Tzvetan Todorov - -Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012, 215 p.
Antonio Paim
Ficamos sabendo, pelo livro de Tzvetan Todorov --Os inimigos íntimos da democracia,
traduzido ao português em 2012-- que o principal desses inimigos corresponde aos Estados
Unidos. Para que a proposição tivesse algum sentido, o autor teria que haver precedido essa
afirmativa do que efetivamente entende por democracia. Pela razão muito simples de que os
Estados Unidos construíram um destacado modelo dessa forma de governo. Ao longo de
sua existência, nunca experimentaram golpes de Estado nem censura à imprensa. O sistema
eleitoral ali vigente tem comprovado a sua capacidade de apreender o sentimento da
maioria. Os dois maiores partidos carreiam normalmente até 99% dos votos. A abstenção
eleitoral é amplamente estudada. A renovação do Parlamento dá-se a cada dois anos, sendo
precedida das chamadas “eleições primárias”, o mais expressivo exemplo de participação
do eleitorado no processo.
O argumento em favor da tese seria a guerra do Iraque, que apresenta como manifestação
de messianismo. Para tanto avança uma conceituação sui generis desse fenômeno.
Discutiu-se muito, durante a existência da União Soviética, se a disseminação do marxismo
comprovaria tratar-se de uma variante do messianismo. O entendimento que se tem do que
seja corresponde à doutrina de Joaquim de Fiori, segundo a qual a história do Ocidente
culminaria com uma terceira idade de paz e prosperidade. Teria inspirado ao hegelianismo.
Sua característica distintiva consiste em que se manifesta num culto afeiçoado ao que se
devota às religiões. Na Rússia soviética registravam-se traços desse comportamento. Mas
expressão acabada do fenômeno seria a Teologia da Libertação, na medida em que
transforma a vulgata marxista em objeto de culto.
Todorov pretende ser original e o define como sendo proveniente do “pelagianismo” -negação de que o mal teria proveniência humana--, combatido por Santo Agostinho. No
fundo, o que indica essa opção é que, tendo formado seu espírito na Bulgária, onde nasceu
em 1939, exilando-se na França depois da implantação do comunismo e especializando-se
em lingüística, não tem um entendimento muito claro do que seria a cultura ocidental. O
livro fornece abundantes exemplos. Antes de apresentá-los vamos nos deter brevemente na
atribuição de outras intenções à guerra no Iraque que não as conhecidas e discutidas.
Essa preocupação advém de que não atribui qualquer importância ao 11 de setembro, o que
impõe a remissão a esse fato. Uma organização muçulmana, Al Qaeda, promoveu um
atentado terrorista contra os três mais expressivos símbolos da civilização americana: as
Torres Gêmeas de Nova York (expressão do capitalismo); o Pentágono (do seu poderia
militar) e a Casa Branca (o governo). Utilizou para tanto um método bárbaro: o sequestro
de aviões de passageiros para transformá-los em arma de execução do pretendido atentado,
matando seus ocupantes. Afora estes, os que trabalhavam nas mencionadas torres,
fracassando o ataque aos dois outros alvos.
Pareceu à opinião pública --não só norte-americana-- que a referida organização deveria
contar com o apoio de governos muçulmanos. Dentre estes, o mais provável é que se
tratasse do Iraque. Embora, no passado, os Estados Unidos o tivessem apoiado --quando
guerreava o Irã--, tornou-se inimigo encarniçado em vista de terem obstado a sua tentativa
de ocupação do Kuwait. Por razões que até hoje não foram esclarecidas, a França recusou
peremptoriamente esse entendimento e empenhou-se em conseguir a adesão do Conselho
de Segurança da ONU com o propósito de obsta-la. Não fora isto e não haveria contestação
à iniciativa norte-americana, quando se esperava todo o Ocidente lhe manifestasse
solidariedade em face da brutalidade do 11 de setembro.
Nada disto foi levado em conta pelo autor. Não perdoa o fato de que os Estados Unidos
hajam saído vitoriosos daquela guerra e haja imposto, ao Iraque, alternância no poder, até
hoje recusada por facções muçulmanas dissidentes da ortodoxia e que não admitem
qualquer espécie de convivência com quem considere “infiéis”, para usar sua linguagem.
Só viu na transitória ocupação do Iraque, pelos americanos, a prática da tortura efetivada
num quartel, que descreve atenta e minuciosamente, sem referir que a fonte a que recorreu
terá sido precisamente as instâncias judiciais norte-americanas.
Como disse, o livro de Todorov comprova que não se deu conta daquilo a que corresponde
a cultura ocidental. Numa outra tese esdrúxula de que o liberalismo é equivalente ao
totalitarismo, nas citações que faz de Benjamin Constant vê-se que não tem a menor noção
daquilo a que correspondeu o chamado processo de democratização da idéia liberal. O
mérito de Constant consiste em haver procedido a uma primeira generalização da
experiência inglesa de governo representativo, que, na época, nada tinha de democrático.
Sua contribuição imorredoura seria a definição da representação política como sendo de
interesses, cabendo-lhe organizar e afunila-los, substituindo a luta armada pela negociação.
Vejamos um exemplo da idéia que se faz do governo democrático representativo:
“Messianismo político e neoliberalismo têm relação, à primeira vista, com duas tendências
opostas: o primeiro comprova a capacidade de intervenção do Estado; o segundo, o seu
progressivo apagamento. É como se a força de um viesse compensar, ou dissimular, a
fraqueza do outro: à marcha triunfal dos exércitos no estrangeiro opõe-se a impotência do
Estado em seu próprio território. Tem-se a impressão de que para o presidente americano
Obama é bem mais fácil bombardear a Líbia do que fazer aceitar uma melhoria do sistema
de seguridade social em seu país.” (ed. cit., pág. 148)
Todorov expressa ódio visceral ao capitalismo e ao progresso técnico. Os desastres
marítimos e aéreos mostram, segundo sua opinião, que representam não apenas um bem,
sendo um mal expressivo. Na queda dos aviões não há sobreviventes. O desastre de
Fukushina comprovaria que a energia nuclear é uma terrível ameaça. Pelo visto não sabe
que deve-se justamente a esse tipo de usina que a França tem hoje uma posição hegemônica
no fornecimento de energia à Europa. A China está construindo 27 novas usinas nucleares;
a Europa, 11; a Índia, 5 e ainda em outros países, totalizando 64.
Veja-se o que escreve a esse propósito: “São incontáveis as áreas em que as inovações
tecnológicas se revelam ao mesmo tempo promissoras e ameaçadoras.” Com a intervenção
no interior da estrutura das plantas e no ambiente, obtêm-se organismo geneticamente
modificados que “subvertem o equilíbrio as espécies, resultado de adaptações que levaram
milênios, corre-se o risco de provocar novas catástrofes”. Continuando, veja-se este primor:
“Equipamentos que permanecem externos ao organismo humano nem por isto agem menos
sobre ele: os telefones celulares provocam, ao que parece, tumores no cérebro; a interação
prolongada com computadores influi seguramente sobre o comportamento social de seus
usuários...” (pág. 119)
Eis uma das suas conclusões: “A democracia está doente de seu descomedimento: a
liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de
promover o progresso se converte em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito
deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um
processo de desumanização. Em certos dias, esse processo me parece irreversível.” (pág.
197)
Todorov lamenta que a liderança européia haja investido contra o multiculturalismo, diante
da participação de muçulmanos ali radicados --e que tiveram acesso aos mecanismos
(notadamente educacionais) de ascensão social-- hajam participado de bárbaros atentados,
como aqueles que tiveram lugar no metrô de Londres. Lembro a esse propósito que aquela
decisão foi precedida de levantamentos e investigações acadêmicas como a de que tive
conhecimento e refiro. Tenho em vista o livro Islão na Europa (Lisboa, 2006), coordenado
pela profa. Maria do Céu Pinto, da Universidade do Minho, que reúne uma pesquisa
exaustiva sobre as comunidades muçulmanas na Europa. A conclusão básica é a de que o
multiculturalismo --isto é, a não exigência de adesão integral aos valores ocidentais--,
somente produziu “realidades guetizantes fechadas sobre si mesmas.”
No corpo do livro, Todorov reconhece que formou seu espírito em seu país de origem, a
Bulgária. Como não o faz de modo claro, lembro aqui que a Bulgária fez parte do mundo
islâmico --incorporada ao Império Otomano entre 1396 e 1908--, seguindo-se governos
autoritários e militaristas, a ponto de que veio a ser conhecida como a “Prússia Balcânica”,
tendo participado das duas guerras mundiais ao lado dos alemães. Entre essas guerras
viveu sob uma ditadura. Tornou-se uma república comunista em 1946. Reconhecidamente,
além de não fazer parte da cultura ocidental não conheceu nem de longe o que seria a
democracia.
Assim, a vivência francesa, por si só, não o terá ajudado a compreender os mecanismos de
funcionamento do sistema democrático representativo –ainda que inequivocamente
existentes. Quanto ao capitalismo, a França não constitui certamente um bom exemplo. O
certo é que dá provas de haver assimilado de modo integral o anti-americanismo latente na
cultura francesa.
Tzvetan Todorov nasceu em Sofia, capital da
Bulgária, em 1939. Em 1963 emigrou para a
França onde se ligou ao grupo de
estruturalistas dedicado ao estudo da
lingüística.
Antonio Paim
Concluiu sua formação acadêmica na antiga Universidade do
Brasil, atual UFRJ, iniciando carreira acadêmica na década de
sessenta, na então denominada Faculdade Nacional de
Filosofia, tendo pertencido igualmente a outras universidades.
Aposentou-se em 1989, como professor titular e livre docente.
Desde então, integra a assessoria do Instituto Tancredo Neves,
que passou a denominar-se Fundação Liberdade e Cidadania. É
autor de diversas obras relacionadas à filosofia geral, à filosofia
brasileira e à filosofia política.
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