Cérebro e a Neurobiologia dos
comportamentos ligados ao uso de
substâncias psicoativas
Alessandro Alves
Aconteceu na última quinta-feira, dia 13 de maio. Dia da libertação dos escravos.
Voltava eu de Botafogo, por volta das 21 horas, em direção à minha casa, em Vargem Pequena,
dentro de um táxi. O telefone celular toca e era o familiar de um paciente internado, ávido por
notícias. Conversa encerrada, familiar atendido, o motorista dirige a mim a primeira frase da
noite (após o “para onde vamos?”, é claro).
__ “ O senhor trabalha com dependência química?”
Adorei. Um motorista interessado no assunto. O que seria? Precisa de ajuda? Conhece alguém
que precisa? Que não tem recursos? Ele próprio? Pois no momento em que eu me empolgava
E estava prestes a recitar minha já tradicional ladainha: “tem atendimento gratuito na Câmara
Comunitária da Barra da Tijuca, telefone 3325-2323, procura Dra. Arlete, fala que foi Dr.
Alessandro que indicou...”, ele me joga um balde de gelo:
__”Pois por mim esses viciados podiam todos morrer...isso é safadeza, falta de caráter!”
Procurei conhecer melhor me taxista e sua raiva. Em torno de 40 anos, portador de diploma de
nível superior, casado e pai de uma filha, morou mais de uma década nos EUA e retornou ao
Brasil há mais de 05 anos. E tem um irmão. Um único irmão.
Esse irmão, sim, contou meu chofer, dependente químico grave que foi internado e tratou-se.
Ficou abstinente (ou limpo, ou sóbrio, como queiram), estudou, tornou-se Conselheiro em
dependência química (ou Terapeuta, ou Consultor, ou Técnico, como queiram). Trabalhou no
mesmo local onde se internou. Casou, teve filhos. E assim viveu por quinze anos. Sim, quinze
anos. Até recair.
Desde então nunca mais se levantou. Foi internado inúmeras vezes, sem sucesso. Perdeu
emprego, a esposa foi embora, ele praticamente não vê mais os filhos. Hoje não trabalha e
vive agarrado ao último cipó que separa esse adicto na ativa da total mendicância: sua mãe.
A narrativa continua com o taxista lembrando, com tom de voz mais ameno, os talentos de seu
irmão. Inúmeros. Bom amigo, prestativo, educado... ”todo mundo gosta dele. Sério, todo
mundo gosta dele. Só que ninguém o agüenta... o senhor entende?”
Entendo. Entendo e por força de meu ofício não me basta entender; preciso explicar. Explicar
quantas vezes for necessário até que o outro entenda. Então começo a descrever como
funciona a doença, seus mecanismos, e...sou fulminado!
_”Olha, Doutor, o senhor desculpe, mas isso não é doença não. Eu respeito, o senhor trabalha
com isso, mas eu acho que é uma falta de vergonha na cara ele ter voltado a usar droga. Já
tinha quinze anos, ele agora usa porque quer..eu tenho raiva do que ele faz com minha
mãe...eu não aceito...eu não falo com ele...ele usa porque quer!”
A fala daquele homem me convidava a combater. A total negação da doença, doença essa da
qual ele tinha raiva sem sequer aceitar sua existência. Sua raiva não era de seu irmão, mas da
doença que roubou de sua família um sujeito que, como ele mesmo disse, “todo mundo
gostava”.
Mudei minha estratégia. Comecei a concordar até onde eu podia, assumindo que o uso de
drogas sim, é uma escolha, mas que a doença não é; evoquei a sabedoria do Dr. Willian
Silkworth, que no livro azul de Alcoólicos Anônimos compara o alcoolismo a uma alergia, mas
ele não me ouvia. E talvez nem pudesse, tamanha era a necessidade daquele homem de falar.
Falava menos de si mesmo e muito de seu irmão.
Já estava na Estrada dos Bandeirantes. Confesso que tive ímpetos de pedir para parar no posto
de gasolina e convidá-lo para um café. Mas já passava das 22 horas, o cansaço me vencia e
dona Danielle advertia-me pelo whatsapp sobre a importância de apressar-me a fim de
encontrar o frango recém saído do forno ainda quentinho. Não convinha contrariar dona
Danielle, como de fato nunca convém.
Perdi. Perdi como não perdem os cardiologistas nem os pediatras. Perdi porque cuido de uma
doença que precisa ainda que sua existência seja comprovada para muitos. Perdi porque o
imaginário popular sobre dependência química é tão fortemente distorcido que quando a
classifico de doença real e grave as pessoas me olham como se eu estivesse falando de um
personagem do filme “O Senhor dos Anéis”. Perdi porque antes de tratar preciso convencer.
E para convencer é preciso conhecer. É por isso que todos os profissionais em dependência
química precisam conhecer essa doença em seu aspecto FÍSICO. Os senhores precisam estar de
fato familiarizados não só com as conseqüências do uso de drogas, mas com sua dinâmica
dentro do cérebro, suas causas e seus mecanismos. Porque no mundo existem outros táxis,
outras vans, ônibus e metrôs. Os senhores estarão lá, e eu lhes desejo melhor sorte, tempo e
habilidade do que eu tive para convencer. E para finalmente...vencer!
Escrito em maio de 2014
•
COMO AS PESSOAS FICAM DEPENDENTES DE DROGAS?
É evidente que dependentes químicos só atingem essa condição após o uso de
drogas. Contudo, o tempo de uso ou o tipo de substância utilizada não os únicos
fatores relevantes para a instalação da síndrome de dependência. Precisamos ser
cautelosos com afirmativas sem embasamento científico, como “maconha é
fraquinha, é natural. Não vicia e não faz mal” ou “se usar crack uma única vez ficará
eternamente dependente e nunca mais se recuperará”. Ambas as frases simbolizam
posturas, até mesmo políticas, de grupos sociais distintos. Mas ambas contém
equívocos do ponto de vista científico.
A síndrome de dependência conta para ser instalada com diversos fatores além do
uso prolongado de substâncias com potencial de abuso, tais como sociais, culturais,
educacionais e comportamentais, além de genéticos.
•
SE É DOENÇA, PORQUE É QUE AINDA NÃO TEM REMÉDIO?
Essa não é a única doença para a qual não se conhece tratamento. E na maioria das
vezes, a falta de um medicamento eficaz tem a ver com pouca compreensão da
doença em si ou das alterações nos locais do corpo onde ela se manifesta.
No nosso caso, há ainda pouca compreensão das alterações bioquímicas que as
substâncias de abuso promovem no cérebro humano, assim como das alterações
cerebrais e das alterações comportamentais.
Isso impede a criação de
medicamentos mais eficazes do que os que já existem.
•
Como uma pessoa passa de usuário para dependente?
O que acontece é uma espécie de “reprogramação” dos circuitos neuronais, em
especial dos que processam:
•
Motivação
•
Comportamentos de recompensa
•
Memória
•
Condicionamento
•
Funcionamento executivo
•
Habituação
•
Controle inibitório
Os fatores genéticos, ambientais, sociais, culturais e educacionais e suas
interações determinarão o curso e a gravidade da dependência.
Os circuitos neuronais envolvidos são citados a seguir:
•
Sistema de recompensa (localizado no nucleus accumbens)
•
Região da motivação (localizado no córtex orbitofrontal)
•
Circuito de memória e aprendizagem (localizado na amígdala e hipocampo)
 Região de controle e planejamento (córtex pré frontal e giro do cíngulo anterior)
Esses quatro circuitos recebem inervação direta dos neurônios dopaminérgicos. Grande
parte das substâncias de abuso atua bloqueando a recaptação de neurotransmissores como
a dopamina, noradrenalina e serotonina.
GENÉTICA - O RECEPTOR D2
O receptor D2 é codificado por um gene cujo locus está situado no braço longo do
cromossomo 11, entre as posições q22 e q23. Esse gene apresenta quatro variantes ou
alelos, que são: A1, A2, A3 e A4.
A3 e A4 são extremamente raros. Os alelos A2 e A1 estão presentes em 25% e 75% da
população, respectivamente. O alelo A1 é responsável, em alguma fase da vida, via de regra
na infância ou na adolescência, pela redução do número de receptores D2 e,
conseqüentemente, parece estar associado com os distúrbios compulsivos e impulsivos da
então chamada:
Síndrome de Deficiência da Recompensa (SDR).
A SDR compreende, além de um estado de constante ansiedade, as vezes acompanhado de
depressão, uma ampla gama de distúrbios compulsivos e impulsivos.
COMPULSIVOS
• - Uso e abuso de substâncias químicas que parecem induzir ao aumento da liberação de
dopamina para o sistema límbico: álcool, cocaína, cafeína, nicotina (tabagismo inveterado)
e carboidratos (obesidade).
• - Prática obsessiva de jogos de azar.
Os pesquisadores do assunto admitem que o risco e a expectativa envolvidos nessa prática
geram nos obcecados um estado de euforia comparável aquele sentido por um dependente
químico após a inalação de cocaína.
IMPULSIVOS
• - Hiperatividade
• - Déficit da atenção(Observado principalmente entre meninos)
Além disso, a Síndrome de Deficiência da Recompensa parece também associada a inúmeros
casos de :
• - Comportamento agressivo.
• - Personalidade anti-social.
• - Comportamentos sexuais aberrantes ou bizarros.
Bibliografia consultada:
•
Dependência Química – Alessandra Diehl
•
Síndromes Silenciosas – John J. Ratey
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