Felipe Bronze
cozinha brasileira de vanguarda
Felipe Bronze
cozinha brasileira de vanguarda
fotografia
sergio coimbra
nota do autor
A decisão de fazer este livro foi das mais difíceis. O que define que um trabalho
está pronto para ser registrado? Ser maduro o suficiente para ser compartilhado
com o mundo? E o ato de mostrá-lo? Seria exibicionismo? Vaidade pura?
Perguntas inquietantes. Esse sentimento ficou muito forte nos primeiros 15
minutos de trabalho no studio sc,
sc, do brilhante e magnífico Sergio Coimbra. Me
senti inseguro, infantil, aterrorizado e com a noção clara de que
não merecia estar ali. Pelo menos ainda não. Acabei dividindo isso com o Sergio,
que com calma e ternura me disse sorrindo: “Um livro não retrata tudo.
Retrata o que você fez até aqui. Para a frente você ainda terá muito a crescer.
E aí faremos outro.”
Instantaneamente relaxei e me senti à vontade: tenho quase 14 anos de
profissão, vivi alguns sucessos e fracassos, passei por várias cozinhas
e diversos momentos e posso afirmar que este é muito especial, uma vez que
celebra uma carreira que vem sendo maravilhosa e que ainda tem
muito pela frente; que me proporcionou o prazer de descobrir, na idade
adulta, dois grandes novos amigos – Sergio Coimbra (que considero
praticamente coautor deste trabalho) e Marcos Pereira (meu editor); que
homenageia o Oro, meu restaurante com o querido amigo Eurico Cunha, que
em pouco tempo já recebeu prêmios e honrarias jamais esperados para um
“novato” –; que materializou, após anos de muito esforço, um convite para
apresentar um quadro deliciosamente irreverente no Fantástico
Fantástico,, na Rede
Globo. Um momento inesquecível, sem dúvida alguma.
Além disso, também é um registro definitivo da minha cozinha: brasileira,
moderna, emotiva, generosa e vanguardista, sem medo do progresso,
cosmopolita como minha cidade querida, o Rio de Janeiro, respeitosa às
tradições e aos sabores de meu país, porém anárquica e rebelde como
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toda criação deve ser. Uma harmonização de meus contrassensos,
por assim dizer.
Esses motivos me convenceram de que não é nada exibicionista escrever um
livro. É um ato de amor, é compartilhar. É agradecer por tudo o que recebi do
universo na jornada até aqui. Meu trabalho reflete quem sou, o que senti, os
lugares onde estive, meus sonhos e ilusões, minha forma de ver, refletir e
interpretar a gastronomia. É motivo de orgulho ter os textos de profissionais
que tanto admiro completando tão lindamente as imagens captadas com toda
a precisão e sensibilidade por Sergio e seu time.
A escolha de não apresentar as receitas descritivas expressa minha convicção de
que a técnica, por mais importante que seja, deve ser mantida dentro da cozinha.
Logo, optei por registrar com legendas o que é meu objetivo no Oro: proporcionar
emoção e surpresa através dos sentidos, contar uma história. A maneira de se fazer
cada prato, grama por grama, é assunto de cozinheiros profissionais, e aqui
gostaria de me apresentar a todos, não apenas a meus colegas.
Este livro, se não é somente para estas pessoas, é principalmente por cada
uma delas:
Minha amada Cecilia, por me apoiar, me entender, me ensinar, me
aprimorar, me corrigir, me inspirar, me amar. Incondicionalmente.
Eurico, por acreditar no meu sonho e ter vindo realizá-lo comigo.
Carlos Werneck e Felipe Elias, por terem me estendido a mão em meu
momento mais difícil.
Claude Troisgros, Alex Atala, Zé Hugo Celidônio, Joël Robuchon, Grant
Achatz, Ferran e Albert Adrià, Quique Dacosta, Massimo Bottura e Daniel
Boulud, cada um a seu modo, me conhecendo ou não, longe ou perto, por
terem me inspirado e ajudado a descobrir que cozinheiro sou.
Toda a equipe Oro, que me ajuda a construir essa história, especialmente
Rodrigo Guimarães e Pedro Brack, por toda a devoção profissional e o
entusiasmo com este projeto.
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Maria Vargas, por me acompanhar todos esses anos.
Shmuel, por ter me ensinado algumas das regras do jogo.
Meus avós: Antônio (in memoriam), por toda a generosidade e o amor
infinitos; Edith, por ter me ensinado o valor da disciplina de forma tão terna;
Nelson e Hilda, pelas lembranças da infância mais feliz.
Meus pais: Ricardo, por me permitir viver meus sonhos (ao ser o único a me
apoiar na decisão de fazer escola de gastronomia); Valeria, por manter meus pés
no chão e controlar meu ego; Carlos Augusto, meu segundo pai, por todo o apoio
e sabedoria que me permitiram navegar pelos mais difíceis momentos.
Meus grandes amigos de toda a vida, Eduardo Lacerda, Pedro Britto,
Bernardo Amaral, João Pedro Póvoa e Eduardo Santos, minha família escolhida,
que me deram os sobrinhos mais lindos do mundo.
Sergio Coimbra, por fazer deste livro algo muito maior do que eu jamais
poderia imaginar.
Marcos Pereira, pela generosidade, pela confiança e pelo entusiasmo contagiante.
Marluce, que me fez lembrar quem eu era, quais eram meus sonhos e,
principalmente, o que eu ainda deveria viver.
A essas pessoas, toda a minha gratidão.
Este livro é o registro de um caminho que comecei a percorrer ainda muito
jovem, frequentando cursos e cozinhando experimentalmente para meus
amigos, prosseguindo no Culinary Institute of America, em Nova York, e que no
retorno ao meu Rio de Janeiro se transformou, se aprimorou, se reinventou. E
que, se não acaba aqui, ganha um registro definitivo e emocionante. A quem me
acompanha nesta viagem, um convite para desfrutar o livro da forma mais
apropriada: divertindo-se.
Bem-vindos ao meu mundo.
Felipe Bronze
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“Minha cozinha reflete o que sou.
É um diário de impressões e das
emoções que vivo. Sou um cidadão
do mundo, mas antes de tudo sou um
menino do Rio.”
Cozinha: tradição e vanguarda
Claude Troisgros
tradição
dedicação
imaginação
sonho
técnica
criação
transformação
inspiração
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Para cozinhar, precisamos conhecer e entender a tradição.
A tradição é história.
A tradição é passado e presente.
A tradição só existe porque existe o futuro.
E todos temos que respeitar essa tradição.
Philippe entendeu isso há muito tempo. Eu o chamo de Philippe porque
naquela época, recém-chegado ao Brasil, eu ainda não falava português
muito bem. Eu dava aula no Club Gourmet, do meu amigo e mestre José Hugo
Celidônio. As aulas sempre foram muito animadas, com a presença de todos
os amantes da culinária no Rio de Janeiro. Mas alguém se destacava no meio
desse grupo. Um menino de 13 anos, jovem, inquieto e curioso, interessado em
conhecer a minha tradição culinária e familiar. Foi assim que teve início uma
longa amizade e passei a chamar o Philippe de Felipe. Mas ainda faltavam para
ele a estrada, a sabedoria, a dedicação e a técnica.
A técnica é fundamental na nossa profissão.
A técnica se pesquisa.
A técnica se adquire.
Sem técnica, a gente não tem como evoluir.
Felipe correu atrás dessa técnica para construir sua cozinha. Com coragem,
dedicação, viagens, pesquisas e, principalmente, sem medo de errar.
Ele foi em frente sem timidez, preconceito ou vergonha. Correu atrás e chegou
aonde queria chegar: hoje é dono de uma personalidade e de um estilo próprios,
uma cozinha de caráter, uma arte chamada Felipe Bronze.
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Mas cozinhar é arte?
Arte é imaginação, provocação, contradição.
Arte é beleza, equilíbrio, harmonia, revolta.
Não existe arte sem emoção.
Felipe prova, por meio das suas receitas, que cozinhar é uma arte.
Visionário inconformado, ele tem a habilidade de procurar novos sabores, de
transformar e valorizar o produto da terra Brasil com savoir-faire, sensibilidade
e criatividade.
E criar não é para todos.
Criar é inovar.
Criar não é copiar.
Não é possível criar sem tradição, técnica e arte.
Todos nós somos influenciados pela história, pela cultura e pela sociedade
em que vivemos. Hoje parece que temos uma necessidade quase obrigatória
de sermos criativos. É um fato. Felipe amadureceu, descobriu a medida certa
entre o clássico e o moderno, encontrou harmonia e liberdade nas suas criações.
Com seu espírito inventivo e aventureiro, ele valoriza com muito talento
o açaí, a tapioca, o chuchu, o taperebá, o limão-galego, a rapadura, o caju, o
tucupi, o dendê, o licuri, os doces do Araxá, a farinha de coco do Acre, o queijo
da Serra da Canastra, e consegue transformar essas iguarias em receitas de
sucesso.
sonho de ser um chef reconhecido, sonho de valorizar os produtos de seu país,
sonho de ter liberdade de criação, sonho de escrever o seu livro.
Ele merece muito mais. São anos de trabalho e dedicação: em 2000, estudou
no Culinary Institute of America, nos Estados Unidos, e fez estágio nas melhores
casas de Nova York. Voltou ao Rio de janeiro em 2003, para chefiar o restaurante
Zuka, abriu o Z Contemporâneo em 2004, comandou por algum tempo os
restaurantes dos hotéis Marina e voltou com tudo em 2010, com o aclamado
Oro: em 2011, venceu o prêmio Rio Show de Gastronomia na categoria Melhor
Restaurante, recebeu os títulos de Melhor Restaurante Contemporâneo e Chef
do Ano da Veja Rio e foi eleito Melhor Novidade do Guia 4 Rodas, repetindo
a premiação dupla (chef e restaurante) em 2012 na Veja Rio e a de Melhor
Restaurante Contemporâneo no Rio Show, culminando no título de Chef do Ano,
em 2012, também pelo Guia 4 Rodas. Com certeza virá muito mais…
Tudo isso resultou no livro Cozinha brasileira de vanguarda.
O título diz tudo.
O sonho está realizado.
Neste livro, Felipe divide com a gente um pouco de cada fase de sua trajetória.
Mostra, a cada página, que os produtos brasileiros são a sua fonte de
inspiração e criação. São ao todo 95 pratos incríveis fotografados com
a sensibilidade de Sergio Coimbra, todos obras-primas e registro do talento e da
generosidade do meu amigo, o chef Felipe Bronze.
O sucesso é conseguir realizar os sonhos.
E Felipe está realizando o seu. Sonho de brilhar em seu próprio restaurante,
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Felipe Bronze e a vanguarda culinária
por uma perspectiva brasileira
Luciana Bianchi
Felipe Bronze celebra com este livro uma carreira de 14 anos
de dedicação à gastronomia. O processo de criação para a
materialização desta primeira obra do autor seguiu a mesma
lógica usada em sua cozinha, partindo de uma ideia quase impossível e crescendo através de um processo orgânico.
Um livro que tem a comida como protagonista oferece várias limitações. Comer envolve os cinco sentidos, e para compreender o trabalho de um chef na íntegra é necessário degustar os seus pratos.
No caso de um trabalho de cozinha de vanguarda, a experiência vai além. Os sabores, as texturas, os cheiros e os sons envolvidos são muitas vezes dependentes de
um elemento teatral que serve como ponte entre a cozinha e a mesa para transmitir a ideia em sua totalidade.
Como, então, satisfazer o público com um livro de cozinha? As receitas em geral
servem como acessório de apoio em que o leitor tem a oportunidade de completar a
parte que falta, criando uma cumplicidade distante com o chef que lhe ensina a fazer o seu trabalho. O leitor se transforma em chef e em comensal ao mesmo tempo!
Este livro, no entanto, não segue esse caminho. O que Felipe decidiu apresentar foi o momento que vive todos os dias em sua cozinha: os poucos segundos
em que o tempo para e o prato está pronto em sua frente; este instante em que
o trabalho de horas, o preparo de anos e as ideias que nasceram de sua mente se
reduzem a um momento de glória. Enfim, um momento breve que deixará de existir em menos de um minuto.
A efemeridade do trabalho do chef produz o desejo de prolongar alguns de seus
aspectos, e imortalizá-los de alguma forma. No caso de Felipe, a estética de um
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prato em sua composição artística e estrutural possui em si mesma uma história
para contar. E, como a cozinha de vanguarda brasileira ainda dá os seus primeiros
passos, este livro serve como documento de uma estética que carrega um manifesto intrínseco de liberdade de expressão culinária. Transmite a mensagem de
que a cozinha não só tem a função de alimentar como também pode criar arte e
experiências múltiplas.
Para quem acompanha a evolução dos grandes chefs vanguardistas, a base de
seu reconhecimento é a narrativa livre, a busca de identidade própria e o desejo
quase desesperado de capturar memórias, emoções vividas e pensamentos, traduzindo-os em experiências gustativas. Essa visão reflete a ânsia de questionar o
passado, projetando-se numa dimensão paralela, construindo um espaço onde a
liberdade de expressão impera como código único.
Sem querer recair no pedantismo que elitiza muitos trabalhos demasiado intelectuais, a cozinha de vanguarda passa hoje por uma fase que deixa a esfera de
exclusividade para se tornar inclusiva e acessível. Restaurantes despretensiosos,
trattorias, bistrôs e botecos oferecem atualmente cozinha de vanguarda onde diversão e reflexão estão incluídos no menu, não sendo mais apenas uma moda,
tampouco um privilégio para poucos.
O trabalho autoral de Felipe, apesar de já apresentar linhas claras, ainda está em construção. Mas
não é esse o princípio da vanguarda?
Felipe observa o mundo, seu país, sua cidade e
seu pequeno espaço no universo de forma crítica.
Pensa, reflete, repensa e cria pratos com motivações
lúdicas inspirados em sua vivência como cidadão carioca cosmopolita. A vanguarda, por sua vez, tem um
ponto de partida, mas não se limita ao âmbito local,
e a internacionalidade de Felipe traz o mundo à sua
cozinha e quer levar a sua cozinha ao mundo.
Profundamente curioso, inquieto, experimentador, o autor deste livro é um pesquisador fecundo das técnicas alternativas e da disseminação da gastronomia brasileira sem clichês. Descobriu ainda cedo, entre sonhos e duras experiências, que um
cozinheiro não decide tornar-se vanguardista. A vanguarda, sim, é que o encontra!
O que Felipe decidiu apresentar
foi o momento que vive todos os
dias em sua cozinha: os poucos
segundos em que o tempo para e
o prato está pronto em sua frente.
raízes, motivações e desapego
O menino Felipe se decidiu pela cozinha ainda muito jovem. A família Bronze possuía uma empresa de catering que passou do avô paterno a seu pai. Por ironia, o
negócio não motivou o jovem de forma alguma a cozinhar. Sua motivação principal
veio do prazer em comer e da curiosidade para descobrir novos sabores.
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Felipe teve um grande mentor em sua formação de jovem gourmet. O avô paterno foi o patrocinador de seu palato aguçado, encorajando-o e financiando suas
visitas aos restaurantes e suas viagens gastronômicas. Foi um apoio essencial,
que motivou o jovem a tornar a paixão em ofício.
O avô foi também a maior inspiração e seu exemplo de vida. Muito pobre, tornou-se um empresário bem-sucedido graças a muito estudo e trabalho árduo,
passando para o neto o espírito de lutador que ele hoje carrega como traço marcante de sua personalidade.
Da mãe, herdou os pés no chão; do pai, a alegria da socialização à mesa, recordando-se das férias de infância em Búzios, durante as quais Ricardo cozinhava e
todos os familiares e amigos se reuniam para comer e rir juntos.
Da avó paterna, vieram a disciplina e a organização. Com os avós maternos,
aprendeu sobre a liberdade e o desapego.
Arriscando-se na cozinha aos 16 anos, sem experiência, mas com vontade de
tentar, passou pelo catering da família até iniciar a faculdade. Estudou Economia e Direito e aos 19 anos resolveu abandonar tudo e embarcar para os Estados
Unidos a fim de abraçar seu sonho de ser um chef profissional. O avô, que tanto
o apoiou e que muito se orgulharia de seu trabalho, não viveu para ver o neto se
matricular no CIA, o Culinary Institute of America, uma das mais famosas instituições do mundo das artes culinárias.
Formado e com o conhecimento adquirido em estágios em casas renomadas,
Felipe voltou ao Brasil em 2001, dando consultoria para o Sushi Leblon. Em seguida, foi chef executivo do Zuka e recebeu prêmios de chef revelação e melhor restaurante entre 2001 e 2003. Abriu o Z Contemporâneo em 2004, ganhando mais
uma vez os prêmios de chef do ano e de melhor restaurante.
Garoto prodígio, conheceu o sucesso rapidamente e, com pouca experiência de
trabalho e de vida, caiu do pedestal de novo talento a uma velocidade meteórica.
Encontrou dentro de si, porém, uma força que não sabia ter. Caiu outras vezes, bateu
a cabeça, foi amado e esquecido sem nunca perder o objetivo de se aperfeiçoar. Em
suas próprias palavras: “Crescemos mais quando caímos, seja como profissionais,
seja como seres humanos. O importante é não ter medo de se levantar e continuar!”
Após cada queda, Felipe voltava mais forte, mais maduro e, principalmente,
cada vez mais dedicado à cozinha de vanguarda que veio ao seu encontro.
Depois de um período de quatro anos como chef executivo do grupo de hotéis
Marina – período que define como sua fase de maior amadurecimento profissional
–, abriu o Oro em 2010, sendo premiado no mesmo ano da abertura, pelo sucesso
do restaurante. A dose foi repetida em 2012, quando ele foi condecorado pela revista Veja Rio como Chef do Ano, e o Oro como Restaurante do Ano.
Sua mulher, Cecilia Aldaz, é também sua sommelière e musa inspiradora, possuindo um dos paladares mais aguçados que Felipe já conheceu. A relação de tra-
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balho com ela enriqueceu muito a cozinha do chef, que confessa aprender com sua
mulher todos os dias. Cecilia é hoje seu alicerce e sua maior crítica. O casal divide
o amor à profissão e a energia criativa, construindo juntos uma base sólida no Oro.
O restaurante nasceu com a intenção inicial de ser um local que se espelhasse
na proposta do L’Atelier de Joël Robuchon, onde os pratos pequenos e o ambiente
casual abrissem as portas para uma alta gastronomia sem formalidades.
O estágio na Noruega durante o seu período de CIA foi como uma epifania. Pela
primeira vez Felipe via uma cozinha que se permitia o extremo de levar um animal
inteiro à mesa, servir espumas aromáticas sobre os pratos e mostrar uma estética
linear na apresentação, coisas que pareciam até então inconcebíveis. O restaurante rompia todas as barreiras clássicas aprendidas pela maioria dos chefs com
treinamento formal: “Esse estágio na Noruega, em 2001, mudou as ideias preestabelecidas que eu tinha da profissão. Ferran Adrià já inspirava os chefs ao redor
do mundo, mas havia sido a primeira vez que eu havia presenciado uma cozinha
de vanguarda em ação. O impacto foi tão forte que resolvi homenagear o meu primeiro restaurante de vanguarda com o mesmo nome: Oro.”
Contra o rigor militar e a vulgaridade da linguagem adotada em muitas cozinhas, Felipe procura tirar o melhor dos profissionais que trabalham com ele sem
criar um ambiente repressor. A janela da cozinha do Oro serve de vitrine para o
teatro do chef. Das mesas é possível observar a ele e sua equipe em ação, durante
o jantar. Concentrados, comunicam-se num espírito de orquestra em que cada um
dos músicos tem um papel importante, e Felipe atua como o maestro.
vanguarda: um manifesto de coragem
Somos uma nação que cultua o dualismo nas entrelinhas. País lindo, com gente
que sonha e acredita, ainda mantemos em nosso caráter alguns traumas de povo
colonizado. Temos no Brasil o estranho hábito de valorizar e reconhecer os talentos estrangeiros, mas muitas vezes nos recusamos a acreditar em nossos próprios
talentos e em nosso próprio potencial. Na cozinha não é diferente.
...E Felipe possui as qualidades
que definem o espírito de vanguarda:
o inconformismo, a inovação e a
honestidade de suas propostas.
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Os que visitaram os templos da cozinha de vanguarda ao redor do mundo como
elBulli, Osteria Francescana, Mugaritz, Alinea e Quique Dacosta sabem que a
grande qualidade dos chefs dessas casas, além do óbvio talento para as artes
culinárias, se resume em duas palavras: visão e coragem.
A maior parte desses cozinheiros pensadores foi criticada e mal-entendida,
chegando até mesmo a ser motivo de chacota, e causa polêmicas dentro e fora da
cozinha até hoje. Sem abrir mão de seus princípios e com bravura e determinação
idealista, tais chefs escrevem atualmente seus nomes na história da gastronomia
mundial como autores que inspiram toda uma geração de profissionais.
Desde cedo, ainda durante seu processo de amadurecimento profissional,
inexperiente no uso das técnicas, Felipe já tinha ideias arrojadas. Hoje é um profissional maduro, ainda jovem mas com um portfólio de vivências que diversos
profissionais muito mais velhos não conseguiram acumular.
Vemos agora um jovem chef no início do percurso de um vanguardista talentoso
que abre mão de um caminho cômodo para seguir uma estrada idealista e árdua,
mas verdadeira. E Felipe possui as qualidades que definem o espírito de vanguarda: o inconformismo, a inovação e a honestidade de suas propostas.
Para falar do núcleo do trabalho de um chef de vanguarda, é necessário privilegiar o sonho sobre a razão. Seria possível para Massimo Bottura criar o prato Negro no Negro sem envolver as notas sincopadas de Thelonious Monk como metáfora culinária? E Quique Dacosta teria criado os pratos Bosque Animado e Coração
de Touro sem a inspiração de sua terra valenciana e da coreografia incomparável
do toureiro José María Manzanares?
O chef de vanguarda rompe a barreira da lógica da cozinha, busca a inspiração
nas artes, no pensamento filosófico e no mundo fora dos fogões. Ele trata o menu
como uma narrativa a ser contada, e quer alimentar corpo e alma. É, acima de
tudo, um contador de histórias – ora pequenas histórias, ora histórias épicas.
Porém, para fazer isso, ele necessita de uma audiência que se disponha a “ouvir”
a introdução e embarcar nos capítulos iniciais com a coragem de quem se lança a
uma aventura em um país desconhecido.
A vanguarda necessita de um espírito vanguardista também por parte de quem
prova. Precisa de comensais que vejam além do que está sendo servido, que queiram saber o contexto de cada prato, que tenham curiosidade a respeito de seus
porquês e que busquem emoções para além do alimento.
eloquência, “carioquices” e equilíbrio zen
Felipe é eloquente, culto, metido a cientista e, acima de tudo, apaixonado pelo
que faz. Portador de boas maneiras, autoconfiança de pesquisador estudioso e
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O chef de vanguarda (...) trata o menu como uma
narrativa a ser contada, e quer alimentar corpo e
alma. É, acima de tudo, um contador de histórias.
petiscos, a arquitetura de curvas e linhas sensuais e as paisagens mágicas que
buscam a imortalidade podem ser lidos em seus pratos. Porém, os fragmentos do
Rio de Janeiro, nas composições desse chef, não formam a metrópole exportada
para o mundo e conhecida pela maioria das pessoas. Formam, sim, o Rio cosmopolita de Felipe e soam como uma declaração de amor à cidade da perspectiva de
alguém que a conhece de dentro e de fora, com suas qualidades e seus defeitos.
Praticante assíduo de artes marciais e da meditação à beira-mar, Felipe procura o equilíbrio de várias formas. O jiu-jítsu se transformou em rotina em sua
vida, e a praia é sua religião. Segundo as práticas zen, a criatividade espontânea
necessita do vazio: “Para mim a praia é um templo. É onde eu alcanço minha paz
interior. Os samurais japoneses têm uma expressão zen para esse estado que esvazia a mente: mushin.”
rompendo paradigmas e a busca de novas perspectivas
um jeito bonito de carioca sorridente, entrou recentemente nas casas de todos
os brasileiros com o quadro “O Mago da Cozinha”, no Fantástico, encantando o
público e causando polêmicas.
Quintessencialmente carioca, o chef simplifica a identidade de seu trabalho:
“Minha cozinha reflete o que sou. É um diário de impressões e das emoções que
vivo. Sou um cidadão do mundo, mas antes de tudo sou um menino do Rio.”
O artista Jean-Michel Basquiat disse que não pensava em arte quando trabalhava, mas que pensava e observava simplesmente a vida. É isso que faz Felipe
Bronze. Fragmentando e desconstruindo o Rio de Janeiro e suas emoções em seus
pratos, Felipe faz composições que constroem uma narrativa brasileira de vanguarda como nenhum chef do nosso país conseguiu até hoje.
O Oro poderia localizar-se em Nova York, Londres, Barcelona ou Tóquio, mas
fica, por sorte nossa, no Rio de Janeiro. É uma história entre um chef e sua cidade
natal, uma carta aberta de um jovem que acredita que seu país não é mais a nação
do futuro, mas sim do presente.
O Oro é um restaurante internacional com o selo Made in Brazil que representa
o modo como o nosso país quer ser reconhecido interna e externamente. Isso por
causa de sua alegria, sua cultura, sua qualidade, sua honestidade e seu potencial.
É possível ver, no menu do Oro, o Rio pela ótica de Felipe. As luzes da Cidade
Maravilhosa, as cores extravagantes de uma escola de samba, seus botecos e seus
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Vivemos uma fase na história da gastronomia em que dois movimentos paralelos
caminham em direções opostas. De um lado, os chefs são pressionados diariamente a acompanhar a velocidade frenética da era da internet. De outro, evoca-se a volta às raízes, com o sentimento nostálgico de um tempo perdido em que
supostamente tudo era mais simples, lento e descomplicado. A cozinha de vanguarda, por sua vez, quer romper com a necessidade de um posicionamento, não
seguindo uma dessas estradas, mas observando ambas.
Com ingredientes e uma ideia, o chef vanguardista transforma um prato em um
pensamento e um pensamento em uma reflexão comestível.
Um movimento, um estilo? A vanguarda é mais que uma expressão intelectual
de um visionário. É uma manifestação cultural e o resultado de uma mente em
busca de uma nova dimensão de expressão. Como disse Bottura: “A vanguarda é
saber tudo e esquecer tudo! O impossível não existe na vanguarda!”
A cozinha de Felipe busca sabores claros e leves, e não quer se levar muito a sério. É um estilo que brinca com os sentidos e quer divertir os que comem, tirando-os de sua zona de conforto.
Com Felipe, tudo se inicia com a forma e com a textura. É seu ponto de partida.
A ideia de um novo prato parte de uma memória, de uma sensação adquirida após
um impacto visual. Talvez daí tenha surgido sua decisão de fazer um livro em que
a estética dos pratos domina a narrativa.
Como em uma construção de Niemeyer, que valorizava as curvas e a relação
com o meio ambiente, Felipe traduz a forma em cheiros e sabores.
A música, a arquitetura e as artes permeiam o trabalho de Felipe Bronze. O
expressionismo abstrato de Jackson Pollock, a irreverência e a brasilidade dos
Gêmeos, a exuberância e complexidade dos trabalhos de Beatriz Milhazes, Adria-
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na Varejão e Eduardo Garcia são algumas de suas referências estéticas no mundo
das artes. O chef não presta homenagem aos artistas que admira fazendo pratos inspirados em seus trabalhos. O que faz é absorver a essência de cada um,
traduzindo-a nas mais variadas formas. O impacto estético e a mensagem contida
em uma obra arquitetônica ou de uma instalação de arte poderão ser refletidos
em um prato em forma, cores, jogos de texturas e composições múltiplas. A arte
torna-se parte de seu ser e, sendo sua cozinha uma expressão puramente pessoal,
é incorporada em sua estética autoral.
A cozinha de Felipe busca sabores claros e leves,
e não quer se levar muito a sério. É um estilo que
brinca com os sentidos e quer divertir os que
comem, tirando-os de sua zona de conforto.
Uma explosão de brasilidade com visão cosmopolita. Assim é a cozinha de Felipe, que enaltece os elementos brasileiros sem explorar a identidade da terra sob
a etiqueta de “produto exótico”. Cajus, maracujás, açaís, melancias, jabuticabas,
taperebás, tapiocas e peixes nativos são apresentados no Oro como ingredientes
de alto valor, dignos das grandes mesas. Em combinação com ostras, foie gras,
carnes nobres e outras iguarias, o produto brasileiro assume posição de destaque
por sua qualidade e característica ímpares, e não por seu exotismo tupiniquim.
Cair fez bem a Felipe. Levantar-se sem medo de recomeçar fez bem a ele e a todos
nós que acreditamos que a cozinha nacional pode ser grande interna e externamente. Este é só o início da história do talentoso e inquieto Felipe Bronze, que, agora
fortalecido e experiente, tem tudo para brilhar e continuar sendo um cartão de visita da cozinha de vanguarda brasileira, que o escolheu como protagonista.
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caju amigo compressa da fruta com especiarias
e sorbet de cachaça envelhecida
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mil-folhas de manga creme de pimenta aroeira e chocolate branco
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a evolução da ideia
Massimo Bottura
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o que me interessa na culinária é o modo como as
ideias ganham forma, esculturais em sua natureza
mas socializantes em suas intenções. Como chefs, o
que fazemos é pegar ingredientes caóticos e crus e
transformá-los em ideias ordenadas e comestíveis.
Essa transformação é extraordinária.
Ela busca tornar visíveis e comestíveis as relações
ocultas entre a natureza, a tecnologia e as artes.
Leonardo da Vinci dedicou toda sua vida a esse nobre propósito.
Desde então, os artistas têm sido inspirados por
esse princípio, em especial um conceitualista alemão
chamado Joseph Beuys, que acreditava que a arte poderia literalmente transformar e curar a humanidade.
Seu trabalho não era belo. Ele usava materiais antiestéticos, como banha e feltro. Cinza era a cor predominante em suas obras. Seus objetos eram primitivos,
icônicos e carregados de referências pessoais. Sua
linguagem era revolucionária. Beuys afirmou diversas
vezes: “A arte é a única força revolucionária.”
Um de seus objetos múltiplos mais joviais chama-se Capri Battery, de 1985, uma lâmpada amarela
em um bocal portátil que é “conectado” a um limão.
Beuys o criou em seu último ano de vida, enquanto se
recuperava de uma doença pulmonar na ilha mediterrânea de Capri. A eletricidade parece emanar da fruta, iluminando a lâmpada e gerando uma “descarga”
medicinal para o sistema debilitado do próprio Beuys. Com seu amarelo intenso que alude às paisagens
ensolaradas do sul da Itália, a lâmpada sugere que
a união entre arte, ciência e natureza pode nutrir e
curar uma cultura (ou indivíduo) adoecida com uma
energia quase mágica.
Com essa obra de arte em mente, eu me pergunto: como a imagem de um bosque coberto pela neve
ou uma reflexão sobre um músico de jazz se torna comestível? E um sonho? Qual é o papel da natureza na
cozinha? As artes têm lugar nela? Onde entra a tecnologia nisso tudo?
Essas são as questões que impulsionam minhas
aventuras culinárias. Cada um de nós, chefs, traduz
sua própria narrativa pessoal (aquela combinação de
sentimentos, memórias e emoções) para uma linguagem que chamamos de comida. Cada um de nós trilha um caminho diferente para chegar a esse ponto.
Um prato é a soma de várias partes. É tão individual
quanto nossas impressões digitais. Não pode ser copiado, emprestado ou roubado.
Faço meu o grito de guerra de Beyus: “Nós somos
a Revolução!”
Nós – chefs, artesãos, fazendeiros, sommeliers,
donos de restaurantes – fazemos todos parte de uma
grande revolução culinária. Precisamos garantir que
a comida seja autêntica, típica, emotiva e inspiradora. Ela deve aliar a natureza, a tecnologia e as artes. A
cozinha contemporânea existe para definir, sublimar
e exprimir – não para retroceder. Não podemos voltar
a cozinhar como nossas avós. Não estamos aqui para
servir comida a barrigas famintas, mas sim a mentes
famintas. Nossos pratos são a evolução das nossas
ideias.
Afinal, nós somos aquilo que cozinhamos.
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quiabo sementes caramelizadas e corpo acidulado
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profiteroles queijo do Marajó e licuri caramelizado
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Felipe Bronze - Editora Sextante