20-03-2009 | Ípsilon
Ainda não vimos nada do que “Tambores na Noite” é capaz e já vimos a
parte que nos interessa: é antes de as
cortinas se abrirem, quando olhamos
para cima e lemos “África” sem conseguirmos deixar de pensar que esse
é o sítio onde começa - e sobretudo
onde acaba - toda uma aventura portuguesa.
Também é o sítio onde começa, mas
não onde acaba, a peça que Bertolt
Brecht escreveu quando os anos 20
ainda mal se tinham instalado na
Europa com toda a tralha da ressaca
do primeiro pós-guerra e da revolução
bolchevique, e que é o primeiro Brecht da vida do Teatro Nacional S. João
(TNSJ), a partir de hoje. Voltamos a
olhar para cima, e a ler “África”, e
então é como se abríssemos uma
porta dos fundos no texto e passássemos a participar numa história que,
não o sendo, também é nossa (como
Angola, noutros tempos).
Escrita em cima do cadáver da
revolução espartaquista alemã de
1918-1919, numa altura em que Brecht estava longe de fixar os termos
do seu teatro didáctico e de o pôr ao
serviço do comunismo internacional,
“Tambores na Noite” não tem nada
a ver connosco e no entanto há um
homem que passa anos desaparecido
e que quando regressa já não tem
lugar. Não vimos isto em qualquer
lado: vimos isto num texto fundador
do nosso teatro (e da própria ideia de
um teatro nacional), o “Frei Luís de
Sousa” de Almeida Garrett, onde também havia um homem que respondia
“ninguém” quando lhe perguntavam
quem és tu.
Aqui esse homem é Andreas Kragler
(Paulo Freixinho), que traz areia nas
botas e parte os copos quando bebe,
porque não há maneira de estar aqui
sem estragar a mesa posta para um
jantar onde não há lugar para ele, e a
festa de casamento de uma mulher que
já foi dele (Anna Balicke, que aqui é
Sara Carinhas), mas que entretanto se
deitou na cama com outro (Friedrich
Murk, que aqui é Pedro Almendra),
enquanto ele se deitava no esterco.
Nuno Carinhas, que de certa
maneira também está de regresso a
casa, mas desta vez para ficar - é o
novo director artístico do TNSJ, her-
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País: Portugal
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Área: 29,10 x 38,10 cm²
Âmbito: Informação Geral
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“O tema do
regressado é-me
muito caro,
e provavelmente
é mesmo o tema que
mais me interessa
hoje em dia”
Nuno Carinhas
dando um teatro que ele próprio ajudou a construir como encenador praticamente residente e convidado regularíssimo de Ricardo Pais -, tem a
cabeça nele. “O tema do regressado
é-me muito caro, e provavelmente é
mesmo o tema que mais me interessa
hoje em dia. Os últimos anos produziram uma carrada de filmografia sobre
a guerra do Iraque e os seus regressados, mas em Portugal é um tema que
não foi inscrito depois do fim da guerra
colonial e do fim da censura, apesar
de estar no teatro desde o ‘Frei Luís
de Sousa’ - e é um tema brutal”, diz ao
Ípsilon no final de mais um ensaio, a
uma semana da estreia.
É brutal visto assim de frente, como
Brecht quer que o vejamos - sem simpatizar demasiado com Kragler, que
tinha tudo para ser o nosso herói e afinal é um pequeno-burguês igual aos
outros, muito rápido a meter o socialismo na gaveta quando descobre que
ainda tem “uma camisa limpa” (e uma
rapariga, mesmo que grávida de um
homem que veio “de baixo”, “um jeito
aqui e um jeito ali” como a Alemanha,
“nem sempre de luvas nas mãos”).
FOTOGRAFIAS DE NELSON GARRIDO
Teatro
ID: 24291277
Tiragem: 58094
Esta nossa noite
que nunca mais
“Tambores na Noite”, de Bertolt Brecht, é a primeira encenação de Nuno Carinhas desde que
a tratá-lo por director artístico. Mas tem a cabeça noutro sítio: esse sítio onde alguém pergunta
responde, trazendo toda uma História de Portugal para dentro disto, “ninguém”.
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20-03-2009 | Ípsilon
Nuno Carinhas olha para ele “sem
fazer a apologia de nada”: “Nem a
apologia do Kragler como herói, nem
a apologia do Kragler como antiherói. O Kragler é uma contradição,
e se optarmos por simpatizar, ou por
antipatizar, com ele estamos de
alguma maneira a privar-nos dessa
contradição.”
Foi o que Brecht fez, quando voltou
a olhar para o que tinha escrito no início dos anos 20 e encontrou “este falso
proletário, revolucionário fatal que
sabotou a revolução, aquele que
Lenine combateu mais do que combateu os burgueses assumidos (...), um
revolucionário que graças à compaixão voltou a possuir bens, que choramingou, fez barulho e regressou a casa
depois de obter o que lhe faltava”, e
fez mal. “O Brecht era muito vitalista
e, agora que penso nisso, acho que
provavelmente o Kragler estava mais
próximo dele do que ele quereria
admitir nas suas memórias da recepção da peça. Ao longo da vida, o Brecht
sempre enfrentou as coisas mas nunca
se expôs de forma suicidária a
nenhuma causa; procurou sempre não
se fazer mal a ele próprio e, no fundo,
o Kragler é um pouco assim”, continua
o encenador.
Fim da história
Voltamos ao que interessa - à parte em
que podíamos ser nós, ali, acabados
de chegar da aventura ultramarina,
ou da guerra colonial, e sem uma
cadeira vazia à nossa espera na sala
de jantar. “Há aqui uma enorme
melancolia que vem dos desejos
desencontrados das personagens e
que tentei agarrar na canção final do
Tom Waits [‘Innocent when you
dream’], que me parece o mais brechtiano dos cantores, o mais narrador
de histórias”, explica Carinhas.
O mundo deles - o mundo de Kragler, mas também o dos revolucionários com quem ele passa esta noite em
que a lua ficou vermelha - está velho
de mais para tempos melhores, como
de repente se diz numa frase que
parece ter sido escrita para o fim da
história, essa coisa que nos aconteceu
nos anos 90, e não para o tempo em
que essa história estava só a começar?
“Isso é alguém a arranjar uma metáfora para o mundo que no fundo é
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Pág: 25
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Área: 12,24 x 38,10 cm²
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uma metáfora de si próprio. O Kragler
está nesse estado: só optou pela revolução porque já não tem nada a perder
e isso empurra-o para a frente dos
tiros. É muito interessante como esta
noite corresponde a arcos de vida: é
a noite em que a Anne envelhece, em
que o Kragler rejuvenesce, há aqui
cruzamentos de uma universalidade
terrivelmente desorganizada e ao
mesmo tempo terrivelmente cativante”, diz Carinhas.
Esse caos, muito típico das peças de
juventude de Bertolt Brecht, também
faz parte da nota de intenções desta
montagem com que o TNSJ se alimenta
finalmente da carne de um dos dramaturgos mais iconográficos do século
XX (sem que isso, sublinha o novo
director artístico, seja minimamente
indicativo daquilo que ele acha “que
o TNSJ deve ser”): “Com o ‘Baal’ e o
‘Na Selva das Cidades’, esta é a peça
do Brecht que mais me interessa. Sempre tive uma ligação muito forte com
o Brecht poeta e estas peças estão mais
próximas desse Brecht do que do Brecht dramaturgo - embora já estejam
minadas pelo que ele vai fazer a seguir,
não são ainda teatro didáctico.”
Nuno Carinhas admira “a imperfeição, a estruturação irregular e a mistura de géneros” de “Tambores na
Noite” - uma impureza que é tão técnica como ideológica, nesses anos em
que Brecht era ainda um anarquista e
não estava “ao serviço de ninguém”.
Colá-lo ao comunismo, aliás, é uma
maneira “simplista” de o arrumar no
século XX: “O Brecht deixou sempre
muitas coisas em aberto: nunca foi
militante com cartão, tinha a sua conta
na Suíça. Não sei se ele foi ortodoxo
de alguma coisa a não ser da sua obra
ou da sua própria vida.”
Em Berlim, a lua continua vermelha
e ainda ouvimos os tambores, mas os
cestos de munições estão vazios. Já
sabemos onde se meteu o exército e
amanhã a gritaria já terá acabado.
Nada disto vai durar muito e, no
entanto, é como se esta noite interminável com mortos, feridos e recémnascidos tivesse vindo para ficar.
Não sabemos exactamente o que se
sente quando se está lá - mas sabemos
o que se sente na manhã seguinte.
acaba
o Teatro Nacional S. João passou
a Andreas Kragler quem és tu e ele
Inês Nadais
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Esta nossa noite que nunca mais acaba