Cabe ao professor de língua materna criar situações-problema que
desafiem o aprendiz não só a compreender como também a produzir diferentes
gêneros discursivos, isto é, situações conflitivas cuja resolução dependa da
produção/compreensão
de determinados gêneros. Só
assim
os alunos
perceberão a importância de aprimorar-se linguisticamente para poder interagir
em diferentes contextos e com diversos objetivos e interlocutores e tirar o
máximo proveito dessas interações.
12
ROJO, p. 16-17.
28
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso,
isto é, todos os nossos enunciados possuem formas
relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Dispomos
de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos).
Em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e
habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer
inteiramente sua existência. [...] até mesmo no bate-papo mais
descontraído e livre nós moldamos nosso discurso por
determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e
estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas [...].
Esses gêneros do discurso nos são dados quase da mesma
forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos
livremente até começarmos o estudo teórico da gramática. 13
Bakhtin acrescenta ainda que a língua materna – sua composição
vocabular e sua estrutura gramatical – não é apreendida por nós a partir de
dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que ouvimos e
reproduzimos nas diferentes situações discursivas, com os interlocutores que nos
rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas e pelas enunciações. As
formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do
discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e
estreitamente vinculadas. 14
Aprender a falar, de acordo com o mesmo autor, significa aprender a
construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas
e, menos ainda, por palavras isoladas). Há, segundo ele, entre os gêneros do
discurso e as formas gramaticais e destes com o discurso uma relação de interdependência em termos de organização: os gêneros do discurso organizam o
nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais
(sintáticas). 15
Não entraremos aqui nos meandros da discussão linguística existente
entre tipos textuais e gêneros discursivos (ou como quer Marcuschi, gêneros
textuais). Não é objetivo deste texto apresentar uma discussão teórica e
terminológica sobre esse assunto, no entanto, Marcuschi (2002) faz uma
distinção interessante entre esses conceitos e pensamos ser pertinente
13
BAKHTIN, 2003, p. 282-283.
Id. ib.
15
Id. ib.
14
Teorias do Discurso e Ensino
29
apresentá-la aqui, pois cremos ser possível aliar, como ferramentas pedagógicas
para o ensino de língua materna, tipos textuais e gêneros do discurso.
O autor 16 diz usar a expressão tipo textual para designar uma espécie de
construção teórica definida pela natureza linguística de sua composição
(aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) e afirma que
esses
tipos
abrangem
categorias
como
a
narração,
a
exposição,
a
argumentação, a descrição e a injunção.
Já a expressão gêneros textuais (ou o que chamamos aqui gêneros
discursivos) é usada como uma noção propositalmente vaga para referir os textos
materializados que encontramos em nossa vida e que apresentam características
sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e
composição característica. Os gêneros, segundo ele, são inúmeros, e alguns
exemplos seriam o telefonema, a carta comercial, a carta pessoal, o romance, o
bilhete, a reportagem jornalística, o horóscopo, o artigo científico, a resenha, etc.
Por estar didaticamente muito bem posto, reproduziremos o quadro
elaborado pelo autor 17 para expressar essa distinção.
TIPOS TEXTUAIS
GÊNEROS TEXTUAIS
1. construtos teóricos definidos por pro-
1.
priedades linguísticas intrínsecas;
realizações
linguísticas
definidas
por
concretas
propriedades
sociocomunicativas;
2. constituem sequências linguísticas ou
constituem
textos
empiricamente
sequências de enunciados e não são
realizados
textos empíricos;
situações comunicativas;
3. sua nomeação abrange um conjunto
limita-do
de
categorias
cumprindo
funções
em
3. sua nomeação abrange um conjunto
teóricas
aberto e praticamente ilimitado de
determinadas por aspectos lexicais,
designações concretas determinadas
sintáticos,
pelo
relações
lógicas,
tempo
verbal;
4.
2.
estilo,
conteúdo,
composição e função;
designações
narração,
canal,
teóricas
argumentação,
dos
tipos:
descrição,
injunção e exposição.
4. exemplos
de gêneros: telefonema,
sermão, carta comercial, carta pessoal,
romance,
bilhete,
aula
expositiva,
reunião de condomínio, horóscopo,
16
17
2002, p. 22-23.
Id, p. 23.
30
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
receita culinária, bula de remédio, lista
de compras, cardápio, instruções de
uso,
outdoor,
inquérito
policial,
resenha, edital de concurso, piada,
conversação espontânea, conferência,
carta
eletrônica,
bate-papo
virtual,
aulas virtuais, etc.
Se no ambiente escolar, e mesmo fora dele, o conhecimento se manifesta
por diferentes gêneros discursivos e se é papel da disciplina de língua materna
instrumentalizar o aluno para o livre trânsito entre esses gêneros para que possa
se apropriar do conhecimento produzido pela humanidade e, então, exercer
plenamente sua cidadania, acreditamos ser possível, no ensino de língua
portuguesa, aliar, mesmo que somente como instrumentos didáticos – uma vez
que as bases teóricas que dão origem à distinção feita por Marcuschi sejam em
muitos pontos divergentes – esses dois pontos de vista apresentados pelo autor.
Os tipos de texto, tanto quanto os aspectos gramaticais da língua, vêm
sendo trabalhados no ensino como fins em si mesmos. É comum vermos
professores destinarem grande parte do período letivo ao ensino de narrações e
descrições (principalmente no Ensino Fundamental), suas estruturas, seus
elementos, seus subtipos e, a par disso, categorizações e classificações lexicais
e sintáticas, forçando ambientes de compreensão e produção de textos que se
“enquadrem” nessa tipologia, como se um texto real fosse puramente narrativo ou
descritivo.
Nossa proposta é que, partindo das situações enunciativas que dão origem
aos diversos gêneros discursivos (quer aqueles presentes no cotidiano, quer
aqueles de que se valem as demais disciplinas curriculares), analisando a
finalidade de cada gênero, seu estilo, seu conteúdo, os tipos de texto, ou mais
especificamente as sequências discursivas que os constituem, sejam trabalhados
para explicitar a composição característica de cada gênero, sua construção
composicional, como define Bakhtin.
Nesse sentido, tanto a tipologia textual quanto os aspectos gramaticais –
que passam a ser vistos como mecanismos de coesão e coerência textuais,
portanto de um prisma descritivo e não mais prescritivo – serão trabalhados em
Teorias do Discurso e Ensino
31
função dos gêneros discursivos ensinados, ou seja, o uso da língua em contextos
similares aos reais determinará o estudo do sistema linguístico.
Conforme o próprio Bakhtin 18,
A língua como sistema possui uma imensa reserva de recursos
puramente lingüísticos para exprimir o direcionamento formal:
recursos lexicais, morfológicos [...], sintáticos [...]. Entretanto, eles
só atingem direcionamento real no todo de um enunciado
concreto.
Uma instrumentalização linguística com essa configuração parece-nos ser
capaz de facilitar ao aluno seu processo de formação de conceitos, a aquisição
de
conhecimentos
e,
consequentemente,
a
construção
dos
saberes
indispensáveis a sua inserção na sociedade de que faz parte como verdadeiro
cidadão.
Visto que o aluno, quando chega à escola, já domina a língua materna, o
papel do ensino da língua, mesmo da modalidade escrita, deve ser o de instigar,
provocar e promover uma tomada de consciência dos mecanismos e processos
linguísticos que o sujeito já usa e de outros disponíveis no sistema linguístico,
quer oral, quer escrito, no sentido de possibilitar a ele um uso mais efetivo e
eficaz desses recursos no desenvolvimento de competências/habilidades
necessárias à aquisição do conhecimento.
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18
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Teorias do Discurso e Ensino
33
TEORIAS LINGUÍSTICAS E O ENSINO DA ESCRITA
Magali Lopes Endruweit*
[email protected]
1 Introdução
Esta reflexão parte da escola e sua relação com a linguística, mais
precisamente, da presença da escrita na escola e as teorias linguísticas que
subjazem à concepção de escrita presente em sala de aula. Algumas razões
sustentam esse caminho.
Em primeiro lugar, a relação entre o ensino de língua e a escrita segue um
senso comum responsável por ligar a escrita ao ensino e à escola, filiando a
prática da escrita escolar ao positivo próprio da ciência. Por esse prisma, “é
preciso ir à escola para aprender a ler e a escrever”.
Em segundo lugar, pela tão discutida relação entre linguística e escola,
sugerindo que esta possa tornar-se um lugar em que as teorias sejam aplicadas,
oportunizando, de certa forma, uma “prática” a uma epistemologia.
Por fim, pela suspeita de que a presença da escrita na escola esteja
ancorada em duas questões: a) na relação com a ciência e b) na relação com a
fala. Ambas as versões estão presentes na escola e estão autorizadas pela
linguística saussuriana.
Mas como se chegou a conceituação de escrita como sendo “da escola?”
Para responder a essa pergunta será necessário um passo atrás, ou seja, tentar
acompanhar a discussão de como a escrita é entendida na escola e as prováveis
consequências dessa conceituação para o ensino da escrita.
*
Professora de Língua Portuguesa da UERGS e Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo
PPG- Letras/UFRGS.
2 A escola como o lugar da escrita
O ensino da língua vale-se da legitimação da escrita como regularidade,
própria do saber escolar, resultando no distanciamento de qualquer visão
enunciativa da escrita. Na verdade, a escola é, sim, o lugar da escrita regular.
Talvez porque a primazia cronológica da fala como prática oral desenvolvida em
interações do dia a dia, sendo adquirida naturalmente à medida que a criança
cresce, seja entendida como uma aquisição informal. Ao contrário da escrita,
tomada como uma manifestação formal da alfabetização, representa a aquisição
de um bem cultural, significando certo prestígio decorrente do processo de
escolarização 1. É, portanto, na escola que a criança terá maior contato formal
com a língua escrita.
A escrita está presente na maioria das práticas sociais dos povos em que
penetrou. Mesmo quem não sabe escrever está constantemente sendo
influenciado por ela. Segundo Kato (1995), é função da escola introduzir a
criança no mundo da escrita para que esta seja capaz de fazer uso desse tipo de
linguagem para comunicar-se, em uma sociedade que prestigia a escrita. A
escrita faz parte da escola, tanto que é impensável uma sala de aula sem quadro
negro - ou branco, seguindo o avanço tecnológico - ainda mais nos ensinos
fundamental e médio. Por mais que mudem as metodologias, os recursos usados
no dia a dia escolar, “dar aula” significa, também e ainda, escrever no quadro;
frequentar a sala de aula, por sua vez, também implica envolver-se muito mais
com a expressão escrita do que com a oral. Sem dúvida, a escrita facilita as
atividades desenvolvidas na escola. Citando Bottéro (1995, p.21):
Por outro lado, ao contrário do discurso oral, flutuante, lábil e
contínuo, que não se pode apanhar, como água e o tempo que
escorrem, a mensagem escrita é materializada, tendo recebido ao
mesmo tempo consistência e duração: não é uma corrente de
água inesgotável e impermanente como o rio de Heráclito, no
qual nunca nos banhamos duas vezes; tornou-se um objeto,
coerente, autônomo e manipulável à vontade.
1
Para Graff, (1994), é equivocada a identificação entre alfabetização e escolarização, pois é
possível haver alfabetização desvinculada de escolarização.
Teorias do Discurso e Ensino
35
A escrita como um objeto material se presta à análise, à separação de
suas partes e ao retorno reparador sobre o que foi escrito, mas talvez sua
principal função seja a de armazenar. De fato, a função de arquivar da escrita
parece ser decisiva para compreenderem-se as implicações sociais e intelectuais
da cultura escrita 2 e, acrescento, de sua importância em sala de aula como
representação do oral e da regularidade. Mas é possível pontuar essa presença
da escrita tão arraigada ao discernível da língua em relação ao ensino? Apontar
gestos dessa presença é a proposta do item seguinte, perseguindo as formas de
retorno da escrita através das publicações dirigidas aos professores, pois,
certamente serão um testemunho da época em que surgiram.
Para esse fim, as publicações mais representativas 3de cada década
(abordando os últimos trinta anos) serão chamadas a testemunhar sobre o ensino
de língua na escola.
A questão de fundo, no entanto, é saber como a escrita situa-se dentro das
teorias
linguísticas
apresentadas
aos
professores,
posição
que,
consequentemente, repercutirá no ensino da escrita em sala de aula.
3 As teorias linguísticas e a escrita
Entre os anos 70 e 80 o ensino volta-se para as teorias da comunicação,
prioriza o uso e vê a língua como um instrumento de comunicação transparente,
afastando-se gradativamente do ensino da gramática. A discussão sobre o
ensino ou não de Gramática na escola é tema de grande interesse na época. Por
conta disso, textos não literários, do dia a dia, passam a fazer parte dos livros
didáticos; a linguagem oral torna-se parte das aulas. A visão instrumental domina
a concepção de língua como veículo de comunicação.
Até a década de 70, o estudo centrado no ensino da Gramática priorizava
a escrita. Com a mudança de enfoque, as atenções voltadas para a oralidade, o
2
Olson (1995) refere-se à cultura escrita em âmbito mais geral do que apenas a instrução, em
sentido restrito, como à capacidade de ler e escrever. Tomo emprestada a condição de
armazenamento, característica da cultura escrita, estendendo-a para o processo de escrita dentro
da escola.
3
Evidentemente, essa escolha irá retratar uma visão particular em relação à escolha das obras
citadas. No entanto, não deixa de ser um testemunho em relação à importância da publicação.
36
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
trabalho em sala de aula buscou atividades diferenciadas do que se fazia até
então. Em vista disso, surge no Brasil, nos anos 80, uma gama de autores
dedicados a estudar a relação que se estabelece entre a linguística e o ensino de
língua materna em sala de aula. Tais trabalhos repercutem até hoje entre os
professores, refletindo a delicada situação que se abateu sobre o ensino,
sugerindo que muitas questões (talvez a maioria delas) ainda permanecem
insolúveis 4.
De certa forma, algumas previsões foram lançadas bem antes, em 1973,
com Lingüística e ensino do Português (GENOUVRIER; PEYTARD), e
alcançaram os dias de hoje. Trata-se de uma obra singular: precursora de uma
discussão que perduraria muitas décadas, traduzida do francês para o português,
tinha como objetivo atender às necessidades do professor português e brasileiro
e levou a reformulações frequentes e radicais do original francês, o princípio
básico foi o de utilizar o arcabouço conceitual do texto francês estofando-o com
material luso-brasileiro.
A posição de vanguarda defendida pelos autores abre caminho para as
novas discussões a respeito da adoção de textos literários consagrados como
modelo do bem escrever: cremos que bons textos não são apenas os do
passado; cremos que a língua escrita vive também nas cartas, nas revistas, nos
jornais, e que uma língua existe, antes de mais nada, oralmente (1973, p.146). Já
afirmavam que não deveria haver primazia da língua escrita em relação à oral:
duas faces da mesma moeda, interdependentes entre si. A língua escrita é vista
como transcrição gráfica, como a materialização da oralidade. Os autores
acreditam que o aprendizado da escrita, a partir da entrada para a escola, é o
momento em que a criança passará a conhecer verdadeiramente a língua: A
primeira distância experimentada e vivida em relação à língua refere-se, portanto
4
Ilustrando esse período vale lembrar as palavras de Ataliba Castilho ao apresentar o livro de
Perini (2000):Uma aula de gramática, ou mesmo um livro de gramática, funcionam mais ou menos
assim: o professor diz lá umas coisas em que você não crê, os alunos piscam, piscam, e fingem
que acreditam, e tudo fica na mesma. Para que então aprender gramática? Porque cai no
vestibular. Mas haveria alguma razão verdadeira para tudo isso? Ah, bom... As coisas estavam
nesse pé quando, em 1985, apareceram três professores universitários e seus livros
maravilhosos. Sem nenhum acordo prévio, usando argumentos não coincidentes, eles semearam
a desconfiança quanto às certezas da gramática escolar: Rodolfo Ilari, Celso Pedro Luft e Mário
Perini.
Teorias do Discurso e Ensino
37
ao contacto da criança com a escrita. É isso que caracteriza sua situação de
aluno (p.20).
É possível perceber que o ponto de vista defendido pelos autores reflete o
momento de mudança por que passam os estudos linguísticos no Brasil. Nota-se
a tendência da valorização da expressão oral relegada ao segundo plano devido
aos estudos gramaticais, e o professor é instigado a recorrer à linguística para
poder realizar a passagem além das aparências gráficas (p. 45).
Vê-se que a escrita é a exterioridade, representando um empecilho para
se chegar até a verdadeira essência: a fala como oralidade. Tal caracterização da
escrita testemunha a concepção de escrita como simples reprodução do som.
Seguindo essa discussão, Ilari (1984-1986) 5, em Lingüística e ensino da
língua portuguesa, apresenta a coletânea de seis artigos que procuram
responder a uma mesma pergunta: pode a Linguística contribuir para o
aperfeiçoamento do ensino da língua materna?
Considerando algumas orientações teóricas presentes em nosso ensino, o
autor tenta avaliar a assimilação de ideias provenientes da linguística e suas
consequências práticas para o ensino: a primazia da expressão falada sobre a
escrita, proporcionando o uso de textos antes pouco valorizados por não serem
literários. E é pela via da redação que a escrita aparece como a expressão de um
exercício escolar tendo como função escrever textos.
Ilari propõe uma perspectiva formal mais ampla que a gramática para
pensar a redação escolar: a teoria do texto ou teoria do discurso. A partir daí,
apresenta objetivos para a aula de redação, priorizando a expressão escrita
como uma oportunidade de explorar a variabilidade da língua.
É preciso dizer que essa forma de ver a escrita como “expressão escrita”
manifestada através de textos não chega a colocar em questão a relação de
submissão ou não da escrita em relação à oralidade. O interesse passa a ser o
texto tomado como unidade essencialmente comunicativa da língua; ponto de
5
Será citada entre parêntese a data da primeira edição seguida da data da publicação em uso.
38
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
vista assumido pelas Teorias do Texto e pela Linguística Textual6- termos nem
sempre sinônimos. Nessa visão,
o texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que
forma um todo significativo, independente de sua extensão. Tratase, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo
comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto de
relações responsáveis pela tessitura do texto – os critérios ou
padrões de textualidade, entre os quais merecem destaque
especial a coesão e a coerência. (Fávero e Koch;1988, p.25)
A escrita é, portanto, tomada como a expressão do domínio das estruturas
linguísticas, adquiridas através do exercício escrito: a produção de texto.
Exercício que passou a ser sinônimo de escrita na escola, tornando-se o ponto
centralizador das aulas de língua materna, buscando instrumentalizar o aluno
para que seja capaz de fazer uso das operações que a língua oferece.
Vê-se que a escrita é um instrumento de que se pode lançar mão com o
intuito de comunicar através de textos; nesse sentido, a escrita continua a ser
entendida como exterioridade, reforçando a concepção de escrita apenas como
representação. Importante salientar que essa forma de tomar a escrita passou a
fazer parte do ensino de língua, sendo acusada de utilizar “o texto como pretexto”
para ensinar nomenclatura.
Assim, é possível vislumbrar uma visão “textual” nas publicações que
seguiram nos anos 80, transformando o texto como o lugar em que o aluno
mostra o domínio gramatical da língua e depois da “subjetividade”.
Como podemos ver na obra de Celso Pedro Luft – professor de português
e gramático – em Língua e Liberdade (1985), a questão levantada pelo autor é a
maneira de se ensinar a língua materna, a postura opressora de um ensino cuja
obsessão gramaticalista acaba por traduzir uma visão distorcida de que ensinar
uma língua está relacionado com a correção da escrita.
6
A linguística textual começou a desenvolver-se na década de 60, na Europa, em especial, na
Alemanha. Marcuschi (1983, p.12) assim a define: proponho que se veja a Lingüística Textual,
mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações lingüísticas e cognitivas
reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos
escritos ou orais [...] Em suma, a lingüística Textual trata o texto como um ato de comunicação
unificado num complexo universo de ações humanas.
Teorias do Discurso e Ensino
39
Luft defende que falar e escrever bem tem a ver com a gramática natural –
sistema de regras que os falantes interiorizam ouvindo e falando, um dom que
qualquer indivíduo adquire por volta dos cinco ou seis anos, acessível a todas as
pessoas normais7. Significa dizer que nascemos programados para falar e que
toda pessoa sabe a língua que fala, assim, aprender a língua é evolução natural,
como crescer (p. 62). Esta gramática natural é uma gramática da fala, um sistema
de regras para a comunicação oral, que nada tem a ver com a correção escrita,
pois a verdadeira língua é a fala (p. 44). A escrita é vista como uma sinalização
secundária que pode mesmo nem ocorrer, como é o caso dos analfabetos e dos
povos ágrafos. Luft sustenta que a escola tradicional volta-se prioritariamente a
atividades relacionadas com a leitura e a escrita, deixando de lado o ouvir e o
falar, já que letras e outros sinais servem apenas para representar o que alguém
falou, o que vai ou poderia falar (p.44). Dessa forma, o ensino deve priorizar a
gramática natural da fala, e esta, por sua vez, deve sempre preceder,
fundamentar e controlar a gramática artificial da escrita (p.44).
A posição de Luft traz de volta a questão relativa à escrita como
representação da fala. Reafirma-se a antiga antinomia entre fala e escrita, entre
naturalidade e exterioridade, para a partir daí poder ser discutido o ensino da
gramática. A aproximação entre escrita e gramática prescritiva reforça a
concepção de que a escrita é formalidade, regra artificial, em oposição à
gramática natural da fala, que, por ser verdadeira, deve ser priorizada. O ensino
dessa gramática artificial escrita se dá na escola, lugar da regularização. É, pois,
sobre o ensino de língua na escola que discute Possenti.
Em seu livro, Por que (não) ensinar gramática na escola (1996-2000), Sírio
Possenti expõe questões relativas à contribuição da linguística para o ensino de
língua, afirmando que a escola não ensina língua materna, mas língua padrão.
A justificativa para o ensino do português padrão por parte da escola
relaciona-se com a aquisição do domínio da escrita e da leitura de textos
variados, excetuando-se a produção de textos literários, já que literatos
7
A argumentação de Luft ancora-se em uma teoria estruturalista e gerativista. Significa dizer por
este viés que a língua é vista como internalizada, dotando o falante de um saber intuitivo e de
uma gramática natural. O funcionamento efetivo da língua é assimilado pela exposição a modelos
e a treinamento intensivo, isto é, pela prática. Quanto à escrita, Luft refere uma natural terapia da
escrita (p.72) como decorrência da fala, isto é, escrever se aprende escrevendo.
40
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
certamente não se fazem nos bancos escolares; o máximo que se pode esperar
é que eles aí não se percam (p.20). O importante é que o aluno egresso da
escola seja capaz de escrever textos com naturalidade. Mas para que esse grau
de utilização da língua escrita possa ser atingido é necessário escrever
constantemente, inclusive na própria sala de aula. Possenti sugere que a escola
“imite” as atividades linguísticas da vida: se nas ruas, nas casas, na vida, o que
se faz é falar e ouvir; na escola, as práticas mais relevantes serão escrever e ler.
Desse modo, como aprendemos a falar falando e ouvindo, aprenderemos a
escrever escrevendo e lendo, e sendo corrigidos, e reescrevendo, e tendo nossos
textos lidos e comentados muitas vezes, com uma freqüência semelhante à
freqüência da fala e das correções da fala (p.48). A escrita é, portanto, um
trabalho, assim como falar e ler também são trabalhos, e a escola é um lugar de
trabalho.
Ainda que não seja apenas redação, a escrita é vista como a
materialização do texto, e o autor lembra que é nesse nível, o do texto, que
residem os principais problemas escolares, cuja tentativa de solução se dá na
aproximação entre escrita e fala, tentando vencer a distância que as separa.
Também por esse viés a escola é lugar de regularidades, onde uma escrita
própria desse regular deve ser ensinada.
E é também sob esse viés, a menção do texto, que podemos aproximar a
obra de Possenti a outra publicação contemporânea: O texto na sala de aula
(1984-2000) de João Wanderley Geraldi (org.).
No início dos anos 80, surge a coletânea cujos artigos abordam aspectos
pedagógicos e sociais relativos à área do ensino, sempre com vistas à sala de
aula. Um propósito interliga os textos que compõem essa publicação: todos têm
como objetivo principal um (re) dimensionamento das atividades de sala de aula
e pretendem servir, em conjunto, como subsídio teórico-prático. Artigos como:
Sobre o ensino de português na escola (Sírio Possenti), Concepções de
linguagem e ensino de português (Geraldi), Gramática e política (Sírio Possenti),
Em terra de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção de textos
escolares) de Luiz Percival de Leme Britto, entre outros, tornaram-se leitura
obrigatória para os professores.
Teorias do Discurso e Ensino
41
Antes de oferecer sugestões para o desenvolvimento de atividades com a
produção de textos e a avaliação, Geraldi aponta a necessidade de levarmos em
consideração que uma diferente concepção de linguagem constrói não só uma
nova metodologia, mas principalmente um “novo conteúdo” de ensino (2000,
p.45). A escrita é vista através da produção de textos na escola, e esta, por sua
vez, deve oportunizar ao aluno o domínio da variedade padrão como uma forma
de acesso a bens que são de todos.
Ao entender linguagem como interação, Geraldi sustenta que é preciso –
enquanto professor – mudar de atitude em relação ao aluno, para que possamos
nos tornar interlocutores e sermos parceiros reais, devolvendo ao aluno o direito
à palavra - e na nossa sociedade isto inclui o direito à palavra escrita (p.131). Tal
afirmação sugere a presença de um sujeito que possa ser autor do seu dizer.
Já no início dos anos noventa, é ainda João Wanderley Geraldi quem
apresenta Portos de Passagem (1991-1993), livro em que o autor contrapõe à
prática tradicional do ensino de conteúdos gramaticais uma prática baseada em
textos enquanto uma alternativa cujas preocupações fundamentais fossem as
operações de construção de textos. Geraldi defende a atividade de produção de
textos e de análise linguística como produtores de conhecimento e não meros
reprodutores:
A busca do já produzido não faz sentido quando a reflexão que a
sustenta é sonegada a quem apreende. Esta busca deve ser
resultado de perguntas e de reflexões, e não de mero
conhecimento do conhecido (1993:220).
A construção de sujeitos, e da própria linguagem, tem lugar em um espaço
em que a interação é fundamental, sustentado por uma concepção de linguagem
enquanto atividade constitutiva, coletiva, histórica e social (p.XIII); deixando clara
a opção do autor por uma teoria da linguagem que a considere em sua dimensão
discursiva. A produção de textos é o lugar onde a escrita se efetiva, sendo
(incluindo a oralidade) o centro de todo o processo de ensino aprendizagem da
língua, visto que é no texto que a língua se revela em sua totalidade. Para
Geraldi, há um sujeito que produz discursos, concretizados em textos, um sujeito
42
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
comprometido com sua palavra, ainda que vinculado a uma formação discursiva,
dentro da qual nada de novo se diria e apenas se repetiria o já dito (p.135).
É possível afirmar que Geraldi trata de enunciação, pois mobiliza conceitos
centrais dessa teoria como sujeito e enunciação, dentro de uma regularidade. A
relação de que trata o autor é entre o texto e o sujeito que o escreve, buscando
as qualidades dessa escrita. A visão de enunciação em que procuro inscrever a
escrita entende sujeito e língua como indissociáveis, e a noção de escrita como
sendo constitutiva do sujeito.
Nesse momento, além de uma visão textual, há um outro elemento a
intervir: o sujeito. No entanto, segundo Geraldi, é preciso afastar qualquer
interpretação que tome o sujeito como a fonte dos sentidos (p.16). Mas como
entender esse sujeito que não atribui sentidos? Como é possível sua presença no
ensino?
Não é por acaso que o retorno do sujeito (do que diz do regular, apenas)
se dê justamente pela via escolar, lugar da regularidade e normatização, lugar,
principalmente, do saber; portanto, do conhecimento. Em contrapartida, a escola
sustenta a necessidade de o aluno ser o autor de seu texto, garantindo à escrita
o lugar, por excelência, de instauração da subjetividade na linguagem. Tal
posicionamento reflete-se nas afirmações do tipo o aluno precisa se tornar sujeito
de seu texto, ou a escrita é o lugar de emergência da subjetividade, ou ainda, os
alunos escrevem sempre igual, queixas que demonstram a insatisfação por parte
dos professores em relação ao escrever em sala de aula.
Parece que existe certa vagueza de tratamento desse conceito de
subjetividade, oscilando entre uma concepção ampla – que poderia ser
parafraseada por algo como manifestação linguisticamente marcada daquele que
escreve – até uma concepção mais restrita próxima de algo como qualidade
estilística superior. Nesse sentido, não é exagero apontar essa busca pela
subjetividade como uma condição perseguida nos textos escritos na escola,
atributo responsável pelas mais variadas tentativas de ensinar o aluno escrever
para esse ou aquele propósito. Significa que para a escola, escrever é
principalmente um ato utilitário. Se não é verdade, como entender o
direcionamento das aulas de língua materna para a construção de um texto que
contemple as exigências do concurso vestibular?
Teorias do Discurso e Ensino
43
Há sempre a necessidade de escrever para algum fim, para mostrar
conhecimento, para aferir um domínio de conteúdo apreendido durante a
trajetória escolar. Esse é o caminho trilhado pelo texto escrito em aula, e
consequentemente pela redação de vestibular, tomado como exemplo de bem
escrever.
Os efeitos dessa visão não podem ser minimizados. Por conta desse
entendimento, escrever bem significa escrever conforme as regras norteadoras
desse texto ideal. Ideal em forma e também em conteúdo, separação que abriu a
discussão em dois pólos distintos: a importância ou não da presença da redação
no ensino médio.
Por conta disso, praticamente dois momentos recebem a atenção nas
aulas de língua portuguesa: a gramática normativa e o ensino de redação. Creio
não ser exagero afirmar que há submissão do ensino médio em relação ao
vestibular, ou seja, não é difícil suspeitar da existência de uma estreita relação
entre o que é pedido no vestibular e o que é ensinado em sala de aula.
Lembremos que quando a redação não mais constou na prova de vestibular, em
1970, também sumiu da sala de aula no ensino médio 8. Nessa época, jornais e
revistas apontavam o ensino de língua portuguesa nas escolas como decadente
e insatisfatório; o Conselho Federal de Educação emitiu parecer sobre o assunto;
educadores indicavam a presença de grave crise no ensino da língua. Enfim, em
meio à grita generalizada, o uso de provas de múltipla escolha e a ausência de
redação no concurso vestibular foram apontados como responsáveis pelo
fracasso dos jovens no uso do Português escrito. Em resposta, a prova de
redação surgiu como medida de correção para a crise da língua nacional.
Demasiada responsabilidade atribuída ao ensino médio e particularmente ao
ensino de redação, ainda mais em se tratando de um gênero específico de texto,
com um único fim que não extrapola o âmbito do concurso vestibular.
Mas entre os muros da escola o embate é outro. É na escola que o aluno
aprende que escrever bem seria aproximar-se de modelos pré-estabelecidos,
8
A esse respeito há duas posições. Magda Soares (1978) diz que o raciocínio segundo o qual a
inclusão da redação no concurso vestibular garante que os alunos aprenderão a redigir é falso e
simplista, pois não garante que haverá um melhor desempenho linguístico por parte dos alunos.
Já, Maria Tereza Rocco (1995) considera ter havido melhoria nos textos produzidos após a
introdução da prova de redação.
44
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
fugindo de uma escrita reveladora de conflitos, fracassos, abandonos. Há um
aprendizado
de
não
envolvimento,
de
falsificação
das
emoções
e
consequentemente de não reflexão sobre a própria história. Nesse sentido, não é
difícil perceber que no cerne do problema está a escola que ajudou a construir
uma imagem da escrita como formalidade, resultado de um treinamento para
escrever na escola e fora dela.
Para os alunos, a língua escrita é encarada como capaz de significar por si
só, em nada semelhante à língua falada no dia a dia, capaz de produzir todos os
sentidos desejados. O texto escrito em sala de aula, para a escola, não pretende
incluir-se na discussão do mundo real sobre o tema em questão; tem seu fim
determinado no próprio momento da escrita: não nasceu para significar, para
somar-se a uma discussão, para dizer da forma como seu autor encara o mundo.
Na verdade, passa à margem do diálogo com outros textos do mundo lá fora.
Discussão que de tão ampla excede os limites dessa reflexão, ainda que
toque questões importantes em relação ao ensino, à escrita e ao sujeito 9.
O que é possível constatar é que a escrita “da escola”, tomada, repito,
como a expressão do domínio das estruturas linguísticas, como regularidade traz
contrabandeado um sujeito que emerge, no dizer da escola, da produção textual.
Mas o que produz esse sujeito se não conhecimento? A subjetividade que a
escola busca encontrar nos textos de seus alunos é apenas uma argumentação
que denote o domínio do conteúdo apreendido. Trata-se, pois, de um retorno
imaginário. A bem da verdade, o sujeito que retornou não é o mesmo que foi
excluído pela linguística; isto é, o que retorna sempre esteve presente na escola:
o ideal de ciência 10. Ao que parece, a escola cumpre seu papel regularizador,
enquadrando sob seus moldes escrita e sujeito.
9
Em (Endruweit;2000), constato que as redações consideradas pela banca como sendo nota dez
são as que mais se aproximam de um modelo formal vigente na escola. Três fatores contribuíram
para que a redação seja assim entendida: o momento histórico em que o concurso surgiu no
Brasil, a pouca valorização do ensino médio por entendê-lo apenas como uma ponte entre a
universidade e a presença da redação no concurso como sendo responsável pela qualidade do
ensino de língua na escola.
10
A própria ausência de teorização sobre o sujeito pela linguística estrutural possibilita esse
“retorno imaginário”. Se há um lugar vazio deixado pelo sujeito, é legítimo seu preenchimento. Foi
o que fez a escola, ainda que tal retorno se desse de forma parcial. Essa questão será retomada
no terceiro capítulo.
Teorias do Discurso e Ensino
45
A escrita presente na escola, na tentativa de aproximar-se da
cientificidade, não esqueçamos disso, acaba por tornar-se um poderoso reforço
entre as desigualdades sociais, de certa forma, reeditando as crenças de
supremacia de quem domina a escrita. Nesse sentido, a escrita presente na
escola passa a ser relacionada com a norma-padrão e, em alguns momentos,
chegam a ser tomadas como sinônimos.
4 O que é escrever na escola?
O que se pode depreender é que a escrita ocupa papel de destaque em
sala de aula, mais valorizado em relação à fala, e também por isso mais sujeito
ao treinamento. Ainda assim, o trabalho escrito seria uma decorrência do oral,
este sim, entendido como um processo natural. É possível pensar que decorrente
dessa visão de escrita, alguns livros didáticos buscam desenvolver a criatividade
do aluno através de exercícios de fluência e desinibição do ato de escrever,
estímulo para escrever e, por fim, criação de um texto 11.
A expressão escrita pode também ser entendida como um modo de
interação entre falante e ouvinte, em uma relação intersubjetiva construída no
processo de enunciação. A linguagem - fala e escrita - é vista como um trabalho
do sujeito com a língua. Geraldi (1993, p.183) afirma que ter acesso ao mundo da
escrita é poder escolher as estratégias de dizer, mais do que definir como se diz.
O acesso ao mundo da escrita é também um acesso a estas
estratégias que resultam de relações interlocutivas do passado,
de seus objetivos (razões para dizer) e das imagens de
interlocutores com que aqueles que escreveram pretenderam um
certo tipo de relação. As estratégias que se escolhem revelam,
em verdade, esta história porque delas são resultado.
Pelo que se pode notar, a intersubjetividade apontada por Geraldi diz
respeito às relações de interlocução instituídas entre os locutores envolvidos no
processo da escrita, esta, por sua vez, reveladora dos caminhos de tal processo.
11
O exercício de fluência se propõe a levar o aluno a “soltar a imaginação”. Semelhante processo
é a “explosão de ideias” em que o aluno deve registrar no papel as ideias que lhe vierem à mente,
sem censura prévia, apenas associando-as.
46
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Como geralmente acontece, a proposta dos livros didáticos inicia por um
texto para leitura, buscando a interlocução com o aluno para que este “desperte”
para a necessidade da escrita a partir de perguntas prévias 12. Independente da
teorização a que se filiem, as lições destinadas ao uso em sala de aula, em sua
maioria, extrapolam os limites estritos de uma única teoria. Desse modo, a
presença de um artigo, resenha ou qualquer outra manifestação escrita se junta a
exercícios destinados ao manejo do vocabulário.
A escola é, portanto, o lugar onde o aluno entra em contato com uma visão
de escrita instrumental, como formalidade da qual ele pode lançar mão para
significar – pensamento e/ou fala – ou representar. Muito mais significativo do
que a constatação da presença constante da escrita na escola é a consciência de
que essa presença foi apenas a sombra de um fenômeno maior: uma escrita
além da forma.
Mas de que escrita falamos, afinal? Vimos que a escola é apenas
aparentemente “o mundo da escrita”, apresentando unicamente um lado do
fenômeno, e de certo modo, ratificando a ideia de escrita como representante da
fala. A escrita como produto resulta em um ensino centrado na produção de
texto, supervalorizando os aspectos formais, as questões situadas na superfície
do
texto
(caligrafia,
margem,
distribuição
dos
parágrafos,
aspectos
organizacionais, por exemplo), superando até mesmo a preocupação com a
correção gramatical13.
Na escola é preciso que o aluno conheça para que possa passar suas
conclusões para o papel; não há a possibilidade de construção durante o
momento em que escreve. Mesmo que seja levado em consideração o caráter
dialógico para a produção de texto em sala de aula, fica-se sempre dentro da
esfera formal, de uma escrita instrumental, alheia à mão que escreve tanto
quanto distante do olhar que a recebe.
12
Geraldi (1993, p.170) critica a presença da leitura em sala de aula como mero recurso didático
e não como um meio para a produção de conhecimento: Não há perguntas prévias para se ler. Há
perguntas que se fazem porque se leu.
13
Considerações baseadas em estudo realizado por Garcez 1998.
Teorias do Discurso e Ensino
47
5 Considerações finais
As obras apresentadas, principalmente as dos anos 70 e 80, entendem a
língua como um instrumento de comunicação. A discussão centra-se nos
métodos de melhorar essa função comunicativa, e com o surgimento dos estudos
linguísticos no Brasil, a questão preponderante passou a ser a validade ou não
do estudo gramatical nas aulas de língua portuguesa. A escrita entra como um
subproduto dessas discussões, que de um modo ou de outro, sempre estivera
presente na escola: ora como objeto da Gramática ou Filologia, ora como um
instrumento da comunicação escrita e da interação pessoal. Certo é que mesmo
não sendo o centro das atenções das discussões e das pesquisas, a escrita
conquistou um lugar cativo no ensino e parece ter se tornado uma questão à
parte das mudanças de rumo do ensino de língua. A presença da escrita em sala
de aula impõe sua inclusão nas publicações destinadas aos professores, criando
um caminho paralelo em meio às reflexões linguísticas, pois, é praticamente
impossível passar ao largo das questões da escrita quando se trata de ensino.
Mesmo sendo relegada a um segundo plano, em relação à oralidade, a escrita
retorna sempre, forçando sua passagem e consolidando seu lugar na escola.
Se for certo o retorno da escrita, visto o lugar ocupado por ela no ensino
de língua, o que não está claro diz respeito à qualidade dessa presença que
chega mesmo a ser ausência. Ou seja, estar presente nas atividades de aula não
garantiu que a escrita deixasse de ser entendida como um modelo de
cientificidade, distante de uma visão enunciativa, muito pelo contrário, sua
presença no ensino reforçou a distância entre escrita e subjetividade. Há,
portanto, duas escritas: a que retornou, ou se manteve, via ensino e a “outra
face”, obscura, a que diz do sujeito, ainda oculta.
Ao enfatizar a relação entre ensino de língua e escrita, busquei verificar
como ela retornou no âmbito da escolarização. Tal relação, dentro da instituição
escolar, creditou à escrita o modelo de cientificidade, garantindo sua presença
por conta da sua aproximação com a positivação requerida pelo caráter
institucional da escola. Pelo mesmo caminho retornam escrita e sujeito: pela trilha
do conhecimento. Significa que para a escola, escrever é principalmente um ato
utilitário, pois a subjetividade que a escola busca encontrar nos textos dos alunos
48
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
é, sobretudo, uma argumentação que denote o domínio do conteúdo aprendido.
Não é demais repetir: o sujeito que retornou não é o mesmo que foi excluído pela
linguística; o que retorna à linguística sempre esteve presente na escola: o ideal
de ciência.
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49
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Pesquisa. nº 24. São Paulo: Carlos Chagas, 1978.
50
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
PELA INSERÇÃO DO DISCURSO NA ESCOLA
Sônia Lichtenberg*
1 Introdução
Neste texto, apresentamos a Teoria da Enunciação proposta por Émile
Benveniste, com o objetivo de oportunizar aos professores de Português que
atuam no ensino fundamental, o conhecimento dos fundamentos dessa teoria.
Nosso intuito não é propor a substituição do que os professores vêm fazendo,
nem sugerir procedimentos ou estratégias de ensino-aprendizagem. Queremos
apenas instrumentalizar os professores para que, de posse de certos
pressupostos teóricos, promovam reflexões sobre o uso da língua, de modo a
qualificar o seu trabalho.
Pesquisa recente realizada por Moura Neves aponta o estudo da
gramática como opção feita pelos professores do ensino fundamental e do ensino
médio. 1 O fato de a gramática ser objeto de estudos nas escolas é motivo,
atualmente, de muitas críticas, também como consequência de inúmeros
questionamentos que, nos últimos anos, são feitos à gramática. Sobre esse
assunto existe vasta bibliografia; cabe aos professores a ela recorrerem e
formarem seu próprio juízo.
Apesar das críticas ou porque há críticas a considerar, os ensinamentos da
gramática podem ser tomados como base para outros que se façam necessários,
constituindo-se, assim, a sala de aula em um espaço interdisciplinar e de reflexão
sobre a língua.
A partir da realidade que a pesquisa de Moura Neves revela,
apresentamos a visão de língua que um estudo que toma a gramática como base
possibilita. Acrescentamos, a seguir, a Teoria da Enunciação de Benveniste
como uma leitura em que o estudo da palavra e da frase – noções que são
*
Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo PPG-Letras/UFRGS.
Esta pesquisa, que é meritória devido ao fato de trabalhos neste sentido serem raros, foi
publicada em Gramática na Escola, obra que citamos em Referências Bibliográficas.
1
encontradas nas gramáticas − sob um enfoque singular, mediante uma rede de
outras noções que se vão estabelecendo, esboça o quadro da enunciação, que
releva a língua em uso.
Porque nossa atenção aqui se volta para ensino-aprendizagem, trazemos,
a título de exemplos, algumas situações nas quais alunos e professores, ao
pensarem a língua, identificam princípios que consideram a enunciação, tais
como Benveniste os concebeu. Com estes exemplos, queremos demonstrar que
os conhecimentos oriundos da gramática, aliados a outros, ancorados em
estudos linguísticos, permitem perceber os fenômenos linguísticos sob ponto de
vista diverso daquele que se ancora exclusivamente em estudos gramaticais,
propiciando aos que realizam uma atividade reflexiva tornarem-se sujeitos,
também, da sua aprendizagem.
2 A língua estudada na escola
Falar sobre o ensino do Português é falar de questões relativas ao
tratamento da gramática na escola. Isso não significa que este seja ou deva ser o
único objeto de estudo nas aulas de Português, porém isto pressupõe que é, a
partir do que a gramática apresenta, que, na escola, se promova uma reflexão
sobre os fenômenos da língua.
Propor outro suporte para este trabalho, representa negar um dado da
realidade: na escola, os estudos sobre a Língua Portuguesa se embasam no que
é apresentado pela gramática.
Em Gramática na Escola, cuja primeira edição data de 1990, Moura Neves
descreve pesquisa realizada em quatro cidades do Estado de São Paulo, com
170 professores de Língua Portuguesa de 1º e 2º graus. O dado inicial obtido é
“que todos os professores, de um modo ou de outro, ‘ensinam’ gramática” (2003,
p. 9), sendo que a maioria dos professores consultados relaciona este
conhecimento a “bom” desempenho linguístico – falar e escrever “bem”: essa é a
meta desse ensino, cuja aprendizagem futuramente traduzir-se-á, segundo os
mesmos professores, em obtenção de sucesso na vida.
52
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
A fim de colher informações sobre a natureza do trabalho realizado nas
aulas, foi solicitada aos professores a formulação de exercícios que se
caracterizassem como os mais usuais quanto à aplicação. Pelas respostas
apresentadas, verificou-se uma ênfase significativa no que se refere ao estudo
das classes gramaticais e das funções sintáticas.
Dos professores pesquisados, cerca de 66% afirmaram, em respostas a
questionários, consultar manuais de gramática. Dos manuais citados, segundo
Moura Neves, 50% se incluem entre obras bem tradicionais, e os outros são
livros didáticos, porém, por ocasião de entrevistas, ficou evidenciado que “os
professores, na quase totalidade, restringem sua fonte de informações ao livro
didático em uso” (2003, p. 22).
O fato de o material de referência dos professores ser o livro didático, não
interfere na natureza do que é ensinado e na finalidade deste ensino, pois, via de
regra, os livros didáticos reproduzem as informações fornecidas por gramáticas
de prestígio, mantendo, inclusive, a ordem de apresentação dos conteúdos.
Muitas dessas publicações levam como título “Gramática”, e sua “adequação”
aos que se iniciam nesses estudos se faz pelo acréscimo de recursos gráficos
e/ou exercícios, quando não de textos, atividades de interpretação desses textos
e propostas de redação, atendendo às tarefas que a escola (se) impõe: trabalhar
com leitura e interpretação, redação e gramática.
Nesse contexto, o que é relevante para a discussão que empreendemos é
o dado colhido por Moura Neves: nas aulas de Português, estuda-se a gramática.
Acresce-se a isto que, dessa teoria, destacam-se dois aspectos: a organização
de classes de palavras e as funções que as palavras desempenham na frase,
segundo relações que estabelecem entre si, ou que se dão entre os termos da
frase nos quais estão contidas. Com esse estudo visa-se ao “bom” desempenho
no uso da língua.
Diante disto, antes de dar prosseguimento a essa exposição de ideias,
esclarecemos que, como o ensino da gramática é algo que se impõe,
procuraremos identificar, nesta realidade, alguns aspectos que o justifiquem e, ao
mesmo tempo, lacunas as quais possibilitem a inserção de conhecimentos
recentes, advindos da Linguística.
Teorias do Discurso e Ensino
53
3 A abrangência da língua estudada na escola
Destacamos como importante para a contribuição a que nos propomos, a
afirmação feita pelos professores, relativa ao estudo da gramática na escola, nos
níveis fundamental e médio. Necessitamos, porém, para que tal contribuição se
efetive, determinar que aspectos dessa teoria são recortados pelos professores
ao trabalharem classes gramaticais e funções sintáticas em suas aulas, ou seja,
o que do que é tratado pela gramática o ensino do Português na escola abrange?
Esta questão nos remete a outra: de que gramática nos falam os
professores, se, sob esse rótulo, se inscreve uma vasta gama de estudos cujos
objetivos variam e são, vez por outra, contraditórios?
Luft, em sua Moderna Gramática Brasileira, responde a esta questão,
opondo, primeiramente, a gramática natural – o saber de quem usa a língua – à
gramática artificial − a descrição desse saber e o registro dessa descrição – ou
Gramática.
Em relação à Gramática – estudos sobre o saber linguístico –, Luft
identifica dois tipos: a tradicional, de herança greco-latina, e a moderna, advinda
da Linguística.
Sobre a tradicional, este autor ainda diz que:
A Gramática tradicional tem tido duas orientações: normativa e
descritiva, conforme a preocupação dominante de: (a) impor as
regras de um padrão lingüístico havido como modelar (...), ou (b)
expor os fatos da linguagem. Daí títulos como: Gramática
Normativa / Gramática Descritiva ou Expositiva (1979, p. 6). 2
Em relação à moderna, Luft, que edita este livro pela primeira vez em
1976, aponta a estrutural e a transformacional, como “duas vertentes principais”.
Bechara, em 1999, na Moderna Gramática Portuguesa, também distingue
tipos de gramática: a descritiva e a normativa.
2
Ao lado desta distinção, Luft acrescenta que:
Em todo o caso, a Gramática tradicional sempre foi mais normativa que descritiva, por falta de
compreensão exata do fenômeno da linguagem e de uma técnica apropriada à descrição (1979,
p. 6).
54
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
A gramática descritiva, de acordo com Bechara, “é uma disciplina científica
que registra e descreve (...) um sistema lingüístico em todos os seus aspectos
(...)” (p.52). Nessa classificação, insere a estrutural, a funcional, a estrutural e
funcional, a contrastiva, a distribucional, a gerativa, a transformacional, a
estratificacional, a de dependências, a de valências, a de usos, etc.
À gramática normativa este autor atribui uma finalidade pedagógica. A esta
gramática cumpre “elencar os fatos recomendados como modelares da
exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais de
convívio social” (p. 52).
Em 2000, Cavaliere, em Fonologia e Morfologia na Gramática Científica
Brasileira, faz um estudo sobre os conceitos de gramática vigentes, do qual
extrairemos os termos sob os quais as gramáticas são classificadas, respeitando,
assim, o procedimento adotado pelos autores anteriormente citados, e
apresentaremos suas características principais.
Gramática descritiva é a que faz uma exposição metódica dos fatos da
língua ou, considerando-se o conceito saussuriano, a que descreve o sistema
linguístico em uso. Por não ser discriminatória, obriga aquele que dela se ocupa,
a delimitar seu campo de atuação, dada a impossibilidade de se estudarem todas
as variantes de uma língua, nas suas manifestações oral e escrita. Caso tenha
objetivo pedagógico, selecionará os usos que o ensino privilegia.
A gramática que tem origem nos estudos clássicos e que visa à prescrição
de um comportamento linguístico é chamada de normativa. Baseia-se na
autoridade de quem prescreve ou na de escritores que gozam de prestígio,
apresentando o que se considera correto, sem que para isto se apresentem
justificativas, mesmo que seus preceitos contrariem o que, no momento, vigore
como uso, pois não há preocupação com um estudo sistemático dos fatos
linguísticos, tal como o fazem os trabalhos descritivos.
A gramática tradicional, no mais das vezes confundida com a gramática
normativa, é de caráter descritivo-normativo porque é especializada na descrição
de um uso, tido como o que se rege pela norma culta, a qual é de domínio dos
falantes escolarizados, que a utilizam principalmente na escrita. Sua finalidade
não é propriamente a prescrição visto que está baseada na observação de fatos
Teorias do Discurso e Ensino
55
linguísticos os quais não são tão constantemente atualizados, devido à
incapacidade de se estabelecer, com certa frequência, o que vige neste uso. 3
Assim
diferenciadas
as
gramáticas,
mesmo
que
as
propostas
apresentadas por Luft, Bechara e Cavaliere difiram em certos aspectos, pode-se
dizer que a gramática estudada na escola não é a moderna, citada pelo primeiro,
nem a descritiva, referida pelo segundo, porque estas têm como base teorias
linguísticas.
O que os professores elegem como matéria de estudos − as classes de
palavras e as funções que as palavras desempenham na frase, com o objetivo de
que os alunos adquiram “bom” desempenho linguístico, entendendo-se “bom”
como a norma culta − se situa nos âmbitos da descrição e da normalização,
tomando-se descrição como exposição dos fatos da língua ou o sistema
linguístico em uso (gramática tradicional, conforme Luft e Cavaliere) e
normalização como o conjunto de normas pertinentes ao sistema que é descrito
(gramática descritiva com fins pedagógicos ou gramática tradicional, conforme
Cavaliere; gramática tradicional, conforme Luft, e, ainda, gramática normativa,
conforme Bechara - 1999). 4
Examinando-se alguns livros didáticos – materiais elaborados para
estudantes, mas confessadamente também utilizados pelos professores como
fonte de consulta – e algumas gramáticas tradicionais, identifica-se, geralmente
nos capítulos iniciais, a exposição de fatos linguísticos.
Ao estudar as classes e subclasses de palavras – substantivos, adjetivos,
pronomes, e ainda pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos, indefinidos,
etc. – e as divisões que a frase comporta, incluindo-se sucessivas divisões de
seus “termos” – sujeito e predicado; verbos intransitivos, transitivos, etc.; objeto
direto, objeto indireto, etc. – estas obras atribuem-se o papel de organizar e
hierarquizar fatos linguísticos a partir da apresentação de uma terminologia e de
definições. Num primeiro momento, então, descrevem a língua.
3
O autor ainda desenvolve dois conceitos – gramática como sistema lingüístico e gramática como
método de investigação científica –, os quais não apresentamos aqui devido à sua especificidade
e, por isto, não atinentes ao que entendemos por ensino da gramática na escola, tal como os
professores manifestam na pesquisa realizada e em outra situações nas quais, a partir de relatos
e comentários, descrevem o seu trabalho.
4
Sobre este assunto, leia-se também Estrutura da Língua Portuguesa, de Joaquim Mattoso
Câmara Jr.
56
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Esse tratamento inicial dos fatos linguísticos permite que, posteriormente,
os estudos se voltem fundamentalmente para questões relacionadas a um uso
que, nesse caso, é o que pessoas escolarizadas utilizam notadamente em
situações de escrita. Metodologicamente, essas obras desenvolvem um percurso:
da classificação, que implica uma nomenclatura com suas respectivas definições,
à aplicação da classificação apresentada, na formulação de regras relativas ao
“bem” dizer e ao “bem” escrever.
Ao determinar classes, sejam elas de palavras ou de funções, nota-se que
a gramática promove relações entre os diversos agrupamentos. Noções são
apresentadas, respeitando-se um direcionamento: do amplo para o específico, do
abrangente para o abrangido, do central para o periférico. À medida que se
avança no estudo, uma noção prescinde da anterior ou de anteriores. Além disto,
os estudos da sintaxe da frase, não apenas, mas também classificatórios, se
encarregam de estipular o lugar que as classes de palavras ocupam na estrutura
frasal, muitas vezes reafirmando relações já estabelecidas ao ser explicitado
cada um desses agrupamentos. Assim, por exemplo, se os artigos são
apresentados como determinantes dos substantivos, seu ingresso na frase se dá
como adjunto adnominal de um núcleo nominal. A gramática estudada na escola,
pela via de obras tradicionais e livros didáticos que as tomam como base,
portanto, esboça um quadro de noções pertinentes à língua, o qual se caracteriza
pela classificação e pela hierarquização.
Além do arcabouço do sistema da língua que esses estudos traçam, nelas
se encontram explicitados empregos. Quando é apresentada a flexão dos
substantivos, quando, ao lado da definição de adjetivos, são tratados os
gentílicos, e nos estudos sobre concordância, regência, colocação de pronomes,
etc., aflora a especificidade do uso, sob forma de restrição. Como se trata de um
uso, obviamente não há como se ter outro que não seja este. Nesse sentido,
afirma Cavaliere que:
(...) mesmo a gramática descritiva sempre terá um componente
normativo, a menos que efetivamente logre descrever todos os
possíveis usos da língua em suas dimensões diastrática,
diatópica e diafásica. Não sendo assim, a simples seleção dos
fatos descritos reflete uma discriminação do que é ou não é
descritível, isto é, implica uma norma, à semelhança da que
Teorias do Discurso e Ensino
57
modernamente se encontra no conceito de aceitabilidade (2000,
p. 38).
Até época bem recente, se tomavam as normas apresentadas pelas
gramáticas como extensivas a qualquer manifestação linguística. Atualmente, o
que se verifica é uma ruptura no interior da própria gramática porque os
“empregos” ou regras, sabe-se, convivem com usos os mais diversos. Não só
linguistas sabem dessa convivência, os gramáticos também o admitem, e um
exemplo disto é Bechara.
Na Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara, publicada nos anos 90,
edição revista e ampliada de obra de mesmo título, cuja primeira edição ocorre
em 1961, o autor, ao distinguir gramática descritiva e gramática normativa, sobre
a última afirma que:
Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com
finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos
recomendados como modelares da exemplaridade idiomática
para serem utilizados em situações especiais de convívio social.
A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo
o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas
esclarecidos (1999, p. 52).
Essa visão do que representa a gramática normativa hoje – um uso,
próprio a situações especiais de convívio social, no conjunto de usos que
constituem a Língua Portuguesa – decorre de estudos realizados por Bechara
que, no Prefácio desta sua Gramática, diz que se trata de um novo livro e assim o
descreve:
(...) amadurecido pela leitura atenta dos teóricos da linguagem,
da produção acadêmica universitária, das críticas e sugestões
gentilmente formuladas por companheiros da mesma seara e da
leitura demorada de nossos melhores escritores (1999, p. 18).
Tomamos aqui um único modelo – o gramático Bechara – uma vez que as
duas edições da Moderna Gramática Portuguesa permitem cotejar sua atual
posição, cuja origem o próprio autor revela, com a anteriormente assumida.
Na edição de 1961, na Introdução, Bechara afirma:
58
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Mas dentro da diversidade das línguas ou falares regionais se
sobrepõe um uso comum a toda área geográfica, fixada pela
escola e utilizada pelas pessoas cultas: é isto o que constitui a
língua geral, língua padrão ou oficial do país.
Cabe à Gramática registrar os fatos da língua geral ou padrão,
estabelecendo os preceitos de como se fala ou escreve bem ou
como se pode falar e escrever bem uma língua.
Daí ser a Gramática, ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte
(p. 25).
No mesmo capítulo, ao distinguir essa gramática da gramática histórica e
da comparada, denomina-a “gramática descritiva, expositiva, normativa ou tãosomente gramática” (p.26).
Verifica-se, pois, que a gramática, também aos olhos de um gramático,
mudou. Sua finalidade era “registrar os fatos da língua geral ou padrão,
estabelecendo os preceitos de como se fala ou se escreve bem ou como se pode
falar e escrever bem uma língua”; atualmente se atém a “situações especiais de
convívio social”, e faz apenas recomendações. Era considerada “uma ciência e
uma arte”; hoje é uma disciplina “pedagógica”. Sua denominação, em
consequência, tornou-se restrita, segundo este autor, à gramática normativa,
deixando, pois, de abarcar as que se lhe davam pela ausência de outras
gramáticas, pela força que impunha e pelo prestígio que gozava: “gramática
descritiva, expositiva, normativa ou tão-somente gramática.
Além disto, o que se apresenta como gramática normativa, porque o
gramático refere-se a situações especiais de convívio social, pressupondo-se,
portanto, outras situações em que não são aceitas estas normas, se aproxima do
que se aponta como característica da gramática descritiva, que referenda um uso
entre a possibilidade de vários outros.
Aliás, estendendo-se dessa forma o conceito de gramática normativa
apresentado por Bechara nessa nova versão de seu trabalho, se faz justiça ao
que este autor atualmente apresenta na sua Gramática, porque não se exime de
justificar, comentar, apresentar possibilidades várias, mas também se vale de
estudos oriundos da ciência linguística para fundamentar suas posições.
A partir dessas reflexões, verifica-se que a língua estudada na escola
restringe-se a um uso, o qual não pode mais ser concebido como o ideal. Caso,
ao se referirem a “bom” desempenho linguístico, os professores tenham em
Teorias do Discurso e Ensino
59
mente a uniformização do uso da língua ou a aquisição de um uso que se
sobreponha aos demais porque o “mais correto” ou o “melhor”, essa ideia tão
logo deverá ser abandonada, pois atualmente ninguém mais a autoriza, nem os
próprios gramáticos.
Também porque esse ensino se restringe a apenas um uso, mesmo que
os conhecimentos obtidos por meio dele se façam necessários em inúmeras
situações de vida, principalmente naquelas em que é utilizada a expressão
escrita, há de se considerar que esse ensino não pode, por si só, ser tomado
como o ensino do Português, embora reconheçamos que seja uma das tarefas
da escola a excelência relativa à escrita.
Ademais, há outro fator limitante a considerar: verifica-se que esse
trabalho com a língua não ultrapassa o estudo da frase, já que é assim que a
gramática procede.
Propomos a inserção do discurso no ensino do Português, a partir da
Teoria da Enunciação, de Benveniste. Certamente essa não é a única alternativa
à disposição para que tal projeto se formalize, porém a esta teoria deve-se a
compreensão de como a língua funciona, pois considera a língua e o uso, ou
seja, a língua em uso.
4 Uma Teoria da Enunciação
Quando nos referimos à Teoria da Enunciação de Benveniste, estamos
falando de estudos selecionados por este linguista, entre outros realizados,
publicados em dois livros: Problemas de Lingüística Geral I e Problemas de
Lingüística Geral II. Estas publicações são constituídas de artigos, alguns
originalmente apresentados por escrito, outros originados de conferências,
produzidos em momentos diversos. Esses estudos não estão dispostos
cronologicamente nessas obras, nem supõem uma leitura em determinada
ordem, embora reunidos sob títulos que visam dar ao leitor certa indicação sobre
o que neles é tratado.
Nesse aspecto, esses estudos linguísticos distinguem-se de muitos outros
a que estamos acostumados a ler, pois sua forma de apresentação não
60
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
determina um percurso de leitura: podemos livremente incursionar entre eles.
Apesar disto, percebemos que, independentemente da especificidade que alguns
artigos apresentam, seu autor é fiel a certos princípios que regem sua teoria, e da
rede de relações que o leitor paulatinamente elabora, emana um todo coerente e
consistente.
Relevando o que é ensinado nas escolas hoje, e nesse aspecto
consideramos de grande valor o trabalho de Moura Neves no sentido de nos
fornecer dados relativos às “aulas de gramática” no ensino fundamental e no
médio, nos dispomos, neste escrito, a perseguir o traçado apresentado pelos
professores, os quais se dedicam ao estudo das palavras como classes e ao da
frase como funções desempenhadas pelas palavras.
Desse modo, como a teoria de Benveniste propicia a apreensão dos
fenômenos linguísticos sob várias perspectivas, optamos por organizar esta
exposição inicialmente pela via da palavra e, posteriormente, da frase, e, em
seguida, apresentar todas as implicações que desses focos emanam.
4.1 As palavras
É a partir da clássica distinção dos pronomes que Benveniste formula a
noção de pessoa 5, a qual desencadeia uma série de outras noções, fazendo-se
presente em toda sua teoria.
Questionando essa distinção, este autor afirma que o tratamento dado à
pessoa do verbo, desde a gramática grega até os nossos dias – 1ª, 2ª e 3ª
pessoas – é não linguístico.
Estas denominações não nos informam nem sobre a necessidade
da categoria, nem sobre o conteúdo que ela implica, nem sobre
as relações que reúnem as diferentes pessoas (1995, p.248).
Sob o mesmo critério adotado para a apresentação dessa distinção –
pessoa –, Benveniste retoma o estudo dos pronomes, estabelecendo que a
5
Sugerimos, neste momento, especialmente a leitura de A Natureza dos Pronomes, Estrutura das
Relações de Pessoa no Verbo e A Subjetividade na Linguagem, por nós elencados em
Referências Bibliográficas.
Teorias do Discurso e Ensino
61
noção de pessoa decorre de um ato em que eu se diz eu. Eu é essencialmente
linguístico, é palavra que coloca a língua em funcionamento.
Este ato, por meio do qual o locutor se propõe como sujeito, institui
também tu, também pessoa, mas pessoa diferenciada. Ambas se constituem pelo
mesmo ato, porém são opostas. Na e pela enunciação, que é “colocar a língua
em funcionamento por um ato individual de utilização” (1989, p.82), o locutor
assim se apresenta, mas sempre pressupondo um alocutário.
Eu e tu são formas linguísticas que têm existência na e pela enunciação.
Porque subjetivas, são sempre únicas e efêmeras, pois são palavras que eu
profere. Apresentam a mesma referência, isto é, a instância de discurso que as
contém. São inversíveis, pois, no momento em que tu toma a palavra, se
apresenta como eu, e o que até então assim se dizia, torna-se tu.
Além de eu e tu, que estabelecem a noção de intersubjetividade, a
enunciação constitui outras palavras ou categorias, os indicadores de
subjetividade: o tempo, que é o presente concomitante com a enunciação; o aqui,
que é indissociável de agora; os demonstrativos, que designam todos e
quaisquer objetos presentes no aqui-agora. Também outros advérbios ou
locuções adverbiais que são correlatos de aqui e de agora, os tempos verbais,
que tomam o presente da enunciação como referência, a modalidade, os
adjetivos, os possessivos, certos verbos, etc. também marcam a inserção do
sujeito na língua.
A noção de subjetividade, que instala eu-tu-aqui-agora e todas as demais
relações que a partir disto se estabelecem, não prevê ele.
Quanto à natureza, ele corresponde a não pessoa, pois não pertence à
instância de discurso como eu e tu, porque diz respeito ao não importa quem ou
não importa o que munido de referência objetiva. Essa forma não decorre da
enunciação, pois a língua lhe prevê um conceito.
Quanto à função, ele é um substituto abreviativo, representa no enunciado
o não importa quem ou não importa o que já referido: seu caráter é, portanto,
sintático.
Ao estudar os pronomes, Benveniste estabelece a oposição eu-tu/ele,
caracterizando dois âmbitos: o da enunciação e o da língua. Ao primeiro
pertencem as palavras que a partir do uso adquirem significação; ao segundo
62
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
pertencem palavras que para qualquer falante estão associadas a um conceito.
Assim pode-se entender a oposição subjetividade/objetividade.
Apesar de não negarmos essa oposição, ela precisa ser interpretada para
que compreendamos enunciação como colocar a língua em funcionamento.
Benveniste, ao caracterizar eu como pessoa que enuncia eu, afirma que
“há (...) neste processo uma dupla instância conjugada: a instância de eu como
referente, e instância de discurso contendo eu, como referido” (1995, p.279). Em
outras palavras, eu é referente porque é sujeito da enunciação; eu é referido
porque eu – o que se propõe como sujeito – enuncia eu, constituindo o
enunciado.
Na e pela enunciação, instaura-se um mundo – a presente instância de
discurso – pelo fato de o sujeito só poder assumir esta condição diante de tu,
bem como ser o referente de uma série de categorias, qual seja o tempo, que é o
presente, este-aqui-agora. Eu-tu-este-aqui-agora passa a coexistir e a constituir
um eixo em torno do qual tem possibilidade o uso de outras palavras como, por
exemplo, expressões de temporalidade que se estabelecem em relação ao
presente, e alguns advérbios que decorrem de aqui. Pelo viés do sujeito, que
exterioriza esta realidade ou a sua realidade, têm significação, ainda, os modos,
os adjetivos, os possessivos, etc. Em síntese: a enunciação é a referência de
todas as palavras que adquirem tal estatuto ao serem enunciadas.
A ele correspondem os conceitos da língua. Por meio de ele, eu designa
as coisas às quais quer dar existência. Assim sendo, ele não é constituído, a
partir das coisas; ao contrário, são as coisas que são constituídas a partir do
momento em que são enunciadas, passando a fazer parte da instância de
discurso e, apesar de exteriores à relação eu-tu, têm como referência, assim
como as demais palavras, a enunciação.
Retomemos a definição de enunciação: enunciação é o colocar a língua
em funcionamento por um ato individual de utilização. Língua em funcionamento
admite a existência de um coletivo, a língua como um sistema de significações
desvinculadas da realidade, formas distintivas; língua em funcionamento supõe
um ato individual que significa a realidade em que se inclui, ou seja, a instância
de discurso. Ele, pertencente ao coletivo, na e pela enunciação tem referência,
Teorias do Discurso e Ensino
63
adquire existência, materialidade, e os indicadores de subjetividade nela e por ela
emergem.
Podemos, assim, considerar as palavras sob duas perspectivas: a da
origem e a da referência. Sob a primeira, temos eu-tu/ele: a língua e a instância
de discurso, a língua e o uso da língua. Na outra perspectiva, a da referência, a
oposição se desfaz – eu-tu-ele – a língua é apenas uso porque colocada em
funcionamento.
4.2 A frase
Para a inclusão da frase nesta Teoria da Enunciação, se faz necessário
estudar as duas maneiras de ser língua por Benveniste tratadas: a primeira
denominada semiótica; a segunda, semântica.
À medida que avançarmos neste estudo ver-se-á que estas maneiras de
ser estão na base da oposição pessoa/não pessoa: a não pessoa é do domínio
do semiótico, a pessoa é do domínio do semântico.
Embora sejam distintos, semiótico e semântico têm um aspecto em
comum: ambos significam, diferenciando-se pela maneira como significam 6.
O âmbito do semiótico tem como unidade o signo. Corresponde à língua,
tal como é descrita por Saussure no Curso de Lingüística Geral. O signo significa
em face de outro signo, pois essa maneira de ser língua se caracteriza por excluir
o mundo, uma vez que as relações que nela se estabelecem se dão entre as
unidades que lhe são pertinentes. No semiótico, não há intervenção de um
sujeito, então a referência inexiste: a significação é genérica.
No âmbito do semântico, está a subjetividade. É a enunciação. É eu que
se diz e diz o mundo. Já não há signo, mas palavra. Embora as palavras sejam
signos, têm outro estatuto porque significam uma situação que é particular e
única. Não apenas significam, servem para viver.
Para explicitar a transposição do signo para palavra, Benveniste utiliza os
termos agenciamento e apropriação. O locutor agencia palavras (os signos) no
6
Para complementação, leia-se, principalmente, A Forma e o Sentido na Linguagem e Os Níveis
da Análise Lingüística, o primeiro apresentado em um congresso que reuniu filósofos; o segundo,
em um congresso de linguistas. Ambos são referenciados no final deste trabalho.
64
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
campo do semiótico e as desloca para o semântico, ou seja, a língua e o uso da
língua são vistos como associados. A este processo, Benveniste dá o nome de
apropriação: o sujeito se apropria da língua e a põe em funcionamento.
Nesse processo de apropriação para funcionamento, o que era genérico
se torna específico: os conceitos da língua, noções gerais devido à ausência de
referência, sofrem uma restrição em uma situação de emprego da língua: “cada
palavra não retém senão uma pequena parte do valor que tem enquanto signo”
(1989, p.234).
Na ordem do semântico, não é apenas a palavra que significa, também a
frase significa, ou melhor, a palavra significa porque contida na frase 7. A palavra
é palavra porque está na frase, já que a função da língua é predicar. No discurso,
a língua se manifesta, o pensamento se torna ideia.
No discurso, a palavra jamais pode ser vista isoladamente, está sempre
em conexão com outras palavras. Um sentido se expressa, o qual é sempre
particular, pois relativo a sujeitos e contexto, por isso exige uma configuração
também particular, para que se manifeste a singularidade da ideia.
Essa singularidade relativa à referência a situações sempre novas e
diferenciadas determina certo arranjo de palavras. A frase, então, não pode ser
vista como um somatório de palavras, pois nela as palavras, dependendo da
organização que lhes é imposta, apresentam nuances diversas, adequando-se à
ideia.
O semântico é, assim, o uso da língua, significação partilhada pelos
falantes a qual se manifesta na palavra – uma parte do coletivo expressando
sentido particular, entendido como emprego – em inter-relação com outras
palavras. Nessa configuração própria à ideia se dá a significação do predicar.
7
Frase, termo empregado por Benveniste, relaciona-se à expressão de uma ideia. Não se limita,
portanto, como em outros estudos, quanto à extensão. A frase, tal como é concebida por este
autor, comporta inter-relações entre as palavras, uma certa organização promovida por quem usa
a língua. Esta organização é exigida pela atribuição de referência.
Teorias do Discurso e Ensino
65
4.3 O diálogo
Na e pela enunciação, eu se constitui, se apresenta como sujeito; a
linguagem é, portanto, condição humana, por meio dela o homem se diferencia
dos outros homens, se individualiza. Assim, em Benveniste, a linguagem não
pode ser reduzida a instrumento de comunicação, pois “a linguagem fundamenta
na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’” (1995, p.286).
Apesar de eu ser, ao mesmo tempo, referente e referido – eu diz eu e,
deste modo, se institui como pessoa –, esse ato não lhe confere prerrogativas
porque este dizer constitui tu, o não eu. Em Benveniste, não há propriamente
noção de pessoa, mas de pessoas, sempre duas e somente duas, e se por vezes
empregamos o singular, é para estabelecer a noção de oposição pessoa/não
pessoa.
Essa noção de pessoalidade está associada a outra, a de inversibilidade.
Eu assim o é enquanto dura seu dizer, invertem-se as posições no momento em
que tu toma a palavra.
Eu e tu, embora opostos, não são excludentes e ainda gozam da
possibilidade de revezamento na atribuição de referência. Então, se usamos o
termo subjetividade com o objetivo de descrever o ato por meio do qual o locutor
põe a língua em uso, devemos considerar que intersubjetividade é o termo que
condiz com a noção de pessoas.
Eu e tu, coparticipantes da enunciação como integrantes da instância de
discurso, promovem o diálogo. E para que este se exerça, a noção de referência,
ainda que necessária, não é suficiente: importa a de correferência para que o
diálogo como tal se constitua. 8
Para que melhor se esclareça a noção de correferência, é preciso que se
retome a oposição entre ordem do semiótico/ordem do semântico.
Na visão de Benveniste, a língua é o único sistema dotado dessa dupla
significância, e porque desse modo se apresenta, é capaz de interpretar todos os
demais sistemas de signos, os quais são unidimensionais. Já que possui duas
8
Os estudos aqui realizados poderão ser enriquecidos com a leitura dos textos O Aparelho
Formal da Enunciação e Semiologia da Língua.
66
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
dimensões, sua função de interpretante não se restringe a outros sistemas, ela
“pode, a princípio, tudo categorizar e interpretar, inclusive ela mesma” (1989,
p.62).
Em uma situação de emprego, a língua é o interpretante e o interpretado
pois a enunciação, a maneira de ser língua no campo do semântico, inclui o
semiótico: o locutor toma a língua inteira e a coloca em funcionamento para
referir o mundo da presente instância de discurso.
A dupla significância da língua – significa o que é coletivo, ou significa o
que é particular: semiótico/semântico; significa o que é particular, considerando a
significação que é coletiva: a inclusão do semiótico no semântico – garante-lhe
interpretar-se a si mesma. A língua é interpretante enquanto coletivo, é
interpretado enquanto particular; é interpretante enquanto expressão de uma
situação nova e única, a qual corresponde ao interpretado.
O colocar a língua em funcionamento, que prevê não só sujeito, mas
sujeitos, os quais têm a possibilidade de alternar-se nesse ato, confunde-se com
o quadro do diálogo: um ir-e-vir do processo de apropriação da língua,
configurando a ideia, de modo a referir a instância de discurso, referência esta
que é perpassada pela língua, um aparato que é comum aos parceiros.
O que caracteriza o diálogo, relação entre sujeitos, é uma constante
alternância de semiótico e semântico. Nesse processo, já sabemos como o
locutor constitui a significação, porém, em se tratando de alocutário, não
podemos afirmar que faz simplesmente o caminho inverso, pois isto representaria
destituí-lo da condição de sujeito.
Face à enunciação de eu, tu, porque também sujeito, reconstitui o
processo: reconhece, na língua, a qual é comum a eu e tu, os conceitos relativos
às palavras que compõem o enunciado; semantiza, porque parceiro do locutor,
copartícipe da situação de discurso, atribuindo referência, ou seja, significando.
Há, portanto, reconstituição do processo; não há reconstituição do enunciado.
Para locutor e alocutário são comuns a língua e a instância de discurso e,
consequentemente, referência e significação. O uso da língua, porque traz
implícito o diálogo, implica não só referência, mas correferência.
O diálogo prevê, portanto, sujeitos, um imbuído em significar-se, o outro
em atribuir significação a este significar-se. Eu refere, eu-tu coreferem. A língua é
Teorias do Discurso e Ensino
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garantia de um mínimo comum; a existência de sujeitos que partilham a mesma
situação de discurso, o aqui-agora, que inclui este, garante a relação discursiva.
Assim como eu constitui tu, mas, ao mesmo tempo, por ele é constituído, a
referência, decorrente da enunciação, prevê correferência, condição para a
existência do diálogo. Se o entendimento da noção de subjetividade é requisito
para a de intersubjetividade, a de referência também o é para a de correferência:
uma é origem; a outra, fim da enunciação É com este sentido que a língua serve
para viver.
5 A inserção da enunciação – reflexões a partir de algumas situações de
ensino-aprendizagem
Por tudo o que foi exposto, verificada a rede de relações e a complexidade
que essa maneira de compreender os fenômenos linguísticos envolve, conclui-se
que esta Teoria da Enunciação não é aqui apresentada para que seja
desenvolvida em sala de aula, porém conhecê-la é possuir um suporte a mais
para considerar as intervenções feitas pelos alunos, que trazem suas
explicações, incompreensões e críticas, quando lhes é apresentada uma
informação nova ou quando são aprofundados ou inter-relacionados alguns
aspectos relativos aos fatos linguísticos tratados pela gramática.
Há muito tempo, teorias pedagógicas e outras que contribuem para a
reflexão sobre modos de ensinar e modos de aprender apontam para a
necessidade de que sejam promovidas, em sala de aula, situações nas quais os
alunos participem ativamente. Não se concebe mais um ensino em que os alunos
sejam vistos como objeto. Os professores, no afã de sempre e cada vez mais
qualificarem o trabalho que fazem, realizam um esforço ao planejarem situações
de ensino-aprendizagem, para garantir aos alunos o papel de agentes do seu
aprender. Como é isto o que se quer e o que se faz quanto ao que é
propriamente pedagógico, é preciso que, nos momentos em que os alunos
apresentam suas indagações ou em que assumem uma posição diante do que é
estudado, os professores tenham uma bagagem de conhecimentos suficiente
para interpretar o que pelos alunos está sendo expresso, corroborando ou
redirecionando as reflexões apresentadas, de modo a enriquecê-las.
68
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
É certo que os professores, por mais que se dediquem a organizar as
atividades, não têm como prever todas as respostas dos alunos. Um ensino
voltado para o pensar sobre a matéria está à mercê do inusitado. Assim, em uma
sala de aula do ensino fundamental em que os alunos estudavam os pronomes, o
professor apresentou algumas frases previamente selecionadas, as quais eram
constituídas por pronomes indefinidos, e os alunos, após levantamento de
hipóteses que eram aceitas ou refutadas pelos seus pares e pelo professor,
concluíram que certas palavras da língua expressam ideia de imprecisão, de
indeterminação, de indefinição.
Avançando um pouco mais a discussão, um aluno deu a seguinte opinião:
“Penso que estas palavras não definem. Alguém indica uma pessoa, mas
não diz que pessoa é; algo dá uma ideia parecida em relação a uma coisa,
muitos é uma palavra que expressa grande quantidade, mas esta quantidade
varia, dependendo de quem diz. Na frase Tenho muitos lápis, muitos pode
representar 12 lápis, assim como pode representar uns 50. Se um menino muito
pobre, que estuda numa escola muito pobre em que todos os alunos também são
pobres, disser ‘Tenho muitos lápis’, muitos pode representar 12 lápis ou até
menos; se um menino com boas condições financeiras disser para seus colegas,
que têm o mesmo padrão de vida, esta frase, muitos não representa 12 lápis
porque nem este menino nem seus colegas consideram que ter 12 lápis é ter
muitos lápis. Muitos, neste caso, devem ser uns 50 ou até mais.”
Imediatamente essa ideia de “grande quantidade relativa”, denominação
dada por esse aluno, foi aceita pelos demais e passou a circular entre eles, e
vários outros exemplos foram dados, não mais apenas relacionados a uma
condição econômico-financeira, mas a outras situações, como no caso de pontos
marcados por equipes esportivas.
Certamente o fato de o professor ter se valido de frases para introduzir o
estudo dos pronomes indefinidos, seria merecedor de críticas de parte dos que
afirmam ser esta uma visão redutora. Neste caso, entende-se perfeitamente a
intenção do professor. Este partia do âmbito da língua, da significação na esfera
do coletivo, e a discussão que promovia junto e entre os alunos desencadeava a
especificidade do uso, verificando-se efeitos de sentido quando do emprego da
palavra. Por outro lado, esse professor se atinha ao que o grupo de professores
Teorias do Discurso e Ensino
69
da escola em que trabalhava decidira ser o fio condutor dos objetivos e
conteúdos na série e nas diversas séries do ensino fundamental, pois
considerava os princípios da gramática, sem restringir-se unicamente a eles.
O que essa forma de tratar os pronomes indefinidos adotada por esse
professor proporcionou foi abordar, sob duas óticas, o que se convencionou
chamar, de acordo com a gramática, de pronomes indefinidos: pelo viés da língua
e pelo viés do discurso. Do primeiro, a noção de indefinição; do segundo, essa
noção que se mantém numa situação de uso, mas que passa a produzir um
efeito – o que os alunos chamaram de quantidade indefinida “relativa” – em
função da consideração de sujeitos e de uma situação enunciativa, nos exemplos
apresentados pelos alunos.
Isto nos indica que os professores nunca devem se apegar a uma só
interpretação. A língua abriga conceitos, noções amplas, mas os alunos
normalmente “pensam” a língua a partir de usos, geralmente o que falam ou o
que ouvem diariamente; são especificidades, particularidades que constituem os
seus exemplos. Faz-se necessário, assim, um ir-e-vir, o que justifica um trabalho
não só por meio de palavras e frases, mas também de porções maiores, o que
inclui a análise de situações discursivas.
Foi o que expressou um aluno da mesma turma, também quando eram
estudados tais pronomes: “Se eu chego à janela e digo ‘Ninguém está na rua’,
ninguém não está indefinindo, simplesmente a frase quer expressar que a rua
está vazia, que nela não há nenhuma pessoa”.
A língua aqui participa com o seu jogo de oposições – alguém/ninguém,
por exemplo; a razão de ninguém figurar, nas listagens apresentadas pelas
gramáticas, como um pronome indefinido –, porém atribuir a ninguém, na
situação apresentada, a noção de indefinição, discordando da afirmação do
aluno, torna-se difícil, quando não insustentável.
Parece-nos que, muitas vezes, os alunos têm dificuldade de compreender
afirmações feitas pelo professor, ou se insurgem contra elas porque se postam
ao lado de situações de uso, que são sempre particulares, pois envolvem
locutores e um contexto específico. Suas contribuições implicam referência, uma
ideia que é expressa tendo-se em vista uma situação enunciativa.
70
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
A frase, conforme afirma Benveniste, unidade de significação do discurso,
é, muitas vezes, em atividades de aula, pinçada do discurso ou simplesmente
“criada”, pois é objetivo do professor apresentar um todo em que determinada
palavra figura. Daí a dificuldade, por exemplo, de os professores explicarem a
diferença entre artigos definidos e indefinidos ou a distinção entre oração
subordinada adjetiva restritiva e oração subordinada adjetiva explicativa. Em
muitas situações, a frase, limite máximo de análise das gramáticas, não é
suficiente. Essas situações requerem a atenção dos professores que, sabedores
de que o sentido ultrapassa a fronteira da frase gramatical, porque relativo à ideia
que é expressa, deverão selecionar recursos compatíveis com o que pretendem
discutir com seus alunos.
A falta de previsão quanto a esse aspecto pode acarretar imprecisões que
terão como consequência dificuldades para os alunos. A gramática costuma
classificar o sujeito gramatical, e, principalmente no estudo da concordância, os
tipos de sujeito, nomenclatura geralmente usada nas atividades escolares,
retornam para o estabelecimento de certas regras.
Na Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, de Cegalla, lê-se que o
sujeito é indeterminado “quando não se indica o agente da ação verbal” (1970, p.
246). Em relação aos modos de indeterminação do sujeito, este autor apresenta
dois, sendo um deles assim exposto:
Usando o verbo na 3ª pessoa do plural, sem referência a
qualquer agente já expresso.
Na rua olham-no com admiração.
“Batem leve, levemente...” Augusto Gil (1970, p. 246).
Uma leitura atenta da explicitação feita pelo gramático, apesar de os
exemplos se constituírem, como costumam acontecer nessas obras, de frases
isoladas, permite antever a inclusão das frases-exemplo em situações
discursivas, pois à condição de o verbo estar conjugado na 3ª pessoa do plural
alia-se outra condição: “sem referência a qualquer agente já expresso”.
Isso requer que os estudos sobre indeterminação do sujeito se façam a
partir de um conjunto de frases – a ideia deve ser apresentada – que possibilite
uma análise da relação entre as frases, de maneira que os alunos possam
constatar a inexistência de retomada de palavra à qual possa ser atribuído o
Teorias do Discurso e Ensino
71
papel de agente e, consequentemente, a noção de indeterminação promovida
pelo locutor. Não só nos estudos introdutórios desse assunto, mas sempre que
este estiver sendo tratado – exercícios, provas, etc. – esse aspecto precisa ser
considerado.
Muitas vezes, entretanto, não é o que se vê em atividades realizadas em
aula. Tarefas que se caracterizam pelo reconhecimento dos tipos de sujeito,
incluem frases do tipo Deixaram-me um bilhete, e nada mais.
Afirmar, por exemplo, que, na frase Deixaram-me um bilhete, o sujeito
gramatical é indeterminado, com base no fato de o verbo indicar terceira pessoa
do plural, ignorando que outra resposta possa ser apresentada pelos alunos,
revela autoritarismo ou, o que é mais grave, desconhecimento do que a
gramática apresenta como noção de sujeito indeterminado. Se, nesse caso,
alguns alunos “acertarem” a resposta que o professor estipulou como desejada, é
obra do acaso porque essa frase, desvinculada de uma situação enunciativa, não
possibilita correferência: diante dela, os alunos perguntar-se-ão “qual é o
sentido?”
Devido
à
impossibilidade
de
resolverem
a
questão,
agirão
aleatoriamente.
O que se verifica aqui é que a análise da frase, tal como se costuma fazer
nas aulas de Português, não é suficiente. Ensinar que deixaram é um verbo na
terceira pessoa do plural, que me é objeto indireto, um bilhete é objeto direto,
portanto o sujeito gramatical não está expresso materialmente na frase e, a partir
da forma verbal, classificar o sujeito gramatical como indeterminado, é
desconhecer que Deixaram-me um bilhete pode figurar em um enunciado como
Meus amigos saíram apressados. Deixaram-me um bilhete. O sentido aqui não
se estabelece unicamente na frase dada, ultrapassa-a, e falar sobre ele exige
que estabeleçamos inter-relações com outras frases do enunciado, as quais,
neste caso, não constam.
Comete-se erro semelhante quando é apresentada aos alunos uma frase
como Ele chegou atrasado e se pede a eles que seja identificado o pronome.
Que tipo de ensino está se promovendo? Um ensino baseado na memorização
de uma lista de palavras entre as quais ele se encontra. Essa situação não tem
nenhuma significação porque Ele chegou atrasado, por si só, não é um fato do
Português.
72
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Em uma aula em que um professor mostrava isto a seus alunos, um deles
complementou a explanação do professor dizendo: “Esta palavra, assim
apresentada, me dá ideia de indefinição, assim como alguém em Alguém chegou
atrasado. Não tenho nenhuma informação sobre quem seja ele”. A falha não está
na gramática, comete o erro quem, a partir de uma lista de palavras, pensa poder
ensinar uma língua.
O que precisamos entender é que a gramática estabelece que a maior
porção de língua que analisa é a frase; esta é a sua escolha metodológica.
Porém, quando a língua é usada, e uma língua serve para falar, o objetivo de
quem a utiliza é a atribuição de referência, e por referência entende-se a
expressão de uma ideia, que pressupõe, sempre, uma situação de discurso. Em
muitas ocasiões, é possível que uma só palavra dê conta desta ideia – e as
gramáticas afirmam a existência de frases formadas por uma única palavra –; em
outras, apenas uma frase pode exprimir a ideia. Até aqui, utilizar o recorte
metodológico das gramáticas é suficiente e adequado, entretanto há situações
em que a ideia se materializa por meio de inter-relações entre certo número de
frases.
Nesse sentido, a noção de frase em Benveniste e nas gramáticas não é a
mesma. Para Benveniste frase implica certa organização, conexões entre
palavras, que assim são apresentadas porque há algo a exprimir. Essa
sintagmatização não pode ser limitada porque a ideia quer ver-se expressa, não
importando “extensão”. A atribuição de referência muitas vezes exige “porções”
maiores que a frase da gramática. Os professores, por isto, quando planejam
suas aulas, quando dialogam com seus alunos, quando avaliam respostas,
precisam constantemente colocar-se na posição de analistas, perguntando-se
“como aqui se dá o sentido?”, ou seja, “quais são as inter-relações?”, e ainda
“qual é, então, o sentido?”.
Pergunta semelhante a esta última foi formulada a alunos que estudavam
os pronomes pessoais. Este é, a propósito, um grupo de palavras que representa
para os alunos uma série de dificuldades, a começar pela noção de pessoa
trazida pela gramática.
Quando se lhes apresenta a distinção 1ª, 2ª e 3ª pessoas – a que fala, a
com quem se fala, a de quem ou de que se fala, respectivamente, – demonstram
Teorias do Discurso e Ensino
73
os alunos certo estranhamento quanto ao termo pessoa: ao se dizer O cachorro é
feroz. Ele me mordeu ou O edifício precisa de reformas. Ele apresenta
rachaduras nas paredes internas, como podem cachorro e edifício ser tratados
como pessoas? Esse, então, é um momento propício para se falar em diálogo,
em locutores e no que à situação enunciativa não pertence, sem que haja
necessidade de se recorrer à complexidade das noções que a situação
enunciativa envolve.
Outro ponto que desperta uma crítica é a oposição singular/plural
relacionada à 1ª e à 2ª pessoas, além da presença de vós e a ausência de
você(s) no quadro dos pronomes, sendo que uma reflexão sobre esses dois
últimos pode desencadear inúmeras discussões sobre questões de uso.
Para que os próprios alunos fornecessem indicações para uma posterior
tomada de posição a respeito da relação singular/plural, solicitou-se a eles que
imaginassem um diálogo em que alguém usasse a frase Nós fizemos o trabalho
e, com base na situação imaginada, explicassem o que nós representa.
Resumidamente, foram dadas as seguintes respostas:
a)
Nós representa que eu e todos os meus colegas de turma fizemos o
trabalho.
b)
Nós representa que eu e um colega fizemos o trabalho.
c)
Nós representa que eu e Fulano fizemos o trabalho.
d)
Nós representa que eu e um colega que, naquele dia, faltou à aula
fizemos o trabalho.
e)
Nós representa que eu e o colega com o qual estou falando, fizemos
o trabalho.
A apresentação das respostas, as quais despertam atenção, pois cada
aluno se colocou na posição de locutor, possibilitou a conclusão desejada – eu e
tu, eu e ele(s); o locutor e o alocutário, o locutor e uma outra pessoa que não
participa do diálogo, mas sempre a presença do locutor, pois, afinal, é o locutor –
daí derivando-se a inexistência de um plural com base em eu e eu, a leitura que
os alunos faziam de 1ª pessoa do plural, a qual consideravam inaceitável.
Caso professores se disponham a compatibilizar a sua prática em sala de
aula com o que até aqui apresentamos, certamente verificarão que há uma
grande variedade de outros fatos a acrescentar. Sabemos que a sala de aula se
74
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
manifesta como uma sucessão de desafios, que alguns deles são facilmente
superados, outros permanecem por um longo tempo, até que encontremos uma
resposta.
À guisa de conclusão, apresentamos uma resposta, que é a nossa. A
gramática, à medida que é estudada, fornece, tanto em relação às classes de
palavras como quanto ao que denomina funções sintáticas, um quadro
conceitual. Com base nesse quadro – termos e definições – formula regras,
pertinentes a um uso, próprio a certas ocasiões específicas.
Aos professores, que escolheram essa gramática como fio condutor para a
organização de situações de ensino-aprendizagem, cabe estudá-la criticamente,
verificando seus aspectos positivos e/ou negativos. De posse disto, terão à sua
disposição uma série de contribuições, oriundas das mais diversas teorias
linguísticas, capazes de preencher possíveis lacunas que venham a ser
identificadas. A seleção dessas teorias por certo exigirá novamente estudos e
reflexões, não só quanto aos pressupostos que apresentam, mas também quanto
à forma de adequá-los àquilo que o professor pretende. Com esse intuito,
apresentamos essa Teoria da Enunciação, que releva a língua enquanto uso e
releva o uso enquanto língua: o uso da língua. Outras obrigatoriamente deverão
ser conhecidas para que a sala de aula se torne um espaço de permanente
reflexão e diálogo.
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76
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
ARGUMENTAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA
Carmem Luci da Costa Silva*
[email protected]
1 Considerações iniciais
Neste texto, pretendemos mostrar como as questões defendidas pelos
autores da perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua (Oswald Ducrot e
colaboradores) estão presentes nos diferentes pressupostos preconizados pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Com isso, buscamos, juntamente
com os professores de língua materna de ensino fundamental e de ensino médio,
um maior entendimento dos aspectos teóricos que subjazem às teses contidas
nos PCNs. Para tanto, nosso percurso apresenta duas configurações, quais
sejam: a primeira, que pontua aspectos teórico-metodológicos sobre o ensino de
língua materna produzidos pelos PCNs, e a segunda que apresenta questões
teóricas acerca do funcionamento argumentativo da língua produzido pela Teoria
da Argumentação na Língua. Essas duas configurações serão relacionadas,
levando-se em conta os seguintes aspectos: (1) o tratamento da língua em uso e
(2) a consideração do funcionamento argumentativo da língua.
2 Contextualizando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)
Quando as pesquisas produzidas por uma linguística centrada no uso da
língua começam a proliferar após a década de 1980 no Brasil, novas reflexões
surgem no cenário do ensino de língua materna, contendo críticas acerca da sua
finalidade e dos conteúdos selecionados para a aprendizagem. Entre as críticas
mais frequentes ao ensino de língua portuguesa, dito tradicional, destacavam-se:
a desconsideração de atividades de uso da língua; o uso do texto como pretexto
para ensinar valores morais e para o tratamento de aspectos gramaticais; a
*
Professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da
UFRGS e Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo PPG- Letras/UFRGS.
excessiva valorização da norma linguística, através de regras de exceção; ensino
descontextualizado, com ênfase na metalinguagem, normalmente vinculado à
memorização de terminologias e associado à identificação de fragmentos em
frases soltas; e a apresentação de uma teoria gramatical, sem a devida reflexão
do funcionamento da língua em seus vários níveis (fonológico, morfológico,
sintático, semântico e pragmático).
A partir disso, produziu-se um pressuposto consensual acerca do ensino
de língua portuguesa de que as práticas precisavam partir do uso (linguagem)
para permitir a conquista de novas habilidades linguísticas (metalinguagem). É
justamente, levando em conta tal pressuposto, que os Parâmetros Curriculares
Nacionais
defendem
como
objetivo
do
ensino
de
língua
materna
o
desenvolvimento da competência discursiva do aluno. Por isso, nessa nova
diretriz, o texto, em toda a sua diversidade de gêneros, é considerado o objeto
desse ensino.
Além de se partir da língua em uso, os Parâmetros Curriculares Nacionais
consideram a importância de se tomar a língua como objeto de reflexão, a fim de
possibilitar ao aluno produzir categorias explicativas de seu funcionamento, visto
ser
na prática de reflexão sobre a língua e a linguagem que pode se
dar a construção de instrumentos que permitirão ao sujeito o
desenvolvimento da competência discursiva para falar, escutar,
ler e escrever nas diversas situações de interação.
Em decorrência disso, os conteúdos de Língua Portuguesa
articulam-se em dois eixos básicos: uso da língua oral e escrita, e
a reflexão sobre a língua e a linguagem...(PCNs terceiro e quarto
ciclos do ensino fundamental, p. 34)
Dessa maneira, nos Parâmetros Curriculares de Ensino Fundamental
(PCNs EF), os conteúdos estão divididos em dois eixos: o do uso e o da reflexão.
No eixo do uso, a língua é vista a partir do processo de interlocução, com ênfase
nos seguintes trabalhos: (1) na historicidade da linguagem e da língua; (2) na
constituição do contexto de produção, representações do mundo e interações
sociais (interlocutores, finalidade da interação, lugar e momento de produção); (3)
nas implicações do contexto de produção na organização dos discursos:
restrições de conteúdo e de forma decorrentes das escolhas de gêneros e
78
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
suportes; (4) nas implicações do contexto de produção no processo de
significação (representações dos interlocutores no processo de construção de
sentidos, relações intertextuais e articulação entre texto e contexto no processo
de compreensão).
No eixo reflexão, os conteúdos desenvolvidos sobre os do eixo uso,
referem-se à construção de instrumentos para a análise e funcionamento da
linguagem em situações de interlocução, privilegiando alguns aspectos
linguísticos que possibilitam a ampliação da competência discursiva do sujeito:
(1) variação linguística: modalidades, variedades e registros; (2) organização
estrutural dos enunciados; (3) léxico e redes semânticas; (4) processos de
construção de significação e (4) modos de organização dos discursos.
Já, no ensino médio, pressupõe-se que os elementos básicos relativos ao
funcionamento da língua portuguesa foram apreendidos no ensino fundamental,
cabendo a esse nível oferecer aos estudantes oportunidades de compreensão
mais aguçada dos mecanismos que regulam a língua. Levando em conta as
competências e as habilidades propostas pelos Parâmetros Curriculares para o
Ensino Médio (PCNs EM), chegamos aos seguintes objetivos defendidos para
esse nível de ensino: desenvolvimento do potencial crítico do aluno (percepção
das múltiplas possibilidades de expressão linguística) e sua capacitação como
leitor efetivo dos mais diversos textos de nossa cultura. Nesse sentido, os
PCNs+EM,
ao
dividirem
as
competências
básicas
em
três
blocos
-
Representação e comunicação, Investigação e compreensão e Contextualização
sociocultural -, retomam as competências de uso e de reflexão já expressas nos
PCNs EF. Essas competências básicas apresentam, em sua transversalidade, a
aquisição e o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical
como os grandes pilares do ensino de língua materna no nível médio. A questão
fundamental para o ensino de Língua Portuguesa na etapa final de escolaridade
básica desloca-se, portanto, dos conteúdos a serem abordados para a aquisição
de competências e de habilidades.
No primeiro bloco das competências gerais a serem desenvolvidas no
ensino médio – o da Representação e Comunicação, temos os seguintes
conceitos estruturantes: (1) linguagens (verbal, não-verbal e digital); (2) signo e
símbolo; (3) denotação e conotação; (4) gramática; (5) texto; (6) interlocução,
Teorias do Discurso e Ensino
79
significação, dialogismo e (7) protagonismo. As habilidades relacionadas a esses
conhecimentos contemplam a utilização da linguagem nos três níveis de
competência (interativa, gramatical e textual), através da leitura e da
interpretação, da inserção do aluno como protagonista na produção e na
recepção de textos e da aplicação das tecnologias de comunicação e da
informação em situações relevantes. Considerando a questão que nos interessa
aqui – a argumentação –, enfatizaremos esse primeiro bloco, com os conceitos,
por um lado, de gramática e de texto, por outro lado, de interlocução, significação
e dialogismo.
O conceito de gramática está desenvolvido da seguinte maneira:
refere-se a um conjunto de regras que sustentam o sistema de
qualquer língua. Na fala, fazemos uso de um conhecimento
lingüístico internalizado, que independe de aprendizagem
escolarizada e que resulta na oralidade. Na escrita, necessitamos
de outros subsídios lingüísticos, fornecidos pelo letramento
(conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de
diferentes tipos de material escrito).
O domínio desse conceito é importante em quase todas as
situações em que se trabalha com a língua. Para ficar em alguns
exemplos:
• Na fala ou na escrita, é fundamental considerar a situação de
produção dos discursos que, afinal, são possibilitados pelo
conhecimento gramatical (morfológico, sintático, semântico) de
cada pessoa.
• Compreender que o aceitável na linguagem coloquial pode
ser considerado um desvio na linguagem padrão ou norma culta.
• Abordar os diversos graus de formalidade das situações de
interação.
• Compreender as especificidades das modalidades oral e
escrita da língua (PCNs+EM, p. 60).
Nessa concepção de gramática, temos a presença das perspectivas
estruturais, gerativas e sociolinguísticas para dar conta da análise do
funcionamento sistemático da língua em suas diferentes variedades. Já a noção
de texto vincula–se aos postulados teóricos do conceito de gênero de discurso da
perspectiva enunciativa bakhtiniana. De fato, o texto é concebido como um todo
significativo (verbal ou não-verbal), com diferentes feições, conforme a
abordagem temática, a estrutura composicional e os traços estilísticos do autor. A
partir desse conceito, os PCNs+EM defendem que a unidade de ensino seja
80
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
composta pelo texto, que pode ser abordado a partir de dois pontos de vista: pela
consideração dos diversos aspectos implicados em sua estruturação, o que
envolve as escolhas feitas pelo autor das possibilidades oferecidas pela língua, e
pela sua relação intertextual, através do seu diálogo com outros textos.
Desse modo, as noções de interlocução, significação e dialogismo são
vinculadas à produção de enunciados pertinentes à situação de uso, tanto na fala
quanto na escrita. Segundo tal concepção, as diversas trocas sociais possibilitam
que os falantes de uma língua produzam enunciados de acordo com certas
intenções e dentro de determinadas condições, o que origina diferentes efeitos de
sentido. É, nessa linha, que encontramos a seguinte tese nos PCNs+EM, p. 61:
“Quando se dialoga com alguém ou se lê um texto, é pela interlocução que se
constroem os sentidos; também é nela que os interlocutores se constituem e são
constituídos”.
Assim, os três níveis de competência (interativa, gramatical e textual) são
entendidos como pressupostos necessários à constituição do ser falante e do
usuário de uma língua, através do desenvolvimento das seguintes habilidades: da
utilização da linguagem na interação com pessoas e situações, envolvendo o
desenvolvimento da argumentação oral por meio de gêneros e o domínio
progressivo das situações de interlocução; do conhecimento das articulações que
regem o sistema linuístico, em atividades de textualização, como conexão,
coesão nominal, coesão verbal e mecanismos enunciativos; e da leitura plena
com a produção de sentidos de todos os aspectos significativos, implicando a
caracterização dos diversos gêneros e seus mecanismos de articulação, leitura
de imagens, percepção das sequências e dos tipos no interior dos gêneros e
paráfrase oral, com substituição de elementos coesivos.
Quanto ao ler e ao interpretar, os PCNs+EM tratam do ser leitor,
pressupondo os domínios do código (verbal ou não) e de suas convenções, dos
mecanismos de articulação que constituem o todo significativo e do contexto em
que se insere esse todo. Dessa maneira, a competência de ler e de interpretar
pode desenvolver-se com atividades relacionadas à antecipação e à inferência, à
exploração dos elementos da narrativa, ao tratamento dos efeitos de sentido e da
autoria, através da análise das escolhas e do estilo do autor.
Teorias do Discurso e Ensino
81
A partir dos três eixos sugeridos para o trabalho com a Língua Portuguesa
no ensino médio – centrados no desenvolvimento das competências interativa,
textual e gramatical, há nos PCNs+EM critérios para a seleção dos conteúdos e
das competências e habilidades específicas. Com relação à competência
interativa, é enfatizado o fato de que é, através da língua materna, que o
indivíduo participa das trocas sociais nas diversas situações comunicativas,
sendo a escola a mediadora da aquisição dessa competência. E aqui
precisamente o conceito de interlocução aparece:
Pela língua, somos capazes de agir e fazer reagir: quando nos
apropriamos dela – instaurando um “eu” que dialoga com um
“outro” – buscamos atingir certas intencionalidades, determinadas
em grande medida pelo lugar de que falamos, e construir sentidos
que se completam na própria situação de interlocução
(PCNs+EM, p. 74).
Por isso, para o desenvolvimento da competência interativa, o ensino de
língua materna, conforme os PCNs+EM, deve levar em conta alguns fatores: as
variedades linguísticas da língua, a adequação das variedades às situações de
interlocução – interlocutores, intenções, espaço e tempo, o questionamento dos
rótulos de certo e errado, avaliação da adequação das variedades linguísticas às
circunstâncias comunicativas e o tratamento da norma culta como variedade de
prestígio, mas não como a privilegiada no processo de conhecimento linguístico
do aluno.
Para o desenvolvimento da competência interativa, há nos PCNs+EM
procedimentos sugeridos que enfatizam as situações comunicativas e os
elementos ligados ao ato enunciativo: onde, para quem, como e com que
intenções. Dentro disso, o trabalho com os papéis de falante e de ouvinte tornase importante para o tratamento do saber ouvir, pois, através da escuta, o sentido
da fala do outro pode se legitimar e ser avaliado.
Para o desenvolvimento da competência textual, há nos PCNs+EM a
definição de texto como unidade linguística concreta em uma situação interativa
específica, a partir da qual se constitui como unidade de sentido. É o texto escrito
que é enfatizado tanto do ponto de vista da leitura quanto da produção. O
tratamento conferido à competência textual baseia-se nos trabalhos da
82
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Linguística Textual de Ingedore Koch e de Luiz Travaglia, tendo subjacente o
constructo teórico enunciativo bakhtiniano de gêneros do discurso, já que há a
consideração, para abordagem do texto, do tema, da estrutura composicional e
das escolhas operadas na língua pelo autor (estilo).
Ao trazer os procedimentos para o desenvolvimento da competência
textual, os PCNs+EM listam as maiores dificuldades dos estudantes na leitura de
textos, quais sejam: não conhecer o significado de algumas palavras; não saber o
que o texto quer dizer (sentido global); enxergar a parte, não o todo; não saber o
que está pressuposto e não saber compreender efetivamente o lido. Para superar
tais dificuldades de compreensão, interpretação e valoração de um texto, as
sugestões de procedimentos gerais de leitura são: buscar apoio no significado de
palavras conhecidas e inferir o das desconhecidas; estabelecer relações entre os
significados das palavras, reconhecendo o novo e o dado nas proposições para
conectá-las entre si; construir um significado global, a partir do entendimento da
função das partes do texto; e organizar as ideias globais num esquema coerente.
Tendo em vista que, na produção textual, o aluno necessita mobilizar uma
série de recursos, relacionados às competências interativa e gramatical, torna-se
relevante o desenvolvimento das seguintes habilidades: (1) utilizar relações
constituídas em vários tipos, de acordo com o seu projeto de texto (tese e
argumentos,
causa
e
consequência,
fato
e
opinião,
anterioridade
e
posterioridade, problema e solução, conflito e resolução, definição e exemplo,
tópico e divisão, comparação, oposição e progressão argumentativa); (2)
relacionar adequadamente, no texto dissertativo (expositivo ou argumentativo), a
seleção e a ordenação dos argumentos com a tese; (3) identificar, no texto
argumentativo, o interlocutor e o assunto sobre o qual se posiciona para
estabelecer relações; (4) utilizar diferentes recursos resultantes de operações
linguísticas – escolha, ordenação, expansão, transformação, encaixamento,
inversão e apagamento –, considerando as condições de produção.
No que diz respeito à competência gramatical, o ensino de gramática é
visto como um dos mecanismos para a implementação das competências
interativa e textual, ou seja, é tratado como um meio para um fim. O
desenvolvimento da competência gramatical relacionado ao da textual pode se
dar através dos seguintes procedimentos: exploração de textos de diferentes
Teorias do Discurso e Ensino
83
gêneros quanto ao tratamento temático e aos recursos formais utilizados pelo
autor; estabelecimento de relações entre partes de um texto a partir da repetição
e da substituição de um termo; estabelecimento de relação entre a estratégia
argumentativa do autor e os recursos coesivos e argumentativos escolhidos; e
análise das relações sintático-semânticas em segmentos do texto (gradação,
disjunção, explicação, causalidade, conclusão, comparação, contraposição,
exemplificação, retificação e explicitação). Para o tratamento da competência
gramatical, novamente vemos a influência da Sociolinguística Variacionista e da
Linguística Textual (aspectos coesivos).
Quanto à observação dos recursos expressivos utilizados pelo autor
decorrentes das escolhas dos elementos da língua, há, nos PCNs+EM,
sugestões de procedimentos de leitura intrinsecamente ligados aos mecanismos
gramaticais, tais como o tratamento dos efeitos de sentido decorrentes do uso de
pontuação e a verificação do uso dos recursos lexicais e sintáticos em função da
estratégia argumentativa do autor. Aqui a exploração das escolhas gramaticais
do autor busca vincular o uso das formas às suas estratégias argumentativas e
aos efeitos de sentido que pretende produzir na interlocução. Desse modo, a
gramática é vista como o que possibilita um modo de dizer, que não se limita
apenas à forma, mas à forma como produtora de sentido.
Assim como nos PCNs EF uso e reflexão formam os eixos norteadores do
ensino de língua portuguesa de modo integrado, as diretrizes dos PCNs EM
preveêm o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical,
não de forma estanque, mas simultânea, pois cada competência prescinde das
outras.
O percurso feito permite-nos sintetizar as principais reflexões sobre o
ensino de língua portuguesa no ensino fundamental e no ensino médio
desenvolvidas no interior dos PCNs. Do ponto de vista metodológico, os PCNs
assumem uma visão de ensino-aprendizagem centrada na língua em uso,
concebendo o texto como elemento central da unidade de ensino. Por isso, o
texto, seja na produção, seja na leitura, é concebido em seu aspecto estrutural,
através da exploração dos elementos recorrentes e relacionais (coesão) e, em
seu aspecto enunciativo, a partir da instanciação dos interlocutores e da situação
de enunciação (o aqui e o agora). A questão gramatical é vista como um meio
84
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
para o desenvolvimento das competências interativa e textual, estando a serviço
das estratégias argumentativas do autor, devendo, desse modo, ser explorada na
leitura e na produção de texto. Assim, percebemos uma ênfase no tratamento do
nível semântico da língua, a partir do trabalho com os efeitos de sentido
produzidos na interlocução pelos usos lexicais e pela organização sintática.
Tendo em vista que os PCNs, ao operarem a transposição de questões
teóricas advindas da Linguística ao Ensino de Língua Portuguesa, recorrem a
uma diversidade de teorias, o que consideramos salutar em termos de ensino,
tentaremos a seguir trazer as contribuições teóricas da Semântica Argumentativa
sobre o uso e o funcionamento da língua, concebendo-a também como uma
proposta teórica possível de ser aplicada ao ensino de língua.
3 O funcionamento enunciativo-argumentativo da língua: aspectos teóricos
A menção à perspectiva enunciativa de língua, como já vimos, é atestada
nos PCNs do ensino fundamental e do ensino médio. No entanto, como lembra
Flores (2001), existe uma diversidade teórica que permite falar em mais de uma
teoria da enunciação. Por isso, o autor defende a existência de uma Linguística
da Enunciação, abrigando as diferentes teorias enunciativas. De fato, a
enunciação, embora concebida de forma diversa por diferentes autores, entre os
quais podemos citar Bally, Jakobson, Benveniste, Bakhtin, Ducrot, Authier-Revuz,
parece ter, nessas várias abordagens, as seguintes similaridades: 1) o
estruturalismo saussuriano como condição para elaboração de uma reflexão
particular; 2) a língua em uso, com a verificação das marcas que trazem as
representações do sujeito que enuncia nesse uso e 3) a observação dos
fenômenos de diferentes naturezas (morfológica, sintática, etc.) pelo ponto de
vista do sentido.
Ducrot, o precursor da Teoria da Argumentação na Língua, procura inserir
a sua descrição semântica do sentido no quadro estruturalista saussuriano e no
campo da Linguística da Enunciação. Nesse sentido, é importante evidenciarmos
a concepção de enunciação desse teórico, articulando-a com a sua concepção
de argumentação. Em vários momentos, o autor enfatiza não conceber a
Teorias do Discurso e Ensino
85
enunciação como um fato empírico, ou seja, como uma atividade exercida por um
ser humano que produz certo enunciado influenciado por determinadas
condições ou forças internas ou externas. A enunciação sob esse ponto de vista
é um processo de produção, entretanto Ducrot (1984/entrevista à revista Punto
de vista) salienta que seu trabalho toma a enunciação de outro modo, pois para
ele
a enunciação é somente o simples acontecimento constituído
pela aparição do enunciado, o sentido de um enunciado é o que o
enunciado diz de sua enunciação, porém a enunciação vista não
como processo de produção e sim como acontecimento (...) me
interessa o sentido do enunciado, ou seja, o que se diz no
enunciado sobre a enunciação. (...) O que eu quero dizer é que o
sentido de um enunciado refere a sua enunciação, apresentando
indicações sobre o fato de sua aparição, sobre o valor desta
aparição (p. 24).
Dessa forma, temos que a enunciação é o acontecimento que dá vida ao
produto, concebido como enunciado. O interesse de Ducrot está justamente nas
indicações fornecidas pelo enunciado que trazem o acontecimento enunciativo.
Nesse sentido, as marcas da enunciação no enunciado, por ele estudadas, têm a
especificidade de remeterem à instância em que tais enunciados são produzidos,
fazendo aparecer a posição do locutor, enquanto responsável por esse
acontecimento.
A reflexão contida na Teoria da Argumentação na Língua embora enfatize
os fenômenos da língua enquanto sistema abstrato, procura ir além, visto os
fenômenos da língua também pertencerem à fala na medida em que o uso passa
a lhes dar existência. A dicotomia língua/fala da linguística saussuriana é
operacionalizada
no
quadro
teórico
de
Ducrot
através
da
distinção
frase/enunciado. Para dar conta do tratamento do sentido no enunciado,
enquanto produto da enunciação, Ducrot serve-se da noção saussuriana de
valor, adaptando-a ao seu quadro teórico para abarcar as noções de significação,
valor semântico da frase (entidade abstrata) e sentido, valor semântico do
enunciado (entidade concreta produzida por um locutor). Com isso, mostra que a
própria enunciação está inscrita na língua e é parte constitutiva dos sentidos dos
enunciados. Disso resulta que a Teoria da Argumentação da Língua é uma
86
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
perspectiva que enfatiza o uso, relacionando-o sempre com um sistema
preexistente, a língua.
Numa perspectiva polifônica, o tratamento da enunciação em Ducrot
aparece vinculado às diferentes vozes que se configuram no enunciado. Para o
autor, a descrição da enunciação, constitutiva do sentido do enunciado, contém a
atribuição da enunciação a vários sujeitos: sujeito falante (autor empírico, que
não é levado em conta na descrição do sentido); locutor (aquele que se
responsabiliza pela produção do enunciado) e enunciadores (origens dos
diferentes pontos de vista e atitudes manifestados pelo locutor). Nessa
concepção, o sentido do enunciado não estaria somente nos diferentes pontos de
vista, que se mostram através do locutor, mas também na posição do locutor
frente aos enunciadores por ele postos em cena na produção do enunciado. Na
divisão proposta para o ato enunciativo, é conferida ao sujeito falante, tratado
como ser empírico, a origem desse ato. Esse sujeito é dotado de atividade
psicofisiológica necessária à produção do enunciado. O segundo elemento
constitutivo do ato enunciativo é o locutor, que é o ser do discurso responsável
pelo enunciado, a quem o pronome "eu" e outras marcas de primeira pessoa
referem-se. De acordo com Ducrot, não há paradoxo entre o sujeito falante e o
locutor, pois o primeiro é um elemento da experiência e o segundo, uma ficção
discursiva.
A partir da figura de locutor, Ducrot assinala uma das formas de polifonia,
a qual ocorre no discurso relatado. No exemplo <Pedro diz «João me disse: "eu
virei"» >, encontramos duas marcas de primeira pessoa que remetem a seres
diferenciados, evidenciando dois locutores distintos, o primeiro relacionado a
Pedro e o segundo a João. Por isso, Ducrot prefere caracterizar o discurso
relatado direto como consistindo, fundamentalmente, em uma apresentação de
uma enunciação dupla: o próprio sentido do enunciado atribuiria à enunciação
dois locutores diferentes, eventualmente subordinados. Certamente, do ponto de
vista empírico, para Ducrot, a enunciação é ação de um único sujeito falante, mas
a imagem que o enunciado dá dela é a de uma troca, de um diálogo, ou ainda, de
uma hierarquia de falas.
Além de assinalar essa forma de polifonia, quando há mais de um locutor
explicitamente marcado, a noção de enunciador (E) permite a Ducrot (1984/1987)
Teorias do Discurso e Ensino
87
descrever uma segunda forma de polifonia: aquela que ocorre quando se
encontra, em um discurso, a voz de alguém que não tenha as propriedades que
se atribuem ao locutor. São os enunciadores, que se expressam através da
enunciação, aparecendo somente a manifestação de suas posições, mas não, no
sentido material, suas “falas”. Assim, os diferentes pontos de vista, presentes
num enunciado ou discurso 1, muitas vezes estranhos ao do locutor, são
denominados por Ducrot enunciadores. O conceito desse elemento da
enunciação pode ser visto, através das palavras do próprio autor:
Chamo “enunciadores” estes seres que são considerados como
se expressando através da enunciação, sem que para tanto se
lhe atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente no
sentido em que a enunciação é vista como expressando seu
ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido
material do termo, suas palavras (DUCROT, 1984/1987, p.192).
A pertinência linguística da noção de enunciador é mostrada através da
ironia, da negação, do uso do mas e da pressuposição. Na ironia, o locutor
apresenta a enunciação como expressando a posição de enunciador (E) que o
locutor (L) considera absurda, pois, mesmo sendo o responsável pela
enunciação, L não se identifica com E, origem do ponto de vista expresso na
enunciação. A situação a seguir ilustra as diferentes vozes presentes na ironia:
“Ao dizer que iria passar no vestibular, Márcia foi desacreditada pelos amigos.
Com o listão na mão, constando o seu nome, ela diz para os mesmos amigos:
‘vocês estão vendo, eu não passei!’” (exemplo nosso). Essa enunciação irônica
de Márcia, pela qual se responsabiliza como locutor (uso de eu), apresenta um
ponto de vista diferente do dela, uma vez que pertence aos amigos que
duvidaram dela. Na negação, ocorre a presença de pontos de vista opostos, fato
que ocorre na sequência Pedro não é gentil, em que há um locutor que é
responsável pela sua enunciação e dois enunciadores: E1, que apresenta o
ponto de vista de que “Pedro é gentil” e E2, que apresenta o ponto de vista de
que “Pedro não é gentil”. Com o uso de mas, também percebemos pontos de
1
A noção de discurso em Ducrot está relacionada a fato observável e concreto, tal como o
enunciado, porém situa este último em um nível elementar de descrição e o primeiro em um nível
complexo.
88
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
vista que levam a conclusões diferentes como no enunciado o tempo está bom,
mas estou com dor nos pés, em que o locutor, responsável pelo enunciado,
apresenta quatro enunciadores: um enunciador (E1) que apresenta a posição de
que “faz bom tempo”, encaminhando à conclusão “vamos caminhar” (E2) e um
enunciador (E3), que apresenta a posição “estou com dor nos pés”,
encaminhando à conclusão “não vamos caminhar” (E4). Nesse caso, o locutor
mostra concordância com os enunciadores E1 e E2 dos quais se distancia por
apresentar argumento e conclusão em sentidos opostos (E3 e E4), enunciadores
com os quais se identifica. Com a pressuposição, Ducrot (op. cit.) mostra que há
um enunciador que é responsável pelo posto e outro pelo pressuposto, como
vemos na sequência Pedro parou de fumar, em que E1 coloca que “Pedro não
fuma atualmente” e E2 que “Pedro fumava anteriormente”.
Esses fenômenos, para o autor, atestam linguisticamente os diferentes
pontos de vista do locutor, evidenciando a sua posição no enunciado e seu
engajamento na enunciação. Assim, com a Teoria da Polifonia, Ducrot
(1984/1987) tem o objetivo de criticar e de substituir a tese da unicidade do
sujeito falante. Centra-se no estudo da linguagem cotidiana, aplicada à análise de
enunciados, postulando que a polifonia é um princípio constitutivo da linguagem.
Segundo o autor, o sentido de um enunciado configura-se não só através dos
termos nele contidos, mas igualmente através das "figuras" enunciativas que
apresenta, as quais remetem ao contexto da enunciação. Tais "figuras" abrangem
a diversidade de representação do sujeito no enunciado, fazendo, por isso, parte
de seu sentido.
Com o propósito de descrever o sentido dos enunciados, Ducrot, no texto
Polifonia y Argumentacion (1988), mostra como a noção de polifonia pode ser
usada na Teoria da Argumentação na Língua, relacionada à Teoria dos Topoi.
Nessa versão da teoria, locutor e enunciador são apresentados como “funções”,
reiterando, novamente, a posição de que o autor efetivo (produtor do enunciado)
faz parte das condições externas de sua produção e, por isso, não constitui
objeto da descrição semântica. O conceito de locutor mantém-se, visto ser aquele
a quem se atribui a responsabilidade pela enunciação no interior do próprio
enunciado. Também a noção de enunciadores mantém-se, porque são
considerados como a fonte, a origem, dos diferentes pontos de vista.
Teorias do Discurso e Ensino
89
Com a Teoria dos Topoi, Anscombre e Ducrot (1995) verificam que, entre
um
enunciado-argumento e
um
enunciado-conclusão,
há um
elemento
argumentativo que os articula, imprimindo a tais enunciados uma dada orientação
argumentativa. Para os autores, se de um enunciado pode-se concluir outro, é
porque está intervindo um terceiro termo, um topos, princípio argumentativo que
permite constituir a ligação entre esses dois enunciados. O topos apresenta as
seguintes características: a universalidade, a generalidade e a gradualidade. A
universalidade liga-se ao fato de ele ser um consenso no seio de uma
coletividade; a generalidade relaciona-se ao fato de valer para situações
diferenciadas daquela em que é utilizado e a gradualidade vincula-se à relação
argumento/conclusão, que é gradual por natureza (um argumento é mais ou
menos forte para uma dada conclusão). Devido a essa gradualidade, o topos
pode tomar formas de valores argumentativos, que, na Teoria, denominam-se
formas tópicas.
No exemplo Pedro trabalhou pouco, temos um enunciado-argumento que
leva a determinadas conclusões, entre as quais a conclusão de que Pedro não
está cansado. Ao produzir Pedro trabalhou pouco, não está cansado, temos a
voz de um locutor e as vozes de enunciadores, que expressam seus pontos de
vista de que “quem trabalha cansa” (E1) e de “quem não trabalha não cansa”
(E2). Nesse caso, os enunciadores evocam um topos de que “o trabalho leva ao
cansaço”. O enunciado-argumento (Pedro trabalhou pouco) somente é válido
para o enunciado-conclusão (Pedro não está cansado) graças ao princípio de
universalidade (topos) compartilhado pelos falantes de que “o trabalho cansa”.
Tal relação argumento-conclusão também é entendida porque esse princípio
argumentativo aplica-se a outras situações diferentes daquela que está sendo
explicitada, evidenciando a generalidade do “topos”. A gradualidade, através das
formas tópicas “quanto mais trabalho, mais cansaço” e “quanto menos trabalho,
menos cansaço”, garante o encadeamento entre o enunciado-argumento “Pedro
trabalhou pouco” e o enunciado-conclusão “Pedro não está cansado”. Com isso,
Ducrot (1997/2005) amplia a noção de enunciador, que passa a ser concebido
como a fonte de um ponto de vista que consiste em evocar, a propósito de um
estado de coisas, um princípio argumentativo geral que serve de apoio ao
raciocínio, o topos.
90
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Sendo assim, a análise do sentido argumentativo é feita através de marcas
linguísticas, uma vez que, como atesta Ducrot (1997/2005), o linguista, ao
descrever palavras, descobre nelas indicações relativas a sua “possível”
enunciação. É a partir das palavras escritas ou pronunciadas que a enunciação e
seu contexto devem ser caracterizados, já que somente se pode ter uma imagem
do evento enunciativo considerando o que foi enunciado. Com isso, ele procura
desinformatizar a língua e extinguir a divisão, no sentido do enunciado, entre os
aspectos objetivo e subjetivo, porque os enunciados não dão acesso direto à
realidade, não a descrevem diretamente, visto que, se nós descrevemos a
realidade (aspecto objetivo), fazemos isso por meio de uma atitude (aspecto
subjetivo) e de um chamado ao interlocutor (aspecto intersubjetivo). Dessa forma,
Ducrot unifica os aspectos subjetivo e intersubjetivo no que chama de “valor
argumentativo” das palavras na língua.
Essa relação enunciação/argumentação é ressaltada por Flores (2001),
por considerar que, na Teoria, o emprego de uma palavra no enunciado torna
possível ou impossível a continuidade do discurso, o que mostra um valor
argumentativo no nível fundamental da descrição semântica. Por isso, o autor
observa que a Semântica Argumentativa é uma teoria voltada para as questões
de enunciação porque considera, na representação do sentido do enunciado,
tanto a presença de diferentes vozes, quanto a evocação de princípios
argumentativos que fornecem indicações de como certo enunciado deve ser
interpretado em dada situação.
A versão atual da Semântica Argumentativa, Teoria dos Blocos
Semânticos, proposta por Carel e Ducrot, opõe-se à Teoria dos Topoi. Para Carel
(1995,1997, 1998, 2002), o sentido de uma entidade linguística consiste em
evocar um conjunto de discursos ou de modificar o conjunto de discursos
associados a outras entidades. Nessa versão da Teoria da Argumentação na
Língua, o caráter argumentativo de um encadeamento é definido não pela
intervenção de um topos (elemento externo ao enunciado), mas pela
interdependência entre seus dois segmentos, os quais formam uma unidade de
sentido. Ao dizermos “X é feliz: ele deve ser rico” e “X é feliz: ele tem muitos
amigos”, temos dois sentidos para “felicidade” diferenciados que se constituem
pela interdependência entre os segmentos, pois, no primeiro enunciado, o sentido
Teorias do Discurso e Ensino
91
de “felicidade” liga-se à questão monetária e, no segundo, à questão afetiva.
Essa interdependência semântica entre os dois segmentos dos enunciados forma
uma unidade, que, na Teoria, é denominada Bloco Semântico. Para sistematizar
a sua descrição do sentido e tratar da interdependência entre encadeamentos, a
autora considera como discursos doadores de sentido os encadeamentos
argumentativos ligados por conectores de dois tipos: portanto (encadeamento
normativo) e no entanto (encadeamento transgressivo) 2.
Esses aspectos podem ser vistos nos exemplos a seguir:
(1)
Eu proponho adiar a assinatura do contrato, pois ele apresenta
problemas.
(2)
O contrato apresenta problemas, no entanto eu proponho não adiar a
sua assinatura.
No exemplo 1, há uma interdependência entre “apresentar problemas” e
“adiar assinatura”, garantido pelo encadeamento argumentativo normativo em
portanto, que pode ser reagrupado no bloco “problema PORTANTO adiamento”.
No exemplo 2, também temos uma interdependência entre “apresentar
problemas” e “não adiar assinatura”, evidenciada através do encadeamento
argumentativo transgressivo em no entanto, que pode ser reagrupado no bloco
“problema NO -ENTANTO não adiamento”.
De modo geral, todo bloco semântico tem um aspecto normativo P
PORTANTO Q e um aspecto transgressivo P NO ENTANTO não-Q, o que
confere a argumentatividade inerente aos enunciados e às palavras da língua, já
que esses aspectos podem estar associados a uma palavra devido à
argumentação interna da mesma.
A partir dessas noções, Ducrot (1995, 2002) mostra que certos tipos de
palavras funcionam como um modificador, agindo sobre a força argumentativa de
outra palavra, seja atenuando (desrealizante) seja fortalecendo (realizante) essa
força. Assim, o modificador não introduz nenhum termo novo nos aspectos que
constituem a argumentação interna de determinado termo, mas procura
reorganizar o sintagma com uma nova combinação. Isso pode ser visto no
2
Os conectores donc (portanto) e pourtant (no entanto) são entidades teóricas, que indicam as
relações argumentativas básicas de um encadeamento. O primeiro faz parte da norma e o
segundo evidencia uma transgressão da norma.
92
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
exemplo “problema fácil”, em que “problema” (X) tem sua argumentação interna
(AI) atenuada (aspecto normativo: “esforço PORTANTO resolução”), enquanto
“problema difícil” tem sua argumentação interna reforçada (aspecto transgressivo:
“esforço NO ENTANTO não resolução”). Com os modificadores, ocorre uma
reorientação argumentativa estabelecida na relação pela interdependência de
sentido entre os segmentos.
Nessa proposta teórica, o sentido do encadeamento somente pode ser
constituído pelos dois segmentos que o compõem, evidenciando uma
interdependência
semântica
entre
argumento
e
conclusão
de
forma
indecomponível, o que constitui o bloco semântico. Conforme Azevedo (2003, p.
102), com as noções de bloco semântico e encadeamento, Ducrot e Carel trazem
a inter-relação língua (bloco semântico) e fala (encadeamento). Essa interrelação entre o nível abstrato e o concreto parece, novamente, circunscrever a
interdependência entre o uso e o sistema abstrato, a língua.
A partir dessas considerações, podemos verificar que Ducrot parece
minimizar, na Teoria dos Blocos Semânticos, os aspectos enunciativos, ligados à
Linguística da Enunciação, e realçar mais as relações argumentativas internas
aos enunciados, vinculadas ao quadro saussuriano estruturalista. Embora
minimizados, acreditamos que os aspectos enunciativos da versão atual da teoria
estão nas indicações argumentativas inscritas no encadeamento, que marcam as
posições do locutor e possibilitam a continuidade de sentidos. Se o discurso é
doador de sentido argumentativo, esse sentido é constituído através da escolha
de um segmento em detrimento de outro para orientar a argumentação. Assim,
durante a sua enunciação, o locutor dá indicações sobre o caminho que escolheu
e o alocutário tenta reconstruir esse itinerário a partir das indicações fornecidas
nos enunciados. Isso pode ser exemplificado com a noção de modificador, o qual
reorganiza o encadeamento com uma nova combinação argumentativa.
Nesse sentido, vemos, em todas as reflexões teóricas produzidas no
interior do quadro da Semântica Argumentativa, um tratamento não somente
daquilo que o locutor diz, mas de como ele o diz. Pensamos que a reflexão
produzida sobre esse como nas atividades relacionadas aos eixos do uso e da
reflexão, conforme proposta dos PCNs, possibilitará ao aluno desenvolver a sua
competência interativa, textual e gramatical, tanto para a leitura quanto para a
Teorias do Discurso e Ensino
93
produção de textos. Tais questões serão discutidas no item seguinte, através da
busca de aplicação de uma abordagem argumentativa ao ensino de língua
materna.
4 Argumentação e ensino de língua materna
Com a contextualização dos PCNs, percebemos a defesa de algumas
teses acerca do ensino de língua materna ali contidas, a saber: o tratamento da
língua em uso, com ênfase em atividades de leitura e de produção de texto, e a
abordagem dos mecanismos gramaticais como meio para o desenvolvimento das
competências interativa e textual. Nesse sentido, é dado relevo à questão
gramatical como estando a serviço das estratégias argumentativas do autor na
leitura e na escrita. Com isso, o nível semântico da língua, através do trabalho
com os efeitos de sentido dos usos lexicais e da organização sintática produzidos
na interlocução, passa a ser bastante tematizado.
É justamente por isso que consideramos relevante a abordagem da
Semântica Argumentativa no tratamento da língua em uso e em sua reflexão para
o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical. Na Teoria
da Argumentação na Língua, as relações argumentativas do enunciado são o
foco de estudo, porque o discurso não é composto de informação, mas de
argumentação. Como exemplo podemos citar o segmento “este livro é
interessante”, que não traz uma informação acerca do livro, mas uma
argumentação em favor dele. Ligada a isso, temos a defesa, na teoria, de que o
discurso é doador de sentido e que, portanto, não é a situação de enunciação
que lhe garante significação, já que esta é justamente construída pelo enunciado.
Assim, é o discurso que constrói o contexto, e não o contrário, o que possibilita
interpretar a palavra pelas relações que ela mantém no discurso e pelos pontos
de vista ali expressos.
Como consequência das questões acima, temos que a representação da
enunciação (situação e sujeitos) está integrada no sentido do enunciado, já que
enunciação é acontecimento. Esse acontecimento traz um dizer que, por sua vez,
produz sentidos. Com isso, vemos que ocorre, na Teoria, a dissolução da
94
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
dicotomia língua (abstrato)/fala (concreto) e a defesa da relação frase
(abstrato)/enunciação (acontecimento)/enunciado (concreto).
Os pressupostos da Teoria da Argumentação acima apontados parecemnos ser de grande valia para a construção de uma metodologia produtiva de
ensino de língua materna, principalmente se centrada nos seguintes pontos: no
tratamento da língua em uso como acontecimento particular, mas sempre em
relação com o sistema linguístico, que é coletivo, e na concepção de que o
discurso constrói o contexto, e não o contrário, já que “o mundo aparece, no
enunciado, por meio da exploração discursiva do qual é objeto” (Ducrot,
1997/2005, p. 20). Esse último ponto a nosso ver é de suma importância no
ensino da leitura, em que muitas vezes se toma o texto como pretexto para um
debate que se inicia e termina com opiniões preexistentes e a manifestação
escrita fornece apenas o tema para a discussão sem que o aluno explore o
funcionamento argumentativo contido nas escolhas do autor. No entanto, como
defende Ducrot (1999/2005, pp. 14, 15), “o que preexiste à fala é uma situação
sem limites e sem estrutura: a fala traz com ela os limites e os pontos de vista
que tornam essa situação utilizável para a interpretação”.
A noção de polifonia, desenvolvida no interior da Teoria da Argumentação,
também tem uma valor operacional importante para o desenvolvimento das
competências textual e gramatical do aluno, já que, para a verificação das
diferentes vozes contidas no texto, torna-se necessário observar as marcas
gramaticais que autorizam a existência de diálogo no discurso. Nesse sentido,
torna-se relevante, no tratamento textual, o desenvolvimento dessa concepção de
que, em um mesmo discurso, não temos somente a “voz” de seu autor, enquanto
locutor responsável pelo discurso, mas outras “vozes” que a ela se mesclam,
apontando pontos de vista com os quais o locutor se identifica ou não. Por isso,
trabalhar com as pistas contidas nos enunciados para recuperar não ditos, ou
dizeres implícitos, que apresentam sentidos no texto, torna-se importante para a
formação de leitores críticos. Ilustraremos essa concepção com a descrição do
funcionamento polifônico nos discursos abaixo:
Teorias do Discurso e Ensino
95
Discurso 1:
Na música Pra que mentir, de Vadico e Noel Rosa, temos o seguinte dizer:
“Tu ainda não tens a malícia de toda mulher”.
Com as marcas gramaticais adverbiais “ainda” e “não”, o locutor
apresenta, mescladas a sua voz, outras vozes, que, no interior da teoria, são
chamadas enunciadores. Uma das posições é autorizada pelo uso de “não”,
através do qual o locutor nega um ponto de vista afirmativo anterior, que está no
ponto de vista de que “a interlocutora (tu) considera ter a malícia das mulheres”.
Além disso, o locutor, através do uso de “ainda”, insere outra voz que defende a
posição de que “a interlocutora (tu) um dia terá a malícia das mulheres”. Junto a
essas vozes, implicitamente constituídas pelo uso de marcadores gramaticais,
temos a posição do locutor explicitamente evidenciada em seu dizer através da
defesa de que a “interlocutora (tu) não tem ainda a malícia das outras mulheres”.
A análise do enunciado da música mostra a importância de se verificar o
funcionamento gramatical pelo viés do sentido e como vinculado à argumentação
do autor. Esse tratamento polifônico na interpretação de textos substitui a leitura
horizontal (linear) por uma vertical, visto que a ideia subjacente está no fato de
que o sentido do discurso é constituído por outros discursos, que lhe são
transversais,
cujos
supostos
responsáveis,
tratados
na
teoria
como
“enunciadores”, podem ser diferentes daquele efetivamente responsável pelo
dizer, o “locutor”. Essa superposição de vozes, muitas vezes em confronto (caso
da negação), evidencia o diálogo e a argumentação inerente ao discurso.
Discurso 2:
Em um comercial da Folha de São Paulo, encontramos o seguinte dizer: “A
Folha não se atrela a nenhum grupo. Por isso, a notícia sempre chega ao leitor
como deve chegar: limpa”.
Nesse anúncio da Folha de São Paulo, encontramos diferentes vozes
mescladas à do locutor, aquele que se responsabiliza pela unidade do discurso.
Novamente, temos a partícula negativa “não”, enunciando um ponto de vista
afirmativo de que “a Folha, enquanto jornal, vincula-se a grupos” (enunciador 1).
Explicitamente, temos a defesa do locutor, através do posto de que “a Folha não
se atrela a nenhum grupo” (enunciador 2). Esses pontos de vista são encadeados
96
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
através do articulador “por isso”, que introduz novas vozes, uma relacionada ao
enunciador 1, que defende “A Folha, como jornal, não traz a notícia
transparente/verdadeira” (enunciador 3) e outra que se articula com a do
enunciador 2, assumido pelo locutor, de que “A Folha traz a notícia
transparente/verdadeira” (enunciador 4). Esses sentidos, instaurados nesse
discurso, podem ser lidos devido às pistas fornecidas em sua materialidade, tais
como a partícula negativa “não” e a expressão “por isso”.
Também é importante salientar, nesse discurso, uma tese defendida pela
Teoria da Argumentação da Língua, segundo a qual “o discurso é doador de
sentido”. Essa tese pode ser vista pelo sentido da palavra “limpa”, que está ligada
a discurso “transparente e verdadeiro” e não vinculada à noção de “asseado,
lavado, etc.” O que autoriza o sentido de “limpa” como “transparente e
verdadeira” é justamente a relação posta, no enunciado, entre os termos “Folha,
notícia e limpa”, que, encadeados argumentativamente, trazem o ponto de vista
do locutor e conduzem o interlocutor à conclusão: “A Folha é um jornal
comprometido com a verdade da notícia”.
A reflexão da produção de sentido dos dois discursos, através da
abordagem polifônica, evidencia como esse fenômeno linguístico apresenta-se
no uso da língua. Por fazer parte desse uso, consideramos que, se explorado no
trabalho com a leitura, possibilita o desenvolvimento da competência discursiva
do aluno, acarretando a formação de leitores críticos e de produtores de texto
comprometidos com a escolha de formas como um meio para produzir sentido
argumentativo no dizer, oral ou escrito.
A seguir, a partir de dois episódios representativos de diferentes
momentos de aquisição da linguagem 3, mostraremos a argumentação presente
no dizer da criança, a fim de refletirmos acerca da importância de se considerar
no ensino a relação do aluno com a língua e com o outro, pois acreditamos ser,
nessa relação, que ele se constitui como um sujeito que argumenta. O primeiro
episódio retoma a polifonia, associando-a à questão dos topoi, fenômeno também
3
Essas análises fizeram parte da pesquisa desenvolvida junto à UFRGS, intitulada Um estudo
polifônico da linguagem da criança” e Um estudo polifônico da linguagem da criança: fase II . Tal
pesquisa contou com o apoio da FAPERGS, através da concessão de bolsa de Iniciação
Científica à aluna Maira Azevedo e Souza, que nos auxiliou nas análises aqui exemplificadas.
Teorias do Discurso e Ensino
97
explorado pelo quadro teórico da semântica argumentativa, como evidenciado
anteriormente. O segundo episódio apresenta a argumentação da criança através
do uso de modificadores (adjetivos e advérbios), que, na última versão da Teoria
da Argumentação na Língua cunhada de Teoria dos Blocos Semânticos, têm a
função de atenuar ou reforçar a argumentação contida nas palavras plenas
(verbos e substantivos).
Episódio 1: polifonia e topoi
A criança (3;2.13) relata à entrevistadora, em sua escola, uma experiência
por ela vivenciada.
*entrevistadora:
*ato:
*entrevistadora:
*entrevistadora:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*ato:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*ato:
*entrevistadora:
*criança:
*entrevistadora:
*entrevistadora:
*ato:
98
tu nunca caiu?
a criança responde afirmativamente com a cabeça.
já caiu?
e aí tu chorou?
como é que foi esse tombo que tu caiu, conta prá mim.
eu caí na escada que eu fui na minha avó.
hum!
e aí, como é que aconteceu?
aconteceu, eu aconteci, chorei, daí eu chorei e daí eu fui
pulando e daí eu me machuquei.
hum, coitadinha.
e aí depois quem é que foi lá te socorrer, pegar tu?
o Henrique.
o Henrique?
uh hum.
ah, ele mora lá perto da tua avó?
a criança responde afirmativamente com a cabeça.
hum.
não, ele mora com a mãe dele.
ah, e aí eles deram um remedinho prá ti?
não, foi a minha mãe.
a tua mãe deu remedinho?
uh hum.
e aí tu parou...
deu aspirina.
ah, deu aspirina (risos) e aí tu parou de chorar?
a criança responde afirmativamente com a cabeça.
é?
eu não chorei eu só estava com dor de cabeça.
ah, aí te deu dor de cabeça.
tu caiu deu dor de cabeça?
a criança responde afirmativamente com a cabeça.
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Nas sequências destacadas da criança, percebemos que o locutor
apresenta os pontos de vista de que “a queda faz com que se chore”(E1) e de
que “sem queda não se chora” (E2), evocando o topos (princípio argumentativo
do consenso) de que “o choro requer um motivo” que, no caso, é a queda. Tal
topos mobiliza as formas tópicas “quanto mais motivo→ mais choro” (FT1) e
“quanto menos motivo → menos choro”(FT2). Tal princípio argumentativo é
reiterado pelo locutor quando, diante da pergunta do interlocutor ( é? ), este muda
a orientação argumentativa e coloca “eu não chorei eu só estava com dor de
cabeça”, ou seja, dor de cabeça não é motivo para se chorar, fato reforçado pelo
uso do operador só. Com isso, o locutor mobiliza os pontos de vista de que “se
chora por determinados motivos”(E3) e de que “dor de cabeça não é motivo para
se chorar”(E4), levando argumentativamente, através da evocação do topos já
citado, o interlocutor a concluir que ela não é uma criança que chora por um
simples motivo, como uma dor de cabeça.
Episódio 2: modificadores e blocos semânticos
Situação: a criança (4;9.5) relata, em sua escola, à entrevistadora uma
narrativa ficcional.
*criança:
*criança:
*criança:
*entrevistadora:
* ato:
*entrevistador:
era uma vez um coelhinho ele era muito bom ele andava
dando os presente e os ovo daí o gurizinho disse:
ô coelhinho.
e daí o coelhinho veio (pausa) a coelhinha tava na casa.
hum terminou a história?
responde positivamente com a cabeça.
muito bem.
Na narrativa, selecionamos o encadeamento argumentativo destacado e,
no primeiro segmento, já observamos a exploração pelo locutor do morfema
diminutivo –inho que atenua a argumentação interna de “coelho”, que tem o
aspecto normativo “animal PORTANTO sem generosidade”. Além do diminutivo,
utiliza a palavra “bom”, reforçando essa atenuação, em que “coelhinho bom”
passa a ter em sua argumentação interna (AI) o aspecto transgressivo “animal
NO ENTANTO com generosidade”. Esse aspecto transgressivo dado pela
Teorias do Discurso e Ensino
99
combinação do modificador “bom” à palavra plena “coelho” confere um potencial
argumentativo ao primeiro segmento “coelhinho bom” do encadeamento
evidenciado, o que justifica a consequência “dar presentes”.
As análises empreendidas com dados de crianças parecem mostrar
algumas questões importantes ligadas à Teoria da Argumentação na Língua.
Uma delas diz respeito ao fato de que, independentemente da faixa etária,
valemo-nos de princípios argumentativos (topoi) para mostrar diferentes pontos
de vista (enunciadores), orientando o interlocutor para determinadas conclusões.
O fato de a criança, desde uma fase prematura, já evidenciar argumentação em
seu discurso mostra que argumentar é um fenômeno inerente ao uso da língua, o
que justifica a necessidade de o ensino de língua materna, pautado no uso da
língua, trabalhar os aspectos argumentativos dos elementos linguísticos, já que
um dos pontos enfatizados pelos PCNs relaciona-se justamente à reflexão das
escolhas feitas pelo locutor em suas estratégias argumentativas.
Com relação aos modificadores, as análises empreendidas a partir da Teoria
da Argumentação na Língua também evidenciaram que a criança conhece a
argumentação inerente às palavras da língua, o que lhe possibilita relacionar tais
palavras, muitas vezes, reorientando argumentativamente o seu dizer. Ainda,
observamos que, embora a Teoria da Argumentação leve em conta como modificador
apenas palavras instrumentais (adjetivos e advérbios), o uso de diminutivos parece
funcionar como um modificador. Isso se justifica pela reorganização ou pela
reorientação provocada por estes na argumentação interna das palavras plenas
(substantivos e verbos), quando combinadas às raízes das mesmas.
A partir das considerações sobre os princípios argumentativos subjacentes
às vozes da criança e sobre o uso que fazem dos modificadores, podemos
relacionar o desenvolvimento da linguagem argumentativa da criança no período
pré-escolar e sua relação com o ensino de língua materna em fases posteriores.
Considerando a polifonia aliada aos princípios argumentativos, acreditamos ser
interessante, em termos de ensino, os professores explorarem tais princípios
subjacentes ao discurso dos alunos, a fim de proporem atividades que os levem
em conta, conferindo uma maior contextualização ao trabalho e, com isso, uma
maior possibilidade de eles argumentarem tanto na oralidade quanto na escrita.
Com relação aos modificadores, os professores podem explorar o funcionamento
100
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
lexical e sintático das palavras no discurso, a fim de trabalharem as estratégias
argumentativas do autor. Nesse caso, não importa apenas a metalinguagem, ou
seja, a classificação das palavras como adjetivo, advérbio, etc., mas o
entendimento do funcionamento argumentativo de tais elementos gramaticais no
discurso, constituído pela relação entre encadeamentos.
Os trabalhos de Ducrot e colaboradores situam-se no campo da
Linguística da Enunciação. Nessa perspectiva, os aspectos subjetivo e
intersubjetivo da linguagem (questões enunciativas) relacionam-se ao valor
argumentativo dos enunciados. Desse modo, o emprego de uma palavra torna
possíveis ou impossíveis os encadeamentos argumentativos do discurso, ou seja,
sua continuidade. Por isso, consideramos importante que os professores atentem
para o que o aluno diz, dando continuidade a seus encadeamentos
argumentativos, uma vez que, como mostramos, tanto o uso das vozes quanto o
dos modificadores ocorrem na relação eu-tu da situação de enunciação
(Benveniste, 1974/1989), em que os sujeitos vão constituindo justamente a sua
argumentação a partir dessa relação.
5 Considerações finais
A partir dos pressupostos teórico-metodológicos defendidos pelos PCNs e da
retomada de algumas categorias conceituais da Teoria da Argumentação na Língua
(principalmente polifonia e modificadores), procuramos, neste texto, através da
análise do funcionamento argumentativo da língua em uso, mostrar a possibilidade
de aplicação das noções da Semântica Argumentativa ao ensino de língua materna.
Os PCNs postulam a necessidade de um ensino de Língua Portuguesa
baseado no uso da língua e na reflexão sobre o funcionamento desse uso. A
Teoria da Argumentação na Língua, ao procurar descrever o sentido argumentativo
presente
nos
enunciados/encadeamentos/discursos,
enquanto
entidades
concretas, preconiza o uso da língua como lugar de argumentação do locutor.
A busca de aplicabilidade das noções da Semântica Argumentativa acerca
da descrição do funcionamento da língua no discurso ao ensino de língua
materna parece-nos constituir-se num dos suportes teóricos de que o professor
Teorias do Discurso e Ensino
101
pode se valer para operacionalizar uma metodologia de ensino centrada na
língua em uso, tese dos PCNs, principalmente através da verificação da
argumentatividade inerente a esse uso.
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Teorias do Discurso e Ensino
103
PARA RESUMIR TEXTOS: UMA PROPOSTA DE BASE SEMÂNTICOARGUMENTATIVA
Telisa Furlanetto Graeff*
[email protected]
1 Introdução
Cada vez mais temos necessidade de ler e de produzir resumos. É esse
gênero textual que permite às pessoas acesso mais rápido ao que há de novo na
sua área de atuação, para que possam decidir sobre o interesse ou não de ler o
original. Referimo-nos aqui ao resumo parafrástico. O mesmo que se faz, por
exemplo, quando se ficha uma obra de consulta para estudo, quando se elabora
a revisão de literatura de um trabalho científico ou quando se prepara uma
apresentação de trabalho para seminários, congressos, entre outros.
Devido a esse seu caráter pragmático, a importância de se saber fazer
resumos tem sido reconhecida por alunos e professores.
É sabido que a elaboração de um resumo parafrástico deve observar três
princípios: (1) o princípio de completude, o que significa que a(s) unidade(s)
semântica(s) básica(s) deve(m) ser preservada(s); (2) o princípio de fidelidade,
o que significa que se deve parafrasear o original; (3) o princípio de economia,
o que significa que se devem evitar as repetições de unidades semânticas
básicas.
Relativamente aos princípios de completude e de fidelidade, Graeff
(2001) verificou, em pesquisa realizada com 20 (vinte) leitores competentes, que
realizaram a tarefa de resumir dois textos expositivo-argumentativos, sem
instrução especial, que esses dois princípios foram observados pela quase
totalidade dos resumidores. Observou, inclusive, que eles não só selecionaram
as ideias como também foram capazes de hierarquizá-las, o que, conforme os
*
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo,
Doutora em Linguística Aplicada pela PUCRS.
estudiosos do assunto, constitui o grande problema revelado pela análise de
resumos (Flottum, 1992).
Já o princípio de economia não foi observado pela maioria dos
resumidores. A hipótese é que, se lhes fosse apresentado o quadrado
argumentativo de cada um dos blocos semânticos, que se sucedem ao longo do
texto, eles conseguiriam perceber, com clareza, as repetições de seu próprio
resumo.
Uma hipótese como essa tem base na questão de se é possível ensinar a
resumir textos expositivo-argumentativos, por meio de uma metodologia
fundamentada na Teoria dos Blocos Semânticos e na Teoria da Polifonia,
conforme sugere Graeff na obra antes referida.
Este texto tem o objetivo de apresentar uma pesquisa feita com o intuito de
construir uma metodologia de elaboração de resumos. Seguem uma reflexão
sobre importância do tema da pesquisa e seus objetivos, o quadro teórico em que
se insere, a metodologia utilizada, a apresentação e análise dos resultados.
2 Atividade de resumo e ensino
Manter-se atualizado é uma exigência para um profissional que pretenda
ser competente e cidadão de seu país e do mundo, sintonizado, portanto, com as
questões locais, nacionais e internacionais que afetam a sua esfera de atuação
profissional e a vida humana. Essa não é uma tarefa fácil, principalmente pelo
volume de informações, postos à disposição com o desenvolvimento dos meios
de comunicação de massas e, mais recentemente, pelas novas tecnologias de
informação e comunicação.
Nesse contexto, ganha espaço o resumo que, de um lado, difunde o
conhecimento produzido mais rapidamente e, de outro, permite dominar a
enorme quantidade de informações com que nos defrontamos diariamente.
Todos lemos resumos. Eles se apresentam a nós desde a forma de
resumo de novelas de TV, de filmes até a forma de resumos de pesquisas,
servindo aos nossos mais variados interesses e necessidades de interação sóciocomunicativa.
Teorias do Discurso e Ensino
105
Todos produzimos resumos, desde cedo, na escola. E essa atividade é
realizada sem que se tenham recebido instruções formais de como proceder.
Opera-se,
então,
com
a
intuição
de
falantes
nativos.
É,
também,
fundamentalmente nessa intuição que se baseiam as parcas instruções sobre
como fazer um resumo, produzidas entre nós. De fato, não há tradição na escola
brasileira de se trabalhar o resumo. A esse respeito, cumpre referir a obra
Redação Técnica (Silva et al., 1975) que pretendeu iniciar essa tradição, junto
aos alunos iniciantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesse livro,
é dedicado um capítulo inteiro ao tema Sínteses, em que é tratada a habilidade
de sintetizar, a extensão do resumo, os passos essenciais para se compor um
resumo e em que se transcreve a NB-88 Sinopses e Resumos. A atitude foi de
vanguarda, mas a compreensão da atividade de resumir é essencialmente
intuitiva, como se pode observar no trecho:
Para resumir um trabalho é necessário compreender sua
organização. Parte-se de uma visão global do texto ou livro,
através de uma leitura de apreensão do todo. O objetivo é
compreender o texto em seu conjunto e em cada uma de suas
partes. Para isso, deve-se determinar o enfoque que o autor dá
ao assunto: filosófico ou científico, administrativo ou econômico,
qualitativo ou quantitativo. Desta forma podem-se estabelecer,
então, os pontos essenciais do tema e suas qualificações e
enunciá-los do modo mais conciso possível.(p.109)
Ao se ler sobre os passos essenciais para compor um resumo, fica-se
sabendo que o primeiro passo é encontrar a ideia-tópico do parágrafo; o
segundo, eliminar tudo o que não seja essencial à compreensão da ideia-tópico;
o terceiro, escrever o resumo, utilizando as palavras e expressões mais
econômicas, e que o passo final é comparar o resumo com o original, para testar
a sua precisão e fazer quaisquer revisões. (Silva et al., 1975, p.110-11).
Diferentemente do que ocorre no Brasil, o resumo ocupa um lugar de
destaque no ensino nos Estados Unidos e na Europa, especialmente na França.
Conforme Charolles (1991), o resumo de textos foi introduzido, em 1969, na
prova de francês do baccalauréat, tendo sido anexado, também, a outros exames
ou concursos do ensino francês.
106
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Na medida em que se reconhece a importância pragmática desse gênero
textual, justifica-se o interesse em construir e testar uma metodologia de base
científica, que dê conta dessa atividade de síntese. Nesse sentido, foram
objetivos da pesquisa: (1) verificar se é possível ensinar a selecionar e a
hierarquizar unidades semânticas básicas em textos expositivo-argumentativos;
(2) verificar se o conhecimento das unidades semânticas básicas de um texto
favorece a elaboração de resumo parafrástico, isento de repetições; (3) colocar à
disposição dos professores subsídios teórico-metodológicos que auxiliem no
trabalho de ensinar a resumir textos.
3 Alguns estudos sobre resumo
A leitura e a produção de resumos vem ocupando um lugar cada vez mais
importante em nossa sociedade, sendo necessária a sua prática na maioria das
atividades profissionais. Em vista disso, o estudo de sua natureza e
funcionamento deveria ocupar lugar especial entre os estudiosos da linguagem
em uso. Entretanto, há poucos trabalhos sobre esse tipo de prática discursiva
entre nós. A produção de conhecimento principal sobre esse gênero textual vem
da Europa, especialmente da França.
Grize (1992, p.3-10) examina a atividade de resumir e constata a
existência de dois planos distintos que se apresentam ao resumidor: um, no nível
do texto, caso em que o resumo sintetiza o texto; o outro plano está sobre o
texto, caso em que o resumo é feito a propósito do texto, tratando do que o texto
apresenta e do modo como procede. Nos dois casos, segundo o referido autor,
trata-se de uma atividade de comunicação que, por natureza, necessita de três
componentes: o emissor, o destinatário e a situação, o que conduz a interrogar a
respeito do status de cada participante. É diferente, por exemplo, resumir um
texto para quem já o leu e para quem não o leu ainda. Em síntese, quem resume
deve ter uma ideia de a quem se dirige o resumo, do por que resumir e do para
fazer o quê. As várias respostas a essas questões levaram Grize a uma tentativa
de caracterização de quatro tipos de textos que comumente são considerados
resumos, embora ele já alerte para o fato de que o primeiro e o último constituam
Teorias do Discurso e Ensino
107
quase casos-limite: (1) resumo exemplificação; (2) resumo substituição; (3)
resumo síntese; (4) resumo descrição.
Enquanto o resumo exemplificação é feito de excertos retirados do original,
o resumo substituição constitui um novo modo de apresentar o que o texto diz e o
modo como diz. Em geral, ele comporta um tipo de julgamento do resumidor.
Conforme Grize, o resumo síntese é o mais frequente. Ele parafraseia as ideias
essenciais, mantendo as palavras-chave. Às vezes o próprio título pode constituir
sozinho o resumo do texto. No resumo descrição, são escolhidos os aspectos
que serão retidos, como os fatos, no caso de índice analítico; as ideias, no caso
de manuais de filosofia, etc.
O resumo de que nos ocupamos neste trabalho é o resumo síntese.
Constitui uma paráfrase resumitiva do texto original.
A respeito de como proceder para resumir um texto, é importante
mencionar duas perspectivas teóricas: uma, linguística de base cognitiva, de que
são representantes Van Dijk e seus seguidores como Vigner; outra, linguística de
base sintática, representada por Charolles.
Van Dijk (1980, p.46-49) detalha regras de resumo de texto, chamadas de
macro-regras, que, na verdade, são regras gerais que subjazem à compreensão
de qualquer texto. São elas:
(1)
seleção/apagamento
fraco,
pela
qual
se
apagam
todas
as
proposições do texto-base que não sejam relevantes para a
interpretação de outras proposições do discurso;
(2)
seleção/apagamento forte, pela qual se apagam proposições
localmente relevantes;
(3)
generalização,
pela
qual
se
constrói
uma
proposição,
conceptualmente mais geral, pela abstração dos detalhes semânticos
das respectivas sentenças;
(4)
construção, pela qual se substitui uma sequência de proposições por
uma
proposição
microproposições
que
denote
denotam
um
fato
global,
componentes,
do
qual
condições
as
ou
consequências habituais;
(5)
zero, pela qual se reproduz no macronível uma mesma proposição
que ocorre no micronível.
108
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Essas macro-regras estabelecem relações entre a macroestrutura do texto
e as estruturas semânticas das frases e de sequências menores do conjunto do
texto (microestruturas). Conforme Van Dijk, essas macro-regras podem ser
aplicadas em diversos níveis, de sorte que pode haver várias macroproposições
hierarquicamente ordenadas. Entende-se, assim, que há diferentes níveis
possíveis de macroestrutura num texto, uma vez que cada nível superior, isto é,
mais global de proposições pode representar uma macroestrutura, em relação a
um nível inferior. Nesse caso, a macroestrutura de um texto, seria aquela mais
geral e global deste texto.
As macro-regras, na definição do autor em foco (1983, p.58), são “uma
reconstrução daquela parte de nossa capacidade linguística com a qual unimos
significados, convertendo-os em totalidades significativas maiores”. Elas são
utilizadas para estabelecer uma ordem entre as proposições, o que implica a
redução da informação. No plano cognitivo, as macro-regras são consideradas
operações para redução de informação semântica, utilizadas na compreensão de
textos.
Vigner (1991, p.33-54) aborda a questão do resumo de textos narrativos e
descritivos pelo viés da dimensão cognitiva, associada às modificações lexicais e
sintáticas. Assumindo que o resumo pressupõe capacidades de abstrair e de
generalizar,
postula
três
operações
características
dessas
capacidades:
globalização, por meio da qual se eliminam, se substituem e se integram
informações; de generalização e de conceptualização. Ele mesmo admite que
essas operações têm “analogias incontestáveis” com as operações de
compreensão, explicitadas por Van Dijk e Kintsch (1975).
Exemplifica a operação de globalização, por meio de um texto narrativo
cuja redução se baseia no apagamento de certo número de informações
subordinadas, relativamente a um modelo cognitivo global do tipo script. Nessa
passagem da experiência singular ao esquema, o apagamento e a integração
das informações fundamentam-se no tratamento cognitivo do texto, que
determina “o valor estrutural da informação”, de acordo com a sua posição no
conteúdo global do texto. Para exemplificar a operação de generalização, Vigner
seleciona duas descrições (retratos) sobre as quais aplica o processo de
generalização, associado a um princípio de economia em matéria de
Teorias do Discurso e Ensino
109
reformulação. Desse modo, os retratos perdem suas peculiaridades, tornando-se
um único retrato genérico. Para exemplificar a operação de conceptualização,
utiliza um texto composto de duas partes: descrição da vida de um camponês e
comentário. A primeira situa-se no universo da experiência, da constatação; a
segunda, no universo do conhecimento, da explicação. A passagem da
constatação empírica para a conceptualização ocorre pela redução dos pontos de
vista, sob os quais é apresentado o objeto ou o acontecimento, a um único
sentido de um dado campo teórico. Desse modo, reduz-se a informação
semântica e aumenta-se a densidade do texto.
O trabalho de Vigner cresce em importância para o ensino, quando o autor
examina as implicações da retomada do conteúdo semântico reduzido e de sua
reformulação linguística, do ponto de vista da seleção lexical e das alterações
sintáticas dos enunciados. Na transformação de globalização (das partes para o
todo), o léxico se organiza segundo uma relação de tipo partitivo, isto é, as partes
são reunidas sob uma etiqueta lexical única. Na tarefa de generalização (do
específico ao genérico), a relação posta em jogo é do tipo hierárquico, isto é, da
hiponímia para a hiperonímia. No processo de conceptualização (do empírico
para o genérico), o evento ou o objeto descrito é, de certo modo,
desindividualizado, posto fora das circunstâncias, sendo ressaltada a estrutura do
acontecimento ou da organização. O aspecto de alterações sintáticas é
brevemente tratado por Vigner. Contudo, enfatiza dois pontos que podem dar
lugar a aplicações pedagógicas: os artigos (o uso de definido/indefinido) e as
modificações sintáticas mais perceptíveis na passagem dos enunciados
descritivos para os enunciados teóricos (transformações de períodos simples em
compostos por subordinação e posterior nominalização dos períodos compostos).
Enfatizando que os pré-requisitos cognitivos não são idênticos para todos
os tipos de textos, esse autor menciona que os textos expositivo-argumentativos
parecem escapar da utilização das operações que descreveu. Imagina que a
redução desse tipo de texto possa estar ligada às operações de globalização, isto
é, à integração num esquema argumentativo global de todos os elementos
subordinados.
Charolles (1991, p.7-27) situa-se num quadro teórico totalmente diferente
dos relacionados à perspectiva cognitivista. As macro-regras não têm lugar em
110
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
sua
perspectiva,
pelo
fato
de
elas
se
basearem
nos
conhecimentos
enciclopédicos dos resumidores, não sendo, por isso, nem predizíveis nem
controláveis, pelo menos linguisticamente. Sua abordagem da atividade de
resumo considera essencialmente marcas linguísticas de superfície (conectores,
expressões que situam no tempo e no espaço, verbos introdutores de mundos,
marcas de segmentação e anáforas), capazes de guiar o resumidor na
construção de uma representação da organização do texto-fonte e na
hierarquização da informação que ele contém.
Para mostrar o funcionamento de sua proposta, Charolles examina o
primeiro parágrafo de um texto, proposto como prova de resumo. Nesse caso, os
elementos que guiam a hierarquização das informações são os conectores, que
podem estar implícitos ou explícitos. Considerando que o conector indica,
convencionalmente, qual função semântico-pragmática liga sua enunciação, na
intenção do autor, aos segmentos que o precedem, Charolles levanta a hipótese
de que o processo de compreensão inclui a recuperação mental dos conectores
implícitos. Essa tarefa de restituição relacional e intencional constitui o processo
de compreensão, que supõe, ainda, duas outras operações: a parentetização e a
hierarquização. Na tarefa de parentetização, a interpretação conduz a reunir os
conjuntos de enunciados aos quais se atribui a mesma função enunciativa; na
hierarquização, é estabelecida uma hierarquia de intenções em que as operações
de consecução (donc=portanto), de correção (mais=mas) e de oposição
(pourtant=mesmo assim) são diretrizes, devendo, por isso, ser preservadas no
resumo. Considerando que os princípios de contração são recursivos, Charolles
demonstra que uma versão moderadamente condensada do texto-fonte poderia
ser objeto de uma nova aplicação da regra de eliminação de enunciados
subordinados, até que se chegasse a constituir um tipo de título, estado último do
resumo.
É interessante observar que, após todas essas operações – explicitação
de conetivos, parentetização, hierarquização -, o texto-fonte fica reduzido a
enunciados que expressam as unidades semânticas básicas, isto é, fica reduzido
a enunciados que expressam os encadeamentos argumentativos em donc
(portanto) e os encadeamentos argumentativos em pourtant (mesmo assim).
Conclusão a que chegou Graeff (2001), ao estudar a atividade de resumir de uma
Teorias do Discurso e Ensino
111
perspectiva semântico-linguística, nesse caso, aplicando a proposta de
semântica argumentativa, elaborada inicialmente por Oswald Ducrot, em
cooperação com Jean-Claude Anscombre (1983). Essa teoria, que parte do
pressuposto de que a língua é essencialmente argumentativa, foi ampliada pela
Teoria da Polifonia e pela Teoria dos Topoi e, mais recentemente, modificada
pela Teoria dos Blocos Semânticos (Carel,1995).
Aplicando ao estudo do resumo princípios e conceitos da Teoria da
Polifonia associados a princípios e conceitos da teoria dos Blocos Semânticos foi
possível concluir como se constrói o sentido nos textos e propor a metodologia de
resumo de textos (Graeff, 2001) que foi testada na pesquisa que está sendo
agora apresentada.
Conforme Carel (1995), um enunciado A donc C (= A portanto C) é
argumentativo por expressar discursos como O apetite é sinal de saúde e O
estudo conduz ao sucesso. Tais discursos não são considerados pela referida
autora como associações de conceitos independentes (Apetite e Saúde; Estudo e
Sucesso), não sendo vistos como elos entre um argumento e uma conclusão. Ela
os percebe como representações unitárias (blocos semânticos), as quais
constituem o próprio sentido dos encadeamentos argumentativos.
Mostra, também, que os encadeamentos em donc, além de exprimirem um
bloco, exprimem uma apreensão positiva ou negativa do bloco.
Carel inova, ainda mais, ao afirmar a existência de encadeamentos
transgressivos (em pourtant), ao lado de encadeamentos argumentativos (em
donc). Sua tese é de que ambos os encadeamentos são igualmente primitivos,
não se fundamentando o encadeamento transgressivo A pourtant não-C no
encadeamento normativo A donc C. Nessa perspectiva, os dois constituem
unidades semânticas básicas.
Desse modo, pode-se estabelecer o quadrado argumentativo do bloco cujo
sentido resulta da interdependência semântica entre apetite e saúde como
segue:
Seja: X= apetite Y= saúde
bloco semântico + positividade: apetite / saúde
bloco semântico + negatividade: não apetite/ não saúde
112
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
A. Ter apetite donc ter saúde.
B. Não ter apetite donc não ter saúde.
Aspecto normativo (X DC Y)
Aspecto normativo (neg X DC neg Y)
C. Não ter apetite pourtant ter saúde. D. Ter apetite pourtant não ter saúde.
Aspecto transgressivo (neg X PT Y)
Aspecto transgressivo (X PT neg Y)
Nesse quadrado argumentativo, os pares A/B e C/D são recíprocos.
(Cada par recíproco é formado pela apreensão positiva e negativa do mesmo
bloco). Os pares A/D e B/C são conversos. (Cada par converso é composto de
um aspecto argumentativo normativo e de um aspecto argumentativo
transgressivo).
Conforme Carel (2002, p.37), a conversão é uma das relações
fundamentais do discurso, visto instalar a oposição entre enunciados. Ao
explicitar primeiramente, sob que condições duas argumentações são conversas,
para depois tratar de enunciados conversos, afirma a pesquisadora que duas
argumentações
são
conversas,
primeiramente,
quando
se
trata
de
encadeamentos como
(n) a polícia pressiona Paulo para que vá vê-la, donc ele irá.
(t1) a polícia pressiona Paulo para que vá vê-la, pourtant ele não irá.
isto é, de encadeamentos, com estrito parentesco material, da forma A
donc C e A pourtant não-C.
Observa, contudo, Carel que são também conversos (n) e (t2):
(t2) os professores pressionavam Maria a responder, pourtant ela não
respondeu
Explica que a relação de conversão não exige um estrito parentesco
material, sendo converso a A donc C qualquer encadeamento que exprima o
mesmo bloco semântico e o mesmo aspecto transgressivo desse bloco, ou seja,
A pourtant não-C. Entende a autora em foco que são conversos, em relação ao
encadeamento normativo (n), ambos os encadeamentos transgressivos (t1) e
Teorias do Discurso e Ensino
113
(t2), porque, ainda que não sejam estritamente aparentados materialmente,
ambos exprimem a mesma ideia de ação feita sob pressão e sob o mesmo ponto
de vista transgressivo, ou seja, tanto em (t1) quanto em (t2) é dito que se pode
resistir à coação.
A seguir, Carel (p. 37) define a noção de enunciados conversos:
(...) dois enunciados serão ditos conversos se suas
argumentações internas são conversas. Por exemplo, os dois
enunciados até mesmo esse bom estudante foi reprovado e esse
bom estudante, como se esperava, foi aprovado são conversos
porque eles condensam respectivamente as argumentações
conversas é um bom estudante, pourtant ele foi reprovado e é um
bom estudante donc foi aprovado.
Como se mencionou antes, a base teórica para o estudo do resumo reuniu
tanto ideias da Teoria dos Blocos Semânticos quanto da Teoria da Polifonia.
Ducrot (1968, p.65), em sua Teoria da Polifonia, faz perceber que a ideia
de sujeito-falante remete, na verdade, a várias funções muito diferentes, como a
função de sujeito empírico (produtor do enunciado); de locutor (responsável pelo
enunciado); de enunciador (responsável pelos pontos de vista apresentados pelo
enunciado), e que a indicação da posição de locutor, em relação à posição dos
enunciadores, pode ser de identificação, de aprovação e de oposição.
Em vista disso, na perspectiva da Teoria da Polifonia que propõe, há três
etapas importantes para a constituição do sentido do enunciado:
(a)
apresentação dos pontos de vista dos diferentes enunciadores;
(b)
indicação da posição do locutor em relação à posição dos
enunciadores;
(c)
identificação do(s) enunciador(es) com outra pessoa que não o
locutor.
Para que essa noção de polifonia pudesse ser aplicada à estrutura global
do texto, tivemos (Graeff, 2001) de transpô-la do enunciado para o texto e
considerar que o sentido de um texto expositivo-argumentativo é redutível a uma
superposição de diferentes vozes que, postas em cena pelo locutor, dialogam
entre si, agrupando-se para concordar ou discordar e, com as quais o locutor
concorda e se identifica, ou não. Isso significa que, num texto, os enunciadores
são agrupados conforme a identidade da orientação argumentativa do que
114
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
enunciam. Em outras palavras, conforme o encadeamento argumentativo que
suas manifestações expressam.
No caso de o locutor não concordar com uma dada orientação
argumentativa, os enunciados que a evocam são todos apagados, isto é, não são
retidos no resumo. Já relativamente ao conjunto de vozes, ditas aparentadas por
evocarem o mesmo bloco semântico e o mesmo aspecto argumentativo desse
bloco, ele é mantido no resumo, expresso num enunciado argumentativo que
represente essa ideia comum, que organiza as vozes no conjunto, caso o locutor
com ele concorde e/ ou se identifique.
Observe-se que, no caso de o locutor se identificar com um encadeamento
transgressivo de um dado bloco semântico, isso significa que ele concorda/
reconhece a existência do aspecto normativo, mas que preferiu expressar o bloco
em seu aspecto transgressivo. Nesse caso, a presença, no resumo, de um
encadeamento argumentativo transgressivo torna desnecessária a presença do
seu converso normativo.
A construção das matrizes para análise dos resumos, que especificam
essas unidades semânticas básicas, observou os seguintes passos (Graeff,
2001, p.92-93):
a)
leitura do texto-base;
b)
identificação dos blocos semânticos;
c)
estabelecimento
do
quadrado
argumentativo
de
cada
bloco,
composto pelos aspectos recíprocos (positivo e negativo) e pelos
aspectos conversos (normativo e transgressivo);
d)
seleção dos encadeamentos expressos no texto-base;
e)
seleção dos encadeamentos com que o locutor do texto-base
concorda e/ou se identifica.
4 Metodologia da pesquisa
4.1 Os textos
Foram selecionados três textos (denominados aqui Texto1, Texto2 e
Texto3) dentre artigos de opinião, publicados na Revista Veja, em 2003. Esses
textos versam sobre temas da atualidade, de interesse dos brasileiros em geral.
Teorias do Discurso e Ensino
115
4.2 Os participantes
Participaram da pesquisa 10 (dez) alunos de Curso de Pós-Graduação em
Letras, em nível de Mestrado.
4.3 O procedimento
1- O Texto 1 Qual a mais bela?, de Rosana Zakabi, publicado nas páginas
dedicadas a assuntos gerais da revista Veja, de 17/12/2003, p.146, foi distribuído
aos alunos. Solicitou-se que o resumissem, observando os princípios de
economia e de fidelidade. Não se definiu tempo para a realização da tarefa.
2- Os alunos receberam instruções formais sobre procedimentos para
realização de resumos, com base nas teorias da Polifonia e dos Blocos
Semânticos. A seguir, juntamente com o professor, leram o Texto2, Mataram
mais um, de Ronaldo França, publicado nas páginas sobre o Brasil, da revista
Veja de 13/08/2003, p.5; identificaram os blocos semânticos desse texto e
elaboraram o quadrado argumentativo correspondente a cada um dos blocos. Por
fim, selecionaram os encadeamentos argumentativos com os quais o locutor
concorda e/ou se identifica. A seguir, com base nesses encadeamentos
argumentativos selecionados e já hierarquizados pela própria interdependência
existente entre os blocos semânticos do texto, escreveram o resumo. O professor
leu, comentou cada resumo, solicitando aos alunos que o reescrevessem,
quando julgou necessário. Procedimento semelhante foi adotado com o Texto 3
Sobre veados, flamingos e outros bichos, ensaio de Roberto Pompeu de Toledo,
publicado na revista Veja, em 20/08/2003, p.126.
Acertados os resumos dos textos 2 e 3, os alunos receberam novamente o
Texto 1 e a respectiva cópia do resumo que fizeram sobre esse texto, com a
tarefa de que cada um avaliasse o seu resumo e de que o reescrevesse, se
julgasse necessário. Ao final da atividade, entregaram o resumo do Texto 1, na
última versão.
3 - Essa última versão do resumo do Texto1 de cada aluno foi avaliada,
considerando os princípios de completude (presença/ausência de unidades
116
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
semânticas básicas), de economia e de fidelidade, com base nos procedimentos
referidos em relação aos Textos 2 e 3, isto é, com base na matriz gerada por
esses procedimentos, e, em seguida, comparada com a primeira versão do
resumo do Texto 1, também avaliada com os mesmos critérios.
4.4 Passos para resumir os textos 2 e 3
4.4 1 Etapas seguidas em aula, para sintetizar o Texto 2
Mataram mais um, de Ronaldo França, publicado nas páginas sobre o
Brasil, da revista Veja de 13/08/2003, p.5, que se lê abaixo:
Mataram mais um
Diretor de presídio é assassinado no meio
da rua. De tão banal, a cena já não comove
os brasileiros
Ronaldo França
O Rio de Janeiro foi palco, na semana passada, de mais uma cena de
banditismo explícito. Foi assassinado, com dezessete tiros, o diretor do presídio
de Bangu III, Abel Silvério de Aguiar. Seu carro foi perseguido por outros dois
automóveis, na Avenida Brasil, a mais movimentada do Rio. Os bandidos
encapuzados dispararam até que ele perdesse o controle da direção. Aguiar
chocou-se contra um ônibus. Os assassinos, que usavam coletes à prova de bala
e máscaras, saltaram dos carros e atiraram mais de perto, para garantir a
execução. Duas semanas antes, Paulo Rocha, o coordenador de segurança do
complexo penitenciário, que reúne quinze unidades, foi assassinado no mesmo
local, de forma semelhante. Apesar da inaceitável ousadia dos bandidos, não se
registrou comoção especial pelas mortes. É como se os assassinatos, mesmo
quando de agentes da lei, juízes e políticos, fossem inescapáveis fatos da vida.
Não são. Não podem ser. A história mostra que a banalização do banditismo é
um fenômeno que, como o câncer, nasce e cresce silenciosamente. Quando se
tenta atacá-lo, em muitos casos, já é tarde demais.
A ousadia dos bandidos é crescente. Quando eles agem de maneira
especialmente cruel, produzem reações da sociedade na forma de manifestações
públicas "pela paz" ou "contra a violência". Essas manifestações têm sido inócuas
para conter os marginais. Elas podem revelar, no fundo, um fenômeno de
adaptação, de amortecimento social diante do inimigo que não se sabe mais
como combater. Em junho, mês da mais recente estatística disponível, 600
pessoas foram assassinadas no Rio. No último trimestre, a violência ceifou 950
vidas por mês em São Paulo. Somente nos dois principais Estados da federação
Teorias do Discurso e Ensino
117
matam-se, em média, 18.600 pessoas por ano. São números assustadoramente
altos. A Guerra do Vietnã matou, em média, 20 000 pessoas por ano, somados
os dois lados. O Rio e partes de São Paulo passam por uma guerra urbana que,
por sua persistência e pela freqüência dos episódios sangrentos, acabou se
incorporando à rotina urbana.
Na semana passada, após o assassinato de Aguiar, as autoridades
fluminenses de segurança anunciaram, como de praxe, medidas urgentes.
Especula-se que o crime teria sido cometido por quadrilhas insatisfeitas com o
rigor na prisão ou em virtude de uma disputa pelo controle das cantinas nos
presídios. A polícia promete apurar o caso. Um estudo feito pelo secretário
nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, mostrou que apenas 8%
dos homicídios investigados pela polícia são elucidados. As investigações não
costumam andar muito além do anúncio de medidas urgentes. E, no entanto,
afora as famílias, ninguém se lembra de cobrar soluções. É como se tudo fosse
muito normal. Não é.
O professor entregou o texto aos alunos. Foram feitos comentários sobre a
revista, sobre a sua circulação, sobre a seção onde se encontra o texto, sobre
seus possíveis leitores, etc. A seguir, o professor iniciou a leitura do texto. Já, no
primeiro período, percebeu-se que o locutor do texto constatava a existência de
banditismo explícito no Brasil, mas não se sabia, ainda, o que ele achava
disso, como se posicionava diante dessa constatação. Somente após relatar
ocorrências de banditismo explícito, o locutor apresenta a outra parte do bloco
semântico expressa no enunciado: Apesar da inaceitável ousadia dos bandidos,
não se registrou comoção especial pelas mortes. Então, pôde-se perceber que
escrevia sobre a existência de banditismo explícito, relacionada com a
inexistência de comoção especial da sociedade. O locutor se posiciona,
convocando esse bloco semântico em seu aspecto argumentativo transgressivo
(Há banditismo explícito PT não há comoção especial da sociedade).
Manifesta seu espanto diante dessa conduta fora do normal da sociedade. Notese que o normal seria (Há banditismo explícito DC a sociedade rechaça,
repudia, exige medidas em sentido contrário, etc). Mais adiante, no texto, ele
vai sintetizar o encadeamento argumentativo transgressivo por meio da
expressão banalização do banditismo. Em outras palavras, esse encadeamento
constitui uma paráfrase da expressão em foco, ou seja, sua argumentação
interna. O texto, então, passa a explicitar essa banalização, constatando tanto o
aumento da violência, da ousadia dos bandidos quanto a ineficácia de ações em
sentido contrário por parte das autoridades e a ausência de indignação por parte
118
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
da sociedade. O locutor conclui o texto com os enunciados É como se tudo fosse
muito normal. Não é. Observe-se que o primeiro desses enunciados expressa o
encadeamento O banditismo explícito é rotineiro DC é normal. Já o segundo
enunciado, que expressa o ponto de vista do locutor sobre a banalização do
banditismo, contém o encadeamento argumentativo transgressivo O banditismo
explícito é rotineiro PT não é normal. Como se pôde perceber, o locutor
rechaça a atitude da sociedade brasileira de considerar banal o banditismo
explícito, exortando-a a cobrar soluções das autoridades. Essa seria uma
possível síntese do texto 2.
4.4.2 Etapas seguidas em aula, para sintetizar o Texto 3
Sobre veados, flamingos e outros bichos, de Roberto Pompeu de Toledo,
articulista da Revista Veja, publicado em 20/08/2003, p.126, do qual se lê abaixo
a segunda nota, que trata do segundo tipo de poder – o da casa do patriarca da
Globo.
Sobre veados, flamingos e outros bichos
Duas notas e dois tipos de poder: o da
imagética do ministro da Justiça e o da
casa do patriarca da Globo
Roberto Pompeu de Toledo
No fundo, no fundo, a diferença entre o burguês e o aristocrata é que o
aristocrata nunca vende a casa. Um burguês, e burguês aqui cobre desde a
classe média até a classe média alta, como se diz no Brasil, vive trocando de
casa, ou de apartamento. Aristocrata que é aristocrata nasce e morre na mesma
casa – ou castelo. Quando morre – supremo requinte – é enterrado nos próprios
domínios. A princesa Diana repousa na herdade da família. No Brasil não há,
salvo os Orleans e Bragança – que, ao que consta, não pretendem vender o
Palácio Grão-Pará, na doce Petrópolis –, aristocratas. Mas há os que, lúcidos,
sabem que, depois de acumular riqueza, o passo seguinte é perseguir os
atributos da aristocracia. Ajuda muito. Duplica o prestígio e reforça o poder. E,
entre esses atributos, o principal é a casa – uma casa que não só se imponha
pelo tamanho e pela elegância, mas que transmita a idéia de raízes, de
permanência, de continuidade. O banal sonho da casa própria da patuléia
transmuda-se, no aristocrata, na fidelidade ao castelo.
Teorias do Discurso e Ensino
119
Essas coisas vêm a propósito de Roberto Marinho. Ele morava numa
mansão do nobre bairro do Cosme Velho – e atenção que se disse "nobre", não
"rico"; "rico" é a Barra da Tijuca. No amplo terreno, cortado por um rio – nada
menos que o Rio Carioca, com nome igual ao dos habitantes da cidade –, criava
flamingos, araras, macacos e outros bichos. O patriarca da Globo ali estava fazia
mais de meio século, marca pífia em termos europeus, mas de causar estupor no
Brasil – e não se duvide de que a casa, e os bichos, e o rio contribuíram
pesadamente para a mística do proprietário. Especialista no assunto, Roberto
Marinho sabia que o poder emana, também, da casa em que se mora. No fim,
não chegou a ser enterrado em seus domínios, mas foi velado neles – e assim,
mesmo morto, se apresentou em escala superior ao comum dos mortos.
Costumam chamar Machado de Assis, que morou ali perto, de "bruxo do Cosme
Velho", apelido meio incompreensível num escritor tão racional e límpido. Roberto
Marinho, o prestidigitador do poder e do prestígio, foi o verdadeiro bruxo do
Cosme Velho.
Nesse ensaio, o autor apresenta, como ele mesmo refere, “Duas notas e
dois tipos de poder: o da imagética do ministro da Justiça e o da casa do
patriarca da Globo.” Foi objeto de análise argumentativa a segunda nota, que
começa com o enunciado: No fundo, no fundo, a diferença entre o burguês e o
aristocrata é que o aristocrata nunca vende a casa. Esse enunciado convoca o
bloco semântico que relaciona ser aristocrata / manter-se na casa, em suas
formas recíprocas: É aristocrata DC não muda de casa e É burguês DC muda
de casa. Na sequência do texto, o locutor comenta que burguês vive trocando de
casa e apresenta exemplos que reiteram a argumentação expressa no
encadeamento de que nobre, mesmo quando morre, permanece na propriedade
da família. A seguir, o enunciado: Mas há os que, lúcidos, sabem que, depois de
acumular riqueza, o passo seguinte é perseguir os atributos da aristocracia. Esse
enunciado trata dos burgueses que, depois de ricos, querem ser reconhecidos
como nobres. Continuando, o texto explicita por que o principal atributo da
aristocracia é a casa (...) uma casa que não só se imponha pelo tamanho e pela
elegância, mas que transmita a idéia de raízes, de permanência, de continuidade.
O enunciado com mas convoca o aspecto transgressivo da forma recíproca
negativa É burguês DC muda de casa, expresso pelo encadeamento
argumentativo transgressivo É burguês PT não muda de casa. A partir daqui,
todo o último parágrafo do texto é usado pelo locutor para mostrar que foi assim
com Roberto Marinho, que sempre viveu na mesma casa, sendo nela até velado.
120
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Em síntese, Roberto Marinho era burguês, mesmo assim possuía atributos da
aristocracia.
5 Apresentação e análise dos resultados
Após trabalharem, em sala de aula, na síntese dos Textos 2 e 3, os alunos
foram unânimes em afirmar que os resumos do Texto1 Qual a mais bela?,
elaborados antes de conhecerem a Teoria dos Blocos Semânticos, eram “muito
ruins”, especialmente em função de terem mantido as exemplificações, as quais
reproduzem encadeamentos argumentativos.
Verificou-se que esses resumos são, no geral, longos, tendo cinco deles
entre 40 a 44 linhas; quatro, entre 31 a 35 linhas, havendo apenas um com 25
linhas, o que não o isenta do atributo longo, em vista de se conceber o resumo
como
uma
paráfrase
resumitiva
que
expressa
o(s)
encadeamento(s)
argumentativo(s) com que o locutor concorda e /ou se identifica.
Nessa direção de análise, é interessante que se leia o texto em foco, para
que se possam considerar, posteriormente, as suas unidades semânticas
básicas.
Qual a mais bela?
Dois concursos elegem misses
com critérios opostos, uma
delas com o peso de 117 quilos
O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e
bumbum firmes e abundantes. Algo como Gisele Bündchen, certo? Nem sempre.
Em alguns países, mulher bonita é aquela que não apenas exibe seios e
bumbum fartos, mas também apresenta cintura larga, barriga exuberante, braços
fortes e pernas bem grossas. Neste mês, dois concursos de beleza elegeram
mulheres completamente distintas uma da outra. Um deles ocorreu em Burkina
Fasso, na África. As participantes tinham entre 75 e 130 quilos e desfilaram em
trajes de banho. A grande vencedora foi Carine Riragendanwa, de 27 anos, 1,80
metro de altura e 117 quilos. O outro foi na China e elegeu a miss Mundo 2003. A
vencedora foi a irlandesa Rosanna Davison, de 19 anos, também de 1,80 metro
de altura e dezenas de quilos mais magra. Para o concurso de miss Mundo, o
pré-requisito é ter 90 centímetros de quadris, 60 de cintura e 90 de busto. O
concurso de Burkina Fasso parte do pressuposto de que, quanto maiores forem
as medidas das misses, melhor.
Teorias do Discurso e Ensino
121
Apreciar formas arredondadas não é exclusividade de Burkina Fasso.
Fugindo do padrão de beleza em voga no Ocidente, que prega a magreza
absoluta, quem faz sucesso em várias sociedades da África e de algumas ilhas
do Pacífico Sul são as gordinhas. Na Nigéria, há um festival todos os anos que
também elege uma miss, geralmente a mais corpulenta. Antes de se casarem,
muitas noivas nigerianas passam por um regime de engorda para agradar a seus
pretendentes. No mundo ocidental, as formas arredondadas foram valorizadas
até meados do século passado – a musa dos anos 50 era Marilyn Monroe, com
seus seios e quadris voluptuosos. Na Renascença, as mulheres roliças eram
fonte de inspiração para os artistas consagrados da época. Elas simbolizavam
status, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de
elegância no início dos anos 90, quando as supermodelos Cindy Crawford e
Claudia Schiffer se transformaram no padrão de beleza na maior parte dos
países.
Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos
que contribuem para o conceito de beleza. Segundo os cientistas, a simetria
facial, ou seja, a medida dos olhos, do nariz, da boca e das faces, é um item
importante na escolha dos parceiros. É sinal de genes saudáveis, ausência de
parasitas e sistema imunológico eficiente. A proporção entre cintura e quadris
também é um indicador ancestral de saúde e fertilidade. Quadris mais largos
costumam ser atraentes para a maioria dos homens. Talvez por esse motivo os
corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por eles. Ainda
assim, casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez mais raros.
Países que antes cultuavam as cheinhas passaram a admirar as mais magras
por influência da indústria da moda. Há também a questão da saúde. Excesso de
gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e diabetes – e, pior
ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo. No Arquipélago de Tonga, no
Pacífico Sul, ser gordo foi privilégio reservado aos nobres durante séculos. Nas
últimas décadas, a prosperidade permitiu que os pobres também engordassem.
Em conseqüência, a obesidade e as doenças cardiovasculares tornaram-se
endêmicas. Os gordos passaram de bonitos a feios
O texto inicia, indagando se o padrão universal de beleza é o de mulher
magérrima. E ele mesmo responde: Nem sempre. Têm-se, já aqui, dois blocos
semânticos que relacionam peso e beleza, expressando padrões estéticos de
culturas diferentes: numa, ser magro é belo; e noutra, ser gordo é belo, cujos
encadeamentos argumentativos normativos poderiam, respectivamente, ser
expressos como é magro DC é belo e é gordo DC é belo.
Passa, então, a explicitar essa ideia, mencionando, com detalhes, dois
concursos ocorridos simultaneamente – um, na África, cuja vencedora pesava
117 quilos, e outro, na China, para eleger a miss Mundo, cuja vencedora era bem
magra.
122
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
No segundo parágrafo, são apresentados novos exemplos de que, em
várias sociedades da África e de algumas ilhas do Pacífico Sul, são as
“gordinhas” que fazem sucesso, diferentemente do que ocorre no Ocidente hoje,
em que as “magérrimas” fazem sucesso.
Como se pode perceber, o texto continua tratando dos dois blocos
semânticos, que representam dois padrões de beleza opostos.
A partir da metade do segundo parágrafo, passará a mostrar que ser gordo
também foi critério de beleza no mundo ocidental, desde a Renascença até o
século XIX, tendo sido substituído, somente no início dos anos 90, em virtude do
aparecimento das super modelos, que eram altas e magras, o que significa
associar ao padrão de beleza gordo DC belo o atributo de mais frequente.
No terceiro parágrafo, o texto apresenta mais argumentos a favor da ideia
gordo é belo, ao referir que, além dos fatores culturais, os biológicos também
contribuem para definir o conceito de beleza, sendo a proporção entre cintura e
quadril também um indicador ancestral de saúde e fertilidade. E, mais adiante,
que quadris mais largos costumam ser atraentes para a maioria dos homens e
que corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por eles, o que
reforçaria a ideia de prevalência do padrão gordo DC belo sobre o magro DC
belo.
É, então, que surge no texto um parágrafo iniciado por Ainda assim.
Confira-se: Ainda assim, casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada
vez mais raros, em que se explicita a relação de padrão estético e frequência no
mundo, constituindo um novo bloco semântico, apreendido no aspecto
transgressivo pelo enunciado em questão. Pelo que vinha sendo enunciado no
texto sobre o padrão estético gordo é belo, se poderia concluir que ele
suplantaria o outro (magro é belo). A orientação argumentativa desse parágrafo
indicava para a universalização do padrão estético gordo é belo (padrão de
beleza gordo DC mais frequente). Contudo, o Ainda assim expressa a seleção
do aspecto transgressivo (padrão de beleza gordo PT mais raro).
A seguir, já em seu final, lê-se no texto o enunciado Países que antes
cultuavam as cheinhas, passaram a admirar as mais magras, que manifesta o
encadeamento argumentativo normativo padrão de beleza magro DC mais
frequente. Concorrem para a ampliação desse padrão no mundo, segundo o
Teorias do Discurso e Ensino
123
texto, a expansão da indústria da moda, para a qual ser gordo é estar fora de
moda, é ser desleixado, e questões ligadas à saúde, segundo as quais
obesidade é fator de doença. Após apresentar exemplos da ocorrência dessa
mudança de comportamento, o texto conclui com o enunciado Os gordos
passaram de bonitos a feios, que expressa a tendência à universalização do
padrão de beleza magro.
Como já se referiu, os resumos feitos na sala de aula, antes de se praticar
a metodologia baseada nas teorias dos Blocos Semânticos e da Polifonia,
caracterizam-se por serem notoriamente longos, tendo muitas ideias repetidas.
Em realidade, nota-se, em todos eles, que o texto foi copiado, com supressões
da
exemplificação
ou,
às
vezes,
apenas
de
detalhes
existentes
nas
exemplificações. Prova disso é o mais sintético deles, que resultou num texto
com 25 linhas, no manuscrito elaborado pelo chamado Aluno 8. Confiram-se os
dois resumos feitos por esse aluno.
Resumo 1. Texto 1. Qual é a mais bela?
O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e
bumbum firmes e abundantes, mas em alguns países elegem misses com
critérios opostos.
No mês de dezembro de 2003, dois concursos de beleza elegeram
mulheres completamente distintas uma da outra. Um deles ocorreu em Burkina
Fasso, na África. As participantes tinham entre 75 e 130 quilos. O outro foi na
China e elegeu a miss Mundo 2003. Para o concurso de miss Mundo, o prérequisito é ter 90 centímetros de quadris, 60 de cintura e 90 de busto. O concurso
de Burkina Fasso parte do pressuposto de que, quanto maiores forem as
medidas das misses, melhor.
No mundo ocidental, as formas arredondadas foram valorizadas até
meados do século passado. Na Renascença, as mulheres roliças simbolizavam
status, conforto e boa saúde. A magreza estabeleceu-se como sinônimo de
elegância no início dos anos 90.
Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos
que contribuem para o conceito de beleza. Segundo os cientistas, a medida dos
olhos, do nariz, da boca e das faces é sinal de genes saudáveis. A proporção
entre cintura e quadris também é um indicador ancestral de saúde e fertilidade.
Ainda assim, casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez
mais raros. Países que antes cultuavam as cheinhas passaram a admirar as mais
magras por influência da indústria da moda. Há também a questão da saúde.
Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e diabetes
e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo.
124
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Resumo 2. Texto 1. Qual é a mais bela?
O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios e
bumbum firmes e abundantes. Nem sempre.
Em alguns países da África, mulher bonita é aquela que não apenas exibe
seios e bumbum fartos, mas também apresentar cintura larga, barriga
exuberante, braços fortes e pernas bem grossas.
Na Renascença, as mulheres roliças eram fontes de inspiração para os
artistas consagrados da época. Elas simbolizavam “status”, conforto e boa saúde.
A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90.
Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos
que contribuem para o conceito de beleza. A medida dos olhos, nariz, boca e das
faces – simetria facial, é sinal de genes saudáveis. Talvez por esse motivo os
corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por homens. Países
que antes cultuavam as cheinhas passaram a admirar as mais magras por
influência da indústria da moda e também de saúde.
Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e
diabetes, e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo.
Quando se comparam os dois resumos, percebe-se que, também na
elaboração do segundo resumo, o aluno ficou preso ao texto-fonte. A diferença
entre os dois textos produzidos é muito pequena, até no número de linhas de
cada um. Fica muito evidente que o Aluno 8 não conseguiu identificar blocos e
encadeamentos. Daí a dificuldade de suprimir exemplificações e paráfrases.
Curiosamente, foi desse aluno o menor Resumo 1 do texto “Qual a mais bela?”,
do que derivou a expectativa de que seu Resumo 2 fosse modelar.
Diferentemente disso, todos os outros nove alunos, cujos resumos 1 eram
bem maiores, chegando um deles a 44 linhas, o que significa maior presença de
paráfrases e de exemplificações, produziram resumos 2 mais adequados, no
ponto de vista do princípio da economia. Compare-se o número de linhas dos
resumos 1 e 2 por aluno:
Aluno
Resumo 1 Resumo 2
Aluno 1
31
06
Aluno 2
32
15
Aluno 3
42
19
Aluno 4
40
16
Aluno 5
40
07
Aluno 6
42
07
Aluno 7
44
13
Aluno 8
25
21
Aluno 9
31
11
Aluno 10
35
09
Teorias do Discurso e Ensino
125
Analisando os resumos 2, no ponto de vista dos princípios de completude
(expressão dos encadeamentos com que o locutor se identifica) e de fidelidade
(o resumo deve ser uma paráfrase do original), constatou-se a sua não
observância nos resumos produzidos pelos alunos 6 e 7, como se mostrará a
seguir.
Aluno 6 Resumo 2
O conceito universal da beleza atualmente é ser magérrimo, além de não
correr riscos com doenças cardiovasculares.
Já em Burkina Fasso, na África, este conceito foge às regras, pois
mulheres gordas são vistas como as mais belas.
Note-se que, nesse caso, não foi observada a ordem em que os blocos
vão se constituindo no texto-fonte: (1) peso e beleza, (2) padrão de beleza e
frequência no mundo. A ausência dessa hierarquia ocasionou tanto a
incompletude quanto a infidelidade do resumo relativamente ao texto-fonte.
Aluno 7 Resumo 2
Quando abordamos o assunto beleza, nos vêm à mente mulheres altas e
magras. Porém isto não é regra em alguns países.
Todos sabem que os ditames da beleza trazem como modelo pessoas
extremamente elegantes, parecendo-nos o mais bonito, mas há lugares em que
isto não é a regra, pois ser gordo nestes países, já há algum tempo, mostra que
as gordinhas são muito apreciadas.
Portanto, querendo ou não, dependendo do lugar, as opiniões são
diferentes com relação aos padrões de beleza; mas uma coisa é certa: ser magro
tem lá suas vantagens.
Nesse resumo, há três parágrafos que se parafraseiam. É possível que
tenha
havido
a
intenção
de
elaborar
um
resumo
com
introdução,
desenvolvimento e conclusão, o que poderia explicar a repetição. No terceiro
parágrafo, verifica-se a infração ao princípio de fidelidade ao original, quando se
lê “(...) mas uma coisa é certa: ser magro tem lá suas vantagens.” Note-se que
não é o caso de “ter lá suas vantagens”, pois o texto “Qual a mais bela?” trata da
universalização do padrão de beleza magro.
Exceto esses três resumos comentados (Alunos 6, 7, 8), todos os outros
(ver Anexo) indicam a produtividade da metodologia de resumo baseada nas
126
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Teorias da Polifonia e dos Blocos Semânticos. A propósito, comparem-se os
resumos 1 e 2 do Aluno 1, que seguem.
Resumo 1. do Texto 1. Qual a mais bela?
No mês de dezembro (2003) ocorreram dois concursos de beleza, que
elegeram mulheres completamente distintas uma da outra. Um deles ocorreu um
Burkina Fasso, na África. As participantes tinham entre 75 e 130 quilos e
desfilaram em trajes de banho. A grande vencedora foi Carine Riragendanwa, de
27 anos, 1,80 metros de altura e 117 quilos. O outro foi na China e elegeu a Miss
Mundo 2003. A vencedora foi a irlandesa Rosanna Davison, de 19 anos, também
de 1, 80 metros de altura e dezena de quilos mais magra. Para o concurso de
miss Mundo, o pré-requisito é ter 90 centímetros de quadris, 60 de cintura e 90
de busto. O concurso de Burkina Fasso parte do pressuposto de que, quanto
maiores forem as medidas das misses, melhor.
Em várias sociedades da África e de algumas ilhas do Pacífico Sul, o
padrão de beleza em voga são as formas arredondadas, valorizadas, no mundo
ocidental, até meados do século passado. Na Renascença, as mulheres roliças
inspiravam artistas e simbolizavam status, conforto e boa saúde. A magreza
estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90,
transformando-se no padrão de beleza na maior parte dos países.
Casos como o de Burkina Fasso estão se tornando cada vez mais raros,
por influência da indústria da moda e por questões de saúde, uma vez que o
excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e de
diabetes. Para Piorar, a obesidade é vista como sinal de desleixo. Nas últimas
décadas, a prosperidade, no Arquipélago de Tonga, no Pacífico Sul, permitiu que
os pobres engordassem – antes privilégio dos nobres. Em consequência, a
obesidade e as doenças cardiovasculares tornaram-se endêmicas. Os gordos
passaram de bonitos a feios.
Resumo 2. do Texto 1. Qual a mais bela?
Principalmente no Ocidente, o padrão de beleza em voga é a magreza
absoluta. Já, em alguns países, mulher bonita é aquela que “quanto maior,
melhor”. Porém, padrões de beleza que cultuam as “cheinhas” estão se tornando
cada vez mais raros, por influência da indústria da moda e questões de saúde.
Parece muito claro, nesse caso, que a diferença verificável entre os dois
resumos advém da diferença de concepção de resumo que presidiu a elaboração
de cada um. Enquanto o Resumo 1 contém as ideias básicas hierarquizadas,
mas repetidas por paráfrases e exemplificações, o Resumo 2, reconhecendo a
existência de unidades semânticas básicas na organização dos sentidos do texto,
contém apenas o essencial, expressão dos encadeamentos argumentativos:
magro DC belo; gordo DC belo; padrão de beleza magro DC mais frequente,
que se sucedem no texto-fonte, constituindo seu sentido. Observações
Teorias do Discurso e Ensino
127
semelhantes poderiam ser feitas a propósito dos resumos 1 e 2 de outros seis
alunos, o que reitera a validade do procedimento proposto e, especialmente, da
perspectiva teórica que o sustenta.
6 Considerações Finais
A comparação dos resumos 1 e 2 do texto “Qual a mais bela?”,
produzidos, respectivamente, antes e depois da interferência feita pelo professor
em sala de aula, revela que conceitos da Teoria da Polifonia aliados aos
conceitos de bloco semântico, de encadeamento argumentativo recíproco
(positivo e negativo) e converso (normativo e transgressivo), aplicados à
atividade de produção de resumos parafrásticos, ao mesmo tempo em que
garante a presença das ideias essenciais, hierarquizadas, do texto-fonte, reduz
significativamente a sua repetição.
Além disso, a observação da facilidade com que a maioria dos alunos
identificou as unidades semânticas básicas dos textos sintetizados em aula e,
posteriormente, com que reformulou o Resumo 1 indicam que a abordagem de
base semântico-argumentativa sintoniza com a competência dos usuários da
língua, sendo capaz de ampliá-la. Nessa direção, é possível afirmar que essa
competência linguística é argumentativa, visto que os alunos reconheceram,
tanto na atividade de leitura do texto-fonte quanto na de produção do resumo,
que o sentido é gerado no encadeamento argumentativo o qual, por sua vez,
pode se manifestar por meio dos diferentes enunciados, que constituem o texto.
Dito de outro modo, eles reconheceram a existência de enunciados que, embora
não fossem materialmente aparentados, expressavam uma mesma ideia, isto é,
um mesmo bloco e um mesmo aspecto transgressivo ou normativo com que
foram apreendidos.
Essas constatações comprovam o poder explicativo da Teoria da
Argumentação na Língua e sua possibilidade de aplicação ao ensino, posto que
se assiste, nesse caso específico, à ampliação do conceito de resumo subjacente
à produção do Resumo 1, na medida em que a sua reformulação (Resumo 2)
passa a ser presidida pelo entendimento de que se trata de uma prática
128
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
discursiva que explicita a(s) unidade(s) semântica(s) básica(s) do texto-fonte, isto
é, o(s) encadeamento(s) argumentativo(s) vinculado(s) ao(s) bloco(s) que o
constituem, com os quais o locutor, responsável pelo texto, se identifica.
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linguistiques de l’ activité de résumé. Pratiques, n.72, p.33-54, déc.1991.
Anexo: Resumo 2 do Texto 1 Qual a mais bela?
Aluno 1 Principalmente no Ocidente, o padrão de beleza em voga é a magreza
absoluta. Já, em alguns países, mulher bonita é aquela que “quanto maior,
melhor”. Porém, padrões de beleza que cultuam as “cheinhas” estão se tornando
cada vez mais raros, por influência da indústria da moda e questões de saúde.
Aluno 2 O padrão universal de beleza feminina volta-se a corpos magérrimos,
longilíneos e com seios e bumbum fartos.
No entanto, há exceção para esse padrão, pois, na África, o sinônimo de
beleza volta-se para, além de seios e bumbum fartos, também para cintura larga,
barriga exuberante e braços e pernas grossas.
Porém, alguns países que já cultuaram as “cheinhas” passaram a admirar
as mais magras, talvez por influência da moda, ou também, pela associação da
obesidade a doenças cardiovasculares, que vêm modificando o conceito de
beleza, em que ser gordo está significando ser feio.
Aluno 3 O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima com seios e
bumbum firmes e abundantes, mas há alguns países em que as mulheres gordas
são sinônimo de elegância e beleza.
No Ocidente a beleza da mulher passou a ter destaque nos anos 90
quando se estabeleceu como sinônimo de elegância a mulher magra e alta.
Em alguns países da África e em algumas ilhas do Pacífico Sul, beleza
significa mulher forte com traços físicos exuberantes, passando, em alguns
casos, por regime de engorda para melhor representar sua beleza.
Contudo, pelo fato de a obesidade estar hoje associada a doenças
cardiovasculares, ser gordo vem adquirindo significado de ser desleixado e feio.
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Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Aluno 4 O padrão de beleza, imposto às mulheres, não é o mesmo devido às
diferenças culturais existentes entre os países do mundo.
Se, ser magra para algumas mulheres é ser bela e elegante, para outras, o
sinônimo de beleza está na sua gordura exuberante, de formas arredondadas.
Não se pode esquecer, no entanto, que, em algumas culturas, a gordura
está associada à prosperidade; mas, nos dias atuais, há uma grande
preocupação com a questão da saúde. Ser gordo, em nossa sociedade, é
sinônimo de doença além de ser um sinal de desleixo.
Em vista disso, ser gordo está se tornando feio em todos os lugares do
mundo.
Aluno 5 No Ocidente ser magra é sinônimo de beleza, porém, na África, quanto
mais gorda a mulher for, maior será a sua beleza.
No entanto, com o passar do tempo, descobriu-se que o excesso de
gordura estaria ligado ao surgimento de doenças e, a partir daí, os gordos
passaram, então, de bonitos a feios.
Aluno 6 O conceito universal da beleza atualmente é ser magérrimo, além de
não correr riscos com doenças cardiovasculares.
Já em Burkina Fasso, na África, este conceito foge às regras, pois
mulheres gordas são vistas como as mais belas.
Aluno 7 Quando abordamos o assunto beleza, nos vem à mente mulheres altas
e magras. Porém isto não é regra em alguns países.
Todos sabem que os ditames da beleza trazem como modelo pessoas
extremamente elegantes, parecendo-nos o mais bonito, mas há lugares em que
isto não é a regra, pois ser gordo nestes países, já há algum tempo, mostra que
as gordinhas são muito apreciadas.
Portanto, querendo ou não, dependendo do lugar, as opiniões são
diferentes com relação aos padrões de beleza; mas uma coisa é certa: ser magro
tem lá suas vantagens.
Aluno 8 O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios
e bumbum firmes e abundantes. Nem sempre.
Em alguns países da África, mulher bonita é aquela que não apenas exibe
seios e bumbum fartos, mas também apresentar cintura larga, barriga
exuberante, braços fortes e pernas bem grossas.
Na Renascença, as mulheres roliças eram fontes de inspiração para os
artistas consagrados da época. Elas simbolizavam “status”, conforto e boa saúde.
A magreza estabeleceu-se como sinônimo de elegância no início dos anos 90.
Sabe-se hoje que, além da questão cultural, há ainda fatores biológicos
que contribuem para o conceito de beleza. A medida dos olhos, nariz, boca e das
faces – simetria facial, é sinal de genes saudáveis. Talvez por esse motivo os
corpos esqueléticos são admirados mais pelas mulheres que por homens. Países
que antes cultuavam as “cheinhas” passaram a admirar as mais magras por
influência da indústria da moda e também de saúde.
Excesso de gordura tornou-se sinônimo de doenças cardiovasculares e
diabetes, e, pior ainda, a obesidade é vista como sinal de desleixo.
Teorias do Discurso e Ensino
131
Aluno 9 O padrão universal de beleza é o da mulher alta, magérrima, com seios
e bumbum firmes e abundantes. Porém, em alguns países, esses padrões são
substituídos e há escolha de mulheres mais belas, atendendo critérios bem
diferenciados como das formas arredondadas e da gordura.
O conceito de beleza associado à magreza ocorreu no início dos anos 90.
Somados aos padrões culturais, os fatores biológicos também têm contribuído.
Outro aspecto que influenciou foi a moda que colaborou com a denominação do
belo.
Aluno 10 Nem sempre o padrão de beleza foi o da mulher magérrima. Esse
padrão estabeleceu-se no início dos anos 90, na maioria dos países.
Contudo, em várias sociedades da África e em algumas ilhas do Pacífico
Sul, o padrão de beleza é o da mulher gorda.
Atualmente a influência da indústria da moda e a associação da obesidade
a doenças cardiovasculares e a desleixo estão universalizando o conceito de
beleza associado à magreza.
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Carmem Luci da Costa Silva, et al.
GÊNEROS DISCURSIVOS NO ENSINO: O FOCO NA INTERAÇÃO VERBAL
Neiva Maria Tebaldi Gomes*
[email protected]
Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos
vários tipos de enunciados em particular (primários e
secundários), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é
indispensável para qualquer estudo, seja qual for a orientação
específica. Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades
de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer
área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração,
desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo
existente entre a língua e a vida 1 (grifo nosso).
1 Considerações iniciais
No ensino de língua e suas literaturas, estamos há algum tempo buscando
romper com uma tradição que prioriza questões sobre a língua e sobre a
literatura para dar espaço a uma prática escolar que priorize a interação verbal,
que se processa por meio de textos orais e escritos. A produção científica
produzida
com
a
finalidade
de
orientar
o
ensino,
os
documentos
parametrizadores2 e os próprios manuais didáticos apontam para essa prática.
Entretanto, uma mudança, seja qual for, resulta sempre de um processo lento e
gradual no modo de agir e de pensar, que vai além, portanto, de uma orientação
teórica3. No contato direto com a sala de aula 4, percebe-se que ainda não se
explora devidamente a diversidade textual. O texto, com poucas exceções,
*
Professora de Língua Portuguesa, Linguística Aplicada ao Ensino, Prática de Ensino e Estágio
Supervisionado, no UniRitter.
1
Bakhtin, 2000, p. 282.
2
Referimo-nos, mais especificamente, aos PCNs.
3
Segundo FARIAS (2006, p. 43), uma mudança "reclama, também e principalmente, uma
dimensão humana, política e ética por parte dos sujeitos nela envolvidos. Mudar pressupõe uma
ruptura por dentro, para se libertar das amarras com o estabelecido e redefinir um outro modo de
pensar e agir".
4
Contato que mantemos pelas visitas às escolas para orientação e supervisão do estágio
curricular do curso e Letras e pelos encontros com professores de Ensino Básico que a prof. Leny
Gomes e eu promovemos ao desenvolver a pesquisa docente A sala de aula e a pesquisa:
intersecção de espaços, cujo objeto de estudo são as práticas escolares de ensino de língua e
literatura.
continua sendo utilizado como pretexto para o ensino de questões gramaticais ou
literárias, muitas vezes pouco relevantes.
As discussões linguísticas que vêm se desenvolvendo sobre gêneros
discursivos parecem contribuir para a redefinição de outro modo de conceber o
produto da atividade verbal, uma vez que remetem às diferentes esferas dessa
atividade, não apenas à produção literária. São reflexões que procedem,
fundamentalmente, de textos de um pensador russo, Mikhail Bakhtin 5, embora
estudos sobre gêneros textuais tenham se desenvolvido também a partir de
outros quadros teóricos 6 da Linguística. Independentemente da perspectiva pela
qual se desenvolvem tais estudos, falar de gêneros, hoje, na Linguística é ter
como foco a interação pela linguagem7, é tratar das formas de interação verbal8
que se constroem nas práticas sociais, procurando entender melhor o que o
homem faz com a linguagem. Levar para a escola a perspectiva dos gêneros
discursivos significa compreender o espaço escolar como uma extensão do
grande espaço das relações sociais em que se movem e se constituem os
sujeitos − o universo de textos orais e escritos.
5
Referimo-nos, aqui, mais especificamente, a Estética da Criação Verbal (Bakhtin, 2000), livro em
que encontramos, no capítulo "Os gêneros do discurso", a distinção entre os gêneros do cotidiano
e os literários. A base teórica dessa postulação, no entanto, aparece já em Marxismo e filosofia da
Linguagem (1999). Ver, especialmente, p. 42-43 "tipos e formas do discurso"; cap. 5, Língua, fala
e enunciação e cap. 6, A interação verbal.
6
No Brasil, além das inúmeras produções decorrentes da transposição dos PCN, outros estudos
vêm contribuindo para a compreensão da diversidade de gêneros. MARCUSCHI (2004) apresenta
uma categorização das diferentes formas de utilização da língua, considerando o continuum
tipológico das práticas sociais de produção - da oralidade para a escrita e MARCUSCHI (2005)
trata da funcionalidade dos gêneros e da diferenciação entre tipos e gêneros textuais. NEVES
(2006) procura situar os estudos linguísticos mais recentes, recuperando o percurso literário dos
gêneros.
7
NEVES (2006). Gêneros: ontem, hoje e sempre. Artigo a ser publicado em livro que está em
fase final de organização.
8
O tema interação é complexo e sugere sempre uma pluralidade de estudos teóricos. A origem
desses estudos na linguística, no entanto, parece ter, entre outras, duas vertentes bem definidas:
uma que procede de estudos bakhtinianos (via França, mais especificamente) e outra, da
pragmática, a vertente americana. A primeira (a bakhtiniana) enfatiza as relações sociais que
acontecem inevitavelmente na interação e pela linguagem, entendendo-se, aqui, por interação
uma ação - linguística ou não - que vai em direção ao outro, mas que tem uma implicação
(eu/outro) mútua; a segunda (a pragmática) procura responder à pergunta o que fazemos com a
linguagem. Neste artigo, focalizamos a interação a partir das práticas escolares de linguagem.
134
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
2 Algumas considerações teóricas sobre os gêneros discursivos
As teorias linguísticas, de modo geral, divergem entre si fundamentalmente
quanto ao ponto de vista sobre a linguagem, mas representam, desde os estudos
clássicos, uma tentativa de buscar a compreensão da própria natureza humana.
Na abordagem dos gêneros discursivos, mais especificamente, o que está em
jogo é a compreensão da linguagem como prática das inter-relações que se
constroem predominantemente pela linguagem verbal. Na base das reflexões
sobre essa prática, estão os enunciados9 que põem um sujeito em contato com
outro. Esses enunciados concretos que emanam dos integrantes de uma ou outra
esfera da atividade humana, quando considerados isoladamente, constituem
enunciados
individuais.
Contudo,
quando
são
considerados
por
sua
funcionalidade − a de dar conta de diferentes necessidades de interação −
revelam formas relativamente estáveis que cada esfera de utilização da língua
elabora. Esses tipos de enunciados mais ou menos estáveis, que se modificam
para dar conta de novas necessidades de interação ou para adequar-se a novos
suportes, são denominados, na Linguística, gêneros discursivos10.
Na percepção de Bakhtin 11, a riqueza e a variedade dos gêneros do
discurso − orais e escritos − são infinitas, pois a variedade virtual da atividade
humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de
gêneros do discurso que vai se diferenciando e ampliando-se à medida que a
própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Nessa complexidade devem
9
O termo de Bakhtin que aparece em Estética da Criação Verbal traduzido como enunciado
designa uma unidade real de comunicação verbal (ou seja, uma unidade discursiva) que, criada
num determinado momento, tem um autor e se destina a alguém. Por isso cada enunciado é,
nesse sentido, único e não reiterável.
10
Em textos destinados à orientação do ensino de língua, percebe-se um uso indiscriminado dos
sintagmas "gêneros discursivos" e “gêneros textuais". Nas discussões linguísticas mais recentes,
o primeiro é mais frequentemente atribuído a Bakhtin, uma vez que toda a fundamentação teórica
aparece já em Marxismo e Filosofia da Linguagem e posteriormente em Estética da Criação
Verbal. O segundo sintagma - gêneros textuais - parece ser mais frequente em textos que
derivam da Linguística Textual. Como usuário deste último encontramos, entre tanto outros, Luiz
Antônio Marcuschi, (In: DIONISIO, A. P., MACHADO, A. R. e BEZERRA, M. A., (Org.), 2005. Os
PCN, conforme estudo de Brait (In: ROJO (Org.), 2000, p. 15-38), fazem um uso indiscriminado
desses sintagmas, mesclando, além dos dois citados, "tipologia textual". Não entraremos na
discussão do conceito de gênero que procede da tradição literária, tema de que se ocupa Neves,
no artigo já referido. A nosso ver, faltam estudos mais específicos para tratar com mais
propriedade desses dois modos de ser da linguagem - o literário e o não literário.
11
Bakhtin (2000), p. 279-280.
Teorias do Discurso e Ensino
135
ser consideradas as tecnologias que engendram novas formas de interação a
partir das já existentes. Como formas de interação verbal, os gêneros do discurso
caracterizam-se por sua heterogeneidade, incluindo, indiferentemente, a curta
réplica do diálogo cotidiano, o relato, a carta familiar (hoje praticamente
substituída pelo e-mail e outras formas de correspondência eletrônica), toda sorte
de formas de informação e de apelos verbais veiculados por suportes midiáticos
e publicitários, o repertório dos documentos oficiais, o universo das declarações
públicas, as variadas formas de exposição científica e todos os modos literários
(do dito popular ao romance volumoso).
Se não existissem os gêneros do discurso e se não os
dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos
enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível
(Bakhtin, 2000, p. 302).
Essa afirmação enfatiza a origem e a constituição sociocultural dos
gêneros que não devem, todavia, ser entendidos como formas rígidas, uma vez
que são fruto de uma atividade humana tão natural, a linguagem verbal. Daí
dizer-se, na Linguística, que são formas resultantes de situações de interação
verbal e da reflexão do homem sobre essas formas de maior ou menor
complexidade que vão se estabelecendo culturalmente. A diversidade de formas
atende à diversidade de funções exercidas pela linguagem no universo sóciocultural. No dizer de François 12,
A divisão dos gêneros depende, em particular, da oposição da
fala de 'alguém', da fala do outro, daquela que eu reivindico como
minha, daquela à qual estou habituado ou que me espanta,
daquela que eu imito, aquela à qual eu respondo, aquela que eu
comento, aquela à qual eu recuso responder ou aquela que me
deixa sem voz [...]. (In: Brait, 1997, p. 201).
Ao considerar os gêneros do ponto de vista da sua constituição e
circulação, Bakhtin percebe uma diferença essencial entre o gênero de discurso
primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo). Os gêneros
12
Professor da Université "René Descartes" - Paris V/França.
136
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
secundários do discurso − o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso
ideológico, ou seja, os gêneros característicos da escrita − aparecem em
circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais
evoluída. Durante o processo de criação, segundo Bakhtin, esses gêneros
secundários absorvem e transmutam gêneros primários (simples), gêneros que
se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os
gêneros primários do discurso − o diálogo oral, o relato, a anedota e todas as
demais formas da oralidade − ao se tornarem componentes dos gêneros
secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica
particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a
realidade dos enunciados alheios. Esse processo de absorção e transformação
de gêneros primários (da oralidade) pode ser mais facilmente percebido na
literatura. É no romance, em especial, por sua extensão e complexidade, que
representações e ressonâncias do cotidiano discursivo podem ser mais
facilmente identificadas.
Os estudos linguísticos que se desenvolvem pela perspectiva dos gêneros
discursivos fundamentam-se na compreensão dessas inter-relações que se
constroem pela linguagem verbal. Para Bakhtin 13, ignorar a natureza do
enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do
discurso leva ao formalismo e à abstração. Essa advertência revela uma clara
recusa a estudos da língua voltados meramente para a forma, embora, em suas
reflexões, ele não desconsidere o sistema linguístico.
O estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso
tem uma importância fundamental para superar as noções
simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam de o "fluxo
verbal", a comunicação, etc, [...]. Irei mais longe: o estudo do
enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação
verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das
unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as
orações (Bakhtin, 2000, p.287).
Os gêneros, como formas culturalmente estabilizadas de organização da
atividade verbal − oral ou escrita −, são passíveis de mudanças e adaptações.
13
Referência feita na epígrafe deste artigo.
Teorias do Discurso e Ensino
137
Modificam-se no "fluxo verbal" para dar conta de novas necessidades
comunicativas e/ou em função do surgimento de novos suportes14. Podem, ainda,
ser adaptados ou mesmo criados especialmente para certos eventos de
letramento, ou mais especificamente para dar conta de situações de ensinoaprendizagem e de outras práticas de interação verbal na escola. No entanto, por
serem concebidos como constitutivos das práticas sociais e culturais, os gêneros
não podem ser pensados de modo independente dos contextos de produção e
circulação. Por isso, estudar a língua pela perspectiva dos gêneros do discurso
pode representar uma possibilidade de refletir sobre as ações humanas que
estão ligadas ao uso da língua.
3 Gêneros discursivos e prática escolar de linguagem
Nos últimos anos, na tentativa de fazer frente à fragmentação do
conhecimento, têm-se desenvolvido teorias e estratégias interdisciplinares
(muitas vezes reduzidas, estas últimas, a articulações artificiais de saberes, é
verdade), mas separa-se, ainda, em disciplinas distintas 15 o que é constitutivo da
própria existência social e subjetiva do indivíduo − a linguagem. A compreensão
de que literário e não literário mesclam-se e fundem-se na atividade verbal tanto
interior (constitutiva da consciência individual) quanto exterior (constitutiva das
relações sociais) é ponto de partida para um trabalho escolar com a linguagem
menos compartimentado e mais comprometido com a prática da atividade verbal
− compreensão para a qual o referencial teórico dos gêneros discursivos aponta.
A principal razão para qualquer ato de linguagem − que parte de um eu e
vai em direção a um tu − é a produção de sentidos, sempre novos e sempre
outros em cada ato enunciativo, porque participantes, intenções e contextos
nunca serão exatamente os mesmos. Os sentidos e a linguagem se constituem
na interação e se renovam pela capacidade criativa dos sujeitos. Para
14
Vejam-se as alterações ocorridas no processo de transformação de alguns gêneros: da carta
ao e-mail e do diário manuscrito ao blog.
15
A dissociação entre ensino de língua e ensino de literatura, bem como outras dicotomias
presentes na escola básica, é tema do artigo Literário e não literário: arte, vida e aprendizagem.
(In: GOMES, Leny da Silva e GOMES, N. M. Tebaldi. (2006)).
138
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
desenvolvê-la, o aluno precisa encontrar espaços para dialogar e interagir com os
textos, reconstruir sentidos a partir das suas experiências e dos seus saberes,
confrontar suas ideias e percepções de mundo com as que são apresentadas ou
representadas nos textos que materializam discursos, entendidos aqui num
sentido amplo de construção sócio-histórica de maneiras de pensar e agir. Nesse
sentido, convivemos com uma pluralidade discursiva que se reproduz e se
reconstrói nos processos de interação social.
Os discursos se materializam linguisticamente e, ao mesmo tempo,
impregnam ideologicamente a língua que os veicula. Desse processo decorre
certa submissão discursiva, isto é, as palavras nos vêm já carregadas de
sentidos. Todavia, sempre sobra espaço para a autoria e para a descoberta de
outros significados e de outras formas de significar, ainda que o espaço de
criatividade, muitas vezes, se restrinja − na produção textual escrita − ao modo de
recortar e organizar fragmentos discursivos e − na leitura − ao modo de relacionar
esses fragmentos para produzir outros sentidos.
Em todo ato de interação verbal, oral ou escrito, pressupõe-se uma
competência social de utilização da língua de acordo com as expectativas em
jogo. A escola deve, pois, funcionar como um laboratório de práticas sociais de
produção de linguagem oral e escrita, propiciando a percepção e o
desenvolvimento das múltiplas possibilidades de sentidos e formas de expressão
e de interação verbal. Do trabalho diversificado com textos representativos das
relações sociais e culturais resulta a produção de formas textuais tipicamente
escolares que compõem o que poderíamos denominar "gênero escolar". São
textos (orais e escritos) como diálogos, discussões escolares, comentários,
paráfrases, resumos, resenhas, enfim, toda espécie de produção textual
resultante da inter-ação com os gêneros que circulam no social extra-escolar e
são selecionados para desenvolver as habilidades que propiciam a inclusão e a
atuação numa sociedade letrada.
Em relação à leitura, o reconhecimento do gênero por sua função contribui
para entendê-la como prática social responsiva − uma reação-resposta do
destinatário do enunciado −, ou seja, como uma tomada de posição ativa a
propósito do que é lido e compreendido. O leitor não é passivo em nenhum
momento do processo de leitura, porque a compreensão resulta da atividade do
Teorias do Discurso e Ensino
139
leitor: de embates entre formas linguísticas e sentidos possíveis, entre
percepções, vivências e saberes do leitor com as representações textuais. É
nesse sentido que a leitura produzida, de alguma forma, é sempre uma resposta.
Ao considerar as formas de circulação dos gêneros nas instituições do
mundo atual, Kleiman diz que não há por que não incluir a escola no 'circuito dos
gêneros'.
As ações nos eventos de diversas esferas de atividade do
cotidiano não estão sedimentadas; elas não pertencem apenas a
um tipo de evento social e os textos aí interpretados ou
produzidos não pertencem apenas a um gênero, mas resultam de
combinações de gêneros retirados das instituições [de]onde se
originaram, pelos participantes do evento [...] (Kleiman, In:
Bunzen E Mendonça (Org.), 2006, p.28).
Por essa sua maleabilidade, segundo Kleiman, os gêneros podem servir
de matriz social e histórica de atividades escolares. No entanto, para que o
gênero selecionado para o trabalho escolar não fique dissociado de sua função,
será preciso ter sempre presente a necessidade de contextualização da atividade
verbal, tanto na leitura quanto na produção do texto. Para isso, imaginemos, por
exemplo, o engajamento dos alunos de uma determinada série em um projeto
que tenha como meta final uma campanha de doação de alimentos a creches
assistenciais da comunidade. Os saberes a respeito dos textos que circulam na
esfera publicitária poderiam ser explorados na produção de textos destinados a
servir de mola propulsora da campanha e conseguir o envolvimento dos pais, de
grupos sociais e pessoas da comunidade; os de texto jornalístico, para divulgá-la
dentro e fora da escola; os de texto científico para dar suporte à produção de
relatórios de atividades interdisciplinares paralelas, como pesquisa do valor de
determinados alimentos ou as consequências advindas da falta de outros.
Desse modo, a realização do projeto oportunizaria a inserção do aluno em
diferentes esferas das práticas sociais letradas, tornando-o sujeito ativo de sua
aprendizagem. A produção de faixas, cartazes, anúncios, notícias, reportagens,
relatórios, entre outros, constituiria um exercício dos gêneros publicitário,
jornalístico e científico, porém na condição de gêneros situados na escola. Na
preparação e execução do projeto, além da leitura e produção textual, outras
habilidades seriam exercitadas: discussão de grupo, relato oral, argumentação.
140
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Teríamos aqui um trabalho escolar fundamentando uma prática social da
linguagem.
Em relação à adoção da perspectiva dos gêneros discursivos na escola,
Kleiman lembra que é a prática social que viabiliza a exploração do gênero, e não
o contrário. Sem o embasamento dessa prática, em vez de resultar no acréscimo
de uma matriz sócio-histórica que guie as ações dos jovens, a adoção dos
gêneros pode resultar na sobreposição de mais um conjunto de descrições
metalinguísticas. A pesquisadora destaca a necessidade de um enfoque que se
afaste do ensino de objetos que podem ser reduzidos aos seus aspectos
linguísticos formais. Dito de outra forma, são as habilidades de interagir pela
linguagem
−
compreendendo,
interpretando,
analisando,
avaliando,
argumentando e produzindo textos que dão conta de funções diversas − que
devem ser estabelecidas como metas a atingir com o trabalho escolar e não a
identificação e descrição de características formais dos gêneros.
O desenvolvimento dos estudos linguísticos tem contribuído para que
essas outras esferas de uso da linguagem escrita, além da literária, passassem
também a ser consideradas para efeito de estudos. Essa prática de modo algum
diminui o valor do texto literário, muito menos desobriga a escola de dar-lhe o
devido destaque no ensino. Ao contrário, a compreensão dos diferentes usos da
linguagem certamente leva o aluno a perceber melhor nuanças próprias dos
diferentes modos de existência da língua. Os próprios PCN orientam no sentido
de que, no Ensino Fundamental, a escola deve abrir espaço para a diversidade
discursiva e, no Ensino Médio, seja dada prioridade ao texto literário.
Confrontando a concepção clássica de gênero com a atual, Neves afirma
que,
Falar de gêneros, hoje, na era da Lingüística, é ter como foco a
interação pela linguagem, enquanto falar de gênero, em
Aristóteles, era falar do objeto 'poética' ou do objeto 'retórica',
tendo como foco o 'dizer bem' com a linguagem.[...] O fim último
era obter que a linguagem, o instrumento para dizer a verdade, a
dissesse bem segundo sua finalidade, com qualidade, com arte e
estilo! (Neves, 2006).
Teorias do Discurso e Ensino
141
Neves lembra ser o gênero literário uma convenção estética que dá forma
à obra, um repertório de recursos expressivos que pode ser descrito por meio do
exame dos discursos literários. A Linguística, certamente, não muda essa
concepção literária, mas passa a considerar outras dimensões e outras esferas
de uso da língua, incluindo os gêneros que ficavam à margem de qualquer
estudo.
A autora também lembra que foi a consideração da necessidade de
adaptar o discurso ao auditório que levou ao estabelecimento dos gêneros.
Assim, diz, no passado como no presente, é o foco no auditório − a finalidade −
que orienta o surgimento e a flexibilização dessas formas. Desse modo, partindo
da classificação dos gêneros poéticos de Aristóteles, Neves apresenta uma visão
geral sobre o percurso e a evolução do que diz ser o gênero 'revisitado', sem
descuidar de momentos significativos da ampliação da esfera social desse
estudo, destacando Bakhtin com a reflexão sobre 'gêneros discursivos' − noção
que é retomada, segundo a autora, por outros linguistas modernos, como
Schneuwly 16, porém neste já sem a especificação do discurso/discursivo. Neves
enfatiza a relação forte que vê entre as propostas funcionalistas da linguagem e a
dos gêneros, uma vez que ambos os enfoques se sustentam em princípios como
finalidade, propósito, intenção de produção. Diz insistir nessa relação porque a
teoria funcionalista se ocupa da língua 'em função'.
Para Machado 17, o gênero, é antes de tudo, um conceito plural que se
reporta às formulações combinatórias da linguagem em suas dimensões verbal e
extra-verbal. O gênero articula formas discursivas criadoras da linguagem, de
visões de mundo e de sistemas de valores configurados por pontos de vista
determinados, constituindo-se, assim, como decorrência direta das formas
representativas do mundo cotidiano e prosaico.
Analisando os Parâmetros Curriculares Nacionais, percebe-se que a
concepção de gênero está aí posta, uma vez que explicitam a relevância da
exploração da linguagem por seu potencial constitutivo das relações sociais − o
16
A autora faz referência a SCHNEUWLY, B. Genres et types de discours: considérations
psychologiques et ontogénétiques. In: REUTER, Y. (Ed.) Actes du Colloque de l'Université
Charles-De Gaulle III. Les interactions Lecture-écriture. Neuchâtel: Peter Lang, 1994. p. 155-173.
17
1997, p.143.
142
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
caráter intersubjetivo (o "eu" na relação com o outro) − e da consciência individual
− o intrasubjetivo (o "eu" diante de si mesmo, porém que se constitui como "eu"
porque existe outro).
Toda linguagem carrega dentro de si uma visão de mundo,
prenha de significados e significações que vão muito além de seu
aspecto formal. O estudo apenas do aspecto formal,
desconsiderando a inter-relação contextual, semântica e
gramatical própria da natureza e função da linguagem, desvincula
o aluno do caráter intrasubjetivo, intersubjetivo e social da
linguagem (PCN, 2002, p.126-7)
A produção científica produzida e tomada como referência para o ensino
não deixa dúvida: no trabalho escolar, a ênfase deve ser a interação verbal que
se processa em diferentes formas e usos da língua e se materializa em textos
orais ou escritos.
4 O texto na sala de aula: sugestão de atividades
Apresentamos, em continuidade, dois textos que serão acompanhados de
um roteiro de atividades. Embora mantenham alguma semelhança temática,
diferenciam-se, inicialmente, pela esfera a que pertencem. O texto 1, Identidade,
é um poema, pertence portanto à esfera literária (literatura infanto-juvenil) e como
tal a significação é veiculada pela materialidade linguística. O texto 2, Eu sou Eu,
integra o gênero canção, constituindo-se os sentidos pelo componente linguístico
e pela música. Nesse gênero, o texto não pode, num primeiro momento,
desatrelar-se da melodia, sob pena de transformar-se em outro gênero,
certamente empobrecido. Como materializações de gêneros que facilitam a
expressão de subjetividade − poesia e canção − e por trazerem à tona uma
questão identitária, esses dois textos, juntamente com outros, poderiam integrar
uma unidade ou projeto de trabalho que envolvesse uma reflexão sobre a própria
identidade.
Teorias do Discurso e Ensino
143
Texto 1
Identidade 18
Pedro Bandeira
Às vezes nem eu mesmo
sei quem sou.
Às vezes sou
"o meu queridinho".
Às vezes sou malcriado.
Para mim
tem vezes que eu sou rei,
herói voador,
caubói lutador,
jogador campeão.
Às vezes sou pulga,
sou mosca também,
que voa e se esconde
de medo e vergonha.
Às vezes eu sou Hércules,
Sansão vencedor,
peito de aço,
goleador.
Mas que importa
O que pensam de mim?
Eu sou eu,
sou assim,
sou menino.
18
Disponível: http://www.institutoalgar.org.br/conteudo.asp?ContentID=75
144
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Sugestão de atividades 19.
1 - Leitura individual.
2 - Espaço para a verbalização e socialização de sentidos e relações construídas
pelos alunos a partir da primeira leitura.
3 - Leitura oral seguida de espaço para a discussão mediada pelo professor que
orientará, se for preciso, o diálogo intertextual com a mitologia grega (Hércules) e
com o episódio bíblico (Sansão)20, a percepção da função desses elementos na
(re)construção dos sentidos do texto; a identificação dos elementos que
compõem as comparações, as antíteses e sua função na constituição dos
sentidos; a alteração da estrutura textual com a introdução da pergunta − Mas
que importa / O que pensam de mim? − e da resposta − Eu sou eu / sou assim, /
sou menino; a reflexão sobre essa estrutura − quem pergunta, quem responde,
quem é o "eu" do poema?
4 - Observação e análise da composição textual − extensão dos versos, rimas − e
da relação dessa estrutura com os sentidos.
5 - Releitura do texto, agora para construir interpretações, tendo como núcleos
significativos as comparações que permitem expressar as diferentes percepções
subjetivas do "eu" poético.
6 - Diálogo com outros textos: sugerir a busca de outros textos que tratem da
questão da identidade.
O roteiro sugerido visa apenas à consideração de etapas que
consideramos constitutivas do processo de leitura: num primeiro o contato com o
texto, a construção de relações de sentido e associações se estabelecem a partir
da experiência individual, embora suscitada pelo componente linguístico; na(s)
releitura(s)
a
construção
de
interpretações
deve
ser
orientada,
mais
especificamente, pela materialidade linguística. A socialização dos sentidos
construídos individualmente, como foi sugerido por meio do roteiro, contribui para
19
Esse roteiro é apenas uma sugestão entre outras possíveis. São atividades, provavelmente,
mais adequadas para alunos de quinta série.
20
Caso o aluno não tenha as informações necessárias para estabelecer essas relações
intertextuais de sentido, o professor deverá fornecê-las. Atividades complementares de pesquisas
poderão ser também desencadeadas, promovendo um trabalho interdisciplinar.
Teorias do Discurso e Ensino
145
que o leitor em formação possa sentir-se participante ativo do processo de
compreensão de um texto. A sua experiência, os seus conhecimentos linguísticos
e extralinguísticos são acionados na recuperação dos sentidos potencialmente
presentes na materialidade linguística. Dessa forma, o ato de leitura constitui um
processo de diálogo entre leitor e texto, porém diálogo entendido como embate,
como trabalho com essa materialidade.
No poema "Identidade", por sua estrutura composicional, será preciso
destacar a função das oposições que refletem conflitos na percepção da própria
identidade. O menino, ora "queridinho" ora "malcriado", pode experimentar tanto
a sensação de força e poder dos heróis míticos (um Hércules − semideus da
mitologia grega, célebre pela sua força − ou um Sansão − personagem bíblica
também célebre por sua força, cuja história é contada entre os capítulos XIII e
XVI do Livro dos Juízes) e outros heróis atuais, quanto a pequenez de um inseto.
Todavia é pela identificação das duas personagens que se constroem as
relações intertextuais, o diálogo que vai permitir as interpretações. Por isso, a
recuperação da intertextualidade é imprescindível.
Entre outras possibilidades, esse texto ainda poderia ser utilizado para
desencadear uma unidade de trabalho em que cada estudante buscaria textos de
diferentes gêneros para explicitar seu próprio percurso identitário: do registro
oficial (certidão de nascimento, de batismo ou outra forma de filiação religiosa,
carteira de sócio de clube, identidade escolar e outras identificações e filiações),
do registro do cotidiano (participação de nascimento, convites para festas de
aniversário e outros), do registro das relações interpessoais do dia a dia (e-mail
recebidos e enviados e outras formas de comunicação). Seguindo esse percurso,
estaríamos explorando diferentes gêneros por sua função e tornando o trabalho
de sala de aula mais próximo da vida do aluno. Certamente, esse percurso
também levaria a uma reflexão sobre a própria identidade, o lugar social, as
relações interpessoais, fortalecendo sentimentos de identificação e pertencimento
a determinados grupos sociais. Ao final do projeto, os sujeitos envolvidos teriam
subsídios para escrever sobre sua própria identidade. Como uma das etapas do
processo de produção escrita, é importante levar o aluno a refletir sobre o
contexto de produção: para quem vai dizer o que tem para dizer, de que modo,
com que finalidade e em que gênero.
146
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Texto 2
EU SOU EU
Luiz Tatit 21
Você reclama que eu estou tão diferente
Você não sabe o que diz, é evidente
Como é que pode de repente
Alguém ficar tão diferente
E diferente de quê?
Como é que dá pra saber?
Só eu que sei eu que vivo
O tempo todo comigo
O tempo todo não digo
Mas o bastante
Pra me reconhecer
Eu estou aqui pra provar que eu sou eu
Vim desfazer essa dúvida cruel
Pois só de te mostrar que não sou outro
Eu já me sinto outro, já valeu
Você diz que eu já não sou mais aquele
Passa por mim e pergunta quem é ele?
Como é que pode alguém deixar
De ser aquele que já foi
Se quem já foi ainda é
Enquanto vive ainda é
Pode dizer o que quiser
Mas se está aí porque é
Não é preciso ter fé
Pois se tem corpo, alma,
Cheiro, voz, qual é!
Eu estou aqui pra provar que eu sou eu
Vim desfazer essa dúvida cruel
21
TATIT, 1997. Também disponível: http://www.mpbnet.com.br/dabliu/dboo27/index.html.
Teorias do Discurso e Ensino
147
Pois só de te mostrar que eu não sou outro
Eu já me sinto outro, já valeu
Mas mesmo eu que sou eu tive receio
Se não sou eu nem sou outro estou no meio
Como é que fica a minha imagem
Individual e social
Apresentando-me assim
Sou diferente de mim
Mas sou eu mesmo no fim
Isso não cola é ruim
Quem é que crê nisso aí
É preferível dizer
Então esqueça-me!
Eu estou aqui pra provar que eu sou eu
Vim desfazer essa dúvida cruel
Pois só de te mostrar que não sou outro
Eu já me sinto outro, já valeu
Sugestão de atividades 22
1 - Audição da canção.
2 - Espaço para a verbalização e socialização de sentidos e relações textuais
construídas pelos alunos a partir da primeira audição, a relação desse ritmo de
música com outros e dessa letra com outras.
3 - Segunda audição, agora lendo a letra da canção.
4 - Discussão mediada pelo professor, agora centrando a atenção na
materialidade linguística e melódica: exploração dos efeitos rítmicos e poéticos
estabelecidos pelo encadeamento das palavras, pela utilização de rimas,
aliterações, assonâncias e repetições. (Observação da função desses recursos
no texto e não sua classificação ou teorização sobre eles).
22
A canção de Tatit também poderia ser explorada a partir das últimas séries do ensino
fundamental. Da mesma forma que o texto anterior, as atividades sugeridas poderiam integrar um
projeto que tivesse por objetivo uma reflexão do adolescente sobre a própria identidade.
148
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
5 - Atenção à estrutura composicional: a pressuposição de um "tu" com quem o
"eu" dialoga (diálogo indireto em que se constitui a canção).
6 - Após a mobilização de saberes de diferentes áreas (musical, literária,
linguística), oportunizar uma última audição para que a reconstrução de sentidos
possa ser ampliada, agora construindo interpretações tendo como núcleos
significantes os versos Estou aqui pra provar que eu sou eu / Vim desfazer essa
dúvida cruel / Como é que fica a minha imagem / Individual e social.
7 - Diálogo com outros textos: incentivar a busca de outras canções ou poemas
que tratam da questão da identidade.
Como no texto anterior, é a questão da identidade que aflora. Mas neste
há que se dar atenção ao gênero que, como já dissemos, se constitui de melodia
e texto. O texto, sem a melodia, transforma-se noutro gênero. Daí a necessidade
de apresentá-lo, num primeiro momento, em seu suporte original, a música. A
canção, cuja função principal é a expressão de uma subjetividade, revela um
movimento enunciativo que transforma a voz que fala em voz que canta 23.
Da fala ao canto há um processo geral de corporificação: da
forma fonológica passa-se à substância fonética. A primeira é
cristalizada na segunda. As relações in absentia materializam-se
in praesentia. A gramática lingüística cede espaço à gramática de
recorrência musical. A voz articulada do intelecto converte-se em
expressão do corpo que sente (Tati, 1996, p.15).
5 Considerações finais
Entendemos que a prática linguística deve reproduzir, de alguma forma, o
universo social mais amplo e promover atividades que visem ao desenvolvimento
de habilidades de leitura e produção de textos (textos que articulam, reproduzem,
criam ou recriam discursos), à promoção da interação, ao estabelecimento de
confrontos de pontos de vista, à descoberta e promoção da autoria. Entendemos,
também, que há uma estreita relação de complementaridade entre os processos
de leitura e escrita. A leitura não é somente algo que precede a escritura, mas
está implicada continuamente nesta última, constituindo-se num componente
23
Tatit, 1996, p.14.
Teorias do Discurso e Ensino
149
essencial do processo de produção. Quem escreve, de fato, deve alternar o papel
de escritor com o de leitor de si mesmo, avaliando quanto produziu, imaginando
como será entendido, procurando assumir a perspectiva daquele(s) a quem a
escrita se destina. Essa capacidade de ler-se é questão prévia para obter
resultados adequados com a escrita e está na base, em particular, da habilidade
de revisão do próprio texto, como o observa Della Casa 24.
Também concordamos com Della Casa quando afirma que os textos que
lemos podem constituir os referentes de uma comunicação dialógica 25.
Frequentemente escrevemos em relação a um outro texto, por exemplo, para
confirmar, referir, refutar ideias, ou para introduzir novos pontos de vista. A escola
deve constituir-se em um laboratório dessas vivências sócio-discursivas e
explorar todas as possibilidades de "representação" do universo social. Em textos
de gêneros das esferas do cotidiano, como no jornalístico, encontram-se,
facilmente, exemplos da comunicação dialógica verbal: artigos que refutam
pontos de vista anteriormente publicados, textos de opinião com posicionamentos
divergentes, na mesma página, respostas a questionamentos. Todos exemplos
de atividades que podem ser realizadas, desde cedo, no micro-universo da
escola. Dessa forma, os textos lidos e produzidos reforçariam o vínculo existente
entre a língua e a vida. A produção textual deixaria de ser um exercício,
desprovido de sentido, de produção de descrição, narração ou dissertação, que
como gêneros inexistem porque constituem apenas sequências com as quais se
constroem os textos de diferentes gêneros, e se tornaria atividade discursiva.
A atividade discursiva, segundo Bakhtin 26, é um jogo fundamentalmente
dialógico, porque o discurso elabora-se no meio do já-dito dos outros discursos e,
mais especificamente, do já-dito que se dá no espaço social compartilhado pela
palavra. Mas esse espaço não está desabitado. Nele confrontam-se discursos
diferentes, diferentes sentidos, e aquele que apreende a enunciação de outrem
não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de
palavras interiores.
24
2001, p. 152-153.
A caracterização "dialógica" remete à própria condição da atividade discursiva que se elabora
no meio do já-dito dos outros discursos como resposta, pressupondo-se aí o confronto de ideias.
26
1999 p. 147.
25
150
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Ao longo deste texto, foram trazidas considerações sobre uma prática
linguística mais próxima da realidade vivida pelo aluno em outros contextos
sociais de interação verbal e menos voltada para a forma abstrata, porque
A verdadeira substância da língua não é constituída por um
sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação
monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação
verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(Bakhtin,1999, p. 23).
Essa compreensão é, certamente, fundamental para que o processo de
ensino-aprendizagem da língua e suas literaturas possa ser focalizado por uma
perspectiva menos teórica e mais centrada nas diferentes esferas de uso e
modos de existência da língua.
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152
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
O COMPORTAMENTO DOS DEMONSTRATIVOS NA ORGANIZAÇÃO DOS
ENUNCIADOS
Claudia Stumpf Toldo*
[email protected]
Neusa Maria Henriques Rocha**
[email protected]
1 Introdução
Ao iniciarmos essa reflexão, consideramos oportuno destacar que muitas
das questões apresentadas neste trabalho se apoiam em discussões e estudos
que dão sustentação a um projeto de pesquisa que desenvolvemos no curso de
Letras, da Universidade de Passo Fundo. O principal propósito de nossa
pesquisa é refletir acerca da construção dos sentidos no texto, evidenciando a
importância das relações que se estabelecem, nesse processo, entre os
componentes sintáticos, semântico-discursivos e pragmáticos. Com base nessa
perspectiva, defendemos que nenhuma análise linguística pode ser feita
isoladamente, posto que a própria linguagem é um sistema não autônomo.
Assim, examinar um fenômeno linguístico exige ultrapassar o nível da palavra e
da frase, ou seja, só é possível compreendermos determinado fato linguístico, se
analisarmos o texto, o contexto comunicativo, incluindo-se aí o conjunto de
enunciados dos envolvidos na comunicação e o próprio processo de enunciação.
Cabe ressaltar que as análises que apresentamos ao final deste trabalho
resultam de um processo de discussão, estudo e troca de experiências entre
professores que atuam nas disciplinas de Prática de Ensino I e Prática de Ensino
II, do curso de Graduação em Letras da UPF – de cujo grupo fazemos parte – e
alunos que desenvolvem seus estágios curriculares em escolas do ensino
fundamental e médio da região de abrangência da UPF. Muitas das reflexões
*
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo e
Doutora em Linguística Aplicada pela PUCRS.
**
Professora do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo e Mestre em Linguística
Aplicada pela PUCRS.
apontadas aqui resultam de provocações de alunos dos cursos de PósGraduação Lato e Stricto Sensu do curso de Letras. Na verdade, temos ouvido,
com frequência, os alunos afirmarem que estão seguros do que “não devem fazer
nas aulas de português”, mas inseguros de como realizar práticas pedagógicas
que conduzam o aluno a melhorar seu desempenho linguístico e a desenvolver
sua competência comunicativa.
Nosso propósito é, à luz da perspectiva funcionalista, evidenciar que a
língua tem de ser tratada no seu contexto de uso e entendida na sua relação com
as diversas possibilidades de interação. Se toda atividade verbal se dá através de
textos, deve ele – o texto – ser o eixo principal do trabalho escolar. Para dar
conta da investigação pretendida, fizemos um recorte e escolhemos, dentre
diversas possibilidades de estudo, um fenômeno específico: o comportamento do
pronome demonstrativo em enunciados escritos, valendo-nos, para tal, de textos
de humor. Pretendemos, com este trabalho, contribuir para que se ampliem
discussões acerca da necessidade de o professor redimensionar a sua prática
pedagógica, desenvolvendo, por exemplo, um trabalho que permita ao aluno
reconhecer a função referenciadora do demonstrativo e o papel que ele
desempenha na construção dos sentidos do texto. Acreditamos que somente
através de atividades reflexivas, com base na língua em uso, é que nossos
alunos tornar-se-ão mais competentes linguística e textualmente.
2 Questões ligadas ao ensino da língua
Para discutir o papel dos pronomes demonstrativos na construção dos
sentidos de um texto escrito, acreditamos ser necessário fazer uma breve
referência à concepção de língua que adotamos ao tecer essas considerações e
a como entendemos que deva se dar esse ensino. Com relação a isso, usamos
as palavras de Marcuschi (1996), que defende a posição de que a concepção de
língua é que define a perspectiva de ensino a ser adotada. Assim, se a lingua é
vista como um código transparente, cuja função é transmitir informação –
afastada, portanto, da vida dos falantes – a ela é dado um tratamento também
artificial, distante do contexto em que se realiza. Já, se a língua é concebida
154
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
como um fenômeno natural e histórico, como uma atividade social e cognitiva que
varia ao longo do tempo, de acordo com os falantes e com os seus propósitos,
sua manifestação e tratamento se darão nessa mesma perspectiva. Esta, pois, é
a posição que adotaremos no percurso que ora construímos.
Entendemos que não há como a escola ver a língua afastada do falante e
de seu uso. A língua concebida como enunciação, como discurso, inclui as
relações da língua com aqueles que a utilizam e com o contexto de situação.
Nessa perspectiva, tal como afirma o já referido autor, a língua se configura como
uma atividade constitutiva – que permite aos falantes a construção dos sentidos –
como uma atividade cognitiva – por meio da qual os usuários expressam seus
sentimentos – e como uma atividade social – por meio da qual os sujeitos
interagem.
Dik (apud Neves, 1997), em seu paradigma funcional, concebe a língua
como instrumento de interação social, com vistas a estabelecer relações
comunicativas entre os usuários. Nesse modelo, a interação verbal é construída
pelo falante e pelo ouvinte. Neves, com relação a esse aspecto, destaca que
tanto o falante quanto o ouvinte têm informação pragmática. Isso porque quem
fala tem uma intenção, com base no conhecimento que tem do destinatário, e
deseja obter uma determinada interpretação. O ouvinte, por sua vez, apoiado no
conhecimento que tem do falante, busca recuperar a intenção produzida.
Conforme a perspectiva funcionalista, o ensino da língua deve se dar de forma a
integrar os diversos componentes da produção linguística, ou seja, a pragmática
– a situação de interação, que inclui os usuários da língua, suas intenções e todo
o processo de interação –, a semântica – a busca dos efeitos de sentido – e a
sintaxe – a escolha da estrutura do enunciado.
Assim, só haverá comunicação se os interlocutores dialogarem entre si e
se houver sucesso na interação. Nesse processo é determinante não só a
situação comunicativa, como também, a organização, a estrutura do discurso, ou
seja, as escolhas, os arranjos feitos pelos interlocutores. Isso reforça a ideia de
que aspectos pragmáticos, semânticos e sintáticos não se sustentam de forma
isolada e independente e não podem ser analisados de forma autônoma. Um
está interligado a outro, estabelecendo entre eles uma interdependência que só o
discurso pode fazer ver.
Teorias do Discurso e Ensino
155
Diante disso, reafirmamos que o ensino da língua, como processo de
interação verbal, concebe a língua como enunciação, incluindo, portanto, as
relações da língua com aqueles que a utilizam, com a situação comunicativa e
com as condições de produção em que ela ocorre. Essa perspectiva aponta para
um trabalho centrado nas atividades de uso da língua, ou seja, nas atividades de
produção oral, produção escrita, na leitura e na compreensão oral e escrita.
Como já evidenciamos anteriormente, se é no texto e é através do texto
que a linguagem se constrói, é no texto que devemos centrar o ensino da língua.
Esse ensino só se dará se as atividades forem desenvolvidas tendo como ponto
de partida a exposição a diversos tipos de texto, a observação de como o texto
está organizado e estruturado, a percepção das razões que determinaram as
escolhas, a escrita usual de textos – não como atividades eventuais ou como
produções que valem nota – enfim, o ensino do português só se justifica pelo
papel que as atividades realizadas desempenham na construção e na
compreensão de textos. Assim, as aulas de português devem ser planejadas de
tal modo que o aluno, com base nas possibilidades que lhe são oferecidas, seja
capaz de julgar, avaliar, fazer escolhas, ajustar sua linguagem, enfim, empregar
estratégias que garantam o êxito na interação.
O que pretendemos, na verdade, é que o aluno esteja habilitado não só a
construir textos com qualidade, mas a ter uma nova postura diante da leitura e da
escrita, de modo que ele faça dessas práticas motivações para pensar o mundo e
atuar socialmente na melhoria desse mundo, para construir um novo sujeito, uma
nova sociedade.
Com base nessas reflexões, vale observar que, ao trabalhar a língua, o
professor não pode restringir esse estudo a atividades de análise de
determinados itens gramaticais, de forma isolada. Se o que defendemos se
ancora no pressuposto de que a língua tem de ser tratada no seu contexto de uso
e entendida na sua relação com as diversas possibilidades de interação –
privilegiando a abordagem funcionalista – é no texto que se poderá efetivar esse
estudo. Tal como afirma Neves (2002, p. 226),
saber expressar-se numa língua não é simplesmente dominar o
modo de estruturação de suas frases, mas é saber combinar
essas unidades sintáticas em peças comunicativas eficientes, o
156
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
que envolve a capacidade de adequar os enunciados às
situações, aos objetivos da comunicação e às condições de
interlocução.
Desse modo, cabe ao professor de língua oferecer situações para que o
aluno, a partir da língua que usa, se aproprie de diversos mecanismos
linguísticos, de forma a trabalhar modos de expressão e de organização do texto.
3 A gramática no ensino fundamental e médio
Uma questão que tem suscitado inúmeras reflexões e tem sido motivo de
muitas discussões entre os professores de língua materna diz respeito a como
trabalhar a gramática no espaço escolar. Cabe destacarmos que é expressivo o
número de estudos e investigações que circulam nos meios acadêmicos acerca
do tratamento da gramática no ensino fundamental e médio e que vêm
desafiando os professores a repensar a sua prática pedagógica. Ainda assim,
estamos longe de acreditar que as escolas tenham clareza de como conduzir
esse novo processo.
Com referência à abordagem da gramática, convém ressaltar que, ao
fazermos menção a essa questão, nos apoiamos na concepção de gramática
como o próprio sistema de regras da língua em funcionamento. Tal como defende
Neves (2002, p.226), a boa constituição de um texto passa pela gramática, ou
seja, “produção de texto e gramática não são atividades que se estranham; pelo
contrário, as peças que se acomodam dentro de um texto cumprem funções” que
estão na natureza da própria gramática. Nessa perspectiva, tudo que é
gramatical é textual, e tudo que é textual é gramatical. Com respeito a essa
questão, afirma Travaglia (2003, p. 45):
Todos os recursos da língua – em todos os seus planos
(fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático) e
níveis (lexical, frasal, textual-discursivo) – em termos de unidades
e estruturas (sejam elas fonológicas, morfológicas, sintáticas,
textuais), funcionam como pistas e instruções de sentidos que
são coadjuvados nesta função por mecanismos, fatores e
princípios. Dessa ação conjunta surgem os efeitos de sentido
possíveis para uma dada seqüência lingüística usada como texto
numa dada situação de interação.
Teorias do Discurso e Ensino
157
Ocorre que, embora essas concepções circulem entre os professores de
língua portuguesa, o trabalho com a gramática continua se dando da forma mais
tradicional, ou seja, aos alunos é oferecido um ensino em que a metalinguagem é
privilegiada, em detrimento da própria linguagem; são propostas atividades que
priorizam a simples rotulação, o reconhecimento, a categorização de entidades
isoladas; são desenvolvidas atividades artificiais e mecânicas, distantes da língua
em funcionamento e que prescindem de qualquer tipo de reflexão. Permanece,
ainda, arraigada a ideia de que o domínio de definições de entidades e a
memorização de paradigmas linguísticos são formas de garantir a boa linguagem.
Consideremos o foco principal deste trabalho. Se fosse solicitado a um
professor – cuja prática ainda se sustenta no ensino tradicional de gramática –
que desenvolvesse o estudo do pronome demonstrativo, muito provavelmente o
seu ponto de partida (tal como ocorre nas gramáticas pedagógicas e na maioria
dos livros didáticos) seria a apresentação da definição, pretensamente absoluta,
exata, transparente; posteriormente seriam propostos exemplos, também
inequívocos, apresentados fora do discurso, que se encaixariam exatamente
dentro da definição dada. Seguiriam atividades de reconhecimento, de
subclassificação,
de
preenchimento
de
lacunas
em
frases
artificiais
(intencionalmente construídas para tal propósito) ou, talvez, exercícios mecânicos
com base em textos-pretextos.
Nenhum progresso linguístico se efetivará a partir de exercitações
mecânicas. Nenhuma melhoria na competência comunicativa se dará se não se
contemplar a língua em uso. Nenhuma ampliação da expressão verbal se
desencadeará se não se observarem as possibilidades que determinam a
construção dos sentidos. Não há, portanto, como analisar o comportamento do
pronome demonstrativo sem se considerar o seu papel de referenciação textual
ou situacional. Embora seja fundamental examinar a sua função interna na
estrutura oracional, não podemos tratá-lo como uma unidade autossuficiente.
158
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
4 Uma questão teórica: o processo de referenciação
Como já afirmamos, o objetivo principal deste estudo é observar, analisar e
discutir o movimento sintático-semântico do pronome demonstrativo em textos de
humor, tendo presente o processo de construção dos sentidos desses textos.
Para
isso, faremos,
agora,
algumas
reflexões
mais
específicas
sobre
referenciação.
Temos como ponto de partida o pressuposto de que a referenciação
constitui uma atividade discursiva, o que implica dizer que a língua e a linguagem
não são referenciais, ou seja, não nos interessa interpretar as estruturas
linguísticas sob o ponto de vista das estruturas objetivas da realidade. Essa ideia
de ver a referência como atividade linguística é defendida por Mondada & Dubois
(1995). Queremos pontuar que, num estudo de língua, o que deve ser posto em
relevo não são as estruturas da realidade, mas as estruturações impostas pela
interpretação humana à realidade. Isso lembra Ferdinand Saussure, no Curso de
Linguística Geral, quando afirmava que o ponto de vista cria o objeto.
Referência não é a representação de referentes do mundo, uma vez que
acreditamos que a realidade é construída e alterada conforme interagimos com
ela. Assim, podemos afirmar que a referência é o resultado de uma atividade que
realizamos quando usamos uma expressão linguística para designar ou
representar o mundo. Tal como defendem Marcuschi & Koch (1998), os
referentes textuais não são objetos-de-mundo, mas sim objetos-de-discurso que
podem ser modificados, reativados, (re) interpretados, transformados, pois, na
medida em que usamos a língua, tudo é colocado a serviço da construção do
discurso. Conforme os autores, não se pode negar que existe a realidade extramente, nem se pode definir a subjetividade como parâmetro do real. Segundo
eles, o nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico, que reflete o real.
Ele reelabora os dados sensoriais para fins de apreensão e
compreensão. E essa reelaboração se dá essencialmente no
discurso. Também não se postula uma reelaboração subjetiva,
individual: a reelaboração deve obedecer a restrições impostas
pelas condições culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas
condições de processamento decorrentes do uso da língua
(Marcuschi & Koch, 1998, p.5).
Teorias do Discurso e Ensino
159
Com base em estudos realizados por Denis Apothéloz e Reichler-Béguelin
(1995), podemos dizer que a referência evidencia um processo construído por um
sujeito em uma dada situação discursiva. Isso mostra que os referentes não são
realidades do mundo, mas sim representações construídas pelo discurso, ou
seja, são objetos-de-discurso. Essa reflexão revela que quem constrói a imagem
daquilo a que remete é o próprio discurso.
Relativamente a esse campo teórico, Lorenza Mondada (1994) (In:
MARCUSCHI, 2000) acentua que as representações não têm uma estrutura fixa,
posto que emergem e são construídas na dinâmica discursiva. Reafirmamos,
portanto, que os objetos tratados no discurso, ou seja, aqueles elementos aos
quais o discurso faz referência, são objetos constitutivamente discursivos e, como
tal, objetos-de-discurso gerados na/pela enunciação.
4.1 O papel da anáfora na construção do discurso
Dentro do universo linguístico da referenciação, destacamos, inicialmente,
a anáfora. De acordo com o Dicionário de Análise do Discurso de Patrick
Charaudeau e Dominique Maingueneau (2004) a origem da palavra anáfora vem
do grego ana – “para o alto”, “para trás”, e phorein – “levar”. A origem do
vocábulo “anáfora” lembra um movimento de referência a algo presente no texto.
Ainda, segundo o Dicionário já mencionado, a anáfora pode ser definida como o
relacionamento interpretativo, em um enunciado ou sequência de enunciados, de
ao menos duas sequências, sendo que a primeira tem a função de guiar a
interpretação da outra ou das outras (2004, p. 36). Assim, para nós, neste
trabalho, o que importa é que esse fenômeno linguístico visa a retomar e/ou
enfatizar um sintagma nominal anterior. Esse procedimento - característico da
coesão textual – acaba por manter sempre ativado o tópico textual, levando-o
adiante no processo enunciativo do texto, na medida em que o discurso está
sempre se fazendo. Conforme o Dicionário Enciclopédico das Ciências da
Linguagem de Ducrot e Todorov (1972), etimologicamente, anáfórico é aquilo que
remete para trás ou, ainda, um segmento de discurso é anafórico quando é
necessário referir-se a outro elemento do mesmo discurso. Portanto, aqui os
anafóricos são vistos como elementos que se referem a outros elementos
160
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
(independentemente da linguagem usada) que estão na mesma situação
enunciativa, no mesmo texto, no mesmo discurso.
A anáfora auxilia a progressão referencial uma vez que diz respeito à
introdução, identificação, preservação, continuidade e retomada de referentes
textuais, (re)organizando – a todo momento – a cadeia referencial que se constrói
no texto, quando este também se constrói. Estando diante de um elemento lexical
que aponta para um referente, é impossível dizer algo sobre alguma coisa antes
de identificar que referente é esse.
Um dos pressupostos teóricos que assumimos neste estudo é o de que um
enunciado é composto por palavras para as quais não é possível fixar nenhum
valor intrínseco estável, pois seu valor não reside em si mesmo, mas na relação
que estabelece com outras palavras no enunciado. Conforme Ducrot (1980), a
significação de uma palavra contém, sobretudo, instruções dadas àqueles que
deverão interpretar um enunciado, solicitar que procurem na situação de discurso
este ou aquele tipo de informação, a fim de utilizá-la no intuito de (re)construir o
sentido visado pelo locutor. Para que se possam procurar instruções na situação
de discurso, um elemento linguístico deve permitir essa possibillidade.
Aqui, o que nos interessa é o pronome demonstrativo. A seguir propomos
uma reflexão acerca do comportamento do pronome demonstrativo, a fim de
perceber como ele colabora na construção dos sentidos de um texto.
Selecionamos, entre vários itens possíveis para este estudo, duas situações: o
demonstrativo como dêitico e o demonstrativo como anafórico. Passamos, em
seguida, a discutir tais possibilidades de ocorrência.
4.2 O demonstrativo dêitico e o anafórico
O elemento dêitico é a entidade linguística responsável pela referência a um
objeto do texto e/ou à situação de enunciação em que está inserido. O demonstrativo,
enquanto forma pronominal, funciona aqui como o elemento responsável em
localizar, no discurso, um aqui e agora, a partir de uma enunciação do sujeito.
Conforme diz Benveniste (1995, p. 280), “essas formas pronominais não remetem à
‘realidade’ nem a posições ‘objetivas’ no espaço ou no tempo, mas à enunciação,
cada vez única, que as contém, e reflitam assim o seu próprio emprego”.
Teorias do Discurso e Ensino
161
Apothéloz (1995) afirma que dêiticos são expressões linguísticas cujas
interpretações apoiam-se em parâmetros de lugar, de tempo, de pessoa,
instituídos na situação de enunciação. O mesmo autor faz uma diferença entre
dêixis textual e dêixis situacional. A primeira corresponde ao dêitico que se refere
a outro elemento presente no texto. Ela pode ser vista como uma função
metatextual, pois permite a organização do elemento referido, facilitando a
orientação do leitor; a segunda refere-se a elementos da enunciação.
A dêixis evidencia uma atividade de referência. Segundo estudos de Koch e
Marcuschi (1998), referir não é um ato de ostensão direta entre linguagem e
mundo, posto que grande parte dos referentes textuais se constitui em objetos-dediscurso e não em objetos-de-mundo. Mondada e Dubois (1995) destacam que os
referentes textuais são construídos como objetos-de-discurso, porque os sentidos
do texto são possíveis numa significação que diz respeito aos conhecimentos
gerados na relação textual-discursiva, ou seja, na enunciação. Isso se torna
significativo, neste momento, pois, quando se diz que o dêitico refere-se a algo,
alguns estudos mais tradicionais consideram que ele pode referir-se ao que está
fora do texto. Essa concepção é aqui contestada, pois, quando se observa o dêitico
como textual ou situacional, é a cena enunciativa daquela realização textual que se
observa. Portanto, o objeto da referência não estará fora do texto, mas em seu
interior, constituindo-o. Ele é determinado pela enunciação.
O demonstrativo com papel dêitico é tomado, neste estudo, como aquele
que faz referência às categorias de pessoa, lugar e tempo, necessárias na
constituição da cena enunciativa.
Entendemos que o pronome demonstrativo em função anafórica deve
resgatar uma âncora, ou seja, um termo do co-texto, que autorize um
engatilhamento do referente em questão. Destacamos, nas palavras de
Cavalcante (2005, p. 128), que numerosos estudos têm demonstrado que certas
introduções de referentes encontram algum tipo de ancoragem no cotexto, o que
lhes confere, em vista disso, um caráter anafórico. Sublinhamos que, na
concepção que defendemos, a ocorrência da anáfora dá-se mesmo que
elementos não retomem diretamente o mesmo objeto-de-discurso (anáforas
diretas) e que, aparentemente, introduzam uma entidade nova, remetam a uma
ou outra marca cotextual da qual elas se tornam não exatamente novas, mas
162
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
inferíveis no discurso. Esse tipo de anáfora (anáfora indireta) ativa novos
referentes com uma motivação ou ancoragem no universo textual.
Concordamos com Schiffrin (apud: Marcuschi:2005, p. 59), que reconhece
ser difícil traçar uma linha divisória e estabelecer relações entre o mundo criado por
palavras ( o texto) e o mundo representado pelas palavras (o contexto), o que torna
difícil uma distinção clara entre o que é um contexto textual e um contexto
extratextual. Aponta, ainda, para a dificuldade de se distinguir clara e objetivamente
anáfora e dêixis. Para tanto, a referida autora sugere que se veja a anáfora como um
“dependente da dêixis”, tendo em vista que o próprio texto é essencialmente uma
subespécie de um campo dêitico singular, uma vez que textos e contextos criam um
campo dêitico singular – quando da enunciação – em que a anáfora acaba sendo
um tipo de dêixis. Isso porque texto e contexto constituem um ao outro.
Tal como postula Cavalcante (2005, p.144), não podemos negar a
deiticidade de determinado elemento, em dadas situações discursivas, uma vez
que é por esse processo que o leitor é conduzido pela mão até chegar bem
próximo do ponto de origem do texto criado pelo eu que enuncia, e que o faz
penetrar inteiramente no cenário que ele tenciona criar.
5 A função referenciadora dos demonstrativos em textos de humor
Com o propósito de ilustrar as reflexões até aqui postas, apresentaremos, a
seguir, a análise de seis textos, evidenciando o papel do demonstrativo na
construção
dos
sentidos.
Nessa
atividade,
procuramos
mostrar
que
os
demonstrativos – assim como quaisquer unidades menores dentro da unidade maior
de investigação da língua, ou seja, o texto – não são usados sem qualquer critério.
São, ao contrário, peças escolhidas pelo falante, com uma determinada intenção, e
são essenciais para a construção do enunciado, para a organização do discurso. Daí
porque concordarmos com Marcuschi (s.d.), quando defende que a referenciação
não é um simples ato de representação ou de designação extensional, mas um ato
de construção criativo e, por isso, uma atividade complexa.
Os textos 1, 2 e 3, reproduzidos a seguir, fazem parte de um conjunto de
textos propostos em livros didáticos, em lições sobre o estudo do pronome
Teorias do Discurso e Ensino
163
demonstrativo, apresentados em Neves (2003). Os demais, foram publicados no
jornal Zero Hora, de Porto Alegre – RS . Na análise aqui desenvolvida, fazemos
uma breve referência aos elementos do discurso que provocam o humor, ou seja,
aos mecanismos acionados pelos falantes, responsáveis pela decorrência do riso.
5.1 Análise de textos
Texto 1
O efeito humorístico, nesse texto, é resultado de uma falha na interação, em
razão de um dos falantes (a galinha) não ter recuperado a intenção do interlocutor
(cujo propósito é representado pela mensagem de alerta). Na verdade, a
recuperação da mensagem só se dá no último quadrinho, após o encontrão.
Nesse texto, fica evidente a importância de se reconhecer a função
referenciadora dos demonstrativos e o papel que eles desempenham no
enunciado. Como podemos observar, os efeitos produzidos pelos demonstrativos
só se constroem à medida que o discurso se desenvolve. Ao analisarmos a frase
“Esta é a coisa mais estúpida que eu já vi”, verificamos que o falante, ao
empregar o demonstrativo esta, faz uma referência a algo presente no texto, mas
não especificamente ao alerta constante na tabuleta. Remete, sim, a uma
representação construída no e pelo discurso, ou seja, faz referência à falta de
lógica de um aviso como aquele ou da própria instalação da placa. No contexto
em que se encontra, o demonstrativo esta equivale ao demonstrativo isso, à
expressão esse fato, esse tipo de recado.
Já, no último quadrinho, o demonstrativo aquele remete ao aviso constante
na pequena tabuleta referida no texto. É um demonstrativo referenciador textual
164
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
anafórico, pois recupera algo que já foi dito no texto. O demonstrativo este, por sua
vez, não só acentua a inclusão do falante na situação do discurso, como indica
proximidade espacial do falante, ao deparar com o sinal. Essa ocorrência nos traz a
instância enunciativa em que um sujeito se enuncia num aqui e num agora. Usamos
as palavras de Benveniste (1995, p. 277) para pontuar algo importante sobre a
natureza dos pronomes: “Uns pertencem à sintaxe da língua, outros são
característicos daquilo que chamaremos as ‘instâncias de discurso’, isto é, os atos
discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um
locutor”. Assim, o demonstrativo este tem uma função dêitica, localiza tempo e lugar
em relação ao sujeito que fala. É interessante observar, também, a ideia de
contraposição implícita no último quadrinho (aquele X este), o que reforça a
concepção de que esses referenciadores são peças fundamentais para a
organização do discurso e para a construção dos sentidos do texto.
Texto 2
Nessa tira, o humor é causado por uma ideia implícita presente na fala de
Helga. Ela, ao declarar “Espero”, deixa subentendida a afirmação de que Hagar
sabe muito pouco sobre os fatos da vida. Tal como afirma Possenti (2001, p. 56),
o efeito de humor “é decorrente de que o enunciado do primeiro interlocutor tem
um foco e a resposta é dada como se ele tivesse um outro”. Ao leitor, cabe a
tarefa de “perceber a diferença entre a mais provável interpretação do texto e a
esperta seleção alternativa do interlocutor”.
O uso do demonstrativo aquilo, constante no primeiro quadrinho, permite
ao leitor inferir que anteriormente os interlocutores tenham comentado sobre a
necessidade de um determinado tipo de conversa com o filho Hamlet. Portanto,
remete a algo que é do domínio de ambos. O emprego das aspas no termo
Teorias do Discurso e Ensino
165
“aquilo” sugere que o assunto esteja relacionado ao tema sexo. Cabe
lembrarmos, com referência a essa afirmação, algumas expressões já
cristalizadas, tais como “Só pensa naquilo” ou “O presidente tinha aquilo roxo”.
Como podemos observar, o demonstrativo não pode ser interpretado
semanticamente por si mesmo. Remete, sim, a outros itens do discurso necessários
a sua interpretação. Para Cavalcante (2003), o uso do demonstrativo nessa
situação, como a do texto em análise, evidencia um caso de recategorização, uma
vez que ele foi empregado com um valor insinuador, acompanhado de traços
prosódicos que o ratificam. Esse fato comprova que os pronomes demonstrativos –
como muitos estudos apontam – não são neutros, na medida em que retomam e
recategorizam elementos que se constituem no próprio discurso.
Texto 3
Na tira analisada, podemos observar que o elemento responsável pelo humor
é o emprego do demonstrativo este. É óbvio que, para melhor interpretar o texto, o
leitor deve ativar seu conhecimento de mundo em relação a Hagar e Helga, ou seja,
tem de saber que são casados e conhecer algumas características dos
personagens, tais como os hábitos pouco higiênicos de Hagar. No entanto, temos de
admitir que o leitor, mesmo não conhecendo as tiras de Dik Browne, pode inferir a
ideia anteriormente posta, devido ao valor semântico expresso pelo demonstrativo.
Através do uso de este, é feita uma referência a Hagar, que é um elemento
que está dentro do texto. Embora o uso do demonstrativo na fala de Helga recupere
a imagem do marido, o referenciador tem uma função dêitica, já que, como afirma
Lyons (1980, p. 261), a dêixis identifica pessoas em relação ao contexto espaçotemporal mantido pelo ato de enunciação. Na situação de fala analisada, o
demonstrativo este equivale à expressão este aqui. Mais uma vez, usando as
166
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
palavras de Benveniste (1995, p. 279), queremos chamar a atenção para o fato de
que os pronomes demonstrativos apontam para um traço distintivo: “é a identificação
do objeto por um indicador de ostensão concomitante com a instância de discurso”.
Vale ressaltar, também, a importância da linguagem não verbal nesse texto.
Como podemos perceber, a alusão feita por Helga se efetiva como se ela estivesse
se dirigindo ao leitor ou a outro interlocutor qualquer. Com referência, ainda, à fala
de Helga, vemos que a frase interrogativa não requer resposta. Na verdade, a
esposa diz uma coisa para significar outra, quer dizer, emprega a ironia, um
mecanismo linguístico que pretende, ao invés de perguntar, negar o que foi dito.
Texto 4
Teorias do Discurso e Ensino
167
Texto 5
Os textos 4 e 5, veiculados no jornal Zero Hora, praticamente na mesma
semana, exploram o mesmo tema. Versam sobre os acontecimentos políticos da
época, evidenciando a crise vivida pelo PT, as denúncias de corrupção e de
pagamento de propina, bem como o processo de descrédito nos partidos e na classe
dos políticos. Cabe aqui fazermos referência a Possenti (2001), quando afirma que o
humor nem sempre é crítico, mas o humor político certamente o é. O mesmo autor
destaca – e isso é evidenciado nos textos sob análise - que a compreensão de piadas
ou outros tipos de textos humorísticos, de conotação política, depende não só do
funcionamento discursivo, como também de fatores pragmáticos.
Como sabemos, toda crise política apresenta um bom motivo para o
exercício do humor. Os dois textos não só abordam as “falcatruas” e “as
denúncias” que integram o cenário político, como também fazem uma sátira à
reação do cidadão comum. É exatamente desse desfecho inesperado que
decorre o riso: no texto 4, o personagem Boca reitera a postura desonesta dos
políticos e, no texto 5, um dos personagens aprova a prática inescrupulosa do
PT, que, finalmente, se igualou aos demais partidos.
Com referência ao emprego da forma preposicionada dessas (texto 4) e
do demonstrativo estas (texto 5), constatamos o caráter de retomada de uma
situação que é de domínio do leitor, sugerida no contexto. O emprego desses
pronomes traz a síntese de uma ideia. Esta é uma informação conhecida do
interlocutor, o que permite o emprego do demonstrativo sem prejuízo de sua
compreensão. O demonstrativo exige, então, uma competência linguística mais
apurada da qual depende o sucesso da construção do sentido do texto. Nesses
casos, os demonstrativos não recuperam a informação do contexto à esquerda
como normalmente ocorre. A expressão “dessas notícias de falcatruas e milhões
168
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
que ninguém sabe de onde vem” (texto 4) e a expressão “estas denúncias” (texto
5) remetem a situações que possibilitam a reativação da memória do leitor. Mais
uma vez, os objetos-de-mundo se transformam em objetos-de-discurso.
Podemos destacar, também, que o emprego do pronome demonstrativo, além de
seu poder dêitico, particulariza uma instância discursiva, retomando algo do
discurso e apontando pra algo significativo para a construção do sentido do texto.
Texto 6
Dúvida gaudéria
O peão entra num bar chique desses com homem de brinco e mulher de
cabeça raspada, vai lá para um cantinho do balcão, pede uma cachaça e fica só
bombeando o movimento e bebericando. Daqui a pouco senta-se ao lado dele
uma guria com um jeito meio esquisito, pede uma vodka e puxa assunto.
- Você é peão de estância mesmo?
- Eu sou. Nasci numa estância. Me criei lá, laço, pealo e gineteio. Capo
touro e cavalo. Marco o gado. Mato e carneio. Faço de tudo numa estância.
Aí o gaúcho estufa o peito e começa a cantada:
- E tu, guriazinha bonita? Que que tu fazes na vida?
- Qual é, meu! Eu sou lésbica!
- Lésbica? Que que é isso?
- Eu gosto de mulher. Levanto pensando em mulher. Trabalho pensando
em mulher. Almoço pensando em mulher. Deito pensando em mulher. Durmo
sonhando com mulher. É isso. Tchau!
E a mulher levanta-se e vai embora, deixando o peão, que fica ali,
matutando, entretido com os pensamentos. Nisso senta-se outra garota. Ele fica
meio desconfiado, mas fica na dele. Aí a guria pergunta:
- Você é peão de estância, dos legítimos?
Ele olha bem pra ela, faz uma pausa conferindo o raciocínio, e tasca:
- Pois olha, até bem pouquinho eu era. Só que agora descobri que sou
lésbica! Isso, lésbica!
Teorias do Discurso e Ensino
169
O texto 6, também publicado em Zero Hora [s.d.], comprova a afirmação
de Possenti (2001, p. 126), quando defende que “fazer humor é basicamente
produzir um equívoco, ou melhor, desnudar um equívoco possível”. Esse texto é
um exemplo de equívoco, ou seja, a interação entre os falantes não ocorre,
porque há uma falha que impede esse processo. Conforme Neves (2003), o que
falta nesse tipo de situação é conhecimento da natureza linguística. O gaudério,
por não estar de posse do significado da palavra lésbica e, por considerar “que
quem gosta de mulher é homem”, aciona esse conhecimento e se auto-intitula
“lésbica”. É a falta de sintonia entre os interlocutores que provoca o riso.
Quanto ao demonstrativo desses (no primeiro parágrafo), verifica-se que o
termo recupera o referente “bar chique”; no entanto, o demonstrativo se restringe
a um determinado tipo de bar (que, segundo a percepção do gaudério, é chique).
Na frase “Lésbica? Que que é isso?”, o demonstrativo isso é usado para
referir o termo “lésbica”; portanto, seu funcionamento é anafórico. Equivale à
pergunta “O que significa essa palavra”?
O termo preposicionado nisso, na frase “Nisso senta-se outra garota” é,
também, usado como um referenciador textual. Aponta para uma situação
temporal na narrativa, o que equivale à expressão nesse momento. O termo
nisso, empregado no início do período, tal como no caso analisado,
frequentemente
ocorre
em
registros
mais
distensos,
menos
formais,
especialmente em situações de fala. Nesse exemplo, vemos que ele tem
fundamental importância no discurso, pois marca uma mudança no percurso da
narrativa, contribuindo, portanto, para explicitar essa transição.
O demonstrativo na frase “Isso, lésbica!”, se difere dos demais casos
analisados. Tem uma função fática e é empregado de forma corrente em atos de
fala. Denota concordância com algo que já foi referido (podendo remeter ao já
dito pelo ouvinte ou pelo próprio falante). Nesse caso, portanto, tem valor de
reforço, de assentimento.
170
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
6 Considerações finais
Tudo o que foi discutido e analisado nos leva a reafirmar que a
referenciação tem um papel fundamental na construção do enunciado, na
organização do discurso. Os demonstrativos, como foi constatado ao longo deste
estudo, não podem ser interpretados semanticamente, de forma isolada. São
itens da língua que remetem a outros itens do discurso necessários à sua
interpretação. Por isso, para a análise do demonstrativo, temos de levar em conta
as funções semânticas, pragmáticas e interativas.
Tal como defende Marcuschi [s.d.],
considerando que a língua em si mesma não providencia a
determinação semântica para as palavras e as palavras isoladas
também não nos dão sua dimensão semântica, somente uma
rede lexical situada num sistema sócio-interativo permite a
produção de sentidos.
Neste trabalho pudemos comprovar que, efetivamente, os referentes não
são realidades do mundo, mas representações construídas pelo discurso, ou
seja, são objetos-de-discurso. Do mesmo modo, vimos que o demonstrativo
como referenciador não tem a função apenas de referir, mas de contribuir para a
construção do sentido, para a organização textual, para a orientação
argumentativa, para a interação entre os falantes.
Sabemos que, neste estudo, não apresentamos nenhuma proposta
inovadora. Nosso propósito foi o de dividir algumas preocupações e propor
reflexões acerca de um tema que, sabemos, não se esgota nunca. Na verdade,
tentamos mostrar que é possível o professor desenvolver um trabalho que
permita ao aluno do ensino fundamental e médio reconhecer a função
referenciadora do demonstrativo, não como uma atividade mecânica, puramente
descritiva – como se a língua fosse algo externo ao falante – mas como uma
atividade produtiva. Nesse sentido, vale destacar que o aluno precisa não apenas
dominar o modo de estruturação das entidades da língua, mas saber combinar
essas unidades em peças comunicativas eficientes, adequando os enunciados às
situações, aos objetivos da comunicação e às condições de interlocução. Em
Teorias do Discurso e Ensino
171
outras palavras, o aluno deve ser capaz de usar a língua de forma eficiente e
crítica nas diversas situações – na escola e fora dela.
Cabe ao professor, portanto, “orientar o olhar” do aluno, para que ele “se
mova” no texto, observe que determinados recursos concorrem para a produção
de diferentes efeitos de sentido, trabalhe modos de expressão e de organização
do texto e se aproprie de diversos mecanismos linguísticos. Afinal, se quer o
professor de língua portuguesa contribuir para que seus alunos sejam leitores
autônomos e usuários da língua capazes de assumir a palavra e a produzir textos
adequados às suas necessidades comunicativas, tem de oferecer-lhes as
ferramentas para que esse processo se construa.
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Teorias do Discurso e Ensino
173
PARTE 2
TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO DE LÍNGUAS
ESTRANGEIRAS
CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE
LÍNGUA ESTRANGEIRA
Niura Maria Fontana * 1
[email protected]
1 Introdução
Uma das principais metas da educação em geral e da educação de
professores em particular, numa perspectiva humanista e sociocultural, é, ou
deveria ser, criar condições para que o aprendiz construa e exerça a própria
autonomia. O início desse processo está ligado às atitudes e ações do educador
(em sentido amplo) que buscam conhecer e respeitar o espaço do educando.
Como a autonomia é construída, é também necessário oportunizar ao aprendiz
múltiplas e sucessivas oportunidades para desenvolvê-la. Desse ponto de vista,
respeitar a autonomia do aprendiz é um imperativo ético e não um favor que o
professor faz ao seu aluno (FREIRE, 2004). Importa, pois, compreender melhor
esse processo.
A noção de autonomia, aplicável à educação, pode ser buscada no
pensamento iluminista e na ética de Kant (PAVIANI, comunicação privada). O
iluminismo representa para Kant (1995, p.11) “a saída do homem da sua
menoridade”, definida esta última como “a incapacidade de se servir do
entendimento sem a orientação de outrem.” A dependência de outros para
tomarem decisões por nós (a menoridade) é considerada comodista e poderia ser
superada, com boa vontade e decisão, a partir do lema iluminista: “Tem a
coragem de te servires do teu próprio entendimento!”
A superação dessa situação de dependência é fundamental para lidar com
a mudança e a incerteza típicas do nosso tempo, assim como com as
contingências cotidianas da vida de cada cidadão. Não se trata, porém, de atitude
individualista, mas sim do desenvolvimento de atitudes éticas e cooperativas em
*
Professora do Departamento de Letras, Universidade de Caxias do Sul.
Sou grata aos colegas Jayme Paviani, Neires Soldatelli Paviani e Isabel Paese Pressanto, pelas
valiosas sugestões dadas à versão preliminar deste texto.
1
busca da construção de saberes coletivos, numa relação de dependência
recíproca com os outros. De fato, a autonomia não acontece de forma isolada,
mas desenvolve-se numa relação de interdependência com o contexto cultural
em que as pessoas estão inseridas, como aponta Morin (2003). Assim entendida,
a autonomia ultrapassa o âmbito moral e cognitivo para transformar-se em
competência para interagir socialmente, principalmente em termos de estabelecer
objetivos, avaliar dados e possibilidades, e de tomar decisões.
Dada a sua complexidade, o percurso de tornar-se autônomo pressupõe
saberes de muitas ordens, que se constroem e se alimentam continuamente de
percepções, elaborações, conhecimentos, associações, práticas, reflexões e
aceitação do risco. Neste capítulo, faremos algumas considerações sobre a
formação do educador, com foco no desenvolvimento da autonomia pelo aluno
estagiário de Letras, a partir da apropriação de referenciais teóricos sobre o
objeto de ensino, da explicitação da relação entre teoria e prática e do
desenvolvimento do senso crítico como fatores centrais integrantes do processo
de construir competências. Um relato de pesquisa-ação ilustra os aspectos
teóricos abordados.
2 Educação e autonomia
A concepção contemporânea de educação como autoformação do sujeito
aprendente incorpora necessariamente a noção de autonomia, cujas bases
podem ser buscadas em Kant e em Freire. Na visão kantiana (TAVARES;
FERRO, 1997, p. 145), a autonomia consiste na “capacidade que todo o ser
racional tem de dar a si próprio a lei moral, de legislar por si próprio. É a
propriedade da vontade que em si encontra a lei reguladora da sua acção moral.”
Essa autonomia da vontade baseia-se no conceito de liberdade, concebida esta
como um princípio independente das leis do mundo físico, mas dependente das
leis da moral (TAVARES; FERRO, 1997). Assim, compreende-se que a
autonomia se constitui a partir de liberdade baseada em critérios e não de
liberdade irrestrita. Essa noção, de cunho ético, inicialmente proposta por Kant
(1995), propagou-se, assumindo sentidos talvez menos restritos, e aplicando-se a
176
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
outros campos, entre os quais o da educação e o do desenvolvimento de
sistemas de leis (ZATTI, 2007).
Tema recorrente na obra de Freire e uma de suas grandes preocupações,
a autonomia do educando pode ser estimulada por meio de uma prática
educativa reflexiva, apoiada no pressuposto fundamental de que a aprendizagem
é uma construção do sujeito aprendente e não uma doação ou transferência de
conhecimento do professor ao educando (FREIRE, 2004). Aprender, nesse caso,
depende sobretudo de querer aprender, de buscar e relacionar informações, de
desenvolver um olhar atento e crítico voltado à realidade, de transformar reflexão
em ação. Para que isso ocorra, é preciso que o aluno assuma a responsabilidade
pela própria aprendizagem/construção, por si só uma evidência de autonomia, na
visão de Dickinson (1994).
Ao contemplar aspectos sociopolíticos do desenvolvimento humano e da
educação, propondo elementos como a conscientização, a passagem da
consciência ingênua para a consciência crítica, o papel do diálogo com os outros
e com o mundo, a libertação da opressão, tendo como pano de fundo um
contexto socioistórico determinado, Freire (1983; 2004) faz uma contribuição
decisiva para a ampliação do conceito de autonomia desenvolvido por Kant. Com
Zatti (2207, p. 46), podemos dizer que
Tanto para Freire quanto para Kant, o homem é construtor de si.
A diferença é que para Kant o homem retira de si, da própria
razão, os meios para se fazer homem, já em Freire é a ação
dialógica feita no mundo com os outros que possibilita a própria
construção.
Embora concordem no que diz respeito às bases éticas da autonomia e à
sua relevância na constituição da dignidade humana, os dois autores divergem
quanto ao entendimento da natureza do fenômeno em estudo: enquanto Kant
focaliza o individual, a partir da racionalidade, Freire vê o coletivo, constituído na
interação com o meio sociocultural e político no percurso histórico.
Segundo Kant (apud ZATTI, 2007), um dos fatores que podem possibilitar
a autonomia é o conhecimento, pois este alarga as condições do ser humano de
agir e de pensar por si próprio. Nesse caso, pode-se dizer que o pensar e o agir
autônomos passam pela construção de competências, que pressupõem
Teorias do Discurso e Ensino
177
necessariamente conhecimento. A noção de competência pode ser vista sob
diferentes perspectivas na área educacional. No contexto deste estudo, para
definir competência, seguimos Gillet apud Allal (2004, p. 81):
Uma competência é definida como um sistema de
conhecimentos, conceituais e procedimentais, organizados em
esquemas operatórios, que permitem, com relação a uma família
de situações, identificar uma tarefa-problema e sua resolução por
meio de uma ação eficaz.
Nessa definição, numa visão ampla e integradora, Allal (2004, p. 83)
identifica uma série de componentes que formam uma rede articulada e
funcional, “capaz de ser mobilizada” pelo sujeito para a realização de uma tarefa
específica. A competência é, pois, sempre situada, é sempre competência
orientada para um propósito, não se confundindo nem se contrapondo aos
saberes, mas promovendo a sua organização.
Na proposta de Allal (2004), os diferentes componentes da competência
são categorizados como cognitivos, afetivos, sociais e sensório-motores, cada
um recobrindo áreas específicas. Os fatores cognitivos compreendem não
apenas os conhecimentos declarativos, procedimentais e contextuais, mas
também os aspectos metacognitivos; os afetivos compreendem, entre outras
categorias, atitudes e motivações; os sociais englobam interações e negociações
e os sensório-motores envolvem a coordenação gestual (pode-se pressupor aqui
todos os aspectos psicofísicos que permitem a concretização da atividade verbal
oral e escrita, como a visão, a audição e o funcionamento do sistema fonador, por
exemplo).
Outro aspecto relevante apontado por Allal (2004) diz respeito à natureza
de uma competência, entendida a partir da perspectiva da cognição situada. O
processo da construção de uma competência é explicado por Allal (2004, p. 83),
com base em estudos de Brown, Collins e Duguid (1989), que retomam uma tese
de Dewey, segundo a qual “a forma como o indivíduo aprende – as condições em
que a aprendizagem se realiza – faz parte daquilo que ele aprende”. A esse
respeito, continua Allal (2004, p.83):
178
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Sob essa ótica, uma competência sempre se constrói por meio de
uma aprendizagem “na prática”, o que implica a apropriação, não
só de saberes e savoir-faire, mas também de modos de interação
e de ferramentas valorizadas no contexto em questão.
Em outros termos, o desenvolvimento de uma competência leva à
integração de instrumentos externos, que amplificam e estendem
o campo de atividade conceitual do funcionamento do indivíduo.
Essa concepção do processo de construção de uma competência destaca
não apenas a inter-relação entre teoria e prática, mas também a incorporação
das condições de aprendizagem, ou seja, de como essa competência é
construída e influenciada por um contexto específico, tendo repercussões na
cognição. A mediação de tal processo nos educandos requer do educador
saberes e competências de várias ordens, que contribuem também para a
construção de um fazer pedagógico autônomo. São, na verdade, os saberes
específicos da profissão, cujo desenvolvimento contínuo é meta da formação
docente.
Entre os saberes que o professor mobiliza nas situações de ensino e de
aprendizagem, Gauthier et al. (1998), ao proporem uma teoria da pedagogia,
apontam: o saber disciplinar (o conhecimento científico sobre o objeto de ensino,
ou seja, a matéria); o saber curricular (o conhecimento sobre a proposta da
escola em termos de programas de ensino); o saber das ciências da educação (o
conhecimento a respeito da educação e do sistema escolar em suas diversas
instâncias); o saber da tradição pedagógica (o saber dar aulas, de acordo com a
tradição pedagógica vigente); o saber experiencial (a experiência particular do
professor, seu repertório de técnicas, estratégias e critérios); o saber da ação
pedagógica (metodologias de ensino com base científica).
No entanto, não basta ao professor desenvolver saberes e competências
como um fim em si mesmos, de forma descontextualizada e acrítica. Para
promover a autonomia do aprendiz, esses saberes requerem uma base éticofilosófica apoiada em princípios e um referencial epistemológico sólido, que
possam
servir
de
fundamentação
para
uma
metodologia
de
ensino
emancipatória. Em outras palavras, o educador competente deve ser capaz de
ajudar o aprendiz a construir-se como sujeito da própria aprendizagem e, num
âmbito mais amplo, da própria história. O que estamos propondo é compatível
com o que postulam Moraes (2000) e Freire (1983; 2004), no sentido de afastarTeorias do Discurso e Ensino
179
se da visão da chamada ciência normal, incorporando pressupostos humanistas,
cognitivistas e socioculturais nas práticas educativas.
3 Teoria versus prática ou teoria e prática?
A relação entre teoria e prática tem sido amplamente defendida nos cursos
de nível superior, talvez de modo mais acentuado nos de licenciaturas, nos quais
o desenvolvimento de competências para o ensino deveria contemplar o saber eo
saber fazer de forma integrada. Se, por um lado, a importância e a necessidade
dessa inter-relação são apontadas, por outro, percebe-se que na maioria das
vezes, segundo observação empírica, ela não se concretiza. Na verdade, parece
haver uma tendência a supervalorizar a prática, a habilidade técnica,
subestimando a base teórica, fato apontado por vários estudiosos, entre os quais
Paviani (1986). De fato, os professores e licenciandos, em sua maioria, parecem
priorizar informações “práticas” que os auxiliem a acrescentar novidades ao
“cardápio diário”; buscam “receitas” para agradar aos alunos e para serem bemsucedidos na condução dos programas de ensino (PAVIANI, 1986).
Não se trata aqui de desconsiderar a prática. Na verdade, a preocupação
com a prática é pertinente, e o professor precisa ter habilidades técnicas
múltiplas para desempenhar com qualidade os papéis que lhe cabem. Mas, na
mesma medida, são-lhe indispensáveis conhecimentos teóricos de natureza
científica. A resistência à informação teórica possivelmente seja consequência do
desconhecimento da função da teoria na prática e do papel da prática na
realimentação da teoria. Talvez o professor, preocupado em desenvolver
habilidades técnicas, ingenuamente pense não estar usando nenhuma teoria,
quando, de fato, cada ação humana “deriva de uma posição teórica” (PAVIANI,
1986, p. 23), “mesmo que esta seja implícita, parcial, meramente doutrinária ou
ideológica” (PAVIANI, 1986, p. 21).
Teoria e prática são noções que remontam à antiguidade grega, que
reconhecia a existência de diferentes graus ou modos de saber. Um deles, a
episteme, ou ciência, correspondia a “um saber pelas causas”, enquanto outro, a
techne, equivalia a “um saber fazer” (PAVIANI, 1976, p. 15). Numa visão atual,
180
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
mas fiel à tradição grega, Paviani (2003) entende que o saber fazer, sempre
ligado ao exercício profissional, não consiste em saber puramente prático: ao
contrário, pressupõe também conhecimentos teóricos, ou episteme. Por sua vez,
o conhecimento teórico implica o desenvolvimento de competências práticas do
tipo savoir-faire. Esses modos de saber, no entanto, têm sido entendidos como
categorias separadas, transformando-se numa dicotomia que ainda produz seus
efeitos no ensino, especialmente no nível superior, em que, ao contrário do que
ocorre com os profissionais do ensino, há uma ênfase excessiva no
conhecimento teórico. E essa dissociação entre episteme e techne dificulta o
acesso à sophia, ou seja, à sabedoria como plenitude de conhecimento.
Ao longo da história, a relação entre teoria e prática tem sido alvo de
diferentes compreensões. Na visão dialética, teoria e prática são categorias
complementares, segundo Demo (2000, p.111):
teoria necessita de prática e vice-versa, embora cada termo tenha
sua lógica; teoria tem pretensões universalizantes, enquanto
prática é localizada; esta, ao mesmo tempo que diminui a teoria,
tem a vantagem de a realizar; aquela, ao mesmo tempo que se
sente traída em toda prática, tem a vantagem de apontar para a
crítica alternativa; para renovar-se, toda prática carece voltar para
a teoria, onde descobre que sua prática era uma entre outras e
sempre incompleta (...)
Se o que foi posto realmente procede, o que parece ser necessário é
oportunizar aos licenciandos (e também aos professores imersos na rotina das
escolas) oportunidades de conscientização sobre o papel fundamental da teoria
na prática educacional, como apoio necessário para o desenvolvimento de uma
competência crítica, por sua vez imprescindível para a construção de atitudes
autônomas. Por outro lado, torna-se também importante recuperar as relações
entre teoria e prática, numa perspectiva dialética, oportunizando aos licenciandos
uma clara percepção da interface entre ambas, resguardadas as características
de cada uma. Ao conhecimento racional dessa relação é importante associar
uma vivência de ambas as dimensões como condição para a construção de
saberes conducentes à autonomia.
Do ponto de vista científico, as teorias podem ser vistas como estruturas
ou cadeias de cognição, cujo objetivo é o de explicar fenômenos a partir de
Teorias do Discurso e Ensino
181
pressupostos universais (MATALLO JR., 2000b). Mais especificamente, as
teorias têm o propósito de solucionar problemas (KUHN, apud MATALLO JR.,
2000a), já que “a ciência começa com problemas” (POPPER, apud MATALLO
JR., 2000a, p.24), desenvolvendo-se por meio de conjeturas que se estruturam
para explicar tanto as regularidades quanto as irregularidades da natureza, mas
que podem esgotar-se e tornar-se ultrapassadas, dando origem a novas
conjeturas, permitindo assim o processo contínuo de revisão e avanço da ciência
(MATALLO JR., 2000a).
Assim como existem diferentes teorias, existem também práticas
diversificadas em educação, algumas reprodutoras do status quo, outras
defensoras de mudanças, o que é apontado por Paviani (1986, p.23):
Diferentes maneiras de conceber a educação refletem diferentes
modos de ver o homem no mundo. Por isso, o entendimento de
uma teoria educacional não pode se realizar sem uma certa
compreensão dialética das relações entre as idéias e a realidade,
entre o educador e o educando.
Nessa linha de pensamento, a apropriação e produção de conhecimento
com fundamentação científica oferecem ao educador importantes elementos para
conhecer “o homem no mundo”, o que se refletirá em suas práticas sociais, com
ênfase à educação, otimizando escolhas e qualificando ações.
4 Senso crítico e autonomia
Se a ciência vive de problemas e do levantamento de conjeturas, qual o
valor do conhecimento científico em educação? O papel do conhecimento
científico é o de oferecer um referencial que permita analisar a experiência
empírica, os dados da realidade, de forma sistemática e criteriosa, transcendendo
o senso comum. Assim, ao mesmo tempo, oportuniza a produção de
conhecimento e oferece subsídios para o exercício da crítica fundamentada e
confiável, da crítica que contribui para o aperfeiçoamento.
Moraes (2000, p. 223) assim justifica a importância da criticidade:
182
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
O desenvolvimento da criticidade facilita a identificação da fonte
de produção da informação, a análise de sua validade e a
possibilidade de compará-la, decidindo qual será mais útil para o
desenvolvimento de seu trabalho. Requer, portanto, raciocínio,
valores morais e tomada de consciência dos próprios
sentimentos.
Evidentemente, as teorias não podem ser adotadas sem questionamento,
já que não constituem verdades absolutas ou imutáveis. A produção do
conhecimento precisa ser competente, crítica e inovadora, e para isso deve
apoiar-se na competência técnica, crítica e criativa. Enquanto a competência
técnica é construída a partir de condições lógicas, epistemológicas e
metodológicas, a criatividade desenvolve-se a partir da liberdade de usar o
impulso criador. A competência crítica, por sua vez, pressupõe a compreensão
de que o conhecimento está sempre situado num contexto amplo, resultando de
uma rede de relações socioculturais. Para exercê-la, pois, é preciso ter
conhecimento não só do objeto de estudo em profundidade, mas ter condições
de compreender as interferências ideológicas e as formulações do senso comum,
evitando tanto atitudes dogmáticas quanto excessivamente céticas (SEVERINO,
2002), já que ambas as posturas são paralisantes.
E atitude crítica é ferramenta fundamental para que o educador consiga
estabelecer uma relação profícua entre teoria e prática, de modo que uma
questione a outra, contribuindo simultaneamente com dados e informações
específicos que, se considerados isoladamente, pouca chance teriam de ser
compreendidos e aperfeiçoados. A esse respeito, afirma Paviani (1986, p. 22): “O
educador consciente do seu papel social e histórico faz a crítica da teoria e,
graças à teoria, investiga de modo amplo, sistemático e rigoroso a prática.”
O que parece ser desejável, então, é o desenvolvimento de uma atitude
crítica que permita “examinar a origem, a natureza, o modo de ser e a finalidade
do conhecimento”, ou seja, de uma postura crítica baseada na compreensão
profunda da teoria ou do fenômeno que se deseja discutir (PAVIANI, 1986, p. 24).
Além disso, é ainda Paviani (2003, p. 124) quem explica, “a verdadeira crítica
pressupõe o uso de critérios. Criticar é julgar e avaliar as pretensões, os planos,
as decisões. É examinar a questão sob todos os ângulos e, igualmente, nos seus
aspectos de argumentação internos e externos.”
Teorias do Discurso e Ensino
183
Acrescente-se que a crítica à prática não apenas contribui para iluminá-la
ou complementá-la, mas pode também fazer surgir elementos para novas
construções teóricas, estabelecendo-se assim um circuito em que teoria e prática
estão em constante retroalimentação mútua, o que parece ser um processo
adequado, tanto para a educação quanto para a ciência.
5 Concepções de língua: teorias da linguagem e orientação pedagógica
Uma vez que o professor de línguas, tanto estrangeira como materna, tem
como objetivo oportunizar ao aluno a construção de competências linguísticas, de
modo que ele possa interagir adequadamente na vida social, torna-se
imprescindível uma noção clara do que seja língua. Aqui a presença das teorias
da linguagem desempenha um papel crucial na construção do conhecimento
disciplinar do professor, baseado em fundamentos epistemológicos que lhe
permitam desenvolver uma visão crítica que, por sua vez, servirá de suporte para
o desenvolvimento de atitudes e ações autônomas.
A concepção de língua como sistema ou como código, de raízes
estruturalistas, centrada na gramática, tem sido o referencial por excelência do
ensino na abordagem tradicional. A tendência hoje é pensar a língua em termos
de discurso, aqui entendido segundo Benveniste, apud Rangel (2003, p. 16),
como “linguagem posta em ação – e necessariamente entre parceiros”. Isto
porque, como explica Marcuschi (2003, p.22), “as línguas são não apenas um
código para comunicação, mas fundamentalmente atividade interativa (dialógica)
de natureza sócio-cognitiva e histórica.”
Essa mudança de paradigma em relação à natureza da linguagem
encontra justificativas epistemológicas e metodológicas. Bernárdez (2004) afirma
que os modelos formalistas na linguística elegeram o aspecto individual como
único foco de investigação, devido, entre outras razões, à dificuldade
metodológica de estudar a linguagem em seus aspectos individuais e sociais,
simultaneamente. Admitida a concepção da linguagem como fenômeno individual
e social, “impressa no cérebro de cada indivíduo”, mas que “surge e se realiza na
184
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
interação entre os indivíduos” (BENÁRDEZ, 2004, p 29), qualquer modelo teórico
que se preocupe exclusivamente com uma das dimensões apresenta limitações.
Além da linguagem, há uma vasta gama de atividades sociais apoiadas ao
mesmo tempo em princípios cognitivos e sociais (entre as quais a psicologia
social, a antropologia cognitiva e a semiótica numa visão cognitivista) que, em
função da natureza dos fenômenos estudados, requerem a revisão e superação
dos modelos formalistas (BENÁRDEZ, 2004). Nesse sentido, com relação à
linguagem, Bernárdez (2004, p. 29) defende, entre outros, os seguintes princípios
para embasar a investigação linguística:
• A linguagem é seu uso, em interação com os princípios
cognitivos utilizados para seu processamento. Todo fenômeno
lingüístico põe em jogo diversos aspectos reconhecíveis na
linguagem.
• A linguagem deve ser estudada empiricamente, partindo-se da
observação para estabelecer hipóteses acerca da existência
de princípios que expliquem os fatos identificados; esses
rincípios devem ser testados em novos fatos lingüísticos.
As concepções de língua, como de resto todas as construções da ciência
em todas as áreas do conhecimento, passaram, ao longo da história, por vários
estágios. Em seu percurso evolutivo, a noção de língua foi sendo construída a
partir de diferentes compreensões acerca do objeto de investigação e da própria
metodologia, culminando, na atualidade, com a divisão em duas grandes
correntes: a da língua como sistema e a da língua como atividade sociocognitiva
historicamente situada. Na verdade, é preciso que esses extremos sejam
compreendidos não como mutuamente excludentes, mas como as duas faces da
mesma moeda. Essas duas dimensões constituintes da língua, ou o que
Bronckart (2003) denomina de “duplo estatuto da língua”, estão na base da
distinção entre linguística do sistema e linguística do discurso, no interior das
quais existem várias tendências.
Por descreverem a língua de modo imanente, sem contemplar seus
contextos de uso, a teoria estruturalista e a gerativa compõem o grupo da
linguística do sistema. A linguística do discurso tem como foco as manifestações
verbais concretas, realizadas por indivíduos também concretos, em situações de
comunicação no mundo real (KOCH, 2001). Nesse grupo estão incluídas as
Teorias do Discurso e Ensino
185
linhas das Teorias da Enunciação, dos Atos de Fala e da Atividade Verbal
(KOCH, 2001) e ainda as da Análise do Discurso Francesa e Crítica, além do
Sociointeracionismo Discursivo.
Ao teorizar sobre a noção de língua como atividade, Marcuschi (2001, p.1)
parte do pressuposto de que “todas as nossas atividades, sejam elas lingüísticas
ou não, são sempre situadas, seja do ponto de vista social, histórico ou
cognitivo.” Isto significa que a língua não é um sistema autônomo; ao contrário,
está profundamente entranhada na vida social e cultural dos grupos humanos
que por meio dela interagem, ou, nas palavras de Mondada apud Marcuschi
(2001, p.2), a língua “existe na e pelas práticas discursivas dos locutores”. Sendo
assim, argumenta o mesmo autor (2001, p.3), a língua não pode ser entendida
nem como instrumento, nem como representação da realidade, e sim como
coconstrução interativa, pois “é na interação (seja com um texto ou um outro
indivíduo) que emergem os sentidos numa espécie de ação coletiva (...).” Do
mesmo modo, não corresponde apenas a uma atividade cognitiva.
Sendo assim, com Marcuschi (2001, p.2) assumimos que
A língua se manifesta como um conjunto de práticas sóciointerativas de modo que “os efeitos de codificação e de
estandardização não são os únicos aspectos definidores da
língua; eles são o resultado de práticas sedimentadas” que
devem ser descritas nos seus efeitos constituintes. Por isso, não
é a língua como sistema nem como forma que está aqui em
evidência e sim a língua enquanto atividade social, interativa e
cognitiva.
Que repercussões essa visão teórica tem no ensino da língua? O que
significa, para fins práticos, assumir a concepção de língua como atividade? A
partir dessa compreensão de língua, na qual a visão formal e a visão estritamente
funcional não competem, mas complementam-se, Marcuschi (2001, p.2) defende
uma abordagem pedagógica “que supere tanto o plano estritamente formal
quanto a centração no código”, e que se preocupe “com as atividades linguísticas
situadas e não com as estruturas da língua descarnadas de seus usuários” (grifo
do autor).
No âmbito das práticas de ensino, um objeto acessível à investigação é o
livro didático, cuja análise permite desvelar os fundamentos teóricos subjacentes,
186
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
tanto do ponto de vista linguístico quanto cognitivo e pedagógico, entre outros.
Nos últimos anos, o livro didático, por constituir o recurso didático por excelência,
sendo em muitos casos o único apoio do professor, tem despertado o interesse
de pesquisadores e revelado seus pontos fortes e fracos. Manuais escolares de
língua portuguesa analisados por Marcuschi (1996, p.71) revelam uma
concepção de língua como “um código ou um sistema de sinais autônomo,
totalmente transparente, sem história, e fora da realidade social dos falantes”.
Essa noção não é considerada adequada ao ensino, já que a língua é muito mais
do que um sistema de estruturas: consiste em um complexo fenômeno cultural,
social e cognitivo constituído historicamente, que se manifesta no uso. Por ser
sempre situada, é necessariamente variável e dinâmica.
Essa posição encontra apoio também na antropologia linguística
(DURANTI, 2000, p. 30), ao enfatizar a língua como recurso da cultura,
apresentando, entre outros, o argumento de que “hay dimensiones del habla que
solo pueden captarse si estudiamos lo que la gente hace realmente con el
lenguage, relacionando las palabras, los silencios y los gestos con el contexto en
que se producen estos signos.” Ainda segundo Duranti (2000), a distinção entre
antropologia linguística, etnografia e estudos linguísticos (unidos pelo interesse
comum no uso da linguagem) se dá através de objetivos e métodos específicos.
Para a antropologia linguística, a linguagem é “um conjunto de estratégias
simbólicas” integrante do tecido social. Nesse contexto, as palavras constituem
um modo de refletir sobre o mundo e a natureza da existência humana. Enquanto
grande parte da linguística formal contemporânea se preocupa com a faculdade
da linguagem mais do que com a linguagem em si, a antropologia linguística tem
como objeto a “linguagem como medida de nossas vidas” (MORRISON apud
DURANTI, 2000, p. 27), tendo como foco o discurso situado e a ação linguística.
Embora a distinção entre estrutura e função já esteja teoricamente
estabelecida há mais de três décadas, seus desenvolvimentos mais recentes que
desembocam em várias correntes centradas na língua como discurso, entre as
quais o sociointeracionismo discursivo (BAKHTIN, 1992; BRONCKART, 2003),
não parecem ainda ter sido devidamente assimilados pelos alunos. A noção de
língua como discurso é uma das concepções centrais do Sociointeracionismo
Discursivo, cujos fundamentos podem ser encontrados em Bakhtin (1992) e
Teorias do Discurso e Ensino
187
Vygotsky (1987), e cuja consolidação se deve principalmente a Bronckart (2003),
Schneuwly (2004), Dolz e Schneuwly (2004), Marcuschi (2001), Rojo (2005) e
Machado (2005), entre outros. Nessa perspectiva, segundo Marcuschi (2001,
p.1), o pressuposto geral é de que a língua seja “sobretudo um domínio público
de construção simbólica e interativa do mundo, permitindo, na convivência
cooperativa, a própria sobrevivência da espécie humana” (Grifo do autor).
Na prática pedagógica, os aspectos funcionais e discursivos da língua são
ainda
preteridos
em
relação
aos
aspectos
estruturais,
que
acabam
transformando-se no conteúdo central e, na maioria das vezes, exclusivo dos
programas de ensino de língua estrangeira, tanto no ensino básico quanto no
superior. Por outro lado, é importante reafirmar que as abordagens discursivas da
língua não podem prescindir dos mecanismos linguísticos e textuais na análise e
produção de linguagem. Trata-se aqui, novamente, de ver essas duas dimensões
da língua dialeticamente: uma pressupondo a outra, principalmente quando se
trata de ensino da língua.
A mudança de paradigma representada pelo centramento na língua como
atividade social e não mais apenas na estrutura constitui quase que uma
revolução no âmbito da linguística e passa a exigir do professor de línguas um
esforço de (re)-construção teórica associado ao exercício de uma atitude crítica
rigorosa, buscando estabelecer na prática docente elos coerentes com a teoria,
subsídios para repensar o seu fazer, ou até contribuições capazes de realimentar
a teoria.
Uma das primeiras decorrências da adoção da proposta discursiva de
língua é a mudança quanto à importância do ensino da gramática. O que era o
foco central nas abordagens tradicionais, passa a ser pano de fundo em análises
linguísticas apresentadas seletivamente, quando a serviço do propósito
interacional da produção verbal que é objeto de ensino. Preferentemente, é
enfatizada a gramática implícita, em uso, numa visão funcionalista. As regras
gramaticais, se necessárias, são apresentadas indutivamente, inseridas em
contextos significativos, tanto para a construção dos sentidos em foco quanto
para o aprendiz enquanto ator social e usuário da língua.
Outro aspecto que sofre radicais mudanças a partir da concepção
discursiva é a de texto e, consequentemente, do tratamento didático que lhe é
188
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
dado. A evolução da Linguística do Texto, partindo da noção de texto como
objeto formal e passando por uma etapa de constituição da textualidade, com
base em propriedades específicas, atingiu um estágio em que busca reintegrar
autor, leitor e texto na vida social, pressupondo, pois, a dimensão interacional. No
que diz respeito a essa dimensão, Heinemann e Viehweger apud Koch (2003)
apontam os sistemas de conhecimento que são acessados durante o
processamento textual: o linguístico, o enciclopédico e o interacional, todos
indispensáveis para a construção dos sentidos do texto, integrando aspectos
linguísticos, cognitivos e interacionais.
Outros desenvolvimentos nos estudos da linguagem também sinalizam
uma mudança de foco: a visão de texto como unidade formal cede lugar à
concepção de texto como unidade funcional (BEAUGRANDE apud MARCUSCHI,
2001, p.11). Seguindo essa acepção, Marcuschi (2001, p.11) afirma que o texto é
um
(...) evento, um acontecimento, e sua existência depende de que
alguém o processe em algum contexto. Daí os princípios da
textualização não serem normas ou regras de boa-formação
textual nem indicadores de propriedades que um dado evento
lingüístico deve satisfazer. Os princípios de textualização são
hoje vistos como um conjunto de condições que conduzem sóciocognitivamente à produção de um evento interativamente
comunicativo.
Nessa perspectiva, já que o texto não mais corresponde a um objeto
sintático-semântico, o seu tratamento didático também muda. O texto como um
evento discursivo passa a ser contemplado em suas diferentes dimensões
(textuais, funcionais, interacionais), sem ênfase central no aspecto linguístico.
Essas mudanças epistemológicas têm repercussões importantes no ensino da
língua, tanto materna como estrangeira.
Uma das propostas recentes para a análise e produção de textos, na ótica
sociointeracionista, é a baseada na concepção de gênero discursivo. Para
Bakhtin (1992), toda comunicação em qualquer campo da atividade humana se
dá através de enunciados particulares que, apesar disso, têm traços
“relativamente estáveis” em comum, que correspondem aos gêneros do discurso.
Seguindo a mesma linha, Bronckart (2003) reelabora alguns conceitos
Teorias do Discurso e Ensino
189
(principalmente o de gênero discursivo, que ele interpreta como gênero textual).
Os textos, para esse autor, são “produtos da atividade de linguagem em
funcionamento permanente” num contexto socioistórico, podem ser de diferentes
espécies, correspondendo a modelos abstratos de formas de produção verbal.
Tais
modelos
(ou
gêneros)
apresentam
características
e
propriedades
específicas, que são, a um tempo, convencionais e dinâmicas. Um repertório de
modelos fica disponível a todos os usuários da língua, permitindo-lhes entender e
produzir textos concretos a partir deles. Os textos empíricos são, pois,
realizações únicas de gêneros textuais, que constituem modelos abstratos
organizadores das produções verbais situadas em contextos determinados.
Como exemplos de gêneros textuais temos o romance, o poema, a carta, o
curriculum vitae, a entrevista, a reportagem, o verbete de dicionário, o relato
histórico, o artigo científico, o e-mail, entre inúmeras possibilidades.
Nessa linha, outro conceito útil tanto para a análise quanto para o ensino
de textos é o de arquitetura textual, proposto por Bronckart (2003). De acordo
com ele, o texto estrutura-se em três extratos ou camadas superpostas, que
constituem o folhado textual. Esses extratos abrangem: a infraestrutura geral do
texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos.
A infra-estrutura corresponde ao plano geral do texto, aos tipos de discurso
e às sequências (movimentos da informação correspondentes a partes
específicas do texto) e comporta, ainda, as articulações entre esses elementos,
que podem ocorrer, por exemplo, por encaixamento e fusão. O segundo
constituinte dessa camada é o conteúdo temático do texto e como ele se
desenvolve ao longo do texto. A terceira camada compreende os mecanismos de
textualização, que são os elementos que garantem a articulação linear do texto e
consistem em elementos de coesão (conjunções, preposições, locuções
prepositivas, advérbios e locuções adverbiais, grupos nominais, segmentos de
frases e verbos). A quarta e última camada do folhado textual refere-se aos
mecanismos enunciativos, considerados os fatores que mais contribuem para
manter a coerência pragmática do texto. Ou seja, são os posicionamentos
enunciativos e as vozes que se manifestam no texto e que permitem identificar
que instâncias assumem o que é dito, que vozes se manifestam, que avaliações
são feitas sobre o tema.
190
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Com base na concepção de língua como discurso, a tendência
contemporânea é a de valorizar amplamente a compreensão e produção de
gêneros textuais em seus contextos de produção e circulação como unidades de
interação nas práticas sociais dos usuários da linguagem. A ênfase maior situase, então, na compreensão dos gêneros em uso mais do que nas propriedades
formais dos textos, concepção que embasa a proposta dos Parâmetros
Curriculares Nacionais para Língua Materna (MARCUSCHI, 2001; ROJO;
CORDEIRO, 2004, entre outros).
6 Um percurso de construção
Uma forma de pensar essas questões teóricas na prática é através da
obtenção de dados empíricos, que permitam análises sistemáticas de situações
concretas. A título de ilustração, relataremos um estudo 2 feito com duas turmas
de professores-alunos de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Inglês
e Respectivas Literaturas no Ensino Fundamental e Médio, com o objetivo de
observar um percurso de construção de autonomia, através da apropriação de
pressupostos teóricos e de reflexão crítica.
A abordagem empregada foi a da pesquisa-ação, consistindo em
observação, intervenção e avaliação. Inicialmente, foi aplicado um instrumento
que continha perguntas sobre o professor e sua formação, entre as quais uma
que contemplava “os conhecimentos que um bom professor de Inglês deveria
ter”. Partindo da constatação de que apenas três dos dezessete alunos inquiridos
apontaram fundamentos teóricos de alguma natureza como requisito para a
formação do professor, foi planejada uma intervenção que lhes oportunizasse
verificar não só a necessidade de conhecimentos teóricos para embasar as
ações docentes, mas também a de identificar diferentes posições teóricas sobre
a língua, relacionando-as com o material instrucional analisado, numa
perspectiva crítica. O propósito geral da intervenção foi o de estimular o
2
FONTANA, N. M. Autonomia na avaliação de material didático. Relatório de Pesquisa. Caxias do
Sul: Universidade de Caxias do Sul. Material não publicado, 2004.
Teorias do Discurso e Ensino
191
desenvolvimento da autonomia, especificamente no que diz respeito à análise e
seleção de material didático para o ensino de Inglês.
O estudo foi assim conduzido: foram aplicados aos dois grupos de alunos,
em momentos diferentes, um pré-teste, com foco nas concepções de língua
presentes no material instrucional oferecido para análise e, depois de um período
de intervenção visando à apropriação de alguns conceitos norteadores para a
escolha de material didático, um pós-teste com foco idêntico. O instrumento para
a coleta de dados, tanto para o pré quanto para o pós-teste foi um questionário
de análise de uma lição de Inglês, contemplando o objetivo da lição, a concepção
de língua que a embasava e identificação de atividades gramaticais e de
oportunidades de interação. Foram apresentadas questões abertas, com o
objetivo de verificar se os alunos percebiam as implicações teóricas subjacentes
ao material instrucional apresentado. Os alunos responderam individualmente às
questões, em sala de aula. Para o primeiro grupo, o texto usado no pré-teste teve
que ser substituído por outro no pós-teste, pois entre uma aplicação e outra os
alunos levantaram questionamentos que poderiam contaminar os dados; para o
segundo grupo, foi usado o mesmo texto para análise nos dois momentos da
coleta.
As lições usadas para análise foram retiradas da série didática English
File. Para o primeiro grupo, foram apresentadas, no pré-teste, a lição file 3A(Fish,
chips and cricket) do livro English File -student’s book 1 (OXENDEN; SELIGSON,
1996) e no pós-teste, a lição file 2B (What’s your job really like?) do livro English
File – student’s book 2 (OXENDEN; SELIGSON; LATHAM-KOENIG, 1997). Para
o segundo grupo, tanto no pré quanto no pós-teste, foi usada a lição file 3A(Fish,
chips and cricket) do livro English File -student’s book 1 (OXENDEN; SELIGSON,
1996) De acordo com o manual do professor, o projeto da série baseia-se em
cinco dimensões da língua: gramática, vocabulário, pronúncia, funções e
habilidades linguísticas, articulados pedagogicamente por meio de revisões
sistemáticas. O objetivo geral da série é levar o aluno a expressar-se e sobreviver
numa variedade de situações práticas, configurando uma abordagem discursiva,
apoiada na concepção de língua como atividade, sem descuidar dos insumos
estruturais que possibilitarão a interação.
192
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
As lições selecionadas para o teste apresentam, na margem superior, os
tópicos de gramática e tema/vocabulário, e constam, inicialmente, de um texto
acompanhado de uma atividade de vocabulário e de atividades de compreensão,
cuja correção é feita através da audição de fita cassete com a gravação dos
textos. Os textos são culturalmente sensíveis, apresentado criticamente aspectos
da cultura britânica, ao mesmo tempo em que oferecem desafios cognitivos
(lacunas) para que o aluno os reconstrua. Na sequência, é apresentado o tópico
gramatical, através de exemplos retirados dos textos, para que o aluno deduza a
regra e a aplique em atividades de prática de linguagem, entre as quais, uma que
novamente faz referência ao texto. O tópico gramatical é contextualizado no
texto, cuja função é identificável, embora não esteja explícita. Após, há uma
seção dedicada à pronúncia, seguida de atividades comunicativas orais e
escritas, permitindo ao aluno falar da sua realidade. A sequência das atividades
de vocabulário, compreensão de texto e gramática conduz à culminância da lição,
que é tipicamente interativa.
Seguiu-se um período de intervenção de dez semanas, que consistiu na
manipulação de insumos teóricos e metodológicos (textos sobre concepções de
língua e de linguagem e sobre abordagens de ensino, para leitura e elaboração
de resenha; atividade de categorização de características das visões de língua
como sistema e como discurso; leitura e discussão de texto expositivo sobre
língua como sistema e língua como discurso; exposição dialogada e análise de
diagrama e de quadro-resumo contemplando vários aspectos dessas duas visões
de língua e relacionando-os a situações práticas de sala de aula; análise crítica
de planos de aula e de aulas observadas ao vivo e através de vídeo). Durante
esse tempo, os alunos tiveram oportunidades de apropriar-se de um conteúdo
teórico fundamental para as ações pedagógicas referentes ao ensino de línguas,
já que a concepção de língua serve de referencial para o nível de planejamento,
de execução das aulas, de seleção ou produção de material instrucional, assim
como de avaliação. A metodologia usada foi a crítico-reflexiva, oportunizando
análises pontuais e globais da questão que consistia no objeto de estudo, com
foco nas relações entre aspectos teóricos e sua repercussão nas práticas de
ensino. Os alunos foram incentivados a observar, comparar, analisar e avaliar as
Teorias do Discurso e Ensino
193
situações de ensino e aprendizagem propostas, de modo crítico e pessoal, com
vistas ao desenvolvimento de atitudes autônomas e coerentes.
Após a intervenção, foi aplicado o pós-teste, abordando as mesmas
questões apresentadas no pré-teste. As respostas foram analisadas, comparadas
e discutidas com os aprendizes, que puderam fazer um exercício de
metacognição sobre o percurso feito, identificando mudanças em suas
compreensões, que foram atribuídas à apropriação teórica, às leituras e
discussões e à percepção da presença dos aspectos teóricos nas diferentes
instâncias da prática em sala de aula, com destaque para a análise de material
didático.
Para ilustrar as reflexões de base teórica sobre a construção da autonomia
aqui apresentadas, selecionamos duas questões inter-relacionadas, uma vez que
a escolha do objetivo, considerando-se o critério de validade, deve estar
associada a uma concepção de língua que orienta toda a organização da lição.
As questões propostas aos alunos foram as seguintes:
(1) Qual o objetivo da lição?
(2) Que concepção de língua embasa a lição?
As respostas dos alunos a essas questões foram categorizadas a partir,
principalmente, da noção de língua como sistema e como discurso. Na
sequência, são apresentadas e analisadas as respostas às questões (1) e (2),
comparando-se o desempenho de cada grupo no pré e no pós-teste.
Posteriormente, o desempenho global dos dois grupos de alunos é comparado e
analisado.
Dados do primeiro grupo
Pré-teste, questão (1)
Com relação ao objetivo da lição (questão 1), no pré-teste, o primeiro
grupo de alunos respondeu:
Fazer com que o aluno saiba falar sobre sua vida ou de outra
pessoa [...] e coisas que faz no dia a dia.
Trabalhar o “present simple” [...] e alguns verbos do dia a dia. Ao
mesmo tempo, a lição objetiva a interação entre alunos e
194
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
professor por meio de perguntas respostas básicas da
comunicação diária.
Oportunizar o conhecimento dos hábitos do povo inglês através
do texto [...] trabalhando vocabulário, gramática e pronúncia.
Ler um texto sobre os ingleses a fim de observar o modo de vida
dos mesmos. Trabalhar a 3ª pessoa singular (simple present)
Oportunizar a aprendizagem da estrutura do presente simples,
focalizando as pessoas he, she, it.
Proporcionar ao aluno a aprendizagem do Present Simple, com
enfoque na terceira pessoa do singular, “he, she, it”
Apresentar o presente simples na terceira pessoa do singular.
Analisar o uso e a gramática do presente simples na terceira
pessoa do singular.
Apresentar a terceira pessoa, o uso do auxiliar em negativas e
perguntas, levar ao conhecimento do aluno um pouco mais sobre
a cultura inglesa, e apresentar novos vocábulos [...].
Apresentar alguns elementos típicos da cultura inglesa e
oportunizar o contato com as regras do presente simples na
terceira pessoa do singular.
Apresentar costumes ingleses e aproveitar a oportunidade para
introduzir a 3ª pessoa do singular no presente simples.
Como se vê, foram apontados objetivos muito diversificados, com
predomínio dos relacionados aos aspectos gramaticais e culturais, conforme
pode ser visto na categorização apresentada no quadro 1.
Respostas quanto ao objetivo da lição
RESPOSTAS
Comunicação sobre atividades cotidianas
Aspectos culturais, gramática e vocabulário
Gramática do presente simples
Gramática e interação
Aspectos culturais e gramática
FREQUÊNCIA
1
2
4
1
3
Quadro 1: pré-teste
Em resumo, quatro dos onze alunos perceberam os objetivos como sendo
exclusivamente
gramaticais,
um
deles
percebeu
somente
os
aspectos
interacionais, e os seis restantes identificaram objetivos mesclados, englobando
aspectos gramaticais, lexicais e interacionais. Além dessas evidências no préteste, a análise das respostas do mesmo(a) aluno(a), na identificação de objetivo
e concepção de língua, revela algumas incongruências que podem ser vistas no
quadro 2.
Teorias do Discurso e Ensino
195
ALUNO
A1
A2
A3
A4
A5
A6
A7
A8
A9
A10
A11
OBJETIVO
CONCEPÇÃO DE
LÍNGUA
Gramática e interação
Algo Interativo
Gramática
Interação
Gramática
Comunicativa
Aspectos culturais e gramática
Meio de troca de
saberes
Gramática
Estruturalista
Aspectos culturais e gramática
Estruturalista
Aspectos culturais, vocabulário, Tradicional
gramática e pronúncia
Aspectos culturais e gramática
Tradicional
Gramática e uso
Ignora
Gramática e aspectos culturais
Língua associada à
cultura
Interação
Comunicativa
Quadro 2: pré-teste
Enquanto a maioria dos alunos forneceu respostas coerentes, A2 e A3
identificaram na lição um objetivo gramatical, relacionando-o a uma concepção
interacional de língua, desconsiderando o critério de validade que deveria ser
respeitado na produção do material didático. Esse aspecto revela a ausência de
um repertório crítico amadurecido que permita flagrar incoerências teóricometodológicas, por um lado, e realizar um autoquestionamento sobre a
consistência e coerência dos próprios saberes (metacognição).
Pós-teste, questão (1)
No pós-teste, as respostas referentes à questão (1) foram expressas nos
seguintes termos:
Trabalhar o uso do “have to” and “don’t have to” em uma lição
que trata de profissões.
Oportunizar ao aluno situações para o mesmo refletir e
comunicar-se sobre as atividades que ele tem que fazer ou não
em seu trabalho.
O objetivo da lição é trabalhar have to/don’t have to (obligation)
mais adjetivos.
Capacitar o aluno no uso do modal have to e sua forma negativa.
O objetivo estrutural é apresentar have to/don’t have to e
adjetivos.
Trabalhar a forma verbal have to/don’t have to falando sobre
profissões.
196
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Entender e usar have to/don’t have to e falar sobre o seu trabalho
usando adjetivos.
Apresentar a estrutura have to/don’t have to e seu uso, além de
falar sobre trabalhos e adjetivos para falar deles.
Ensinar o uso de have to e don’t have to aplicado a profissões.
Apresentar a estrutura have to e don’t have to com o objetivo de
instrumentalizar os alunos a caracterizar profissões e falar sobre
obrigações e não obrigações destas.
Habilitar o aluno a falar sobre profissões e suas qualidades e
também sobre suas obrigações.
Observa-se que, de uma pulverização muito grande no pré-teste, as
respostas do pós-teste passaram a concentrar-se em torno de dois eixos:
gramática e uso da língua (embora em graus distintos), conforme conteúdo
apresentado no quadro 3.
Respostas quanto ao objetivo da lição
RESPOSTAS
Gramática
Gramática e tema
Uso da estrutura ligado ao tema
Interação
FREQUÊNCIA
2
2
5
2
Quadro 3: pós-teste
Comparando-se as respostas do pré e do pós-teste, verifica-se que houve
uma mudança na percepção dos objetivos da lição, predominando o uso da estrutura
e a interação (sete escolhas) sobre os aspectos estruturais e temáticos (quatro
escolhas). Os objetivos explícitos da lição conforme foi mencionado anteriormente na
descrição da metodologia do estudo eram gramaticais e lexicais. Mas o objetivo
implícito era conduzir o aluno a interagir em situações específicas. Ou seja, a
gramática e o léxico foram explorados como meio para apoiar o desenvolvimento de
habilidades interacionais e não como um fim em si mesmos, o que foi percebido pela
maioria dos alunos. Para quatro dos onze alunos, no entanto, persiste a percepção
do objetivo estrutural, sem menção aos aspectos interacionais. Essa é a visão
tradicional em relação ao ensino de línguas, à qual os alunos estiveram expostos ao
longo de sua formação e que, muito possivelmente, internalizaram e reproduziram.
Teorias do Discurso e Ensino
197
Pré-teste, questão (2)
Com relação à concepção de língua no pré-teste, as respostas produzidas
pelos alunos foram do seguinte teor:
A língua é apresentada em conjunto a aspectos culturais do país
onde é falada.
A concepção de que a língua pode ser aprendida por interação.
[...] uma concepção de língua como algo interativo [...]
A lição é embasada na idéia da língua ser um meio de troca de
saberes, de integração do grupo.
Abordagem comunicativa com ênfase em vocabulário e
gramática.
Uma concepção comunicativa [...].
Creio que [...] a concepção de língua que embasa a lição é
estruturalista.
A lição tem base numa visão estruturalista de língua.
A concepção que embasa a língua é tradicional.
Uma concepção tradicional. Não tenho certeza.
Não possuo conhecimentos a respeito de concepções de língua.
Essas respostas, também bastante diversificadas, podem ser agrupadas
em torno de alguns núcleos, o que é mostrado no quadro 4.
Respostas quanto à concepção de língua
RESPOSTAS
Interação/comunicação
Concepção tradicional
Integração língua-cultura
Desconhece
FREQUÊNCIA
5
2
1
1
Quadro 4: pré-teste
Embora cinco alunos tenham apontado uma concepção de língua como
interação/comunicação, os outros seis alunos contemplaram aspectos variados,
desde os estruturais e culturais, passando pela concepção tradicional
(provavelmente referindo-se à abordagem de ensino), até a constatação de
desconhecimento da questão. As respostas permitem inferir que alguns alunos
responderam de forma intuitiva ou a partir de experiências pessoais, sem o apoio
de um referencial teórico.
198
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Pós-teste, questão (2)
No pós-teste, as respostas sobre a concepção de língua que embasa a
lição foram assim expressas:
Veículo que precisa ser guiado dentro dos limites da rua
(contexto) e traz elementos culturais.
Concepção comunicacional da língua, mas não deixa de lado a
concepção estrutural.
A concepção de língua é funcional.
A língua apresenta-se como discurso.
Língua como instrumento de comunicação, como função.
A lição é embasada em língua como discurso, em uso real.
A concepção da língua como discurso.
É uma concepção de língua como função interativa.
Se fundamenta na concepção interacional.
Uma concepção interacionista.
Concepção de língua como atividade discursiva.
Essas respostas, construídas em torno de três focos, foram resumidas e
categorizadas no quadro 5.
Respostas quanto à concepção de língua da lição
RESPOSTAS
Funcional interacionista/ como discurso
Comunicacional e também estrutural
Dependente do contexto/traz elementos culturais
FREQUÊNCIA
9
1
1
Quadro 5 pós-teste
Como se observa, as respostas, na quase totalidade, expressam uma
percepção de língua como discurso, sendo que uma delas aponta a indissociável
relação entre língua e cultura. Além disso, não mais ocorreu a resposta
“desconheço”,
como
aconteceu
no
pré-teste.
De
uma
visão
inicial,
predominantemente vaga e dispersa, o grupo assumiu uma posição mais clara
quanto aos aspectos teóricos subjacentes ao material analisado.
Dados do segundo grupo
Um segundo grupo de alunos estagiários, formado por seis alunos, foi
submetido ao mesmo pré-teste que o primeiro grupo. Seguiu-se um período de
Teorias do Discurso e Ensino
199
dez semanas de intervenção pedagógica idêntica, ao final do qual os alunos
realizaram o mesmo pós-teste.
Pré-teste, questão (1)
Respostas dos alunos quanto ao objetivo da lição no pré-teste:
Ensinar o presente simples na terceira pessoa do singular,
através de atividades escritas e orais.
Apresentar o “present simple” através de um aspecto cultural da
Inglaterra.
Apresentar o presente simples na terceira pessoa do singular e
mostrar alguns aspectos da cultura britânica/inglesa.
Propiciar ao aluno conhecimentos sobre a cultura inglesa assim
como enfocar o presente simples, principalmente a terceira
pessoa do singular.
Ensinar o uso correto do Simple Present Tense, nas formas
afirmativa, negativa e interrogativa.
Proporcionar atividades envolvendo o uso do presente simples
com as três pessoas he, she, it.
O resumo das opções apresentadas pelos alunos consta do quadro 6.
Respostas quanto ao objetivo da lição
RESPOSTAS
Gramática
Gramática e cultura
FREQUÊNCIA
3
3
Quadro 6: pré-teste
Como se vê no quadro-resumo, os alunos perceberam apenas as
dimensões gramatical e cultural da lição, desconsiderando os aspectos lexicais
(explícitos no material) e os interacionais, presentes em atividades (implícitos na
lição). Em função da não identificação desses aspectos, verificou-se alguma
discrepância entre o objetivo apontado e a concepção de língua, conforme dados
contidos no quadro 7.
200
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
ALUNO
OBJETIVO
A1
Gramática e aspectos culturais
A2
A3
A4
A5
Gramática
Aspectos culturais e gramática
Gramática
Gramática e aspectos culturais
A6
Gramática
CONCEPÇÃO DE
LÍNGUA
Conceitos
construídos
pelo aluno
Uso da língua
Comunicativa
Comunicativa
Princípios da aquisição da
linguagem e teorias da
cognição
Comunicação
Quadro 7: pré-teste
Repete-se com esse grupo, em maiores proporções (alunos A2, A3, A4 e
A6), a incoerência entre objetivo da lição e noção teórica subjacente.
Aparentemente, os alunos confundiram dois níveis de análise, tomando
concepção de língua por abordagem de ensino. Fica evidente, mais uma vez, a
necessidade de buscar fundamentos teóricos que permitam compreender e
identificar pressupostos presentes em manifestações concretas no âmbito do
ensino.
Pós-teste, questão (1)
Na sequência, são apresentadas as respostas quanto ao objetivo da lição
no pós-teste:
Falar e perguntar sobre uma rotina, através do presente simples e
aprender sobre a cultura inglesa.
Perguntar e informar sobre hábitos e rotinas e utilizar o present
simple na terceira pessoa do singular.
Introduzir o presente simples na terceira pessoa do singular,
apresentando aspectos culturais do povo inglês.
Apresentar um aspecto da cultura inglesa e introduzir o simple
present.
Apresentar o presente simples na terceira pessoa do singular.
Explicar o “simple present” a partir de um texto que apresenta
aspectos culturais.
Os objetivos identificados foram agrupados no quadro 8.
Respostas quanto ao objetivo da lição
Teorias do Discurso e Ensino
201
RESPOSTAS
Comunicação/ uso
Gramática
Gramática e cultura
FREQUÊNCIA
2
1
3
Quadro 8: pós-teste
Comparando-se as respostas do pré e do pós-teste, verifica-se que dois
aprendizes mudaram de opinião, passando a mencionar a dimensão interacional
da língua, enquanto outros quatro permaneceram com as noções anteriores, ou
seja, gramática ou gramática e cultura. Observa-se nesse grupo uma
sensibilidade especial para as questões culturais envolvidas na lição, talvez
supondo que o entorno cultural seja suficiente para situar a língua como
atividade.
Pré-teste, questão (2)
Quanto à concepção de língua que embasa a lição do material analisado,
as respostas dos alunos apontaram os seguintes aspectos:
Conceitos construídos pelo aluno a partir de uma “base”
apresentada.
Focalizam o uso da língua.
O foco dos autores é da língua como comunicativa.
O autor introduz a unidade de maneira comunicativa e abordando
aspectos culturais.
Os autores acreditam que os alunos aprendam a língua
estrangeira com base nos princípios da aquisição da linguagem e
teorias de cognição.
A língua é um fato social, deve refletir a realidade do aprendiz,
que é, em primeiro lugar, comunicação.
Na percepção dos alunos, a concepção de língua implícita no material
analisado corresponde às noções resumidas no quadro 9.
Respostas quanto à concepção de língua na lição
RESPOSTAS
Comunicativa/ uso
Construção do aluno
Princípios da aquisição e cognição
Quadro 9: pré-teste
202
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
FREQUÊNCIA
4
1
1
Quanto à concepção de língua, quatro alunos apontaram língua como
atividade, enquanto outros dois pontuaram aspectos cognitivos. Percebe-se
nessas respostas ausência de distinção entre fundamentos linguísticos e
cognitivos.
Pós-teste, questão (2)
No pós-teste, as respostas quanto à concepção de língua foram as
seguintes:
A língua é apresentada como função e como estrutura.
A lição tem a concepção de língua como estrutura e como função.
Língua como estrutura.
Língua como função.
Aprendizagem através da aquisição da linguagem.
Abordagem sociointerativa.
Um resumo desses dados é apresentado no quadro no quadro 10.
Respostas quanto à concepção de língua na lição
RESPOSTAS
Função e estrutura
Função/interação
Estrutura
Aquisição
FREQUÊNCIA
2
2
1
1
Quadro 10: pós-teste
Comparando-se as respostas produzidas pelo segundo grupo no pré e no
pós-teste, verifica-se que, basicamente, não houve modificação das percepções
sobre a concepção de língua presente na lição analisada, permanecendo duas
escolhas relacionadas a aspectos discursivos, duas à associação entre função e
estrutura, uma à estrutura e uma a aspectos do processo de aquisição. Para dois
alunos ainda não há clareza quanto à noção de língua como atividade, nem
quanto aos níveis de análise envolvidos.
Teorias do Discurso e Ensino
203
Análise comparativa entre os dois grupos
Analisando o percurso de construção teórico-crítica desses dois grupos de
alunos que receberam insumos idênticos quanto a conteúdos, em termos de
textos de apoio, atividades e exposições didáticas, percebe-se que o primeiro
grupo apresentou uma capacidade de discriminação mais elevada, embora nem
todos os alunos tenham conseguido compreender de fato a distinção entre língua
como sistema e língua como discurso para aplicá-la à análise do material
instrucional. Há muitas variáveis em jogo numa situação formal de aprendizagem,
muitas delas de natureza individual, entre as quais motivação, estilo cognitivo e
conhecimento prévio relevante organizado numa estrutura cognitiva estável. Esse
parece ter sido o caso de alguns alunos que não evidenciaram ter conceitos
estáveis de apoio que lhes permitissem reavaliar suas compreensões prévias e
integrar o conhecimento novo, com a finalidade de buscar uma avaliação mais
adequada do material didático submetido à análise.
Do ponto de vista da criticidade, o primeiro grupo também revelou maior
competência em perceber a coerência entre o objetivo da lição e a concepção de
língua que lhe servia de base, enquanto que o segundo grupo apresentou mais
respostas discrepantes. Esse dado é revelador da capacidade de observação e
raciocício do aluno que, juntamente com a base de conhecimento, servem de
suporte ao senso crítico.
Além disso, é preciso considerar também aspectos inerentes ao
processamento
da
informação.
De
acordo
com
abordagens
cognitivas
informacionais, a relação entre insumo (input), internalização (intake) e
resultado/produto (output) não implica que uma etapa ocorra necessariamente na
mesma proporção que a anterior, ou que haja uma correspondência direta entre
elas. Há muitos fatores em jogo nesse processamento, especialmente os de
ordem sociocognitiva e afetiva, que podem afetar o processo (percepção,
atenção, memória, habilidades cognitivas, conhecimento prévio, interesse,
propósito, relevância, gosto, ritmo de aprendizagem, entre outros). Assim, a
quantidade e a qualidade do insumo não garantem internalização na mesma
medida,
nem
idiossincráticas.
204
produto
Pelas
no
mesmo
mesmas
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
nível,
razões
(e
o
que
outras,
resulta
em
condutas
socioculturais
e
até
procedimentais), pode até haver ocasiões em que o produto supere o insumo
fornecido.
No caso dos grupos analisados, o primeiro grupo superou o segundo nos
resultados, sugerindo ter havido internalização bastante adequada dos insumos
apresentados, o que se configurou nas respostas. O fato de o segundo grupo não
ter apresentado os mesmos resultados não significa, porém, que não tenha feito
suas elaborações no nível teórico nem progredido no desenvolvimento de
atitudes autônomas. Significa, mais provavelmente, que a construção das
competências que dão suporte à autonomia estava ainda em processo no
momento do pós-teste.
7 Considerações finais
Alguns aspectos da construção da autonomia podem ser destacados, a
partir dos dados empíricos deste estudo, embora os resultados não sejam, a
rigor, generalizáveis. Nesse contexto, é importante mencionar que a situação de
autoformação docente é extremamente complexa, exigindo a realização de
inúmeros estudos, sob diferentes ângulos de análise.
Talvez a explicação mais adequada sobre ensino nos venha de Heidegger
apud Paviani (2003): ensinar é deixar aprender. Por que “deixar aprender”?
Porque a aprendizagem verdadeira é a realizada pelo sujeito aprendente, de
forma significativa, e não a imposta de fora para dentro. Aprender é sinônimo de
liberdade e de autonomia. “O ato de aprender, no sentido mais elevado, implica
escolha, decisão, responsabilidade” (PAVIANI, 2003, p.15). Nesse sentido, o
aluno precisa querer aprender e assumir a própria construção.
Quanto aos resultados, o estudo evidencia, uma vez mais, que a ensino não
corresponde necessariamente aprendizagem. Além do grau e qualidade do
comprometimento do aluno, esse fato pode, até certo ponto, ser entendido a
partir da distinção entre as etapas de insumo, internalização e produto no
processamento da informação, que estão associadas a múltiplas variáveis
individuais e contextuais, entre as quais a intervenção pedagógica. Na verdade,
em se tratando de situação de aprendizagem, deve-se também considerar as
Teorias do Discurso e Ensino
205
variáveis do ensino e o modo como cada aluno foi afetado por elas. A forma
como os insumos foram apresentados e trabalhados (a mediação realizada pelo
professor) pode ter sido mais significativa para alguns alunos e menos para
outros; pode ter deixado a desejar quanto à clareza; pode ter oferecido
quantidade insuficiente de prática, ou ter sido pouco desafiadora, entre outros
fatores.
No estudo que relatamos, insumo variado, explícito e implícito, foi
fornecido aos dois grupos no módulo de intervenção, compreendendo exposição
teórica, estabelecimento de relações entre aspectos compatíveis com as visões
teóricas, exemplificação, análise de planos de ensino e de aulas observadas,
sempre contemplando a relação teoria-prática e aspectos metacognitivos. Esses
insumos, tratados de forma idêntica nos dois grupos, foram aparentemente
internalizados, o que ficou evidenciado em atividades orais e escritas sobre os
tópicos específicos em discussão, tanto teóricos quanto aplicados a diversos
aspectos referentes ao processo do ensino. No entanto, quando foi apresentado
o desafio de aplicar o que foi internalizado, de forma autônoma, nem todos os
alunos atingiram os mesmos níveis de resposta. O fato parece estar relacionado
não só ao conhecimento pré-existente, ao processamento da informação e à
apropriação do conhecimento novo, mas também à dissociação entre teoria e
prática, o que resulta em compreensão de aspectos teóricos, mas não na
identificação precisa desses pressupostos em atividades práticas. No caso da
presente investigação, como algumas competências não se desenvolveram
suficientemente, a autonomia necessária para tomar decisões quanto à
adequação de materiais didáticos ficou prejudicada.
Com efeito, percebe-se que a interface teoria-prática nem sempre é
evidente para o aprendiz que chega ao estágio com quase todos os créditos de
seu curso de licenciatura concluídos, presumivelmente com um bom repertório
teórico no que diz respeito aos estudos da linguagem. Quando se apresenta a
oportunidade de identificar e aplicar esses princípios teóricos a atividades
práticas (por exemplo, tomar decisões no momento de planejar uma aula, ou
analisar criticamente materiais didáticos e aulas observadas), verifica-se que nem
sempre os conceitos-chave estão devidamente estruturados e sistematizados. E
206
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
quando falta conhecimento/competência, falta uma condição fundamental para o
desenvolvimento da autonomia.
Por outro lado, os resultados do pós-teste deste estudo, analisados do
ponto de vista cognitivo, sugerem a existência de ideias de esteio ainda não
perfeitamente claras, apesar da inclusão de aspectos antes não identificados por
alguns aprendizes, evidenciando que a apropriação do conhecimento relevante
ainda não se concretizara totalmente. O componente cognitivo da competência
(os conhecimentos ou saberes propriamente ditos) revelou ser talvez o requisito
mais importante na construção da autonomia. Observou-se que alguns alunos
utilizaram seu conhecimento prévio para identificar objetivos e avaliar o material
didático em estudo, em vez de se apoiarem em pressupostos teóricos já
disponibilizados e supostamente construídos. A cadeia da autonomia 3 constrói-se
na integração de alguns fatores como: a conscientização, o desenvolvimento de
competências e de senso crítico, requisitos para o estabelecimento de objetivos,
a tomada de decisões e a avaliação, inerentes a um comportamento autônomo.
Nesse processo de construção, se algum requisito não estiver presente há um
comprometimento no desenvolvimento pleno da ação autônoma. Posto de outro
modo, os diferentes fatores ou etapas da autonomia se retroalimentam: a
conscientização, ou a reflexão crítica, encontra apoio não apenas na observação
e no repertório de experiências pessoais e sociais, mas também em referencial
teórico, que lhe confere suporte científico. Se a construção ou apropriação do
conhecimento falham na composição das competências, os demais estágios não
encontram condições favoráveis de realização. Por outro lado, o exercício da
reflexão crítica, como postura permanente nessa etapa de formação do
educador, pode direcionar, orientar e qualificar as construções posteriores,
sendo, pois, um requisito indispensável na promoção de competências que
possam realmente conduzir à autonomia. Além de conhecimento de várias
ordens, a crítica fundamentada requer uma base ética e habilidades cognitivas
complexas (entre as quais análise, síntese, avaliação e metacognição).
3
A cadeia da autonomia, como aqui concebida, é descrita no artigo “Autonomia: requisito na
formação do professor de línguas para fins específicos” (FONTANA, no prelo) a ser publicado na
revista The ESPecialist.
Teorias do Discurso e Ensino
207
Em síntese, com base no estudo realizado e nos referenciais teóricos, é
possível concluir que a construção da autonomia pelo professor-aluno resulta da
integração de várias etapas: de conscientização, de desenvolvimento de
competências e de reflexão crítica, que o capacitem a identificar e estabelecer
objetivos para suas ações, a avaliar teorias, metodologias, recursos e condutas,
de modo consistente e justo, possibilitando tomadas de decisão coerentes em
contextos de situação desafiadores, como são os contextos das práticas
educacionais, particularmente as que envolvem práticas de linguagem. Mas, cabe
lembrar que a autonomia não se restringe à área educacional: é meta a ser
atingida por todos os que desejam sair da “menoridade” e realizar-se plenamente
como indivíduos e cidadãos.
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210
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
OPERADORES ARGUMENTATIVOS LITTLE, A LITTLE, FEW, E A FEW NO
ENSINO INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
Roberta Macedo Ciocari*
[email protected]
1 Introdução
Um dos problemas verificados por mim em sala de aula, no ensino da
língua inglesa como língua estrangeira, foi o de explicar o uso dos chamados
quantificadores (quantifiers) 1, mais especificamente, little / a little e few / a few
(respectivamente, em português, pouco e um pouco). Os materiais didáticos
comumente utilizados, como gramáticas, dicionários e livros didáticos, em sua
maioria, tornam difícil a tarefa de explicar a diferença existente entre os
componentes de cada par. Sempre restam dúvidas, tanto para o professor quanto
para o aluno, que podem ser observadas no momento da utilização dessas
expressões de forma acurada, de modo a se obter uma comunicação precisa e
fluente. Então se verifica que os alunos não conseguem empregá-los com
segurança, visto não distinguirem um do outro, e que o professor tem dificuldade
de explicitar essa diferença. Durante o estudo da Teoria da Argumentação na
Língua (de agora em diante, abreviada para TAL), vislumbramos a possibilidade
de uma nova abordagem para os quantificadores em questão, que ajudaria tanto
alunos como professores no entendimento desse assunto.
Isso se deve ao fato de que esses operadores modificadores2, conforme
nomenclatura utilizada por Oswald Ducrot 3 (2002, p. 11), são, provavelmente,
ensinados de acordo com uma ótica teórica de caráter informacional, a qual
descreve a significação dessas palavras com um valor semântico permanente,
*
Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade de Passo Fundo – RS.
Quantificadores são expressões de quantidade, ou que expressam quantidade (SOARS, 1992,
p. 54).
2
Few, a few, little e a little (pouco e um pouco) são chamados de operadores argumentativos por
Ducrot, conceito que explicitaremos logo a seguir.
3
Filósofo semanticista que criou, juntamente com Jean-Claude Anscombre, a Teoria da
Argumentação na Língua.
1
desvinculado dos contextos possíveis, perspectiva em que os pares significariam
pequena quantidade.
Há, no entanto, outra forma de explicação, que se crê, seja mais eficaz: a
ótica da Teoria da Argumentação na Língua (DUCROT, 1988, p. 49 – 64),
segundo a qual a significação de uma frase é constituída pelo conjunto de
encadeamentos possíveis. Esse ponto de vista não aborda as palavras no nível
denotativo, ao descrever ou informar coisas e fatos, mas no nível argumentativo
(subjetivo e intersubjetivo).
Para demonstrar que o sentido fundamental das palavras é argumentativo
e não informativo, a TAL compara enunciados com pouco e um pouco, que são
categorizados como operadores argumentativos. Nessa teoria, é operador
argumentativo
uma palavra Y que, aplicada a uma palavra X, produz um
sintagma XY cujo sentido é constituído de aspectos contendo só
as palavras plenas 4 já presentes na argumentação interna e na
argumentação externa de X. Em outras palavras, o operador só
combina de um modo novo, arranja, reorganiza os constituintes
semânticos de X. (DUCROT, 2002, p. 11)
Para entender a conceituação de operador argumentativo, observem-se os
seguintes enunciados, num contexto em que, quando alguém está lesionado, a
fisioterapia faz bem, isto é, quanto mais fisioterapia, melhor:
(a)
O jogador de futebol contundido fez pouca fisioterapia.
(b)
O jogador de futebol contundido fez um pouco de fisioterapia.
Como se pode perceber, a significação informativa desses termos é de
pouca quantidade. No entanto, seu uso aponta para diferentes conclusões,
reorganizando os constituintes semânticos da frase.
Se, para (a) o jogador contundido fez pouca fisioterapia, pode-se
estabelecer a conclusão: ele não vai se recuperar tão rápido; para (b),
4
Palavras plenas são palavras “que se caracterizam freqüentemente pelo fato de possuírem um
‘conteúdo’”, como, por exemplo, o adjetivo prudente, cujo conteúdo poderia ser expresso pelo
encadeamento perigo PORTANTO precaução. (Ibid., p. 11)
212
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
estabelece-se a conclusão contrária: o jogador contundido fez um pouco de
fisioterapia, tem chances de se recuperar mais rapidamente. Como se pôde
perceber, o uso de um ou de outro operador, que têm a mesma significação de
“pouca quantidade”, leva a conclusões opostas.
Constituíram-se, assim, os objetivos deste trabalho:
a)
verificar como os materiais didáticos selecionados para esta pesquisa
descrevem os operadores little / a little, few / a few, e propõem os
exercícios;
b)
verificar se a distinção feita tradicionalmente é suficiente para se
resolverem os exercícios;
c)
verificar se uma abordagem baseada na TAL produz efeitos mais
eficazes no uso desses operadores.
Este trabalho está baseado na fundamentação teórica do filósofo e
semanticista Oswald Ducrot. Sua teoria descarta o sentido descritivo e referencial
das palavras e sustenta o sentido argumentativo, segundo o qual a significação
de uma palavra depende dos encadeamentos que evoca em um determinado
contexto, como, por exemplo, os encadeamentos evocados pela palavra “chuva”
em um contexto de seca. Ora, nesse caso, só se pode pensar em coisas
positivas, pois, em um período de seca, a chuva é sempre bem-vinda, já que,
provavelmente, nessa circunstância, não há água suficiente para abastecer as
cidades, para alimentar os animais no campo, para o desenvolvimento das
plantações, etc. Por outro lado, se pensarmos em um contexto de cheia, “chuva”,
evocando mais água, significaria mais alagamentos, desmoronamentos, isto é,
mais catástrofe. Sob essa perspectiva, “chuva” não significa apenas “Precipitação
atmosférica formada de gotas de água, por efeito da condensação do vapor de
água contido na atmosfera” (AURÉLIO, 1985). O caminho percorrido por Ducrot
para defender sua Teoria da Argumentação na língua, iniciada com Jean-Claude
Anscombre (1983), vai da concepção da Teoria da Polifonia, passa pela Teoria
dos Topoi, para finalmente, chegar à Teoria dos Blocos Semânticos, com a
importante contribuição de Marion Carel5.
5
A proposta de Marion Carel amplia a forma recente da TAL, mantendo-a estruturalista, na
medida em que dispensa o recurso aos topoi (elementos externos à língua), que justificariam a
passagem de um argumento a uma conclusão.
Teorias do Discurso e Ensino
213
Os estudos gramaticais tradicionais distinguem no sentido dos enunciados
o dictum (o conteúdo descritivo) e o modus (a atitude do sujeito falante frente a
esse conteúdo). No entender de Ducrot, gramáticos e filósofos deveriam refutar
desde o início uma concepção veritativa, ou descritivista, ou ainda informativa da
descrição semântica das línguas, uma vez que se decida integrar a semântica à
pragmática, pois a concepção descritivista da significação está longe de permitir
uma via científica global da atividade da linguagem, sendo, então, unicamente
uma das imagens que essa atividade de linguagem elabora para pensar-se a si
própria. Isso conduziria a uma transformação completa do verbete de dicionário:
não se trata mais de encontrar traços pertinentes a um conceito, mas de mostrar
a qual tipo de discurso conduz o emprego de uma palavra (DUCROT, 2005, p. 921).
Ducrot apresenta dois conceitos que permitem descrever o nível semântico
primeiro, anterior à distinção do modus e da proposição. São eles a polifonia e o
conceito de topos.
A noção de polifonia, segundo Ducrot, visa substituir a análise semântica
“horizontal”, típica da teoria do “modus” ou dos “atos de linguagem” por uma
análise “vertical”. A ideia de base é que o sentido de um enunciado é constituído
pela
superposição
de
diversos
discursos
elementares,
cujos
supostos
responsáveis, às vezes chamados “enunciadores”, podem ser diferentes do
responsável que o enunciado atribui a si mesmo, que é chamado de locutor. Em
outras palavras, sob a frase mais simples pode haver um tipo de diálogo
imaginário.
Na análise vertical, ao contrário, a cada um dos componentes é atribuída
uma autonomia enunciativa, constituindo a significação de um discurso possível.
Em comparação com a polifonia musical, vozes diferentes se fazem entender
simultaneamente no enunciado. O valor informativo do enunciado adquire um
caráter de fenômeno derivado. No nível mais profundo, o sentido de um
enunciado se reduz à superposição das vozes de diferentes enunciadores.
Para evitar a interpretação horizontal, define-se o enunciador como a fonte
de um ponto de vista, que consiste em evocar, a propósito de um estado de
coisas, um princípio argumentativo, que Ducrot, retomando o termo de
Aristóteles, chama de topos. É esse topos, considerado comum à coletividade
214
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
onde o discurso ocorre, que permite extrair argumento do estado de coisas para
justificar essa ou aquela conclusão.
A descrição de uma frase (estrutura abstrata que caracteriza a língua)
indica, de um lado, o aspecto polifônico, as grandes linhas do cenário segundo o
qual os enunciadores deverão ser postos em cena, cada um com seus
enunciados particulares; e de outro, o aspecto argumentativo, especificando o
tipo geral de topoi que os enunciadores têm à sua disposição.
Com a noção de topos, Ducrot entrevê a possibilidade de uma semântica
desvencilhada das condições de verdade. Cada ponto de vista consiste em situar
argumentativamente o referente (o estado de coisas de que se fala), comparando
esse referente a outros eventuais estados de coisas, no interior de uma escala
determinada por um topos. “Não se pode separar à maneira dos cartesianos, a
idéia que representa da vontade que toma partido: o mundo aparece, no
enunciado, por meio da exploração discursiva do qual é objeto” (DUCROT, 2005,
p.9-21).
Ducrot propôs, então, dois conceitos para descrever o nível semântico
profundo, contrário às dicotomias contexto X atos de fala, dictum X modus,
objetivo X subjetivo: o conceito de polifonia e o conceito de topos. A Teoria dos
Blocos Semânticos surge em seguida com Marion Carel e resolve certos
aspectos problemáticos da Teoria dos Topoi, levantados pelo próprio Ducrot.
A Teoria dos Blocos Semânticos foi proposta por Marion Carel e constituiu
uma solução para se “retirar” os topoi da TAL, já que estes significariam uma
entidade externa à argumentação, pertencente ao mundo, e que poderiam, dessa
forma, descrevê-lo e informar seu valor exato.
A argumentação, que anteriormente considerava a existência de um
argumento (A) que levava a uma conclusão (C) através de um topos, não mais se
justifica, pois é o sentido de A que determina o de C e vice-versa. Sob esse ponto
de vista, C serve para construir o sentido de A, e A serve para construir o sentido
de C. No encadeamento argumentativo, há apenas um objeto semântico, mesmo
que se possam distinguir dois segmentos: o argumento e a conclusão. Nesse
caso, a justaposição do argumento e da conclusão forma uma entidade
semântica única, que é o objeto semântico único, construído pelo encadeamento,
isto é, constitui o próprio bloco semântico.
Teorias do Discurso e Ensino
215
Para exemplificar esse conceito, considere-se: “Faz calor lá fora. Vamos
passear”. O argumento A seria o calor que faz lá fora. E a conclusão C seria o
convite ao passeio. No entanto, deve-se pensar em que tipo de calor se fala em
A. Se há um convite para passear, obviamente não se está falando de um calor
escaldante que impediria o passeio. Seria um calor agradável para sair à rua. A
palavra “calor” aqui é específica para se passear, pois esse calor pode ser
proibitivo a outras atividades (correr ou andar de bicicleta, por exemplo). O
sentido de C ajuda a compreender o sentido de A, e a recíproca também é
verdadeira. Caso se diga “Está calor demais. Não vamos passear”, compreendese que o tipo de calor não é adequado ao passeio, e que o passeio não pode ser
feito com esse tipo de calor. Talvez se possa nadar, ou apenas dormir ou ainda,
assistir à televisão. Esse raciocínio impede que descrevamos a palavra “calor”
com um valor informativo fixo, pois ela pode representar diversas temperaturas
ao redor do mundo e ser sentida de diversas formas pelos seres humanos. No
nordeste, um gaúcho que não está acostumado ao calor que faz lá, pode
desidratar-se facilmente.
Um bloco semântico é, portanto, um conjunto semântico. Por sua
característica “inteiriça”, blocos semânticos são identificados num enunciado não
como a relação de dois conceitos, dois termos metalinguísticos, como se
pensaria, mas como representações unitárias de princípios, conforme Carel
(1995).
Um bloco semântico pode ser expresso por encadeamentos em donc e em
pourtant. 6 Retomando os exemplos anteriores, “Faz calor, vamos passear”,
exprime um encadeamento em PORTANTO. Por outro lado, “Faz calor, mesmo
assim não vamos passear”, exprime um encadeamento em MESMO ASSIM.
Note-se que no encadeamento em MESMO ASSIM o tipo de calor continua o
mesmo do encadeamento em PORTANTO: trata-se do calor específico para
passear.
Esses encadeamentos exprimem qualidades, que podem ser positivas ou
negativas, como, por exemplo, mais calor, menos calor, mais passeio, menos
6
Os encadeamentos em donc e pourtant, em francês, são traduzidos para o português, neste
trabalho, como encadeamento em PORTANTO e MESMO ASSIM, respectivamente.
216
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
passeio. Quando unirmos o bloco semântico calor e passeio às qualidades,
teremos as regras. As regras, em princípio, seriam duas, a saber: regra 1 quanto mais calor, mais vamos passear; regra 2 - quanto menos calor, menos
vamos passear. Cada regra expressa dois aspectos: um é normativo, e outro é
transgressivo. O aspecto normativo da regra 1 é aquele expresso em
PORTANTO: “Faz calor, vamos passear”. O aspecto transgressivo da regra 1 é
expresso em MESMO ASSIM: “Faz calor, mesmo assim não vamos passear”. Por
outro lado, o aspecto normativo da regra 2 é: “Não faz calor, portanto não vamos
passear”. E o aspecto transgressivo da regra 2 é: “Não faz calor, mesmo assim
vamos passear”.
Destaque-se que outro bloco semântico pode ser constituído com as
palavras “calor” e “passeio”. Isso é possível devido à mudança da ação das
qualidades positivas e negativas no bloco, que passariam a constituir,
respectivamente, a regra 1 – quanto mais calor, menos vamos passear; e a regra
2 – quanto menos calor, mais vamos passear. O aspecto normativo da regra 1 é
“Está calor, portanto não vamos passear”. O aspecto transgressivo é o seguinte:
“Está calor, mesmo assim vamos passear”. Quanto à regra 2, o aspecto
normativo é “Não está calor, portanto vamos passear”. E o aspecto transgressivo
é “Não está calor, mesmo assim não vamos passear”. Nesse bloco semântico, o
valor da palavra “calor” é muito diferente do seu valor no bloco discutido
anteriormente, no qual o calor é agradável ao passeio. Nesse último bloco, o
calor é considerado desfavorável ao passeio. É um outro tipo de calor do qual,
igualmente ao calor do primeiro bloco, não se sabe a sua intensidade ou quantos
graus ele apresenta. Com essa análise, Ducrot demonstra que o valor semântico
de um enunciado é argumentativo, e não informacional.
2 A pesquisa
Este trabalho consistiu, além da análise de materiais didáticos (tanto os
encontrados no mercado e selecionados para a pesquisa quanto os elaborados
pela professora pesquisadora), de uma experiência exploratória com estudantes
de língua inglesa como língua estrangeira e sua apreensão dos operadores
Teorias do Discurso e Ensino
217
argumentativos em questão após sucessivas intervenções em sala de aula. O
universo trabalhado foi o curso de Letras da Universidade Regional Integrada,
campus Erechim (RS), com alunos da turma de 2001. Como afirma Kurtz dos
Santos (2003) em sua tese de doutoramento, na qual trabalha a articulação entre
linguística e linguística aplicada ao ensino de inglês, tendo a semântica
argumentativa como a teoria linguística que se prestaria a esse papel de modo
muito satisfatório, é importante que o aprendiz tenha sua consciência despertada
para a concepção argumentativa do sentido, ou seja, para o possível conjunto de
discursos que podem ser evocados quando da utilização de certas entidades
linguísticas.
Os materiais utilizados nas aulas e nos testes foram três gramáticas (Basic
Grammar in Use, English Grammar in Use, Grammar Way 1) e dois livros
didáticos (American Inside Out, Headway Upper-Intermediate, student’s book e
workbook). Na análise do tratamento dado aos operadores argumentativos, foram
acrescidos um dicionário (Dictionary of Contemporary English) e uma gramática
(English Grammar Practice). 7
Esses livros foram selecionados, por serem amplamente utilizados, tanto
em escolas de línguas, quanto em cursos de nível superior em universidades
públicas e privadas no Brasil. São materiais importados, com alcance mundial,
pois são utilizados em diversos países em todo o mundo, como material didático
para o ensino de língua inglesa como língua estrangeira, e suas editoras são
renomadas (Macmillan, Longman, Cambridge, Oxford, Express Publishing). Além
disso, escolas de língua e cursos de nível superior em universidade privada
constam da experiência de trabalho da professora pesquisadora.
7
ALEXANDER, L. G. Longman English Grammar Practice: for intermediate students. 4 ed. Essex:
Longman, 1991.
DOOLEY, Jenny; EVANS, Virginia. Grammar Way 1. Blackpill: Express Publishing, 1998.
KAY, Sue; JONES, Vaughan. American Inside Out Upper Intermediate. Student’s book. Oxford:
Macmillan, 2003.
LONGMAN Dictionary of Contemporary English. Essex: Longman, 1987.
MURPHY, Raymond. Basic Grammar in Use. 7 ed. Cambridge: Cambridge University Press,
1999.
______. English Grammar in Use. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
SOARS, John & Liz. Headway Upper-Intermediate. Student’s book. 14 ed. Oxford: Oxford
University Press, 1992.
______. Headway Upper-Intermediate. Workbook. 21 ed. Oxford: Oxford University Press, 1996.
218
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
O livro Headway Upper-Intermediate foi selecionado porque os alunos em
questão trabalharam, nos semestres anteriores, com o Headway Intermediate,
sendo o Upper-Intermediate, a sequência natural. Além desses materiais,
explicações e exercícios fundamentados em descrições feitas pela TAL,
elaborados pela professora pesquisadora, foram utilizados.
A professora pesquisadora, após aula e teste com material didático
tradicional, com o objetivo de conduzir os alunos na observação de que um
mesmo enunciado com pouco ou um pouco distinguem-se argumentos e não
informações, utilizou material baseado na TAL, elaborado por ela mesma, para
explicar o conteúdo aos alunos. Distribuiu a eles o material e foi conduzindo a
leitura e a resolução das questões. A seguir, a transcrição do primeiro exercício.
Few, a few, little, a little
Situação 1 – João terá de fazer uma prova. Ele precisa estudar
para ser aprovado.
Imagine que se pergunte à irmã de João se ele
conseguiu estudar e ela responda:
- João estudou um pouco.
A mesma pergunta é feita à mãe de João, e ela responde:
- João estudou pouco.
Agora responda:
A mãe e a irmã disseram a mesma coisa?
Que quantidade João estudou?
A que conclusão se pode chegar – sobre se João tem chance de ser
aprovado – a partir das duas respostas? Observe:
=> Resposta da irmã e conclusão que se pode tirar:
João estudou um pouco, PORTANTO _________________________________.
orientação
argumentativa
positiva
=> Resposta da mãe e conclusão que se pode tirar:
João estudou pouco, PORTANTO _____________________________________.
orientação
argumentativa
negativa
Teorias do Discurso e Ensino
219
Now, in English:
 The sister’s answer and the conclusion we can reach:
John studied a little, so _____________________________________________.
 The mother’s answer and the conclusion we can reach:
John studied little, so _______________________________________________.
Esse material possui situações para contextualizar o uso dos operadores
argumentativos em questão. As situações 1 e 2 partem da língua materna, o
português, para depois fazer-se o mesmo raciocínio na língua alvo, o inglês. As
situações 3 e 4 já partem da contextualização em inglês.
Após o estudo das situações, foram apresentados aos alunos dois tipos
diferenciados de exercícios. O primeiro, de marcar uma ou outra alternativa,
utiliza um frame: party (festa). Os frames são comumente utilizados em materiais
didáticos de inglês como LE. Seu conceito aparece em Koch & Travaglia (1999,
p. 64):
Frames são modelos globais que contêm o conhecimento de
senso comum sobre um conceito central (por exemplo, Natal,
viagem aérea); estabelecem quais as coisas que, em princípio,
são componentes de um todo, mas não estabelecem entre eles
uma ordem ou seqüência (lógica ou temporal).
Ao se pensar em um modelo global de uma festividade como o Natal, ou
um conceito central de Natal, o senso comum evoca os componentes desse todo,
que podem ser coisas tais como religiosidade, missa, presentes, ceia, comidas,
bebidas, música, alegria, descontração, reflexão, família, Papai Noel e assim por
diante. Como se percebe, não há qualquer necessidade de ordem ou sequência
lógica ou temporal entre os componentes evocados, e mesmo a ausência de
algum dos componentes não altera o significado da festividade, apenas a
transforma. Cumpre observar que didaticamente todos os recursos foram
utilizados com o intuito de tornar o menos trabalhoso possível cada exercício
apresentado aos alunos. Os frames foram utilizados por se deterem em apenas
um conceito de cada vez fato que, se acredita, ajude a não dispersar a atenção
220
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
do aluno para diferentes assuntos, fazendo com ele focalize sua atenção
diretamente no entendimento do encadeamento argumentativo. No entanto, os
frames podem ser totalmente descartados, pois a presença do encadeamento
argumentativo já garante a orientação do enunciado: podemos ter um
encadeamento sem frame, mas não um frame sem encadeamento, o que se
tornaria inútil.
Primeiramente, contextualizou-se a situação linguisticamente, isto é, criouse um encadeamento argumentativo, para que depois os alunos escolhessem a
alternativa de acordo com esse encadeamento. Se porventura o aluno
escolhesse a alternativa errada, significaria que ele não teria percebido a
orientação do enunciado, pois a alternativa incorreta necessitaria de mais
contextualização que a oferecida. Tomemos como exemplo a primeira situação,
lembrando que o frame utilizado foi party (festa). O modelo global de festa se
constitui como um evento no qual várias pessoas se reúnem para comemorar
alguma data ou acontecimento especial. Nesse evento, há comidas e bebidas e
as pessoas confraternizam. A festa em questão é uma festa de aniversário. O
problema que se coloca é que o aniversariante quer dar uma grande festa para
seus amigos, mas dispõe de poucas cadeiras em sua casa. A conclusão que se
pode tirar é que ele não vai poder convidar todas as pessoas que ele quer, muito
menos pessoas que são consideradas apenas seus conhecidos. Ele vai poder
convidar apenas seus amigos mais chegados devido ao fato de o número de
cadeiras que ele tem em casa - seja qual número for, isso aqui não importa - é
pouco, pequeno, insuficiente. O bloco semântico seria, então, “ter cadeiras
CONECTOR poder convidar”. As regras 1 e 2 seriam, respectivamente, quanto
mais cadeiras ele possuir, mais pessoas ele vai poder convidar, e quanto menos
cadeiras ele possuir, menos pessoas ele vai poder convidar. No aspecto
normativo da regra 1, teríamos: o aniversariante possui cadeiras, portanto pode
convidar muitas pessoas para sua festa; e o aspecto transgressivo seria: o
aniversariante possui cadeiras, mesmo assim não vai convidar muitas pessoas
para sua festa. O aspecto normativo da regra 2 seria o aniversariante possui
poucas cadeiras, portanto não vai poder convidar muitas pessoas. O aspecto
transgressivo seria que o aniversariante possui poucas cadeiras, mesmo assim
vai convidar muitas pessoas. A alternativa correta é a segunda: I can invite only
Teorias do Discurso e Ensino
221
close friends. {Eu posso convidar apenas os amigos mais chegados}. Se o aluno
escolhesse a primeira alternativa, I can invite all my friends and even the
acquaintances, {Eu posso convidar todos os meus amigos e até os conhecidos},
mesmo o aniversariante possuindo poucas cadeiras, ele deveria justificar fora do
exercício o porquê de sua resposta, que poderia ser, dentre infinitas possíveis, de
que esse aniversariante não é um bom anfitrião, pois muitos de seus convidados
teriam de ficar em pé todo o tempo na festa de aniversário. E esse fato não
pertence à argumentação apresentada, necessitando de mais contextualização
linguística para poder ser escolhido, como por exemplo, um conector MESMO
ASSIM explicitado no exercício, destacando-se que o primeiro aspecto lembrado
é sempre o normativo. Confiram-se as questões desse exercício.
Exercises - Frame: Party
Choose the correct option.
1) I want to have a big party for my birthday this year. The
problem is that I have few chairs at home.
( ) I can invite all my friends and even the acquaintances.
( ) I can invite only close friends.
2) Another thing is that I have little money.
( ) I need to save money until then.
( ) I don’t need to worry about money.
3) And I want to listen to some lively music. I have a few CDs with
lively songs in them.
( ) I must borrow some CDs.
( ) I don’t need to borrow CDs.
4) What if the weather is a little rainy and cold? No problem.
( ) The party will be indoors.
( ) The party will be outdoors.
5) I’m going to bake a cake. I’ll need some flour. There’s a little
flour in the cupboard.
( ) I have to go buy some flour.
( ) I don’t need to go buy some flour.
O segundo exercício, de preencher as lacunas com os operadores
argumentativos em questão, também utiliza a Teoria dos Blocos Semânticos.
Fill in the blanks with few, a few, little, a little.
1) I always love when people remember me on my birthday. Last
year ___________ people did. I was so sad.
222
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
2) I can’t forget about plates and glasses. I have ___________
plates, but ______________ glasses. I need to buy glasses.
3) I have this funny friend of mine, and whenever she goes to
parties, she eats _______________ because she feels shy to eat
in public. She always leaves the parties feeling hungry.
4) What about Bob’s birthday party last year? _____________
people appeared. His party was a shame.
5) At Mary’s party, the music was ________________ loud. The
next door neighbors started to complain about it.
Como exemplo, tomemos o primeiro exercício: 1) I always love when
people remember me on my birthday. Last year ___________ people did. I was
so sad. {Eu adoro quando as pessoas se lembram de mim no meu aniversário.
No ano passado, poucas pessoas lembraram. Eu fiquei muito triste}. O bloco
semântico “lembrar o aniversário CONECTOR ficar feliz” seria assim constituído:
regra 1 - quanto mais pessoas se lembram de mim no meu aniversário, mais eu
fico feliz; regra 2 - quanto menos pessoas se lembram de mim no meu
aniversário, menos eu fico feliz. O aspecto normativo da regra 1 seria: um pouco
de / algumas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, portanto fiquei
feliz. O transgressivo, um pouco de / algumas pessoas se lembraram de mim no
meu aniversário, mesmo assim não fiquei feliz. O aspecto normativo da regra 2
seria: poucas pessoas se lembraram de mim no meu aniversário, portanto fiquei
infeliz. E o aspecto transgressivo seria: poucas pessoas se lembraram de mim no
meu aniversário, mesmo assim fiquei feliz. A resposta certa seria few, poucas. Se
o aluno escolhesse a few, um pouco, estaria tomando como primeira alternativa
os aspectos transgressivos e teria de explicar com maiores detalhes o porquê de
sua escolha, que teria se dado por razões externas às razões pertencentes ao
bloco semântico em questão. “Um pouco de / algumas8 pessoas se lembraram de
mim no meu aniversário, mesmo assim não fiquei feliz”, pode significar muitas
coisas, dentre elas, muitos problemas sérios enfrentados pelo aniversariante que
8
A tradução do operador a few quando utilizado com substantivos contáveis no plural, como em a
few people, torna-se problemática, pois não se diz “um pouco de pessoas” em português. Nesses
casos, o melhor seria utilizar os chamados pronomes indefinidos alguns e algumas. Neste
trabalho, as duas versões aparecem concomitantemente, separadas por uma barra: um pouco de
/ algumas pessoas.
Teorias do Discurso e Ensino
223
o impediriam de ficar feliz no seu aniversário, mesmo sendo lembrado por seus
amigos. Para o aluno escolher essa alternativa e ela ser válida, deve existir um
conector como MESMO ASSIM explícito, relacionando os dois segmentos: Last
year ___________ people did. However, I was so sad. {No ano passado algumas
pessoas se lembraram de mim no meu aniversário. Mesmo assim, eu fiquei
triste}. Isso poderia acontecer num contexto em que o aniversariante estivesse
deprimido, ou com problemas diversos, que não vêm ao caso.
Após esses exercícios, foi aplicado o teste 2, contendo exercícios iguais ao
teste 1, e mais dois exercícios semelhantes aos aplicados, anteriormente, na aula
baseada na TAL.
Como foi referido antes, os três primeiros exercícios foram os mesmos do
teste 1, para que se verificasse a diferença de aprendizagem dos alunos com o
mesmo tipo de questão que fora trabalhado anteriormente. Nesse caso, porém, a
explicação dada fora baseada na TAL. Os exercícios diferenciados, isto é,
baseados na TAL, foram aplicados no teste para se verificar o nível de
desempenho dos alunos dentro desse tipo de exercício, que não é encontrado
nos livros didáticos.
Primeiramente, conforme os objetivos do trabalho, verificamos como os
materiais didáticos utilizados nesta pesquisa distinguem os operadores little / a
little, few / a few; verificamos também se a distinção proposta é suficiente para se
resolverem os exercícios desses materiais e qual a natureza, argumentativa ou
informativa, desses exercícios. Neste artigo, mostraremos apenas uma parte da
análise do livro didático Headway Upper-Intermediate.
No livro Headway Upper-Intermediate, student’s book (p. 54), os
operadores argumentativos em questão são apresentados da seguinte forma:
3. A little and a few express a positive concept.
Take a little of this medicine every day and you’ll be fine.
Little and few express a negative concept.
Few people understand the whole problem. It’s too complex.
{A little e a few expressam um conceito positivo.
Tome um pouco deste remédio todos os dias e você ficará bem.
Little e few expressam um conceito negativo.
Poucas pessoas entendem todo o problema. É muito complexo.}
224
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Essa explicação afirma que a little e a few expressam um conceito positivo,
e que little e few por sua vez, expressam um conceito negativo. No entanto, devese perguntar como uma palavra que designa pouca quantidade de alguma coisa
pode expressar um conceito positivo? Esses operadores argumentativos não
designam conceitos, sejam eles positivos ou negativos. O que ocorre é que esses
operadores, sempre que entram num enunciado, modificam a orientação
argumentativa. A few e a little, little e few orientam para conclusões contrárias.
Tomemos o primeiro exemplo do livro: “Take a little of this medicine every
day and you’ll be fine.” Temos o seguinte bloco semântico (no qual “neg” significa
uma negação):
Bloco semântico 1:
Tomar remédio X ficar bem
Qualidade: positividade e negatividade
Bloco semântico + qualidade = Regra (R)
R1: Quanto + toma remédio + fica bem
R2: Quanto – toma remédio – fica bem
Aspectos da R1 (Quanto + toma remédio + fica bem)
Normativo: X tomou remédio PORTANTO ficou bem
Transgressivo: X tomou remédio MESMO ASSIM não ficou bem
Aspectos da R2 (Quanto – toma remédio – fica bem)
Normativo: X não tomou remédio PORTANTO não ficou bem
Transgressivo: X não tomou remédio MESMO ASSIM ficou bem
Como o operador a little modifica esse bloco semântico? Tomar remédio,
nesse caso, é visto como uma ação positiva, pois leva o indivíduo a ficar bem. Se
colocarmos em seu lugar o operador little e analisarmos a consequência,
veremos que tomar remédio é uma ação negativa: “Take little of this medicine
every day and you’ll be fine”. Sua apreensão tanto pode ser positiva como
negativa. Já um enunciado como “Pedro vive tomando remédio, isso não pode
fazer bem”, convoca o bloco “tomar remédio prejudica a saúde”. Há possibilidade,
portanto, de se convocarem dois blocos semânticos distintos, pertencentes a
Teorias do Discurso e Ensino
225
duas culturas diferentes, numa tomar remédio é bom; noutra, tomar remédio
prejudica.
Bloco semântico 2:
Tomar remédio CONECTOR não ficar bem
Qualidade: positividade e negatividade
Bloco semântico + qualidade = Regra (R)
R1: Quanto + toma remédio - fica bem
R2: Quanto - toma remédio + fica bem
Aspectos da R1:
Normativo: X tomou remédio PORTANTO não ficou bem
Transgressivo: X tomou remédio MESMO ASSIM ficou bem
Aspectos da R2:
Normativo: X não tomou remédio PORTANTO ficou bem
Transgressivo: X não tomou remédio MESMO ASSIM não ficou bem
No segundo bloco semântico, tomar remédio é visto como algo ruim, que
leva a pessoa a não ficar bem. Por isso, quanto menos remédio se tomar, melhor.
Veja-se, então, que a lacuna do enunciado “Take ________ of this medicine
every day and you’ll be fine” pode ser completado por little ou a little, conforme o
princípio argumentativo que esse enunciado convoque: tomar remédio faz bem à
saúde ou tomar remédio não faz bem à saúde.
Como se pode perceber, deve-se ter em mente que os dois blocos
semânticos são passíveis de acontecer. Daí a dificuldade de se saber qual
operador argumentativo usar. Tem-se, então, a necessidade de contextualizar a
situação, para que se procure na língua a chave para seu entendimento. Por
“procurar na língua” entende-se o ato de observar ativamente os encadeamentos
construídos com o objetivo maior de compreender um enunciado. É importante
saber o que exatamente se quer argumentar, para que se escolha o operador
adequado para causar o efeito argumentativo desejado. No bloco semântico 1,
por exemplo, um possível encadeamento seria o médico dizer algo como “quanto
mais remédio se toma, melhor, esse remédio faz bem à saúde”, explicando a
importância de se tomar um pouco de remédio. No bloco semântico 2,
226
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
inversamente, o médico poderia dizer que, quanto menos desse remédio se
tomar, melhor, pois ele pode ser perigoso, por isso a necessidade de se tomar
pouco desse remédio. Voltando à questão do livro, “Take a little of this medicine
every day and you’ll be fine” é possível no contexto em que tomar esse remédio
em particular faz bem à saúde, e “Take little of this medicine every day and you’ll
be fine” também é possível, só que num contexto em que tomar certo remédio faz
mal à saúde. Daí a dificuldade apresentada pelos aprendizes na hora de decidir
qual operador usar.
No mesmo livro (Headway Upper-Intermediate, p. 54), temos o seguinte
exercício de prática controlada sobre como expressar quantidade:
5. Few, a few, little, a little.
Complete the following sentences with one of the above.
a. I can’t play tennis today. I have _______________ jobs to do
around the house.
b. Help yourself to a whisky. There’s still _____________ left.
c. Nowadays _____________ people have servants in their
house.
d. I had ______________ time to catch the train, but I just made
it.
e. I have ______________ friends that I can trust, but not many.
(Headway Upper-Intermediate – Student’s book)
{5. Pouco, um pouco.}
a. Eu não posso jogar tênis hoje. Eu tenho ________ trabalhos
para fazer pela casa.
b. Sirva-se de whisky. Ainda tem _____________.
c. Hoje em dia __________ pessoas têm empregados em suas
casas.
d. Eu tive _________ tempo para pegar o trem, mas consegui.
e. Eu tenho ________ amigos em quem eu posso confiar, mas
não muitos.
Na letra a. I can’t play tennis today. I have _______________ jobs to do
around the house, temos o seguinte bloco semântico, cujo princípio é “primeiro o
dever, depois o lazer”:
Bloco semântico 1
Ter trabalhos a fazer CONECTOR poder jogar
R1: Quanto + trabalhos - pode jogar
Teorias do Discurso e Ensino
227
R2: Quanto - trabalhos + pode jogar
Aspectos de R1:
Normativo: tenho trabalhos PORTANTO não posso jogar
Transgressivo: tenho trabalhos MESMO ASSIM posso jogar
Aspectos de R2:
Normativo: não tenho trabalhos PORTANTO posso jogar
Transgressivo: não tenho trabalhos MESMO ASSIM não posso jogar
Nesse caso, o aspecto tópico utilizado é o normativo da R1, pois a
resposta correta é I can’t play tennis today. I have a few jobs to do around the
house. {Eu não posso jogar tênis hoje. Eu tenho um pouco de / alguns trabalhos
para fazer em casa.} Poderíamos utilizar o aspecto tópico transgressivo de R1
nesse caso? Somente se houvesse um conector do tipo MESMO ASSIM: I have
a few jobs to do around the house, but I can play tennis today. {Eu tenho um
pouco de / alguns trabalhos para fazer em casa, mas posso jogar tênis hoje.} No
entanto, o verbo can’t (negativo) deveria ser afirmativo: can. E o que aconteceria
se usássemos o operador few, sem mudar o verbo can’t e sem mudar o conector
PORTANTO? O encadeamento ficaria assim: I can’t play tennis today. I have few
jobs to do around the house. {Eu não posso jogar tênis hoje. Eu tenho pouco
trabalho para fazer em casa.} Encadeamento esse que resultaria estranho para o
interlocutor, podendo ser interpretado como “eu não quero jogar tênis com você”,
“eu tenho mais o que fazer”, “estou cansado”, etc. Haveria coerência se
mudássemos a primeira parte do encadeamento para I can play tennis today. I
have few jobs to do around the house. {Eu posso jogar tênis hoje. Eu tenho pouco
trabalho para fazer em casa.}
Há, ainda, o seguinte exercício, presente no livro de exercícios do
Headway Upper-Intermediate:
4 Few, a few, little, a little.
Rewrite the sentences using one of the above forms. Make any
necessary changes.
Not many people know the answer to that question.
Few people know the answer to that question.
a. Help yourself to a biscuit. There are one or two left in the tin.
228
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
b. My days are so busy that I don’t have much time for relaxation.
____________________________________________________
c. She’s exceptionally generous. Hardly anyone gives more
money to charity than she does.
____________________________________________________
d. There’s a tiny bit of butter left, but not many.
____________________________________________________
e. He keeps trying, although he doesn’t have much chance of
success.
____________________________________________________
f. “I’m afraid you need three or four fillings,” said the dentist.
____________________________________________________
g. He must have made a hundred clocks in his life, but only one
or two of them ever worked properly.
____________________________________________________
h. She wasn’t very hungry. She just had one or two spoonfuls of
soup.
____________________________________________________
(Headway Upper-intermediate - Workbook)
{4 Pouco, um pouco.}
Reescreva as frases usando uma das formas acima. Faça as
mudanças necessárias.
Não muitas pessoas sabem a resposta àquela questão.
Poucas pessoas sabem a resposta àquela questão.
a. Sirva-se de um biscoito. Há um ou dois sobrando na lata.
b. Meus dias são tão cheios que eu não tenho muito tempo para
relaxar.
c. Ela é excepcionalmente generosa. Quase ninguém dá mais
dinheiro para caridade do que ela.
d. Há um pequeno pedaço de manteiga sobrando, mas não
muito.
e. Ele continua tentando, apesar de ele não ter muita chance de
sucesso.
f. “Eu receio que você precise de três ou quatro restaurações”,
disse o dentista.
g. Ele deve ter feito uns cem relógios em toda sua vida, mas
somente um ou dois deles funcionaram apropriadamente.
h. Ela não estava com muita fome. Ela apenas tomou uma ou
duas colheres de sopa.}
Nesse exercício, os alunos deveriam reescrever as frases utilizando os
operadores
argumentativos
em
questão,
efetuando
mudanças,
quando
necessárias. No exemplo, Not many people know the answer to that question
{Não muitas pessoas sabem a resposta para aquela questão} e sua resposta
correspondente Few people know the answer to that question {Poucas pessoas
sabem a resposta para aquela questão}, já podemos observar a falta de
encadeamentos para que o aluno tenha certeza da orientação argumentativa que
Teorias do Discurso e Ensino
229
deve dar à resposta, que poderia ser também A few people know the answer to
that question {Um pouco de / algumas pessoas sabem a resposta para aquela
questão}. No entanto, se houvesse o adjetivo difficult qualificando o substantivo
question, a orientação argumentativa do enunciado ficaria mais óbvia,
minimizando a chance de erros ocorrerem. Não podemos esquecer que é sempre
a forma normativa que ocorre primeiro em nossas mentes, isto é, o
encadeamento em PORTANTO.
Na letra a, Help yourself to a biscuit. There are one or two left in the tin
{Sirva-se de um biscoito. Há um ou dois sobrando na lata}, não se pode levar em
consideração a quantidade irrisória de biscoitos na lata: um ou dois, mas sim o
fato de que, quando uma pessoa oferece algo a outra, existe aí um fator de
polidez, de educação, que leva a crer que o comensal pode se servir, já que há
biscoitos na lata, não importando sua quantidade. A resposta correta é, portanto,
Help yourself to a biscuit. There are a few left in the tin {Sirva-se de um biscoito.
Há um pouco de / alguns biscoitos sobrando na lata}. Por outro lado, não
podemos deixar de pensar que, se o anfitrião não quiser que sobrem biscoitos pois é comum as pessoas não quererem que sobrem alimentos - e disser que “há
poucos biscoitos sobrando na lata, sirva-se”, significando “vamos comer para
terminar tudo, senão vai fora”, a resposta poderia ficar assim: Help yourself to a
biscuit. There are few left in the tin {Sirva-se de um biscoito. Há poucos sobrando
na lata}. Necessita-se de um encadeamento para deixar clara a orientação do
discurso.
Observou-se que, embora tenha sido a primeira vez que os alunos se
depararam com esses dois tipos de exercícios em situação de teste, sua média
de acerto (82,50% e 85%) foi maior que a média de acerto dos exercícios 1, 2 e
3, retirados de livros didáticos no teste 1 (66,25%, 70,31% e 79,16%). Por outro
lado, esses mesmos exercícios, quando refeitos no teste 2, após a aula com base
na TAL, obtiveram médias de 93,75%, 96,87% e 93,75% respectivamente. Talvez
isso se deva ao fato de a explicação do emprego dos operadores em questão, à
luz da TAL, ter ajudado. Além disso, esses exercícios já haviam sido vistos pelos
alunos em outra ocasião. Portanto, pode-se concluir, pelo ineditismo dos
exercícios 4 e 5, que a explicação do uso dos operadores argumentativos com
230
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
base na TAL mostrou uma tendência mais facilitadora do entendimento do
conteúdo pelos alunos.
3 Considerações finais
Os resultados deste estudo dissertativo apresentado ao Mestrado em
Letras – Estudos Linguísticos – na Universidade de Passo Fundo, podem
interessar tanto aos profissionais ligados à área da semântica argumentativa,
quanto aos ligados à área de ensino e aprendizagem de língua estrangeira,
sendo as perspectivas de sua aplicação de ordem teórica e prática.
A pesquisa aqui desenvolvida partiu do objetivo de facilitar o trabalho do
professor e do aluno na sala de aula de inglês como língua estrangeira, quando
do ensino de little, a little, few, a few, explorando o potencial metodológico que a
TAL apresenta no estudo desses operadores argumentativos. O objetivo
primordial foi o de desfazer ao máximo qualquer dúvida ou ambiguidade que
pudesse surgir a partir de explicações e exercícios de quaisquer materiais
didáticos utilizados com o fim de ensinar esses operadores, tanto por parte dos
alunos como por parte dos professores. Acreditou-se que a semântica
argumentativa, principalmente na perspectiva da Teoria dos Blocos Semânticos,
seria o meio ideal para tanto.
Dedicada ao ensino de língua inglesa como língua estrangeira, a
professora pesquisadora não poderia deixar de levar a cabo uma experiência
exploratória que fosse capaz de lhe fornecer, nem que fosse um vislumbre, de
como seria a aplicação de uma explicação de cunho argumentativo sobre os
operadores em questão para alunos aprendizes de língua inglesa e de quais
seriam os resultados. Os resultados apontam para certa eficácia da explicação,
com base na TAL, no entendimento do conteúdo trabalhado com os alunos.
Embora esse resultado possa ser contestado, ele representa o início de um
questionamento para a professora pesquisadora: em outros contextos, em uma
pesquisa com intervenções mais rigorosamente controladas, o resultado ainda
apontaria para o mesmo sentido? Entende-se esse questionamento como um
Teorias do Discurso e Ensino
231
fato extremamente profícuo, pois dá margem a outros estudos e reflexões nesse
campo.
O tratamento dado aos operadores little, a little, few, a few, juntamente
com os exercícios propostos nos livros didáticos, quando havia exercícios, foi
investigado em dois livros didáticos, quatro gramáticas e um dicionário. Neste
artigo, apenas uma parte da análise foi transcrita. No que se refere ao tratamento
dado a esses operadores nos materiais selecionados, pode-se observar uma
forte tendência de descrição semântica informacional, baseada em traços
permanentes, num conteúdo fixo, independente da estrutura linguística. Os
operadores aparecem, então, classificados como negativos (few, little) ou
positivos (a few, a little). Como se constatou, esse tipo de descrição presente nos
livros didáticos apresenta um grande problema, pois ignora o contexto no qual
essas palavras podem ocorrer e, consequentemente, ignora as orientações de
sentido que elas podem dar nos diferentes contextos em que aparecem. O
resultado disso é a incerteza quanto ao uso dessas palavras nos exercícios de
completar as lacunas, nos quais, a cada enunciado, é mudada a situação, e,
além disso, nem sempre a formação de um encadeamento é fornecida. Note-se
que, segundo Ducrot, o sentido se estabelece no encadeamento argumentativo, e
que, às vezes, era apresentado no material didático apenas um segmento de
enunciado.
As gramáticas, os livros didáticos e os dicionários, que apenas definem os
traços pertinentes a um conceito, deveriam mostrar a que tipo de conclusão o
emprego de uma palavra conduz. Além disso, deve-se levar em conta que a
função de um enunciado é ajudar a compreender o ponto de vista do locutor, isto
é, sua visão de mundo. A complementação do segmento de enunciado, formando
um encadeamento argumentativo, é, então, uma necessidade. Um exemplo disso
seria acrescentarmos à explicação descritiva do dicionário ou da gramática de um
enunciado como Mary worked little today {Mary trabalhou pouco hoje}, uma
especificação do tipo de conclusão a que se pode chegar após esse enunciado,
considerando-se que Mary tem estado muito doente ultimamente: She is not very
well yet {Ela ainda não está muito bem}, ou She will delay all the work of our
sector {Ela vai atrasar todo o trabalho do nosso setor}, etc, com encadeamentos
levando a um sentido negativo, de não ser bom o tempo trabalhado. Suponha
232
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
que Mary esteja grávida e impedida de trabalhar normalmente. Ela trabalhou
pouco hoje – então ela está se cuidando, atendendo ao pedido do médico. O
enunciado conduz a conclusões positivas, embora o trabalho do setor continue
atrasado. Se o enunciado fosse Mary worked a little today {Mary trabalhou um
pouco hoje}, as continuações possíveis seriam positivas, o tempo trabalhado é
razoavelmente bom: She is probably getting better {Provavelmente ela está
melhorando} ou The work in our sector won’t be so delayed {O trabalho no nosso
setor não vai ficar tão atrasado}. Supondo que Mary esteja grávida e hoje
trabalhou um pouco, ela está se cuidando e, concomitantemente, não está
atrasando o trabalho no setor.
Em um outro exemplo com little, para ficar mais claro, teremos o
enunciado I have little money {Eu tenho pouco dinheiro}, cuja provável
continuação, dentre todas as possíveis, seria Can you lend me some, please?
{Você pode me emprestar, por favor?} Por outro lado, I have a little money {Eu
tenho um pouco de / algum dinheiro}, poderia ser continuada assim: I can lend
you some {Eu posso te emprestar algum}.
No caso de few, pode-se pensar na seguinte enunciação hipotética: The
school has few dictionaries {A escola tem poucos dicionários}. E a provável
direção do raciocínio seria: There won’t be enough dictionaries for all the group
{Não vai haver dicionários suficientes para toda a turma}. Em The school has a
few dictionaries {A escola tem um pouco de / alguns dicionários}, o tipo de
discurso poderia ser So I can do a dictionary work today with my 5th grade group
{Então eu posso fazer um trabalho com o dicionário hoje com minha turma de
quinta série}.
Da análise dos resultados dos testes dos alunos, depreende-se que deve
haver, necessariamente, um encadeamento argumentativo, uma vez que só ele é
doador de sentido, para que o aprendiz tenha condições de entender a
orientação do enunciado em questão e possa preenchê-lo acuradamente. Além
disso, um exercício de completar lacunas se torna menos ambíguo quando o
tópico for o mesmo para vários enunciados, como no caso de um frame sobre
festa. Observe-se que frames são opcionais, pois podemos ter um encadeamento
sem frame, que será devidamente entendido pelo aprendiz, mas não podemos ter
um frame sem encadeamento, pois seu sentido continuará em aberto.
Teorias do Discurso e Ensino
233
Moita Lopes (1996) advoga uma formação teórica do professor no que se
refere a questões de uso da linguagem dentro e fora da sala de aula, além de
uma formação crítica com relação a métodos de ensino prontos para serem
reproduzidos em sala de aula. A TAL - concepção de linguagem que se alicerça
no sentido argumentativo da linguagem, diferente da concepção prescritiva das
gramáticas e da concepção informativa e descritiva dos dicionários - na qual o
encadeamento é o que de fato traz em si o sentido, é uma ferramenta poderosa
na mão do professor, pois ela demonstra como a linguagem funciona e faz
pensar sobre a mesma, tirando o professor da mera repetição do que está escrito
no material didático, fazendo com que ele tenha mais autonomia linguisticamente
e expanda sua capacidade de reflexão sobre os materiais. A concepção de
linguagem apresentada neste trabalho, se entendida e assumida pelo professor
de LE, poderá mudar toda sua prática e revolucionar sua sala de aula.
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Teorias do Discurso e Ensino
235
USO DE PERO, SINO E SIN EMBARGO ATRAVÉS DA TEORIA DA
ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA 1
Gisele Benck de Moraes *
[email protected]
1 Introdução
Uma das questões que sempre causam preocupações aos estudantes de
língua espanhola como língua estrangeira e, até mesmo, em professores é o uso
de pero, sino, sin embargo. Essa preocupação decorre da dúvida surgida no
momento em que precisam fazer uso desses vocábulos. A busca em gramáticas,
dicionários e mesmo em livros didáticos parece não ser suficiente para dar
clareza ao uso dos três morfemas 2, que, na Teoria da Argumentação na Língua
(TAL), proposta por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre, são chamados
articuladores 3 pero, sino e conector 4 sin embargo. Sabe-se que, em algumas
gramáticas e livros didáticos tais termos sequer são mencionados como
conteúdos a serem desenvolvidos e trabalhados com os aprendizes não nativos
de língua espanhola. Em outras, quando se encontra alguma explicação, é
sucinta e comparativa, geralmente tratando de pero e sino. A expressão sin
embargo é a menos enfocada nesses materiais, porém é a que os alunos mais
gostam de utilizar, por ser, talvez, a que mais difere da língua portuguesa, sendo
bem característica da língua espanhola.
1
Artigo baseado na dissertação Descrição de pero, sino, sin embargo, na tradição gramatical e na
semântica argumentativa, e implicações pedagógicas. Mestrado em Letras – Estudos
Linguísticos, concluído na Universidade de Passo Fundo em 2005, orientado pela professora
Doutora Telisa Furlanetto Graeff.
*
Professora de Linguística e Língua Espanhola da Universidade de Passo Fundo. Mestre em
Letras pela Universidade de Passo Fundo.
2
Usa-se morfema com o sentido de signo mínimo de natureza gramatical, por oposição a lexema,
conforme terminologia de Martinet (1972).
3
Mais adiante se verificará que pero e sino são chamados de articuladores, pois articulam
segmentos de enunciados de blocos semânticos diferentes. Se verá, também, que pero, em
determinados enunciados, pode ser um conector, correspondendo, então a sin embargo.
4
Chamado conector, pois relaciona segmentos de um mesmo bloco semântico, constituindo,
assim, o encadeamento argumentativo. São conectores DONC (portanto / por lo tanto) e
POURTANT (mesmo assim / sin embargo), como se poderá verificar mais adiante.
Constatando as dificuldades no uso desses morfemas, sentiu-se a
necessidade de fazer um estudo mais aprofundado sobre a questão, norteado
pelo seguinte questionamento:se fosse dada ao aluno uma explicação de uso dos
articuladores pero, sino e conector sin embargo com base na descrição feita pela
Teoria da Argumentação na Língua (TAL), haveria um melhor resultado na
aprendizagem?
A TAL nasceu praticamente no final dos anos setenta, tendo como mentor
o filósofo da linguagem Oswald Ducrot, juntamente com o matemático e linguista
Jean–Claude Anscombre. Em sua obra La argumentación en la lengua (1994),
esses autores consideram que a língua não informa sobre o mundo, mas que,
realmente, comporta indicações de caráter argumentativo, caráter este que
constitui a sua função primeira. Desse modo não somente as dinâmicas
discursivas, mas também o léxico e a própria estrutura semântica da língua
estabelecem um valor argumentativo. Para esses autores, a significação da
língua é de caráter instrucional, uma função que contém parâmetros variados a
partir dos quais se pode calcular o sentido dos enunciados. Daí afirmarem:
Hablar es dirigir el discurso en cierta dirección, hacia ciertas conclusiones, hablar
es inscribir nuestros enunciados en una cierta dinámica discursiva. (DUCROT;
ANSCOMBRE, 1994, p.56). Essa é a concepção da Teoria da Argumentação na
Língua, cujo objetivo é descrever a língua de forma autônoma, sem recorrer a um
conhecimento do mundo e do pensamento.
Ducrot, em seu artigo “A pragmática e o estudo semântico da língua”
(2005), faz um estudo sobre o sentido no enunciado, mostrando que tudo, ou
quase tudo, o que diz respeito ao sentido é pragmático, que nada é informação
prévia, que a língua sempre aponta o contexto a procurar. Além disso, mostra
que a enunciação deixa marcas linguísticas no enunciado, por meio das quais se
pode fazer a sua reconstituição. Para isso, Ducrot postula que todo o sentido de
um enunciado está relacionado com o uso da língua em um determinado
contexto, ou seja, um mesmo enunciado tem sentidos diferentes.
Tomem-se três ocorrências da mesma frase como exemplo:
(1) João está feliz.
(1’) João está feliz !
(1’’) João está feliz ?
Teorias do Discurso e Ensino
237
Essa mesma frase só poderá ter sentido determinado dentro de um
contexto de fala. Note-se que, nas três ocorrências, o mesmo fato é enfocado (a
felicidade de João), mas esse entendimento só se faz possível no momento em
que se utilizam uma exclamação, interrogação ou afirmação, que correspondem
a entonações diferentes.
O mesmo acontece com enunciados mais complexos, constituídos de
argumento e conclusão. A conclusão sempre vai depender do encadeamento
possível, do contexto em que está inserida e, sobretudo, da intenção do falante,
pois, na TAL, o signo completo é uma frase complexa, em que o significado de
um segmento de enunciado é definido pelas várias possibilidades de
combinações que ele apresenta com outros segmentos de enunciados, passando
a constituir, dessa maneira, um encadeamento argumentativo. Por isso, para
Ducrot:
Pode-se chamar “pragmático”, no sentido de um enunciado, o
que diz respeito ao ato de enunciação realizado pelo locutor,
todas as informações que o enunciado dá sobre a atitude daquele
que fala no momento em que fala, e sobre as relações que sua
fala pretende estabelecer ou constatar entre ele e seus
interlocutores. (2005, p.12).
Já a Teoria dos Blocos Semânticos, proposta por Marion Carel, amplia a
TAL incluindo a noção de bloco semântico, realizada no que chama de
“encadeamento argumentativo”. Para Carel (2001, p.76), o encadeamento
argumentativo é “qualquer sequência de dois elementos que são, de certo modo,
dependentes”.
Considerem-se os seguintes exemplos:
(3)
(4)
É tarde, portanto o trem está lá. (o trem já chegou)
É tarde, portanto o trem não está lá. (o trem já partiu)
É possível notar que os enunciados (3) e (4) contêm as mesmas palavras,
na mesma ordem, com a diferença apenas de que em (4) há o acréscimo do
advérbio “não”, negando o fato de o trem estar lá. Se a questão do sentido de um
enunciado fosse informacional, o enunciado (3) afirmaria o fato de o trem estar lá,
ao passo que (4) o negaria. No entanto, os sentidos de (3) e (4) são
completamente diferentes: (3) expressa a chegada do trem; (4), a sua partida. Os
238
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
sentidos de (3) e de (4) advêm da interdependência semântica que se forma
entre ser tarde e presença /ausência do trem, num caso, (3), mais tarde, mais
presente, noutro, (4), mais tarde, mais ausente. Em outras palavras, em (3)
argumenta-se que a passagem do tempo provoca a presença das coisas e, em
(4), que a passagem do tempo provoca a ausência das coisas.
A descrição do sentido dos enunciados gera muita necessidade de estudo
e, em virtude disso, juntamente com a dúvida no uso de pero, sino, sin embargo,
tanto em leituras de textos de língua espanhola quanto na sua produção, buscase, neste trabalho, um aprofundamento tanto da teoria quanto da aplicação da
mesma com relação a esses articuladores e conector.
Em vista disso, são objetivos desta pesquisa: investigar se a descrição que
é possível fazer de pero, sino e sin embargo com o arcabouço da TAL é mais
adequada para ensinar a distinguir esses morfemas, especialmente quando se
ensina a língua espanhola para falantes não nativos; auxiliar os usuários de
espanhol como língua estrangeira a usarem adequadamente os morfemas pero,
sino e sin embargo.
Como decorrência desses objetivos, este trabalho pretende delinear uma
metodologia que auxilie alunos e professores de língua espanhola a utilizarem
adequadamente os articuladores pero e sino e o conector sin embargo, tanto em
procedimentos de recepção quanto de produção de textos.
2 Perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua
21 Descrição de MAS (SINO) feita por Vogt e Ducrot
Carlos Vogt (1980), ao realizar um estudo sobre a origem da conjunção
adverbial “mas”, concluiu que ela não deriva do latim (sed), mas do advérbio
magis, palavra muito utilizada para formar um grau comparativo de superioridade
que, muitas vezes, acaba sendo confundida com a palavra “mais”. Por exemplo:
“Não tem mais nem menos”, quando alguém está querendo fazer algumas
objeções (mas,... mas...), como se quisesse contra-argumentar em relação a
algum assunto.
Teorias do Discurso e Ensino
239
Quando as línguas românicas, segundo Vogt (1980), passam a utilizar um
derivado do magis (como sino em espanhol) como conjunção adversativa, a
complicação aparece, pois sino e pero têm a mesma tradução para a língua
portuguesa. A função (retificadora) que vem do espanhol sino e a que vem do
alemão (sondern) dão origem à sigla (SN). As outras, que vêm também do
espanhol (pero) e do alemão (aber), originam a sigla (PA). No primeiro caso, a
conjunção adversativa MAS (SN), sino em espanhol, serve para introduzir uma
retificação, uma correção. Pode-se dizer que vem sempre depois de uma
proposição negativa p = n-p' e induz a uma determinação ‘q’, que substitui a
determinação p’, negada em p e atribuída a um interlocutor real ou virtual. Podese encontrar um exemplo retirado do texto número 07, Mapamundi-2 (conforme
Teste 1 - parte A ):
[...] Así lo quiere el orden natural de las cosas. En el sur del
mundo enseña el sistema, la violencia y el hambre no pertenecen
a la historia, SINO a la naturaleza, y a la justicia y la libertad han
sido condenadas a odiarse entre sí. (GAI,EANO, 1999, p. 96).
Examine-se o enunciado “La violencia y el hambre no pertenencen a la
historia, sino a la naturaleza, a la justicia, a la libertad”. Nele há dois segmentos
ligados por sino.
1.o segmento
2.o segmento
A violência e a fome não pertencem à história SINO à natureza, à justiça, à
liberdade.
P – positiva (a violência e a fome pertencem à história)
Não P’ (a violência e a fome não pertencem à história)
SINO
Q (à natureza, à justiça, à liberdade)
O articulador sino sempre terá uma função retificadora, como se pode ver
em outro exemplo, o texto número 05, Los nadies (teste 1 - parte A):
(5) Que no hablan idiomas, SINO dialectos.
Que no profesan religiones, SINO supersticiones.
Que no hacen arte, SINO artesanía.
Que no practican cultura, SINO folklore.
Que no son seres humanos, SINO recursos.
240
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Que no tiene cara, SINO brazos.
Que no tienen nombre, SINO número.
Que no figuran en la historia universal, SINO en la crónica roja de
la prensa local. (GALEANO, 1999, p.59).
Percebe-se que aparece na negação não-B o discurso relatado B. Sabe-se
que B é mantido. No fato de B ter sido dito, imaginado ‘recuso que aparece na
história universal’, nota-se um peso que a negação gramatical não pode apagar:
a afirmação de que ele foi objeto já constitui para B uma espécie de alteridade,
que aparece como constitutiva de sentido. (VOGT, 1980, p. 113).
Até agora mostrou-se que magis latino pode ser empregado com um
sentido muito próximo de ‘mas’ SN (sino). O mesmo não ocorre com o “mas” PA 5
(pero 6), uma vez que não se tem encontrado o emprego de magis com a função
PA. Mais adiante, estudar-se-á o possível sentido para MAS com função PA.
2.2 Descrição feita por Marion Carel na Teoria dos Blocos Semânticos
Estudos feitos por Ducrot e Carel já comprovaram que o valor semântico
profundo de certas palavras, expressões e enunciados é de natureza
argumentativa. Na primeira fase do estudo, a relação de sentido de um
enunciado era estabelecida entre um argumento e uma conclusão. Por exemplo:
“Faz calor: vamos sair”. O argumento lançado “faz calor” leva à conclusão “sair de
casa”, pois vários fatores influenciam, dentre eles “não está chovendo”, “vamos
aproveitar um ótimo dia”. O sentido do enunciado era dado pela continuação
seguinte, ou seja, a conclusão. “Faz calor” não tem sentido referencial, mas, sim,
argumentativo. Se o argumento é “faz calor”, de nada adianta procurar no
dicionário o sentido de “calor”, porque o sentido é estabelecido pela conclusão
5
Articula segmentos de encadeamentos argumentativos de blocos diferentes. Não se tratará
neste trabalho da diferença apontada por Carel em seu artigo “Argumentación normativa y
argumentación exceptiva” entre o MAS PA de oposição direta e de oposição indireta. Segundo
ela, o primeiro articula o argumento de um bloco com a conclusão de outro e o segundo articula
argumentos de blocos diferentes. Exemplo de “mas” de oposição direta seria “Trabalha mas,
mesmo assim, não fica rico”. Consideramos que, no enunciado, “Trabalha, mas não fica rico” temse um “mas” substituível por “pourtant” (sin embargo).
6
Mais adiante se verá que existe um pero que poderá ser substituído por sin embargo, cuja
função é conectar dois segmentos de um mesmo bloco, constituindo um encadeamento
argumentativo.
Teorias do Discurso e Ensino
241
possível, como se pode observar no enunciado “É calor: não vamos sair”, em que
calor é desagradável para passear.
Este é um dos objetivos da TAL: opor-se à concepção tradicional de
sentido, ou seja, opor-se àquela concepção que separa os sentidos denotativo
(objetivo) e conotativo (subjetivo e intersubjetivo). A TAL aponta para uma
impossibilidade de se poder acreditar que a linguagem possua uma parte
objetiva, a qual poderia descrever de forma direta a realidade. A partir dessa
visão, Ducrot mostra que o aspecto referencial perde totalmente a razão de ser,
pois “la manera como el lenguaje ordinario describe la realidad consiste en hacer
de ella el tema de un debate entre los individuos” (1988, p.50), o que demonstra a
junção dos dois aspectos subjetivo e intersubjetivo no chamado valor
argumentativo, que pode ser definido como o conjunto de possibilidades ou
impossibilidades da continuação dos segmentos do enunciado.
A segunda fase dos estudos está fortemente ligada à Teoria dos Topoi. A
relação argumentativa estava concebida em uma relação binária, ou seja, como
uma relação entre dois segmentos discursivos na qual o primeiro, chamado de
“argumento” (A), era apresentado pelo locutor como destinado a fazer admitir o
segundo, chamado “conclusão” (C). O enunciado poderia conduzir a várias
conclusões que seriam garantidas pelo topos, princípio argumentativo comum a
uma comunidade. Por exemplo: “Pedro levanta cedo”, que seria o argumento (A),
poderia ativar o princípio, também chamado de topos “quem cedo madruga tem
mais chance de sucesso, pois trabalha mais, está mais disposto, não tem
preguiça”, que conduziria à conclusão (C), “portanto Pedro vai conseguir fazer o
que quer”. Se o princípio vigente na comunidade fosse “Quem cedo madruga só
se cansa mais”, então, a conclusão do argumento “Pedro levanta cedo” seria
“portanto não vai ter mais sucesso por isso”, “Isso só vai atrapalhá-lo”, entre
outros. Ou seja, todo enunciado A com a garantia de um topos conduziria à
conclusão C, pois era esse topos, considerado comum à coletividade onde
ocorria o discurso, que permitia extrair argumento do estado de coisas para
justificar esta ou aquela conclusão. Aliás, cumpre referir que esse termo foi
tomado da Retórica de Aristóteles.
Para melhor compreender a fase seguinte, da Teoria dos Blocos
Semânticos, proposta por Carel, utilizar-se-á como base um estudo realizado
242
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
pelos autores já citados em relação ao articulador pero e ao conector sin
embargo.
Para Anscombre e Ducrot (apud CAREL, 1998, p. 258) os discursos que
fazem uso de pero convocam encadeamentos com donc, sendo, dessa maneira,
classificáveis como “discursos argumentativos”, que podem ser descritos da
seguinte maneira: A pero B: o primeiro segmento A é o argumento de um
encadeamento com donc de conclusão R, o segundo segmento B é o argumento
de um encadeamento com donc de conclusão não-R. O locutor pode escolher o
argumento B em detrimento de A, como no exemplo: No soy inteligente, dice la
alumna, pero me gustaría aprobar en el examen.
Carel, discutindo a supremacia dos encadeamentos argumentativos em
donc, chega à Teoria dos Blocos Semânticos. Para Carel, um bloco semântico é
estabelecido por enunciados que apresentam o aspecto normativo da regra
(donc)
e
por
enunciados
que
apresentam
conclusões
argumentativas
transgressivas (pourtant) 7. Desse modo, um bloco semântico pode apresentar
quatro aspectos: os recíprocos (positivo e negativo) e os conversos (normativo e
transgressivo). Vejam - se os exemplos:
A
A DC C
B
Não A DC não C
(Falar DC dizer)
(Não falar DC não dizer)
C
D
Não A PT C
(Não falar PT dizer)
A PT não C
(Falar PT não dizer)
Recíprocos (A e B; C e D)
Conversos (A e D; C e B)
Podem-se conferir os positivos encadeamento normativo A DC C, Fala DC
diz e encadeamento transgressivo A PT não C, Fala PT não diz; os negativos
7
Símbolo PT (pourtant) universal para uso de sin embargo, em espanhol, e mesmo assim, em
português.
Teorias do Discurso e Ensino
243
encadeamento normativo Não A DC não C Não fala DC não diz e encadeamento
transgressivo Não A PT C Não fala PT diz. Dessa maneira, percebe-se nas
frases ‘Falar DC dizer e Não falar DC não dizer’ o aspecto normativo da regra e,
nas frases ‘Não falar PT dizer e Falar PT não dizer’, o aspecto transgressivo da
regra.
As descrições semânticas da TAL são instruções sobre que contexto
procurar para atribuir sentido a um enunciado, ao passo que livros didáticos,
gramáticas e dicionários informam que sentido tal articulador ou conector teria em
determinada frase e como deveriam ser utilizados, ou seja, em que contextos.
Na seção seguinte, faz-se uma descrição das estruturas com sin embargo
(PT), mostrando sua semelhança com as estruturas com portanto (DC), com base
em estudos de Carel, dentro da Teoria dos Blocos Semânticos. Como se verá,
ambas são unidades semânticas básicas, pois nas duas há interdependência
semântica entre os segmentos de um encadeamento argumentativo.
2.3 Uma descrição de Sin embargo
Para Marion Carel (1998), uma das primeiras razões que faz pensar que o
encadeamento com portanto não é uma justificação é que o argumento não tem
sentido em si mesmo. No trecho retirado do texto número 2, Celebración de la
voz humana-2, teste 1 - parte A):
(6)Tenían las manos atadas, o esposadas, y SIN EMBARGO los
dedos danzaban, volaban, dibujaban palabras. Los presos
estaban encapuchados; pero inclinándose alcanzaban a ver algo,
alguito, por abajo. Aunque hablar estaba prohibido, ellos
conversaban con las manos. (GALEANO, 1999, p. 11).
Observe-se que tenían las manos atadas não é um enunciado, ao qual
seria atribuído um sentido unitário e completo, o qual não é um componente da
argumentação que realiza (6). Nota-se que o locutor de (6) utiliza um argumento,
o de que as mãos estavam atadas. A partir desse argumento, seria natural
concluir que não se poderiam mexer as mãos, muito menos os dedos poderiam
dançar, em virtude de que, quando se está amarrado, é difícil o movimento. O
244
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
sentido da palavra “amarradas” é, justamente, indicar a dificuldade de
movimento, mais exatamente, dificulta concluir hay movimiento. Contudo, ocorre
justamente o contrário: a conclusão final vai justamente se opor a não poder fazer
movimento, ou seja, estão atadas, mas, mesmo assim, é possível movimento.
Esse é o papel de sin embargo, no caso, opor-se a uma conclusão
normativa (quanto mais preso, menos mexer). Tenían las manos atadas, y sin
embargo los dedos danzaban.
Pode-se dizer, então, que os encadeamentos com pero realizam estruturas
complexas
que
contêm
encadeamentos
com
portanto
(DC),
mas
os
encadeamentos com sin embargo, não. Os encadeamentos com sin embargo
não negam a regra, somente a tomam sob um outro aspecto, isto é, mesmo
reconhecendo a existência da regra, desobedecem-na.Veja-se o exemplo:
(7) 1984 había sido un año de mierda. Antes del infarto, me
habían operado la espalda; y Helena había perdido un niño a
medio hacer. Cuando Helena perdió el niño, se nos secó el rozal
de la terraza. Las demás plantas también murieron, todas, una
tras otra, a pesar de que las regábamos cada día. La casa
parecía maldita. Y SIN EMBARGO, Nani y Alfredo Ahuerma
habían estado allí, por unos días, y al irse habían escrito en el
espejo: En esta casa fuimos felices. (GALEANO, 1999, p. 182).
A conclusão possível para la casa parecía maldita seria, portanto (donc)
não ser feliz lá. No caso apresentaria o aspecto normativo da regra. Porém, em
continuação ao enunciado, percebe-se uma oposição do segundo segmento
(pourtant ser feliz), a qual é marcada no enunciado pelo conector sin embargo,
revela o aspecto transgressivo da regra.
Os dois segmentos de um encadeamento com sin embargo compartilham
com os dois segmentos de um encadeamento com por lo tanto a propriedade de
serem interpretados de forma conjunta. Por fim, não se pode manter a descrição
de encadeamentos argumentativos em PT (afirma uma conclusão para negá-la
depois) como uma sucessão de dois movimentos. É por esse motivo que Carel
propõe outra descrição, para que se possa explicar que, semanticamente, existe
um ponto comum entre A por lo tanto C e A sin embargo não C. Pode-se dizer,
dessa forma, que ambos os encadeamentos são duas realizações de uma
unidade semântica.
Teorias do Discurso e Ensino
245
Tomem-se os exemplos:
(7) La casa parecía maldita, por lo tanto Nani y Alfredo no fueron felices allí.
(7') La casa parecía maldita, sin embargo Nani y Alfredo fueron felices allí.
(7") La casa no parecía maldita, por lo tanto Nani y Alfredo fueron felices allí.
(7"') La casa no parecía maldita, sin embargo Nani y Alfredo no fueron felices allí.
Nos quatro exemplos utiliza-se o mesmo bloco semântico, uma vez que o
assunto tratado é o mesmo, ou seja, o que é amaldiçoado não permite felicidade.
Em (7) tem-se a afirmação “se é maldita, não é feliz”; em (7") tem-se a negação
“não é maldita, mesmo assim é feliz”. Essa afirmação e negação são duas
atitudes diferentes com respeito a um mesmo conteúdo. Percebe-se que as
ideias são concebidas de maneiras diferentes e podem ser unidas ou não, isto é,
ou é maldita ou não é maldita. Pode-se dizer, então, que (7) e (7") expressam o
mesmo bloco apreendido em (7) de forma positiva e em (7’’) de forma negativa.
Pode-se dizer, então, que A por lo tanto C e A sin embargo no C
expressam a mesma regra, mas não sob o mesmo aspecto. O locutor de A por lo
tanto C utiliza o aspecto normativo e A sin embargo no C utiliza o aspecto
transgressivo.
Quando se utiliza o aspecto normativo, não se quer dizer que se utilize
normalmente a regra, nem dizer que, utilizando o aspecto transgressivo, se está
fazendo uma exceção à regra. A regra não tem nenhum vínculo privilegiado com
nenhum dos aspectos nem o bloco semântico tem vínculo com alguma das
regras. Para Carel, a regra tem exceção por natureza. A natureza mesma implica
que tenha dois aspectos (o normativo e o transgressivo) no sentido de que o
normal e o patológico se supõem mutuamente (1998, p. 274). A regra não
encontra sua força só na utilização do aspecto normativo, mas a exceção
confirma a regra nos casos inesperados. Não se trata só de dizer que, como toda
regra tem exceção, sempre se pode manter a validez de uma regra. A regra
também encontra sua força na utilização de seu aspecto transgressivo. Os casos
inesperados, as situações descritas pelo aspecto transgressivo não são
exteriores à regra, ao contrário, são outros tantos casos descritos pela regra, e é
por esse motivo que a exceção sempre vem a confirmar a regra.
246
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Tendo em vista que se fez referência várias vezes à existência em
espanhol de pero com dois valores, procede-se, a seguir, à distinção que a TAL,
especialmente com a contribuição de Carel, aportada pela Teoria dos Blocos
Semânticos, faz de Pero (Mas PA) e Pero (sin embargo).
2.4 Distinção entre Pero (Mas PA) e Pero (Sin embargo)
Pode-se distinguir o emprego de pero em (8):
(8) [...] Allá, alguien le regaló una vieja cámara de fotos. El
Chinolope, nunca había tenido una cámara en las manos, PERO
le dijeron que era fácil: - Tú miras por aquí y aprietas allí. Y se
echó a las calles. Y a poco andar escuchó balazos y se metió en
una barbería y alzó y miró por aquí y apretó allí. (GALEANO,
1999, p. 13).
Do emprego de pero em (9):
(9)[...] Importación, impostación: nuestras ciudades están llenas
de arcos de triunfo, obeliscos y partenones. Bolivia no tiene mar,
PERO tiene almirantes disfrazados de Lord Nelson. Lima no tiene
lluvia, PERO tiene techos de dos aguas y con canaletas
(GALEANO, 1999, p. 147).
O morfema pero em (8) El Chinolope nunca había tenido una cámara en
las manos introduz mediante portanto um segmento do tipo nunca ha sacado
foto, logo, le dijeron que era fácil introduz mediante portanto uma conclusão,
demonstrando, dessa maneira, dois blocos semânticos diferentes.
Já o morfema pero em (9) Bolívia no tiene mar, pero tiene almirantes
conecta segmentos do mesmo bloco semântico, porém sob o aspecto
transgressivo da regra. Para Carel, (9) não convoca o encadeamento: “não ter
mar DC não ter almirantes”; para depois logo abandoná-lo em benefício de “não
ter mar PT ter almirantes”. O locutor de (9) manifesta seu espanto pelo fato de,
não tendo mar, ter almirantes; mostra sua estranheza diante dessa realidade que
não é, não deveria ser, normal.
Pode-se dizer, então, que no exemplo (8), El Chinople nunca había tenido
una cámara en las manos, pero le dijeron que era fácil, o pero é classificado
Teorias do Discurso e Ensino
247
como pero (MAS PA), pois articula dois blocos semânticos diferentes, sob o
aspecto normativo da regra; e o pero de (9) Bolívia no tiene mar, pero tiene
almirantes é classificado como pero (sin embargo), pois conecta o mesmo bloco
semântico, porém sob um aspecto transgressivo da regra.
Segundo Carel:
Como el aspecto normativo, el aspecto exceptivo afirma, sin
recurrir a otro encadenamiento con por lo tanto: A sin embargo no
C, a diferencia de A pero no C, no convoca el encadenamiento B
por lo tanto no C. El aspecto exceptivo simplemente presenta la
situación como extraña. Como una situación sorprendente y no
como “muy rara: la regla se mantiene, no porque la excepción
pueda ser ignorada, sino porque no existe normalidad sin rareza.
(1998, p.278).
Durante o estudo, com base na Teoria da Argumentação na Língua, pôdese perceber que a Teoria dos Blocos semânticos fortalece a ideia de que a
significação das frases é aberta, instrucional. Somente no enunciado se poderá
estabelecer o sentido dos segmentos, uma vez que se sigam as instruções
linguísticas sobre como ler o enunciado, sobre o valor argumentativo de seus
segmentos, das palavras que eles contêm, o que é apontado pela própria
estrutura linguística.
3 A argumentação na sala de aula
Para que melhor fosse compreendido o uso dos morfemas foi ministrada
uma aula para as alunas concluintes do curso de habilitação de Língua
Espanhola da Universidade de Passo Fundo. Para essa aula foi elaborado um
teste a partir de uma seleção de textos retirados do livro El libro de los abrazos,
de Eduardo Galeano. Os textos foram escolhidos porque neles se fizera uso dos
articuladores e do conector já citados. É desnecessário destacar o encanto que
causam essas curtas histórias com que Eduardo Galeano abraça as pessoas,
que as retêm na memória e no coração. O teste era composto de duas partes: a
parte A, de preencher lacunas, tinha o objetivo de verificar se as alunas
conseguiam distinguir, no momento do uso, pero, sino e sin embargo, ou seja, se
248
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
sabiam como utilizá-los e em que momento; já o objetivo da parte B era verificar
se conseguiam distinguir pero (MAS PA) de pero (sin embargo–pourtant), uma
vez que o teste exigia que, na série de textos, substituíssem pero por sin
embargo quando fosse possível. Deveriam, ainda, explicar por que era possível a
substituição.
É importante ressaltar que as participantes responderam ao mesmo teste
(composto da parte A e da parte B) duas vezes: na primeira vez, elas poderiam
fazer uso de dicionários, gramáticas e livros didáticos; na segunda, não, pois já
teriam tido a aula sobre a descrição dos morfemas em questão, na perspectiva
da Teoria dos Blocos Semânticos.
Segue o modelo do teste:
TESTE – Parte A
Textos extraídos de GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Madrid: Siglo
Veintiuno Editores, 1999.
Complete as lacunas dos textos com pero, sino, ou sin embargo.
1) La función del lector/2
Era el medio siglo de la muerte César Vallejo, y hubo celebraciones. En
España, Julio Veces organizó conferencias, seminarios, ediciones y una
exposición que ofrecía imágenes del poeta, su tierra, su tiempo y su gente.
............................... en esos días Julio Vélez conoció a José Manuel
Constañón; y entonces todo homenaje le resultó enano.
José Manuel Costañón había sido capitán en la guerra española. Peleando
por Franco había perdido una mano y había ganado algunas medallas.
Una noche, poco después de la guerra, el capitán descubrió, por
casualidad, un libro prohibido. Se asomó, leyó un verso, leyó dos versos, y ya no
pudo desprenderse. El capitán Castañón, héroe del ejército vencedor, pasó toda
la noche en vela, atrapado, leyendo y releyendo a César Vallejo, poeta de los
vencidos. Y al amanecer de esa noche, renunció al ejército y se negó a cobrar ni
una peseta más del gobierno de Franco.
Después, lo metieron preso; y se fue al exilio.
2) Celebración de la voz humana/2
Tenían las manos atadas, o esposadas, y ............................... los dedos
danzaban, volaban, dibujaban palabras. Los presos estaban encapuchados;
............................... inclinándose alcanzaban a ver algo, alguito, por abajo.
Aunque hablar estaba prohibido, ellos conversaban con las manos.
Pinio Ungerfeld me enseñó el alfabeto de los dedos, que en prisión
aprendió sin profesor:
- Algunos teníamos mala letra – me dijo -. Otros eran unos artistas de la
caligrafía.
Teorias do Discurso e Ensino
249
La dictadura uruguaya quería que cada uno fuera nada más que uno, que
cada uno fuera nadie: en cárceles y cuarteles, y en todo el país, la comunicación
era delito.
3) Profecías/ 1
En el Perú, una maga me cubrió de rosas rojas y después me leyó la
suerte. La maga me anunció:
- Dentro de un mes, recibirás una distinción.
Yo me reí. Me reí por la infinita bondad de esa mujer desconocida, que me
regalaba flores y augurios de éxito, y me reí por la palabra distinción, que tiene
no sé que de cómica, y porque me vino a la cabeza un viejo amigo del barrio,
que era muy bruto ........................ certero, y que solía decir, sentenciando,
levantando el dedito: “A la corta o a la larga, los escritores se hamburguesan”.
Así que me reí; y la maga se rió de mi risa.
Un mes después, exactamente un mes después, recibí en Montevideo un
telegrama. En Chile, decía el telegrama, me habían otorgado una distinción. Era
el premio José Carrasco.
4) Celebración de la fantasía
Fue a la entrada del pueblo de Ollantaytambo, cerca del Cuzco. Yo me
había desprendido de un grupo de turistas y estaba solo, mirando de lejos las
ruinas de piedra, cuando un niño del lugar, enclenque, haraposo, se acercó a
pedirme que le regalara una lapicera. No podía darle la lapicera que tenía,
porque la estaba usando en no sé qué aburridas anotaciones,
..................................le ofrecí dibujarle un cerdito en la mano.
Súbitamente, se corrió la voz. De buenas a primeras me encontré rodeado
de un enjambre de niños que exigían, a grito pelado, que yo les dibujara bichos
en sus manitos cuarteados de mugre y frío, pieles de cuero quemado: había
quien quería un cóndor y quien una serpiente, otros preferían loritos o lechuzas, y
no faltaban los que pedían un fantasma o un dragón.
Y entonces, en medio de aquel alboroto, un desamparadito que no alzaba
más de un metro del suelo, me mostró un reloj dibujado con tinta negra en su
muñeca:
- Me lo mandó un tío mío, que vive en Lima – dijo.
- ¿Y anda bien? – le pregunté
- Atrasa un poco – reconoció.
5) Los nadies
Sueñan las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir
de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a
cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana,
ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies
la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pie derecho,
o empiecen el año cambiando de escoba.
Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los
ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos,
rejodidos:
Que no son, aunque sean.
250
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
Que no hablan idiomas, ............................. dialectos.
Que no profesan religiones, .................................supersticiones.
Que no hacen arte, ..................................... artesanía.
Que no practican cultura, ................................. folklore.
Que no son seres humanos, ................................. recursos humanos.
Que no tiene cara, ................................ brazos.
Que no tienen nombre, ............................... número.
Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.
6) La noche/1
No consigo dormir. Tengo una mujer atravesada entre los párpados. Si
pudiera, le diría que se vaya;.......................... tengo una mujer atravesada en la
garganta..
7) Mapamundi/2
[...]
La democracia es un lujo del norte. Al sur se le permite el espectáculo, que
eso no se le niega a nadie y a nadie molesta mucho, al fin y al cabo, que la
política sea democrática, siempre y cuando la economía no la sea. Cuando cae el
telón, una vez depositados los votos en las urnas, la realidad impone la ley del
más fuerte, que es la ley del dinero. Así lo quiere el orden natural de las cosas.
En el sur del mundo enseña el sistema, la violencia y el hombre no pertenecen a
la historia, ............................ a la naturaleza, y a la justicia y la libertad han sido
condenadas o odiarse entre sí.
8) Celebración de las contradicciones/2
Desatar las voces, desensoñar los sueños: escribo queriendo revelar lo
real maravilloso, y descubro lo real maravilloso en el exacto centro de lo real
horroroso de América.
En estas tierras, la cabeza del dios Eleggúa lleva la muerte en la nuca y la
vida en la cara. Cada promesa es una amenaza: cada pérdida, un encuentro. De
los miedos nacen los corajes; y las dudas, las certezas. Los sueños anuncian otra
realidad posible y los delirios, otra razón.
Al fin y al cabo, somos los que hacemos para cambiar lo que somos. La
identidad no es una pieza de museo, quietecita en la vitrina, ............................ la
siempre asombrosa síntesis de las contradicciones nuestras de cada día.
En esa fe, fugitiva, creo. Me resulta la única fe digna de confianza, por lo
mucho que se parece al bicho humano, jodido ......................... sagrado, y a la
loca aventura de vivir en el mundo.
9) La dignidad del arte
Yo escribo para quienes no pueden leerme. Los de abajo, los que esperan
desde hace siglos en la cola de la historia, no saben leer o no tienen con qué.
Cuando me viene el desánimo, me hace bien recordar una lección de dignidad
del arte que recibí hace años, en un teatro de Asís, en Italia. Habíamos ido con
Helena a ver un espectáculo de pantomima, y no había nadie. Ella y yo éramos
los únicos espectadores. Cuando se apagó la luz, se sumaron el acomodador y la
Teorias do Discurso e Ensino
251
boletera. Y, ....................................., los actores, más numerosos que el público,
trabajaron aquella noche como si tuvieran viviendo la gloria de un estreno a sala
repleta. Hicieron su tarea entregándose enteros, con todo, con alma y vida; fue
una maravilla. Nuestros aplausos retumbaron en la soledad de la sala. Nosotros
aplaudimos hasta despellejarnos las manos.
10) La casa
1984 había sido un año de mierda. Antes del infarto, me habían operado la
espalda; y Helena había perdido un niño a medio hacer. Cuando Helena perdió el
niño, se nos secó el rosal de la terraza. Las demás plantas también murieron,
todas un tras otra, a pesar de que las regábamos cada día.
La casa parecía maldita. Y.............................., Nani y Alfredo Ahuerma
habían estado allí, por unos días, y al irse habían escrito en el espejo: En esta
casa fuimos felices.
Y también, nosotros habíamos encontrado la alegría en esa casa ahora
jodida por la mala racha, y la alegría había sabido ser más poderosa que la duda
y mejor que la memoria, así que esa casa entristecida, esa casa barata y fea, en
un barrio barato y feo, era sagrada.
11) Andares/2
No fue un viento errante, de esos que vagabundean sin ton ni son,
...................... un señor ventarrón certeramente disparado desde la lejana costa
caliente hasta la ciudad de Medellín, a través de las montañas y los países. El
viento llegó a la casa de Jenny y la atravesó de punta a punta: súbitamente se
abrió la puerta del frente, como pateada por un borracho, y poquito después se
abrió la puerta del fondo, de la misma violenta manera.
[...]
TESTE – Parte B
Textos extraídos de GALEANO, Eduardo. El libro de los abrazos. Madrid:
Siglo Veintiuno Editores, 1999.
Todos os textos a seguir apresentam a conjunção pero. Verifique se, em
algum texto, pero pode ser substituído por sin embargo. Justifique sua resposta.
1)El lenguaje del arte
El Chinolope vendía diarios y lustraba zapatos en La Habana. Para salir de
pobre, se marchó a Nueva York.
Allá, alguien le regaló una vieja cámara de fotos. El Chinolope nunca había
tenido una cámara en las manos, PERO le dijeron que era fácil:
- Tú miras por aquí y aprietas allí.
Y se echó a las calles. Y a poco andar escuchó balazos y se metió en una
barbería y alzó y miró por aquí y apretó allí.
En la barbería habían acribillado al gangster Joe Anastasia, que se estaba
afeitando, y esa fue la primera foto de la vida profesional del Chinolope.
Se la pagaron una fortuna. Esa foto era una hazaña, El Chinolope había
logrado fotografar a la muerte. La muerte estaba allí: no en el muerto ni en el
matador. La muerte estaba en la cara del barbero que la vio.
252
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
...................................................................................................................................
...................................................................................................................................
2) La burocracia/1
En tiempos de la dictadura militar, a mediados de 1973, un preso político
uruguayo, Juan José Noueched, sufrió una sanción de cinco días: cinco días sin
visita ni recreo, cinco días sin nada, por violación del reglamento. Desde el punto
de vista del capitán que le aplicó la sanción, el reglamento no dejaba lugar o
dudas. El reglamento establecía claramente que los presos debían caminar en
fila y con ambas manos en la espalda. Noueched había sido castigado por poner
una sola mano en la espalda.
Noueched era manco.
Había caído preso en dos etapas. Primero había caído su brazo. Después,
él. El brazo cayó en Montevideo. Noueched venía escapando a todo correr
cuando el policía que lo perseguía alcanzó a pegarle un montón, le gritó: Dése
preso! Y se quedó con el brazo en la mano. El resto de Noueched cayó un año y
medio después, en Paysandú.
En la cárcel, Noueched quiso recuperar su brazo perdido:
- Haga una solicitud – le dijeron.
Él explicó que no tenía lápiz:
- Haga una solicitud a lápiz – le dijeron.
Entonces tuvo lápiz, PERO no tenía papel:
- Haga una solicitud de papel – le dijeron.
Cuando por fin tuvo lápiz y papel, formuló su solicitud de brazo.
Al tiempo, le contestaron. Que no. No se podía: el brazo estaba en otro
expediente. A él lo había procesado la justicia militar. Al brazo, la justicia civil.
...................................................................................................................................
...................................................................................................................................
3) La desmemoria/4
Chicago está llena de fábricas. Hay fábricas hasta en pleno centro de la
ciudad, en torno al edificio más alto del mundo. Chicago está lleno de fábricas,
Chicago está llena de obreros.
Al llegar al barrio de Heymarkert, pido a mis amigos que me muestren el
lugar donde fueron ahorcados, en 1886, aquellos obreros que el mundo entero
saluda cada primero de mayo.
- Hay de ser por aquí – me dicen. Pero nadie sabe.
Ninguna estatua se ha erigido en memoria de los mártires de Chicago en
la cuidad de Chicago. Ni estatua, ni monolito, ni placa de bronce, ni nada.
El primero de mayo es el único día verdaderamente universal de la
humanidad entera, el único día donde coinciden todas las historias y todas las
geografías, todas las lenguas y las religiones y las culturas del mundo; PERO en
los Estados Unidos, el primero de mayo es un día cualquiera. Ese día, la gente
trabaja normalmente, y nadie, o casi nadie, recuerda que los derechos de la clase
obrera no han brotado de la oreja de una cabra, ni de la mano de Dios o del amo.
Tras la inútil exploración de Heymarket, mis amigos me llevan a conocer la
mejor librería de la ciudad. Y allí, por pura curiosidad, por pura casualidad,
Teorias do Discurso e Ensino
253
descubro un viejo cartel que está como esperándome. Metido entre muchos otros
carteles de cine y música rock.
El cartel reproduce un proverbio del África: Hasta que los leones tengan
sus propios historiadores, las historias de cacería seguirán glorificando al
cazador.
...................................................................................................................................
...................................................................................................................................
4) El sistema/1
Los funcionarios no funcionan.
Los políticos hablan PERO no dicen.
Los votantes votan PERO no eligen.
Los medios de información desinforman.
Los centros de enseñanza enseñan a ignorar.
Los jueces condenan a las víctimas.
Los militares están en guerra contra sus compatriotas.
Los policías no combaten los crímines, porque están ocupados en
cometerlos.
Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan.
Es más libre el dinero que la gente
La gente está al servicio de las cosas.
...................................................................................................................................
...................................................................................................................................
5) La alineación / 2
Creen los que mandan que mejor es quien mejor copia. La cultura oficial
exalta las virtudes del mono y del papagayo. La alineación en América Latina: un
espectáculo de circo. Importación, impostación: nuestras ciudades están llenas
de arcos de triunfo, obeliscos y partenones. Bolivia no tiene mar, PERO tiene
almirantes disfrazados de lord Nelson. Lima no tiene lluvia, PERO tiene techos
dos aguas y con canaletas. En Managua, una de las ciudades más calientes del
mundo, condenada al hervor perpetuo, hay mansiones que ostentan soberbias
estufas de leña, y en las fiestas de Somoza las damas de sociedad lucían estolas
de zorro plateado.
...................................................................................................................................
...................................................................................................................................
6) La muerte
Ni diez personas iban a los últimos recitales del poeta español Blas de
Otero. PERO cuando Blas de Otero murió, muchos miles de personas acudieron
al homenaje fúnebre que se le hizo en una plaza de toros en Madrid. Él no se
enteró.
...................................................................................................................................
...................................................................................................................................
254
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
No começo da aula, explicou-se o que é um bloco semântico e como se
forma por meio da seguinte frase escrita no quadro: Pedro trabalha, portanto é
feliz. Inicialmente conduziu-se as alunas a perceberem que o segmento “Pedro
trabalha” não tem sentido sozinho. O sentido é estabelecido na relação com outro
segmento que possa ser a ele concatenado, como por exemplo, “ser feliz”.
Forma-se, assim, um enunciado complexo, constituído por dois segmentos que
compõem um encadeamento argumentativo em que se associaram trabalhar / ser
feliz. Mostrou-se que trabalhar e ser feliz não são dois conteúdos tomados
separadamente, cada um com seu valor fixo, estabelecido previamente, os quais
são reunidos no encadeamento. O sentido de trabalhar e ser feliz é constituído
simultaneamente na interdependência existente entre eles no encadeamento.
Para explicitar melhor, levou-se as participantes a perceberem que ao segmento
“Pedro trabalha” poderiam ser associados ser feliz, ficar cansado, ficar rico, ficar
pobre, ter sucesso na vida, e que cada uma dessas associações constituiria um
bloco semântico, uma vez que, simultaneamente, dentro do bloco, se definiriam
os sentidos de trabalhar e de felicidade, de trabalhar e cansar, de trabalhar e
riqueza. Conduziu-se o raciocínio das alunas a fim de que percebessem que,
num bloco semântico, os segmentos são semanticamente interdependentes.
Também foi a elas explicado que durante as aulas seriam utilizados os
símbolos DC (donc–por lo tanto) para portanto e PT (pourtant–sin embargo) para
mesmo assim e que os encadeamentos com DC expressariam o aspecto
normativo da regra, ao passo que os com PT o aspecto transgressivo da regra.
Para explicar aos participantes os aspectos recíprocos (positivo e
negativo) e os conversos (normativo e transgressivo) foram tomados os seguintes
exemplos:
(1) Pedro foi à praia DC tomou banho.
(1’) Pedro foi à praia PT não tomou banho.
(2) Pedro não foi à praia DC não tomou banho.
(2’) Pedro não foi à praia PT tomou banho.
Pela análise dos quatro exemplos, os alunos foram levados a perceber que
se tratava sempre do mesmo bloco ir à praia / tomar banho (tomado
positivamente), não ir à praia / não tomar banho (tomado negativamente).
Teorias do Discurso e Ensino
255
A versão positiva do bloco poderia ser apreendida normativa (com
encadeamento argumentativo em DC) e transgressivamente (com encadeamento
argumentativo em PT) e, da mesma forma, a versão negativa.
Daí o seguinte quadrado argumentativo, expressando as possibilidades
argumentativas do bloco semântico constituído por ir à praia / tomar banho.
A
B
A DC C
Não A DC não C
Ir à praia DC tomar banho
Não ir à praia DC não tomar banho
C
Não A PT C
Não ir à praia PT tomar banho
D
A PT não C
Ir à praia PT não tomar banho
Recíprocos (A e B; C e D)
Conversos (A e D; C e B)
Portanto, no enunciado dado em espanhol Pedro ha ido a la playa, pero no
se ha bañado, percebe-se um pero com valor de sin embargo, pois, nessa frase,
pero pode ser substituído por sin embargo, uma vez que relaciona segmentos de
um mesmo bloco, os quais formam um encadeamento argumentativo
transgressivo, que não nega a regra “Vai-se à praia para tomar banho”, somente
a transgride.
Após esse exemplo, foi colocado um outro enunciado:
(3) Pedro foi à praia MAS estava resfriado.
Explicou-se, novamente, que esse enunciado apresenta a seguinte
estrutura: A MAS B, e os seguintes segmentos:
Segmento 1- Foi à praia
Segmento 2 – Portanto DC tomou banho
Segmento 3 – Estava resfriado
Segmento 4 – Portanto DC não tomou banho
Foi à praia
MAS
DC
Tomou banho
256
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
está resfriado
DC
não tomou banho
A partir dessa explicação, foi possível ver que essa frase apresenta dois
blocos semânticos diferentes, pois:
Pedro foi à praia DC tomou banho
Pedro resfriado DC não tomou banho
1.o bloco – ir à praia / tomar banho (vai-se à praia para tomar banho de
mar)
2.o bloco – estar resfriado / não tomar banho (quem está resfriado não
deve se molhar)
Portanto, se a frase fosse dada em espanhol Pedro ha ido a la playa, pero
estaba resfriado, teríamos um pero (MAS PA) que relaciona dois blocos cujas
conclusões são contrárias. Nesta frase o pero não pode ser substituído por sin
embargo, porque apresenta dois blocos semânticos diferentes, uma vez que são
duas conclusões contrárias que pero relaciona.
Com base nesses exemplos fica claro que existem dois tipos de pero, pero
(Mas PA) que conecta encadeamentos argumentativos normativos de blocos
semânticos diferentes, que conduzem a conclusões contrárias, ou seja, duas
argumentações inversas, e pero (sin embargo-mesmo assim) que conecta
segmentos do mesmo bloco semântico, porém com o aspecto transgressivo da
regra.
E um último exemplo para trabalhar o articulador sino:
(4) Pedro não é inteligente MAS estudioso.
A frase em espanhol seria: Pedro no es inteligente sino estudioso.
Explicou-se que a utilização de sino sempre será em um enunciado
retificador, ou seja, o segundo segmento do enunciado retifica o primeiro, no qual
haverá uma negação.
Portanto, existem três tipos de MAS, e cada um pode ser resumido através
da seguinte estrutura:
MAS (sin embargo, pourtant) – mesmo assim
A MAS não B – Pedro foi à praia, mas não tomou banho.
Teorias do Discurso e Ensino
257
MAS (PA - pero – donc) - portanto
A MAS B – Pedro foi à praia, mas estava resfriado.
MAS (SN – sino)
Não A MAS B – Pedro não é inteligente, mas estudioso.
Logo após essa explicação, as alunas fizeram um exercício com três
textos, também retirados do livro El libro de los abrazos, de Eduardo Galeano,
para que preenchessem as lacunas, utilizando os morfemas em foco e, em
seguida, realizaram novamente o teste. Agora, a distinção entre o emprego de
cada um deveria ser feita com base na Teoria dos Blocos.
4 Considerações finais
Como se mencionou de início, esta pesquisa nasceu de uma preocupação
de professores e estudantes da língua espanhola quanto ao uso dos
articuladores pero, sino e do conector sin embargo. A partir desse
questionamento, constatou-se a necessidade de um maior aprofundamento sobre
a descrição linguística dos morfemas e sobre o modo como os alunos estavam
aprendendo em sala de aula a distingui-los, para o uso tanto em leitura quanto
em produções de textos em língua espanhola.
Ao longo da pesquisa, pôde-se verificar que realmente uma explicação dos
articuladores pero, sino e do conector sin embargo na a perspectiva da Teoria da
Argumentação na Língua, mais especificamente, da Teoria dos Blocos
Semânticos, é esclarecedora.
Foi possível chegar a essa conclusão atendendo ao objetivo estabelecido
para o estudo, de investigar se a descrição dos articuladores e do conector
segundo o arcabouço da TAL seria mais apropriada para ensinar a distinção e o
uso adequado, se comparada com a descrição apresentada em dicionários,
gramáticas e livros didáticos. Nesse sentido, as hipóteses levantadas realmente
vieram a se confirmar, pois se percebeu que a descrição encontrada nesses
materiais didáticos, tanto dos articuladores quanto do conector, baseia-se num
258
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
valor informativo, obtido pelo exame de contextos específicos. Já a descrição
feita pela TAL favorece e esclarece esse uso, pois apresenta uma descrição
instrucional, aberta.
Ducrot, na perspectiva da TAL, formula a ideia de que “La significación es
esencialmente abierta, dice lo que hay que hacer para encontrar el sentido del
enunciado” (1998, p.58).
Tome-se o exemplo: Maria estaba, pero con su madre.
Esse enunciado diz, em primeiro lugar, que Maria estava e, em segundo
lugar, que estava com sua mãe. Mas também pode significar, em muitas outras
ocasiões, que, quando Maria está, geralmente não está com a mãe, ou que,
quando ela está, isso me agrada, mas, como está com a mãe, então não gosto.
Nesse exemplo, as conclusões podem ser diversas como: estava contente por
Maria estar com a mãe, e descontente com a presença da mãe.
Desse modo, para Ducrot, a descrição de MAS é instrucional: procure um
contexto em que as conclusões do 1.o e do 2.o segmento do enunciado sejam
contrárias entre si.
Se fosse num contexto em que a menina tivesse um namorado:
Maria estava
MAS
DC
com sua mãe
DC
Namorado ---------------- fiquei feliz
fiquei triste
Ou num contexto em que o pai estivesse preocupado com sua segurança:
Maria estava
MAS
DC
com sua mãe
DC
Pai ----- fiquei preocupado com sua segurança
não fiquei preocupado com
sua segurança
Ou num contexto em que, quando está com a mãe, Maria não bebe:
Maria estava
DC
ia ficar bêbada
MAS
com sua mãe
DC
não ia ficar bêbada
E assim muitíssimos outros contextos.
Teorias do Discurso e Ensino
259
La idea general consiste en decir que la significación indica
simplemente el trabajo que debe hacerse para comprender el
enunciado. En este sentido digo que la significación es abierta. El
sentido del enunciado se produce cuando se ha obedecido a las
indicaciones dadas por la significación (DUCROT, 1998, p.60).
Promovendo o desenvolvimento dos estudos da TAL, Carel criou a Teoria
dos Blocos Semânticos, a qual prevê que o sentido do enunciado somente é
constituído na relação estabelecida entre os dois segmentos que o compõem.
Tome-se o enunciado:
Pedro estuda, portanto passará de ano.
O segmento “Pedro estuda” não tem sentido sozinho. O sentido somente
será estabelecido na relação com o outro segmento “passará de ano”. Dessa
maneira, percebe-se a interdependência existente entre os dois termos. A partir
do momento em que se estabeleceu estudar para passar de ano, foi formado um
enunciado complexo, constituído por dois segmentos que compõem um
encadeamento argumentativo em que se associaram estudar / ser aprovado.
Nota-se que não são dois conteúdos tomados separadamente, cada um com seu
valor fixo, já estabelecido, porém agora reunidos no encadeamento. O sentido de
estudar e ser aprovado é constituído, simultaneamente, na interdependência
existente entre ambos no encadeamento.
Nessa perspectiva, na descrição dos articuladores pero, sino e do conector
sin embargo, verificou-se que pero (mas PA) articula blocos semânticos
diferentes, como:
Trabaja
PERO
es perezoso
DC
tiene un buen sueldo
DC
no va a ganar un buen sueldo
1.o bloco semântico – trabalhar / ganhar bem
2.o bloco semântico – ser preguiçoso / não ganhar bem
Os dois blocos articulados por pero são expressos em encadeamentos
argumentativos normativos, pois:
260
Carmem Luci da Costa Silva, et al.
1.o bloco – Trabalhar DC ganhar bem (aspecto normativo da regra)
2.º bloco – Ser preguiçoso DC não ganhar bem (aspecto normativo da regra)
Já pero (sin embargo - PT) conecta segmentos do mesmo bloco
semântico, porém no aspecto transgressivo da regra, formando encadeamento
argumentativo transgressivo.
Trabaja
pero (PT)
Trabaja
no gana mucho
DC tiene un buen sueldo
Bloco Semântico – trabalhar / ganhar bem
Aspecto normativo da regra – trabalha DC ganha bem
Aspecto transgressivo da regra – trabalha PT não ganha bem
Quanto ao articulador sino, verificou-se que apresenta sempre um valor de
correção, retificação. Exemplo:
No es brasileña, sino portuguesa.
Quando realizado o primeiro teste, verificou-se que as participantes tinham
muitas dúvidas quanto ao uso de pero, sino e sin embargo. As alunas utilizaram
gramáticas e dicionários para auxiliá-las nas respostas, mas percebeu-se que o
valor informativo, de contextos fechados da descrição, não as auxiliou na
resposta, pois, na maioria das vezes, elas não entendiam a explicação dos
dicionários nem das gramáticas, como se pode ver nas justificativas dadas ao
teste 1- parte B: “deve permanecer, pois dá ideia de oposição”; “continua pero,
pois tem valor de porém”; “tem que substituir por sin embargo porque tem valor
de entretanto”.
Após a aula sobre esses morfemas, na perspectiva da TAL, foi possível
verificar um melhor entendimento, tanto que o resultado na aplicação do mesmo
teste, agora denominado “teste 2”, demonstrou essa evolução e veio a comprovar
que a descrição dos morfemas, principalmente segundo a Teoria dos Blocos
Semânticos, é mais satisfatória. As justificativas, agora, foram mais convincentes:
“permanece pero porque muda o bloco semântico”; “pero pode ser substituído por
sin embargo porque ocorre uma transgressão”; “apresenta um aspecto
transgressivo da regra por isso pode ser substituído por sin embargo”. As
Teorias do Discurso e Ensino
261
participantes não recorreram ao uso de materiais didáticos para responder aos
exercícios e obtiveram um alto índice de acertos.
Esses resultados positivos revelam que a Teoria da Argumentação na
Língua, especificamente, no caso deste estudo, a Teoria dos Blocos Semânticos,
pode contribuir com suas descrições semântico-argumentativas para facilitar o
ensino de língua espanhola para estrangeiros. Além disso, compreender a
diferença de sentido argumentativo derivado da escolha de pero ou de sin
embargo, seja no processo de recepção, seja no de produção de textos, produz
uma diferença de qualidade na construção do sentido. Observe-se, por exemplo,
o pero “no tiene mar, pero tiene almirantes”.
Na medida em que se lê pero como sin embargo, percebe-se a indignação
do locutor do enunciado diante do que expressa. É de se crer que um leitor
proficiente faça a substituição de pero por sin embargo na construção do sentido
do texto, mas o conhecimento da descrição semântico–argumentativa, sem
dúvida, fornece-lhe a segurança de apoiar o resultado da intuição linguística na
descrição.
Acredita-se que, como a descrição desses morfemas, outros estudos
podem ser feitos na perspectiva da TAL para o aprimoramento do ensino de
língua espanhola como segunda língua. É, portanto, um campo aberto e
especialmente produtivo para outras pesquisas.
REFERÊNCIAS
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de Filosofia e Letras, UBA, n. 9, jun., 1998.
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Comunicación, v.1, n. 1, Enero, 2001.
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Madrid: Editorial Gredos, 1994.
DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Cali: Universidad del Valle, 1998.
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São Paulo: Pioneira, 1982.
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Costa, 1972.
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pragmática e ideologia. São Paulo: FUNCAMP, 1980.
Teorias do Discurso e Ensino
263
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