Conclusões
Claudio Bertolli Filho
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BERTOLLI FILHO, C. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950 [online]. Rio de
Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. 248p. Antropologia & Saúde collection. ISBN 85-7541-006-7.
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Conclusões
Este livro reflete a trajetória pessoal costurada, de certa maneira, no tecido da
historiografia específica sobre a História Social da Doença e do Doente. Fragmento de
um contexto mais amplo, os temas da tuberculose e do tuberculoso compõem um enredo largo que, contudo, ainda não possui uma literatura suficiente para extraí-lo das
aventuras iniciais.
Em linhas gerais, garante-se que o assunto exigiu uma moldura capaz de enquadrálo em um circuito historiográfico que incorporasse análises sobre a tuberculose como
parte do estudo das moléstias, segundo os pressupostos da perspectiva médica. De
regra, dois encaminhamentos orientam as interpretações sobre a doença também conhecida como Peste Branca.
Em uma ponta do novelo situam-se os estudos técnicos; em outra, as sugestões
de adequação do contexto sócio-histórico à enfermidade e aos seus tributários. Entre
as partes, um universo desconhecido que abriga ‘visões de mundo’, ‘representações’
e ‘imaginários’. Ciência e dramas dão as mãos, teatralizando a sociedade e seus viventes na eterna luta contra a morte.
O percurso geral foi um convite desafiador a uma aventura calcada na intenção
de estudos sobre o doente. Impossível seria, diga-se, qualquer trajeto que aliviasse a
pressuposição da compreensão da doença. Antes de falar do doente, fez-se imperioso
abordar a patologia que, afinal, gera os seus vários ‘pacientes’: os infectados, os especialistas médicos e paramédicos e, no final de contas, a sociedade como um todo.
Metodologicamente, o primeiro problema que se impôs foi o da determinação de
um corpo documental forte o suficiente para sustentar os caminhos a serem percorridos. Pensou-se de início que o horizonte amplíssimo no qual se localizaria o trabalho
seria inevitavelmente composto pela conjugação de vários núcleos.
De fato, seria fantasioso supor um estudo vocacionado, numa primeira parte,
para a abrangência que não convidasse à conjugação de fontes plurais. Não bastaria,
porém, um alinhamento de documentos que se mesclassem a esmo. Visitadas várias
alternativas, de forma natural, os prontuários médicos mostraram-se como o fio condutor que poderia alinhar outros corpos informativos. Delineava-se o caminho que retracei.
Partindo dos prontuários médicos, um cosmo foi aberto. Surpresas ligadas às
vicissitudes da medicina como ‘ciência’, ‘conduta normativa’, ‘espelho do poder’, ‘agente da modernização’ indicavam possibilidades. Desdobrados os desafios, as figuras do
médico e do doente afloravam, exibindo a provocante alternativa do ‘eu’, sujeito que
repartiria com a análise da doença as preocupações de estudos.
Tanto a combinação do texto manuscrito expresso nos prontuários como fragmentos datilografados quanto a composição de um discurso ordenado segundo critérios
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de processos burocratizados como espontaneidades fugidias, tudo convidava à consideração do teor desses documentos como capitão para os demais. Centenas, milhares de
registros clínicos, guardados de forma crítica e ameaçados de imediata extinção fomentaram um sentimento de angústia que premia o estudo da tuberculose sem que se esquecesse do tuberculoso e dos clínicos como personagens de sagas pessoais e coletivas.
Além da evidente ‘revisão historiográfica’ sobre o assunto, tornou-se pertinente a averiguação de textos médicos. Não seria possível percorrer o périplo expresso
nestas páginas sem a exploração – procedida nos limites de um historiador e cientista
social – da literatura médica. Sem ser jurista, não me furtei também à análise da legislação que enlaçava todo o contexto. Em nível público, ficou patente que a tuberculose
serviu como mecanismo de relacionamento entre o Estado e os cidadãos. Doença e
doente tornaram-se um binômio fundamental, dialético, para o duplo objetivo: da explicação do público e do privado.
A literatura – penso na ficção – somou-se aos relatos pessoais, poemas, cartas,
tudo convidando a contemplação da problemática do ‘eu doente’ exposto à inevitável
ação do ‘coletivo’. O Estado, a família, as comunidades próximas ao pectário emblemavam
o ‘externo’ que contorna o doente. O privado impunha-se, concomitantemente, dando
dimensão ao indivíduo como sujeito da doença e, assim, promovia a operação
normatizadora do contexto.
A tuberculose e o tuberculoso, além de agentes da universalidade humana,
adquirem âmbito nacional. Identificado com a cidadania, o doente é, em nosso caso, um
brasileiro que tem seu ‘mal’ afetado pelas orientações que presidem as regras do cotidiano. O trabalho, o eventual seguro social, a família, o aparato médico e paramédico
forçam um alinhavo intenso no cenário da coletividade. Somados esses elementos,
catalisam-se no círculo da res publica.
Pensando na relação doença/doente em abrangência nacional, supondo a inevitável interpenetração do público e do privado, tem-se que aspectos diretamente ligados
à modernização do país afetam o tratamento da tuberculose e do tuberculoso.
Instalados numa rotina do dia-a-dia, a doença e o doente passam pelos mesmos
processos conjunturais que servem de cenário aos casos. Os avanços clínicos, a melhoria
(ou não) dos serviços de atendimento, os hospitais, o controle e a proteção do Estado
sobre a saúde coletiva; tudo somado espelha a geometrização progressiva das relações
entre o Estado e o cidadão. A modernização compõe, assim, ângulos importantes que
em dimensões amplas, inserem o país nos limiares da internacionalidade.
Sem dúvida, também por meio da doença o Estado modernizava seus critérios de
relações com a sociedade. Ainda que os direitos individuais também atuem na correspondência do poder que se estabelece, parece necessário um mecanismo de incentivo
aos ‘eus’ para que o sentido social da doença seja percebido.
De qualquer maneira, a identificação do ‘eu’ tuberculoso é elemento inédito na
equação do poder. Extraindo do governo – ou das autoridades – a responsabilidade
sobre a doença, fazendo com que o sujeito histórico, o ‘paciente’, também adquira
personalidade, tem-se que seria fátuo supor apenas ‘a doença como metáfora’ e o
doente como ‘agente normatizado’. Assim, conclui-se que a doença existe tanto como
‘fato médico’ quanto ‘fato individual’.
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Como ‘fato médico’, a tísica e suas vítimas impunham soluções ‘racionais’ que,
segundo a ‘ideologia’ da clínica e da epidemiologia, instruíram as formas de segregação
e tratamento dos fimatosos. Como ‘fato individual’, a tuberculose agia como elemento
redefinidor da existência, forçando os pronunciamentos pessoais que, feridos pela
solidão, pelos estigmas e pela iminência da morte, oscilavam entre a aceitação do
ordenamento médico-social e a revolta contra o ‘destino’ e a discriminação.
As visões sobre a tuberculose e o tuberculoso, na medida em que se inscrevem
em linhas historiográficas, permite que a História Social da Doença e do Doente seja
vista como uma unidade federativa do conhecimento na qual agregam-se múltiplas
tensões coletivas e individuais.
Caminho com infinitos ramais que se cruzam, se opõem, se complementam, o
estudo das patologias e de suas vítimas defronta-se com sucessivos labirintos
construídos por discursos e por ações que, no final, deixam sempre a impressão da
existência de fios soltos, por mais que se aplique no arremate do novelo, novelo composto por trajetórias de vidas marcadas pelo medo e pelo sofrimento.
Personagens históricos – penso, por exemplo, em Dercy Gonçalves, Adhemar
de Barros, Afonso Arinos de Melo e Franco, Noel Rosa – convivem neste estudo com
seres anônimos. Tuberculosos todos, cidadãos afetados pelas mesmas circunstâncias
nacionais, os fracos do peito atuam como brasileiros que vivenciaram o processo histórico no qual se inscreve a doença – a tuberculose – e o doente – o tuberculoso.
No final da aventura que resultou neste livro, penso na eventualidade de
algum leitor me exigir uma avaliação íntima sobre o que eu aprendi e registrei em
palavras. Se isto um dia acontecer, tomarei emprestado uma afirmação de Albert Camus:
“o que se aprende no meio dos flagelos: há nos homens mais coisas a admirar do que
coisas a desprezar”.
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