AULA
DE ANATOMIA
ARTES E AFINS
P24 E 25
TRANSMISSÃO
ORAL
P21
BABILÓNIA
P33
JANELA
DE EXPRESSÃO
P15
ESTÓRIAS CLÍNICAS
P39
TEMA
P5
EDITORIAL
P3
PEREGRINAÇÃO
P45
DÉFICES COGNITIVOS
MARCADOS.
2
desumbiga
des
umb
iga
#17
Editorial
FICHA TÉCNICA
REDACÇÃO*
[email protected]
[email protected]
[email protected]
[email protected]
arman
alexandre Freitas
ana Teresa Prata
antónio Caetano
bernardo Moura
bianca Branco
carlos Pereira
david Moreira
daniela Alves
dré Bemol
francisco Vale
luísa Lopes
maria Emília Pereira
mário Mi-Siccarosi
salomé Silva
tiago Miranda
vítor Magno
[email protected]
[email protected]
[email protected]
CAPA E CONTRA-CAPA
bernardo Moura
salomé Silva
GRAFISMO
antónio Caetano
samuel Fialho
[Digital Impulse]
[email protected]
TIRAGEM
400 exemplares
IMPRESSÃO
editorial aefml
CONTACTOS
revista desumbiga
associação de estudantes da faculdade de medicina de
lisboa, hospital santa maria, piso 01
avenida prof. egas moniz
1649-035, lisboa
[email protected]
[email protected]
* O conteúdo dos textos publicados é da exclusiva responsabilidade dos seus autores
3
desumbiga
- Bernardo, a Emília disse que era boa ideia sermos nós a escrever o
editorial. Eu não estou assim tão certa disso, mas parece que somos os
mais velhos.
- Qual é que é o tema da revista Salomé?
- Delirium.
- Delirum? A girl’s band portuguesa?
- Não, Delirium como estado de perturbação da consciência, algo
semelhante ao estado que experienciaste no último jantar da malta.
- Ah claro, algo semelhante ao próprio des1biga.
- Ou semelhante à ideia de serem duas pessoas a escrever um editorial.
- Acabei de chegar de Erasmus, tens que me pôr a par dos textos
que vão constar da revista.
- Então… Para além dos textos que dizem respeito ao tema, temos
uma entrevista a um médico fora do convencional, duas páginas true
colours, um novo projecto para expor trabalhos artísticos na faculdade
e claro todas as secções habituais.
- Uma exposição do Desumbiga? Estou a ver que este nosso pequeno delírio colectivo está a ganhar contornos palpáveis!
- Esperemos que seja um delírio contagiante…
- Já entrevistaram um médico? Não era mais adequado ir falar lá
com as gajas da girl’s band? Eu delirava. Mas agora é pra fazer um editorial, né? Que achas duns cogumelos mágicos para a inspiração?
- Concordo plenamente, afinal para a despedida tem que ser tudo
em grande.
- Pensando bem, acho que o Harrison já tem um teor alucinogénico
bem forte. Fico-me por aí.
- Então bora lá desumbigar e respirar um pouco de ar livre e real.
- Ok. Editorial, vamos a isso.
bERNARDO mOURA
salomÉ SILVA
4
desumbiga
tema
antony gormley - Firmament
excerto nº 410 da colectânea desconhecida e inêdita uVidas conturbadas, mentes BRILHANTES
o delirium oculto u pá cenas tipo nada a ver u O DELIRIUM DO TEMPO u POEMA DELIRANTE u DELIRIUM
5
desumbiga
tema
Excerto nº 410
da colectânea desconhecida e inédita
“666 (re)flexões no soalho do rés do chão duma mente acabada (de chegar) ou os incríveis 111
pensamentos por cada um desta meia dúzia de anos”
P
orque é que odeio escuteiros? Não sei!
Em geral odeio fardas... ou seja bombeiros, polícia, tropa, militares, PSP,
membros de empresas de segurança
como a SECURITAS, PROSEGUR, GRUPO 8, etc, mas também odeio bombeiros, GNR,
corpo de intervenção, etc... não sei se é por
desrespeitar as autoridades ou por ser quase
anarquista... não sei! Talvez seja apenas porque
muita desta gente usa a farda sem saber muito
bem porquê! Usam-na como se fossem muito
importantes! Nasce-lhes uma arrogância, uma
impertinência inacreditável, inadmissível! Reparem naquelas coisas verdes que passam multas
ilegais nas ruas de lisboa aos carros em cima
do passeio... aquele lodo verde que tem umas
letras a dizer EMEL... essa é a mais nojenta da
escumalha de farda... ah como gosto da PJ...
essa polícia judiciária... inteligente, eficiente,
discreta, traiçoeira, elegante mas ainda assim
mais honesta que a PSP, que mais não faz porque o magistrado não deixa, o político não quer
e o povo não merece... essa é a única polícia
6
desumbiga
que tolero, talvez por não usar farda (não dou
por eles quando nos cruzamos na rua)!.... a
arrogância de um polícia ou de um bombeiro
fardado só é comparável à sua ignorância e à
sua preguiça!.... e mais não escrevo senão fazia
um livro só disto e isto tem mais piada escrito
assim de rajada sem pontuação sem nada!
Escrito por Carlos Pereira algures em Lisboa,
Portugal (feze europeia, terceiro calhau a contar
do sol, sistema solar, estrada de santiago, universo) no início do quinto mês no ano da graça
de vosso senhor jesus cristo de dois mil e cinco.
carlos pereira
tema
O DELIRIUM OCULTO
D
e uma demência
líquida, a condição de existentes
aplaude-nos.
Quantas percepções nos inauguram a mente
e, ainda assim, talvez a lucidez
seja escassa.
Este não é o mundo dos
lúcidos; mas dos que o tentam
ser. Sob leis factuais e possíveis, sob as pesadas arcadas
dos conceitos sociais, sob a
imobilidade das carcaças das
construções psicológicas, sob
a mendicidade inerente à
satisfação das emoções. Uma
lucidez forçadamente conservada, similar a um dogma que
teima congruir ileso, mesmo em fricção com cenários
agudos. Tudo justificado por
esse ganho maior: o estatuto
lúcido, forjado por um conjunto
de idealizações insatisfatórias
e incompletas. Nem sabemos
onde em nós nasceram, ou
se as não temos, onde em
nós nasceriam. Mas são elas
que nos rasam jusantes aos
sentidos, aos pensamentos e
às acções.
A nossa tentativa de lucidez
é menos do que aquilo que so7
desumbiga
mos. Pois o impacto do âmago
do ser, é apenas superfície,
na poética dos demais. Como
pode, a metasubstância da
profundidade do ser, metamorfosear-se no seu trajecto de tal
modo, que ao alcançar o outro
é uma aragem ré?
A crítica, mimetizada pela
concepção de lucidez que
herdámos, não nos liberta. É
a criação que constitui o acto
final e máximo deferido à
humanidade. O único que nos
desenlaça as pernas dos meandros ásperos da terra e nos catapulta de um só rasgo para os
tectos das constelações. Tudo
o resto é sobrevivência, uma
luz baça e insegura na bucólica
noite dos nossos sonhos.
Tudo o que não somos,
integra a remota beleza da
inconsciência que é o pecado
da mente. Devido ao objecto se
encontrar oculto, atribuímos-lhe a inexistência. Nesta matéria somos nascituros cegos à
procura de formas definíveis.
É como as florestas suspensas no ar, oníricas na sua
materialização. Se as víssemos
por dentro dos troncos e das
folhas, não restariam dúvidas
que a manifestação dos entes
é um conhecimento que parte
de um lugar específico. Seria
a dendrolatria do intrínseco e
da plenitude. Só que encontrá-la articula o corpo e a mente
numa frenética suspensão
de sentidos e emoções, para
evadi-lo de sonhos. Pois se não
é o sonho ou a paixão, somos
patacoadas ilógicas da criação.
A lucidez plagiada é um
valor que sustenta um tempo
presente eterno. A germinação
do futuro até pode ser concebida em meios brandos, mas a
sua derradeira exteriorização é
a loucura. Existe aqui um radicalismo, pois o novo é sempre
um afrontamento e justificá-lo
implica o sangue de quem o
vislumbra.
Que se passe ileso pela
vida… Mas por nós mesmos?!
Isso constitui um rastejo de
inocuidade, uma sucessão executiva, triste e monótona, de
gestos e frases pré herdados.
A dança até ao suor e a música ritmada e os gritos agudos
e o calor da labareda e a crença num sincretismo da natureza e a mística da inconsciência
e o caldo das ervas e por fim o
delírio orgástico.
O conhecimento não se
obteve da ausência de conhecimento, mas da alucinação
necessária para expulsá-lo do
seu trono oculto.
O delirium é a lucidez
oculta.
O amor é o delirium oculto.
E o oculto, o que será revelado.
Maria Emília Pereira
[email protected]
tema
VIDAS CONTurBAdas,
JANIS JOPLIN
Pioneira na indústria rock dominada por homens.
Considerada uma das melhores 100 artistas de sempre pela Rolling Stone.
Na universidade escreveram sobre ela: atreve-se a ser diferente.
Considerada uma artista poderosa mas profundamente vulnerável.
Sofreu de obesidade na adolescência e era chamada de porco e freak.
Morreu aos 27 anos por overdose.
Mãe: ela era infeliz e insatisfeita.
Própria: eu não me encaixava, lia, pintava e não odiava.
FERNANDO PESSOA
Considerado um dos maiores poetas portugueses e do mundo, foi também empresário, editor,
crítico literário, activista político, tradutor, jornalista, inventor e publicitário.
Auto-intitulava-se “drama em gente”; contam-se 72 nomes entre pseudónimos e heterónimos.
Chamaram-no de “enigma em pessoa”, reflectia sobre a verdade, existência e identidade.
O seu início de vida foi marcado pelo falecimento do pai e do irmão, tendo escrito o primeiro
poema com 7 anos. Acaba por isolar-se perante a competição pela atenção da mãe por parte do
padrasto e filhos do 2º casamento. Viveu em Durban, onde recebeu educação inglesa, destacando-se sempre.
Interessava-se pelo ocultismo, misticismo e astrologia.
Redigiu cartas a psiquiatras auto-diagnosticando-se como histero-neurasténico, considerava-se
internamente instável, embora aparentasse ser controlado. Este desdobramento de personalidades, a tendência para a despersonalização e simulação, entre outros aspectos, apontam para
esquizofrenia.
Faleceu aos 47 anos com cirrose hepática alcoólica
É
com bastante frequência que
verifico que grandes génios
da humanidade, mais ou menos conhecidos, eram oriundos de famílias disfuncionais,
violentas, demasiado rígidas ou não
tinham família de todo. Cresceram sem
estrutura, sem suporte, com uma inteligência que transbordava as regras da
suposta normalidade. Não compreendidos, nunca desenvolveram sentimento
de pertença aos que os rodeavam, nem
sequer à sua era de existência.
Desde cedo, era significativo o tempo que despendiam sozinhos. Sempre
tiveram dificuldade em desenvolver
amizades e, dos amigos que tinham,
os que realmente interessavam e eram
interessados, nunca ultrapassaram
os dedos de uma mão. Na juventude,
dominados pela timidez e insegurança,
mas com vontade de experienciar tudo
o que já tinham lido há muito tempo
em livros, usavam drogas, álcool ou
ambos para atingirem um estado que
de alguma forma, real ou subjectiva,
os auxiliava no relacionamento com
os outros ou, pelo menos, a suportar o
tempo em que estavam sozinhos, acabando invariavelmente dependentes.
Alguns não tinham relacionamentos
8
desumbiga
amorosos de todo. Para outros os relacionamentos fortuitos eram frequentes,
bem como os múltiplos, mas sempre
com um sentimento de vazio presente, pois a busca idealista pelo amor
intenso e completo só mais tarde vêm
a entender como impossível, devido à
ausência do componente principal, o
amor próprio.
As mudanças de emprego, local
de habitação e até mesmo de estilo
de vida são igualmente frequentes,
como se o único sentimento resultante
do que realizavam fosse a insaciável
insatisfação.
A família nunca esteve com eles;
os amigos, mais cedo ou mais tarde,
desistem de os tentar moldar à sua
imagem, porque finalmente percebem
que seria impossível; as drogas e o
álcool produzem, em última análise,
ressaca; o amor de uma vida inteira
nunca apareceu, nem o local ou tempo
ideais para criar raízes.
Vem a doença prolongada e, muito
comummente, o suicídio.
O que torna estas histórias verdadeiramente extraordinárias é o facto
de, no meio deste emaranhado de vida,
terem surgido descobertas essenciais,
teorias complexas, quadros de beleza
infinita, músicas intemporais, textos e
poemas com sentimentos universais,
que foram, nada mais nada menos,
delírios, fugas da realidade, que nunca
teriam sido alcançados no seio de uma
história de vida banal, que pela pobreza
de desafios, não impele à mudança,
criatividade ou flexibilidade.
No seu tempo foram muitas vezes considerados loucos, com vidas
consequentemente conturbadas. Eu
vejo génios com mentes fascinantes
das quais podemos tirar uma grande
aprendizagem: estas pessoas no meio
de desilusões, fraquezas, falhas, frustrações vividas e observadas, conseguiram através da sua obra ir além do que
a realidade comportava.
Poderiam ter sido mais uns quantos
infelizes e conformados, mas, porque
ousaram delirar, atingiram a imortalidade.
Será caso para dizer… O que uns
têm de louco, outros têm de pouco.
SALOMÉ SILVA
[email protected]
tema
VINCENT VAN GOGH
Pintor pós-impressionista, considerado um dos maiores de todos os tempos.
Pioneiro na ligação entre as tendências impressionistas e aspirações modernistas.
A sua forma de pintar acompanhava as suas mudanças psicológicas.
Falhou em muitos dos aspectos considerados importantes na sua época, não constituiu família, não financiava a sua própria sobrevivência, não mantinha contactos sociais.
Preferia comprar materiais de pintura em vez de comida. Podia pintar um quadro por dia.
Pensa-se hoje que tinha doença bipolar.
Suicidou-se aos 37 anos.
A sua fama foi atingida postumamente.
JIM MORRISON
Vocalista dos Doors, poeta, actor, realizador, inspiração para muitos músicos rock.
Considerado pela Rolling Stone um dos melhores 100 cantores de sempre.
Coeficiente de Inteligência de 149. Estudava com facilidade filosofia, literatura e psicologia.
Infância nómada típica de famílias militares.
Pais utilizaram a tradição militar na sua educação.
Pai escreveu: devias desistir de qualquer ideia de cantar porque considero que tens uma
completa ausência de talento.
Levou uma vida boémia com numerosos relacionamentos.
Morreu aos 27 anos por overdose. Na sua campa consta a inscrição: fiel ao seu próprio espírito.
ISAAC NEWTON
Maior matemático do século XVII, precursor do Iluminismo, astrónomo, alquimista, filósofo e
teólogo.
Responsável por muitas descobertas, destacam-se a lei gravitacional universal e as três leis de
Newton, fundamentos da mecânica clássica.
Não conheceu o seu pai que faleceu antes do seu nascimento, a mãe voltou a casar, sendo a relação com o padrasto muito precária. Pensa-se que viveu uma infância triste e solitária.
Tinha uma personalidade fechada, introspectiva e um temperamento difícil.
A mãe retirou-o da escola e obrigou-o a ser agricultor, algo que odiava.
Voltou à escola e era um aluno mediano até ter estado envolvido numa briga com um colega,
altura em que decidiu tornar-se o melhor aluno.
Teve vários “nervous breakdowns” ao longo da sua vida e era conhecido pelas suas reacções
muito efusivas e repletas de raiva quando era contrariado.
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desumbiga
tema
PÁ
CENAS
TIPO
A
NADA
O
lá.
Pá, Pá Cenas Tipo Nada
A Ver chega até vós com o
intuito puro de vos azucrinar.
Pá Cenas Tipo Nada A Ver, no entanto, não
chega até vós com o intuito único de vos
azucrinar.
I
sto é tudo muito estranho… Têm de
concordar: É ESTRANHO. Por meio da
ingestão das palavras de um mestre
ancestral da homeopatia, Diumpu de
Spencer, regurgito aqui nos vossos
timoratos olhos o que tenho para vos dar.
Não é amor e não é calor, o que devia desde já deixar-vos de pé atrás. Isto quer fazer
com que se sintam mal. Na verdade, se
chegarem ao fim disto e sentirem repulsa
de vocês mesmos, têm o meu respeito.
D
a vetusta sabedoria do mestre
Diumpu podemos beber lânguidos excertos como: A Ria
vai lodosa, mas penetra casta
no Oceano (entenda-se a
vaginação laminar que daí resulta, com
todos os refluxos e divertículos putrefactos inerentes). Pá… BRUTAL MEU!!!
Consegues perceber?? Sim! TU! Tu,
moço! Sai do lodo moço! Sim! TU!
Tu, moça! Não queiras ficar no cais
moça! Porra, mas será que está
tudo doido?! Sois uns tontos. Brita
infinita. Desbridem-se dessa estase
abstracional… Entreguem-se à incontinência espiritual… Façam-no,
antes que impludam numa intelectasia fétida… < RIVERS OF GORE!
RIVERS OF GORE! > Deixem-se
jorrar leito fora, fodam o Oceano!
Fodam-no bem! Fumem um cigarro
com ele e deixem-se ficar abraçados para sempre. Salguem-se para
fora dessa insipidez. Fertilizem-se.
Expurguem-se de vez desse estado
de delírio antes que o delirium se
vos entranhe! O fim não está perto
mas vocês já não vão para novos…
E
u só queria mandar esta
papaia aqui para o meio.
Agora papai-a toda. Os que
deste saco viscoso e poroso
não conseguem espremer
10
desumbiga
VER
nada que lhes hidrate a alma, pá… que
me perdoem este motim sináptico. Mas
ainda assim tenho algo para vocês, a restalha. É algo que nenhum neologismo ou
davidema conseguiria sequer expressar,
portanto vou tomar a liberdade de inventar
(também eu quero fazê-lo, e posso) uma
expressão, unicamente para aqui a empregar. Crésmio! O significado guardo para
mim (também eu quero fazê-lo, e posso).
Freuda-se! Sabe bem.
dré bemol
tema
O DELIRIUM DO
TEMPO
O
tempo é inexistente... Enquanto viviamos no sonho da realidade tudo
passou num ápice e a eternidade a efeméride sisbolcheia. Hoje tempo
é movimento, repetição de fenómenos, oscilação, e não haver tempo é
sonho, sonho-livre. E retrangizendo a auea floria da primavera, a força
de crescer, o desejo de morrer, tudo issenta a metamorfose do dinuliar
da Vita.
O obnubio tempo-espaço, vultuosa centrífuga em espinha de flecha ardente,
este império perfeito, esta habilidade que contrapõe o tempo-espaço retardado,
inteligente, o tempo pto e não fugo, a força Pta contrabalançada à Fuga, de Bach,
centrípta, centriptamente encaixada na dinâmica atemporo guiada pela dança,
ora para lá, ora para cá, do velho mundo que não se compreende daqui. Deixa-me
correr, associar-me na diluição da esfera mãe, que tudo faz dar à luz, pela luz, o
que sou eu? Se me deram à luz do dia, sem misericórdia, sem estula, sem guarida
miltubiante, com sentimento inulto, inalcançável força do desassossego, grita em
mim, silêncio.
Ouve a voz de quem te escuta, que de mim nasce um nascer de certo sentido.
Ouve! Se de ti repercute o tempo, toque a toque, tom a tom, cor a rio, a correnteza de tocae impermanência... O tempo positivo, a fuga, o tempo negativo, a Pta.
Enquanto um dispersa, o outro vai imprensando. As memórias chegam então a
possuir duas funções, sendo a organização interna da informação externa que se
perdeu, encontrando-se cá dentro, portanto nada se perde, tudo se transforma,
tudo se reitera ciclicamente entre sonho e despedida do sonho, entre realidade e
despedida da realidade. É a dança monumental, esperemos que a música nunqu’
acabe!! Mas a asafeméride não pode ser sustentada na condição física, pois que a
mente está cansada, de andar para um lado e para outro, e assim também o universo terá que se deitar no seu leito, dormindo até que venha à consistência, uma
nova forma de viver! Tudo será como dantes.”
David Nascimento Moreira
[email protected]
11
desumbiga
tema
POEMA DELIRANTE
Caminhas delirante.
E tudo o que se passa à tua volta
Não passa de um simples momento
Com que deliraste.
Tudo é delirante
E delirium é tudo.
Depende do modo como o sentes
E não percepcionas.
Todos, por momentos, deliram.
De tão pouco escrever
Começo a delirar.
De tanto delirar
Começo a escrever.
Francisco Martins do Vale
[email protected]
12
desumbiga
tema
N
MINA ANGUELOVA - sasha
@ www.minanguelova.blogspot.com
DELIRIUM
ão. Já não deliro. Já me aconteceu, sim, naqueles
dias iniciais, quando o teu cabelo sobre o meu
ombro incendiava o peito. Não me apercebi logo da
condição que se instalava, apesar das mãos suadas
e da ansiedade crescente. Apoderou-se aos poucos de cada pedaço de mim. Pegou-se à ponta dos dedos que te
cumprimentavam, à pele que te sentia, aos pés que te seguiam,
aos braços que encaixavam em ti. Contagiaste-me. Delirei na
febre que me trouxeste, embrulhada na doçura do teu sono.
Desconcentrei-me do embalo dos dias por onde sempre seguira.
Perdi o raciocínio e o conforto da solidão. Afoguei-me em comoção. Confundi o sono certo com a incerteza da consciência. Perdi,
talvez, a consciência. Alucinei com touros enraivecidos, em fúria
contra o meu peito gritante. Delirei, sim, na tua ausência, no teu
cheiro empestado em mim, para que soubessem que te tocara as
mãos. E delirei, de nariz fundo nesse cheiro para que o delírio não
terminasse.
O sangue revolto eventualmente sossegou. A temperatura foi
caindo aos poucos, que o corpo acaba por esfriar a combustão
interna. Vagarosamente, recuperei a lucidez e o julgamento con-
13
desumbiga
creto das coisas. Consegui, por fim, compor as imagens e ver a
composição final. Soube ler-te sem tremer a vista e voltei a andar
sem o apoio das sombras. Regressei a mim, com a vista nova e o
coração redecorado. E, quem diria, permanecias comigo. Continuavas ali, de mão na minha, de sorriso sereno e olhar genuíno.
Sim, tornei-me sã, serena e sóbria. Acabou-se a febre, a angústia, a dúvida dilacerante. Estou bem agora. Mantenho-te a meu
lado, de onde sei que não partes, aninho-me e olho em frente.
Sigo. Contigo. No conforto de nós. Na certeza e na partilha. Agora
tudo é, por fim, real.
ANA TERESA PRATA
[email protected]
14
desumbiga
Robert bruce - max ernst and dorothea tanning
david wojnarowicz - silence = Death (movie)
janela de expressão
Palavras u o abismo u delicada
(dead)lines
15
desumbiga
janela de expressão
PALAVRAS
OS IMPOSSÍVEIS SÃO APARENTEMENTE IMPOSSÍVEIS PORQUE
DESCONHECEMOS A REAL PROBABILIDADE DE ACONTECEREM
ROSA VERMELHA
A água suspensa
mantém a forma da sua jarra
já quebrada.
A mesa caiu.
O chão desapareceu.
Resta a rosa vermelha
Que a água não esqueceu.
MULTIVERSO
“Será que existem coisas que não existem?
Mas se existem coisas que não existem
Mesmo que não existam
A sua “não existência” existe
Ou será que tudo existe?
Uma coexistência harmoniosa de todas a possibilidades
Que se materializam constantemente em paralelo
Qualquer acção tem uma miríade de desfechos possíveis e
impossíveis]
Mas todos eles se sucedem cada um no seu espaço
No seu universo
O nosso é tão-somente um deles
Um do tudo
E nesse tudo existirá também o nada
Porque o nada é também uma das possibilidades
Que poderá já se ter concretizado
em pelo menos um dos universos
De que adianta sonhar?
Se tudo o que sonhamos certamente já existe
Só para termos o prazer de contemplar essa realidade?
Não nos consola o facto de existir!
Queremos ver, tocar e sentir!
Viajamos para outra dimensão?
Ou lutamos pela concretização?”
SIMBIOSE
“Suave a indecência inorgânica
que se entranha nas visceras
do animal que se alimenta
das golfadas hemáticas de socorro
gritadas num ritmo harmonioso
Climax de dor que enche o coração
É esse o verdadeiro sabor
da vida na sua ultima metamorfose
Só não é uma verdadeira simbiose
Porque não partilham o mesmo corpo
Não posso viver sem morte
Porque a imortalidade mata a vida
Nem posso morrer sem ter vivido
Porque assim não teria nascido”
16
desumbiga
mário mi-siCCarosi
janela de expressão
O ABISMO
O
abismo, a dor, a sorte a morte, sempre. Imutável como o tempo que passa mas volta sempre à mesma
estação onde outrora a folha caiu. O cansaço, o mesmo. O corpo arrastado no mar do deserto, que
foge, que cospe no fundo do poço onde nem a água existe mais, sumiu.
O sempre-nada que corrói e não deixa ver o resto. O que vem, o que nunca vem. Mas virá. E a força
inexistente quer ouvir-se, erguer-se do quase morto que ainda respira, a custo, em esforço.
E a paz que demora, e demais, atrasa demais o relógio, sem ponteiros, com números distorcidos de horas ora
estáticas, ora fugazes.
Mas o que fica são os restos, os pedaços, os fragmentos, as quase-memórias sempre mais cheias de vazio que de
outra coisa qualquer. Deveria inverter-se a situação. Fragmento do bem passado não do mal sentido, sempre presente. Imortal. Porque assim é vivido, imortal, perene, forte, o guerreiro que nunca cai, o soldado que não morre.
O mal.
DANIELA ALVES
17
desumbiga
janela de expressão
DELICADA
A Deusa transforma-se na forma
e toma lugar na imúria do tempo.
Em mim acende o Deus
e me deixa nú,
querendo tocar a forma
que nunca diz,
que nunca usa.
E o baloiço de criança
entra cheio da alegria…
Ah! Deusa, vive-me!
Vive-me, que venho
trazendo-te ao colo
Pela lua e os astros.
E sublime quanto de ti trago…
Sublime quanto de ti me embaraça
ao peito, como colares pesados de jóias.
Sou teu sem que tu sejas minha,
e dizes-me,
dizes-me que é por defesa que não dizes!
Se por defesa dissesses, não sabes,
que bravas e grandes são o dizer
d’ alma! O provir não tem força
contra os seres que se amam.
18
E a alma fica, sem esconderijo,
pura e liberta, para ser amada,
diluída na união,
a alma fica livre.
david nascimento moreira
[email protected]
desumbiga
janela de expressão
(DEAD)LINES
V
ejo. Paro. Penso. Mas
será? Quererá dizer alguma coisa? Será imaginação ou simples devaneio?
É mesmo ou apenas o
que quero que aconteça? Não. Paro.
Penso. Mas não! Não posso pensar!
Mas isso é possível…não pensar?!
E depois? O que é que vem depois?
Paro. E a vida continua, amarga e
longa como todos os dias foi. Foi? E
atrás do quadro negro vislumbro uma
fresta. Paro. Olho. Era tão bonito lá
atrás. Mas não podes apanhar um
pássaro que fugiu à procura da liberdade. Se ele é astuto procura outro
céu, e nunca mais quererá o mesmo.
Ninguém o quer. Paro. Fecho a fresta.
Escondo o bonito céu. Agora sou só
eu, e a vida continua, amarga e longa,
desde que o céu escureceu. E o tempo? Dizem eles. Esse nada traz senão
19
desumbiga
a revolta, a frustração de vê-lo passar.
Tentar agarrar e ver fugir por entre as
mãos os grãos de areia, áspera. Ter
tempo é esperar, é parar, é pensar.
Mas não! Não posso pensar! Não me
deixem pensar, não me dêem espaço
para libertar memórias antigas. São
lágrimas completas de experiências
inacabadas. São uma sala vazia outrora recheada de crianças e fotos de
família queimadas pelos raios de sol
da manhã. São paredes brancas em
que nenhum pintor jamais quererá trabalhar. Paro. Penso. E o tempo? Dizem
eles. Corro!
LUÍSA LOPES
20
desumbiga
transmissão oral
antony gormley - FIELDS FOR THE BRITISH ISLES
entrevista ao professor doutor hugo dos santos
21
desumbiga
transmissão oral
HUGO
DOS
SANTOS
PROFESSOR DOUTOR
BIOGRAFIA: Licenciaturas em Medicina, Psicologia Clínica e Filosofia; Formação em Psicanálise e Psicoterapias; Investigador na FCT
22
desumbiga
transmissão ORAL
MARIA EMÍLIA PEREIRA - Quando
começou o seu interesse por temas como
a Neurociência, a Psicologia Clínica, o Espírito, a Filosofia, a Medicina, a Neurologia
do Comportamento…?
HUGO DOS SANTOS - Desde muito
cedo. Aos 12 anos o meu primeiro trabalho, para uma disciplina na escola, tinha o
título de cérebros e computadores! Aos 12
anos… ainda tenho lá isso, descobri no outro dia esse trabalho lá no sótão… Depois,
como tive uma educação oriental…
to, há esse fenómeno de aparecimento
do meu Eu, que se torna presente, que
durante um período se evadiu. E mesmo
quando eu chamo, quando eu tomo auto-consciência de que estou consciente, eu
tenho que ter a mesma auto-consciência
que na minha auto-consciência eu estou
inconsciente. Isto é complexo, como é que
eu definiria isto?
ele crê nos materiais que aplica. E isto é
muito complexo, por isso é que a arte é
tão discutida: é uma elaboração, ainda que
elevada. Mas o abstraccionismo é de maior
radicalização na nossa cultura por causa
disso. E ainda que seja uma tentativa de
escape a essas concepções que a fecham,
ela não deixa de ter esse alicerce de
escape. Ele tem um quadro muito engra-
Há outra questão muito importante:
como é que eu chamo a pessoa ali? Como
é que eu me chamo a mim próprio?
çado que pinta de cima de um escadote
e tem uma tela muito grande. Então vai
com uns baldes e atira a tinta para a tela.
Vêem-se as bolas dos borrões maiores e
depois os salpicos, parece uma explosão…
Mesmo que ele faça isso e que durante
esse momento em que esteja absorto no
que acontece, se o parássemos e perguntássemos: “o que é que está a fazer?”, ele
respondia,“Ah! Estou aqui!”. Ele conseguia-se definir, mas esse estado teria de vir a
ele, ele está auto-consciente de que está
consciente do que está a fazer, ou seja, ele
define a consciência como aquilo que sabe
o que está a fazer. Define a auto-consciência como quem sabe que sabe o que está
a fazer, agora, durante o momento em que
MEP – Oriental?
HS – tive uma espécie de preceptor
particular que foi o meu Mestre desde os
meus 4 ou 5 anos de idade. Não é que aos
4 ou 5 anos de idade me interessassem
realmente, mas se uma pessoa é educada
dentro de uma cultura, naturalmente que
com o tempo acaba por desenvolver esse
gosto, esse interesse, esse fascínio, para
dizer o termo mais correcto.
MEP – Mas o interesse despertado era
já relativo à Medicina, à Filosofia, ou…?
HS – Não, não… Bom eu já fazia as minhas experiências, mas a Filosofia aparece
na minha vida já muito tardiamente. Eu já
tinha tirado o curso de Medicina e o de Psicologia Clínica, e aquilo continuava a não
fazer sentido nenhum… Havia perguntas
que ficavam sem respostas. Para ter uma
noção, no caminho para cá, vinha na Praça
de Espanha no fecho de um pensamento,
que trazia desde Azeitão até aqui. E que
era: “Então muito bem, eu estou a olhar
para uma paisagem e há aquele momento
em que a pessoa olha para a paisagem e
se abstrai de si própria; então como é que
eu teria consciência de que estou consciente e ao mesmo tempo inconsciente da
minha Auto-consciência? Como é que nós
conseguiríamos definir este estado?”
A Auto-consciência parece ser alguma
coisa. E depois há outra questão ainda: a
consciência não é o Eu estar consciente
quando abstraído, mas tenho de chamar a
mim esse estado. E a pessoa não se apercebe que não chama quando está abstraída por uma determinada sensação, pois
deixa-se invadir por um sentimento, seja
ele de vazio, de beleza, ou do que quer
que seja… Mas depois, nós chamamos de
consciência vigil como foi falado no Debate
do Módulo ConsCIÊNCIAS do congresso ENJOY Med ‘10, eu tenho de chamar a mim
esse estado de consciência. Eu tenho de
dizer “estou aqui!”, mas há esse momen23
desumbiga
A arte é também muito interessante nestes temas, a pessoa escapa-se…
Magritte, que o Professor Mário Simões
usa muito nas suas apresentações, realiza
uma pintura intelectual. Ele não pinta só
por pintar, pinta no intuito de intelectualizar. Não é um simples abstracto, como
um Wassily Kandinsky, por exemplo, que
atirava umas coisas para depois ver o que
é que a pintura lhe dava. Mas mesmo nessa experiência, eu uma vez li umas coisas
sobre Wassily Kandinsky porque queria
perceber o abstraccionismo – como é que
uma pessoa pinta abstraccionismo? Isto,
por causa de uma questão do oriente, vai
tudo drenar ao mesmo oceano... Ou seja,
ele queria evadir-se das concepções pré-concebidas, queria expressar uma totalidade, mas que não estivesse condenada
pelas pré-concepções sociais. Portanto, o
traço técnico. Ele queria sim, a expressão
de algo que através dele tomasse forma
na tela. Isto era o abstraccionismo.
Agora, vamos imaginar que nesse
momento ele não está consciente. O que
é difícil, pois o artista tem de ter noção de
uma técnica para a aplicar, mesmo que
seja uma técnica sem técnica. Ou seja, que
não haja um traço técnico definido, como
“A maior parte da informação que normalmente
temos acesso (...) tem a ver
muito com um estudo superficial das coisas, e não
com a realidade concreta
das tradições do pensamento oriental ou das medicinas orientais”
faz. Ele não só não está consciente do que
o que ele está a fazer, porque não consegue definir no mesmo esse momento, em
que a auto-consciência está inconsciente
da consciência que o faz.
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desumbiga
Lisboa, 2007
papel aguarela
tinta permanente sobre
18 x 24 cm
david nascimento moreira
“the joint between
mind and stars”
Mafra, fevereiro 2009
oléo sobre tela
40x40 cm
Salomé silva
“van gogh’s eyes”
A
r
t
e
S
desumbiga
A
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N
S
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transmissão oral
E isto, então onde andaríamos nós?
Mas depois, vem o tal Self, e de repente,
ah! Mas eu estou aqui, e se eu estou aqui
posso perguntar à minha consciência. E
aparece-me em três dimensões: o Eu, a
Auto-consciência e a Consciência. Estas
questões no oriente, para fazer agora a
ponte, são muito importantes. Essencialmente, a filosofia ou melhor o pensamento
que, advém do Budismo Zen que tem que
definir o Eu do Não-Eu, ou seja, este Eu,
que não é Eu. Que seria, nesta dialéctica
entre Eu, o Self, a Auto-consciência e a
Consciência, mais propriamente o estado
de vigil, não o é. É muito importante entender esta dialéctica ocidental. À medida que
os anos avançaram e fui para a escola, nas
aulas nunca se falou muito em Consciência.
MEP- E existiu alguma influência destas
matérias para seguir Medicina?
clínica, a filosofia, os cursos que fiz, etc.
Mas mais para conhecer o mundo externo, porque a arte de conhecer-me a mim
próprio, eu aprendi com os orientais. Fui
ao fundo da questão, os orientais é que
me ensinaram a conhecer, eles é que
têm, digamos, os métodos que faltam
à medicina para nos conhecermos. Eles
têm uma Auto-Medicina, não tanto uma
auto-medicina no sentido de curar, mas
têm uma auto-medicina no sentido de se
auto-conhecerem, portanto, o caminho do
Auto-conhecimento…
MEP – E isso envolve o quê? O que é
que envolve o Auto-conhecimento?
HS – Envolve processos introspectivos,
métodos de treino introspectivo, auto-reflexivos, não tão voltados para o exterior.
Mas no seguinte sentido, “para conhecer
o outro tenho de me conhecer primeiro a
mim mesmo”. E toda a tradição oriental é
voltada para essa concepção. Para o pormenor que acontece dentro de cada indivíduo, e a sensibilidade que é despertada
através dessa experiência de se vivenciar a
si mesmo de dentro para fora…
MEP – E acha que isso seria uma ferramenta, ou de alguma forma vantajoso,
para o profissional de saúde, como o médico, neste caso?
HS – Não, não… Na altura o facto de ir
para Medicina foi uma linha de percurso,
como qualquer outra.
Fui para Medicina porque estava-me
mais próximo. Quando era miúdo já gostava de andar a abrir os bichinhos, tinha lá
um “laboratório” às escondidas. Se calhar
já havia uma pré-consciência, mas isso
teríamos de admitir aqui outras coisas. Mas
a medicina não me aparece como resposta.
Na altura não estava preocupado com uma
profissão, havia lugar para todos. Aliás, foi
o “boom” da gestão, quem era estudioso e
queria ter uma carreira de sucesso ia para
Gestão, Economia…
DAVID NASCIMENTO MOREIRA – A
medicina surge então como um percurso,
para tentar responder, talvez, a certas
questões?
HS – Às inquietações... é verdade! E
foi sempre assim, a medicina, a psicologia
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desumbiga
HS – Eu diria que teria todo o sentido.
Vou-lhe dizer o seguinte, nós temos hoje o
crescimento massivo da Bioética, que está
muito voltado para os cuidados paliativos,
etc. Mas não só, na bioética também temos
a relação médico-doente, que é voltada
e centrada no cuidar do ser humano, da
pessoa. Após o doente, ou antes do doente, temos o ser humano. Isto está a atingir
largamente a medicina, através da bioética, não sei se de uma forma superficial, se
atingindo mesmo o “coração” dos médicos,
a ponto de os sensibilizar para que eles
revejam a forma como entendem a medicina. Mas a verdade é que, se houvesse um
lugar em que essa tradição oriental, esses
métodos orientais de auto-conhecimento
pudessem ter lugar e aplicabilidade na
medicina, seria essencialmente, num primeiro passo, nesse sentido, porque é o que
é emergente. É o que é emergente. Nós
temos pouco tempo neste mundo, e talvez
a única coisa que nos acrescenta conhecimento real, para mim, e a meu entender, é
o contacto e a relação que estabelecemos
com o outro. Essa troca, esse “dia-logos”.
O Médico ganha uma posição privilegiada,
porque lida com o doente quando tem a
maior parte das suas barreiras psíquicas
em baixo, o que, quer dizer que ele se torna muito mais permeável a esse contacto
humano.
MEP – Pensamos que tem havido por
parte das instituições, um florescer de uma
certa consciência desta problemática. Já
que na nova reforma curricular, uma das
medidas foi implementar a exploração
de temas como a relação médico-doente,
no sentido de sensibilizar a formação dos
novos médicos…
HS – Não há de ser fácil, mas lá está,
esse auto-conhecimento seria isso: esse
despertar de sensibilidades para essa nova
consciência.
Repare, nós estamos agora nesta evolução tecnológica do mundo Web. Que tornou
o mundo pequeno e aproximou outras
culturas, por exemplo a cultura oriental.
Aproxima, é facto, existe esse contacto,
mas deixa-o à superficialidade. E depois,
em termos de resultado final, “aquele contacto” que é necessário não existe.
Eu não tenho uma noção, hoje, de que
as culturas estejam mais próximas, na
verdade nunca as vi tão distantes como
agora. O que eu acredito que exista é que
tem existido um marketing de proximidade
e de aproximação intercultural, que é feito
essencialmente pela classe política. Mas
que na realidade, esse contacto humano
e essa partilha humana nunca têm sido
verdadeiramente privilegiadas no sentido que deveriam ter. Isto quer dizer que,
de alguma forma, aquilo que nos está a
“Eu não tenho uma noção, hoje, de que as culturas estejam mais próximas; na verdade nunca
as vi tão distantes como
agora. O que eu acredito é que tem existido
um marketing de proximidade e de aproximação intercultural, que é
feito essencialmente pela
classe política”
chegar dessas tradições ancestrais, como
as orientais, incluindo os seus modos de
entender a medicina e os seus sistemas
médicos… E que nós deveríamos estar
abertos a apreender esse conhecimento,
pelo menos a estudá-los, para ver até que
ponto têm algo que nos possa ser útil para
a nossa prática e melhorar significativamente a prática médica ocidental, não
penso que isso esteja a ser favorecido por
transmissão oral
esse contacto. Pelo contrário, eu nunca me
senti tão às avenças culturalmente como
agora, quando falo com colegas meus, ou
vou a conferências no estrangeiro, etc.
Sei perfeitamente que aquilo que deveria
ser ensinado no âmbito da tradição do
pensamento oriental não o é, porque eles
os orientais não só não confiam em nós,
como não se revêem na nossa forma de
entender o mundo. Eles entendem-nos
como pessoas, que queremos aprender a
um patamar muito superficial das coisas
para depois andarmos aqui a fazer um
género de “comércio de conhecimento”…
O que quer dizer que, a maior parte da informação que normalmente temos acesso,
até mesmo por vezes em artigos ou literatura, e por aí a fora, tem a ver muito com
um estudo superficial das coisas, e não
com a realidade concreta das tradições
do pensamento oriental ou das medicinas
orientais, como a Medicina Tradicional Chinesa, a Medicina Ayurveda ou a Medicina
Tibetana, ou de outras tradições das quais
eu não tenho conhecimento, sendo mais
recentes, como a Homeopatia…
quem jogou futebol, e eu joguei futebol,
sabe perfeitamente que dentro do jogo as
coisas não são iguais, porque a imagem
que temos não é a de cima de um estádio,
é sim ao mesmo nível. O jogador quando
vê, não vê uma linha directa de passe,
com três ou quatro indivíduos ali dispostos
tacticamente. E tenta encontrar linhas de
passe àquela medida, mas depois está um
indivíduo por cima, a quem lhe é muito
mais fácil de dizer: “porque é que não
passas para ali?”.
Aquela vantagem de posicionamento
permite-lhe a ele ter um prisma de visão
completamente diferente e isso o que é
que torna? Torna muito fácil a crítica, e
convínhamos que os ocidentais, culturalmente, têm uma grande aptidão para a crítica fácil. Basta ver a nossa classe política,
mais uma vez, volto a referir…
MEP – Não é uma coisa que possa ser
feita facilmente…
HS – Não, não. De forma alguma, repare, daí ser muito fácil depois, a crítica. Nós
não temos um conhecimento profundo,
nem a experienciação, a vivência. Portanto, é o mesmo que os comentadores políticos, e os comentadores de futebol. Pois
a visão que temos é apenas do jogo. Mas
27
desumbiga
Ou, outra coisa mais engraçada, o
conceito de Inteligência Emocional. É daí
que Daniel Goleman, que fazia parte da
equipa, um homem inteligentíssimo, faz o
aproveitamento do estudo e cria o conceito de Inteligência Emocional. Vendeu uns
bons milhares de livros, como se isto fosse
uma coisa nova. De facto no ocidente é-o,
mas, enfim, já havia este conceito e esta
noção há muitos anos, no Oriente. Se já
havia esta noção e esta consciência há
muito tempo no Oriente, então imagine o
que eles não saberão eventualmente mais.
A riqueza que eles não terão em termos de
documentos, sabedoria, de conhecimentos, de técnicas, e por aí a fora, que nós
não temos acesso. Das quais cá nos chega
apenas a “superficialidade” delas...
DNM – Um exemplo disso é que, sabe-se que a Medicina Ayurveda mais tradicional tem sido ensinada de Mestre a Discípulo ao longo das gerações…
MEP – Quando diz superficial, portanto,
refere-se à aprendizagem de umas técnicas e de algumas coisas e não realmente
de uma interiorização, de uma profundidade do saber…?
HS – Exactamente. O que nós temos
são culturas e temos primeiro que abater
essas barreiras culturais, os estereótipos
étnicos para que depois de alguma forma
sermos “aceites e integrados” por essa
cultura, para que eles nos possam ensinar e connosco partilhar o seu “saber”. E
tenho sérias dúvidas que uma pessoa com
a visão como nós temos, consiga assimilar
a totalidade de uma técnica que tem como
fundo de tradição aquela cultura. Portanto,
é preciso uma pessoa aprender a cultura,
para depois poder assimilar a técnica e
depois poder fazer essa adaptação com
consciência plena desse processo de
transladação desde a cultura oriental para
a cultura ocidental, e isto eu diria que é
deveras complexo…
discurso, mas do discurso ao ensinar é
uma coisa diferente.
Eu por acaso estava-me a lembrar de
uma coisa que aconteceu na conferência,
para cimentar mais esta ideia. Eu referenciei um estudo que aparece num livro editado pela editora relógio de água que tem
a ver com o espírito e a ciência. Um estudo
feito durante 20 anos na Índia e no Tibete,
um estudo seríssimo, feito por uma equipa
do Mind Body Medical Institute at Harvard
Medical School, e do Department of Social
Relations at Harvard University, do qual
surgiram conceitos como a Inteligencia Emocional, de Daniel Goleman. Contudo, eles apenas colocaram umas notas e
breves ilações sobre o que é que o estudo
tinha sido, e aí está, os tibetanos não
permitiram a divulgação de mais, porque
assim o entenderam, a questão aqui seria,
o de porquê, permitirem fazer um estudo
e depois não o deixar acessível. Já nos dá
que pensar no modo como somos entendidos enquanto cultura ocidental.
Repare, Dalai Lama consegue ter este
HS – Exactamente… Primeiro porque
nós nem sequer respeitamos essa tradição, o que é muito engraçado. A tradição do ensino Mestre-Discípulo é muito
importante no Oriente. Por acaso, recebi
até uma crítica do Professor Mário Simões,
entenda-se bastante construtiva e de
quem nos quer bem, quando foi o congresso ENJOY Med ‘10, devido à referência
presente dos meus Mestres; e fez-me essa
correcção, ainda que o Professor Mário
Simões o entenda, admitiu que a maioria
das pessoas não o entenderia dessa mesma forma; nós não estamos preparados
para esse tipo de discurso. Note-se que eu
tive sempre na pessoa do Professor Mário
Simões a minha maior influência para
estas áreas. No oriente fui educado que a
referência aos meus Mestres não me menoriza, muito pelo contrário, essa constante reverência é parte da minha genealogia
intelectual o que em nada se opõe a um
pensamento próprio e independente. Eu
não tenho que os diminuir ou que os retirar
para afirmar a individualidade e originalidade do meu pensamento. Mesmo que
eu tome outro caminho, esse sentido de
reverência deve estar presente, pois só me
é permitido andar porque houve alguém
que me abriu caminho para eu possa ter
caminhado até ali. Se depois escolhi fazer
o meu caminho e construir o meu próprio
pensamento isso é no entendimento oriental o próprio processo de realização… Sir
Isaac Newton disse uma vez, “Se vi mais
transmissão oral
Como é que é possível que em tão pouco
tempo, numa geração apenas? E e de
repente sabem tudo… como nós vemos
nos filmes, em que enfiam uma coisa na
cabeça, tipo como acontece no Matrix, e
uma pessoa quando acorda já sabe tudo,
já sabe Karaté, tudo, o homem voa e pronto… isto não me parece que seja alguma
coisa que mereça respeito e acima de tudo
que possa ser entendido e respeitado por
quem é dono original dessas tradições
como os orientais.
MEP – A noção que eu tenho é que há
um respeito muito grande pelo tempo no
oriente, o tempo natural, o tempo próprio
das coisas, etc., aqui não… parece haver
um culto da rapidez, quanto mais rápido
melhor, sem haver a preocupação de viver
esse tempo…
HS – É verdade, aqui é um consumo, é
um consumo.
DNM – Portanto, não interessa o caminho, mas a meta, para os ocidentais…
longe, foi porque estava sobre os ombros
de gigantes.”, e portanto, as pessoas têm
muita tendência de se esquecerem disto.
MEP – Aqui no ocidente não há esse
culto à sabedoria das pessoas mais velhas…
HS – Aqui há um culto à novidade, mas
só uma pessoa pouco inteligente é que
acreditaria na questão de ser diferente…
MEP – Acha que há alguma coisa na
Cultura Ocidental que se pudesse dar, ou
que enriquecesse a cultura Oriental?
HS – Sim, sem dúvida nenhuma. O
meu Mestre ensinou-me os nomes Japoneses, mas ensinou-me a dizê-los em Português. Uma das coisas que ele disse era
que os portugueses tinham coisas extraordinárias, como por exemplo, a capacidade
e a abertura que temos para aprendermos
as coisas deles. O que eu acho que a cultura ocidental pode trazer à cultura oriental,
é exactamente esta “energia”, quando a
cultura oriental está a começar a perder fé
na sua própria tradição. É como se fosse
a “injecção de uma energia”, para validar
aquilo que até então tem sido. Outra coisa
é o aproveitamento para credibilizar as
nossas atitudes e fazer uma espécie de
toque de consciências, de que a ideia que
eles retêm há muito tempo da cultura ocidental, afinal não é a do comercialismo e
28
desumbiga
a da destrutibilidade. Muito pelo contrário,
é a cultura ocidental que eventualmente
pode validar, fazer um aproveitamento
daquilo que já existe. Se conseguirmos ter
a capacidade para retirarmos o que neles
de melhor existe, incentivá-los, energizá-los ao ponto de quererem partilharem isso
connosco. Para que nós possamos depois,
à posteriori, fazer uma aplicação útil disso,
validando os seus métodos ancestrais e os
antepassados que desenvolveram essas
técnicas. Depois o que tem feito e que não
o deveria fazer, é fazer esse aproveitamento muito superficial e vazio da cultura
Oriental.
Repare, eu lembro-me na minha altura,
em 98/99, que havia uma ou outra pessoa
que sabia estas matérias, relativamente as
tradições orientais e ao pensamento oriental, por exemplo no que as artes marciais
dizem respeito como o Tai Chi. De repente
dá-se um “boom!”, eu vejo pessoas hoje
em dia a tratar destes temas, que muito
pouco ou nada terão estudado, que pouco
dominam; porque dominar uma técnica
oriental, implica uma dedicação brutal.
DNM – Implica fazer com que a técnica
seja parte do nosso organismo?
HS – Dedicação, exactamente… e isso é
uma experiência pessoal não só do nosso
corpo, mas com o nosso corpo, que leva
o seu tempo e precisa de ser orientada.
HS – Exactamente, ali não, é o domínio.
Eu tentei falar na conferência, na questão
da intensidade do tempo, como é que se
dá a consciência do tempo? Como é que
a consciência tem noção do tempo vivenciado? Falamos da consciência, mas não
da experiência da consciência… Repare,
é a consciência que tem noção do tempo vivenciado, ou é a auto-consciência de
estarmos a vivenciar conscientemente o
tempo? A unidade de tempo vivenciada,
que nos dá essa noção real da unidade ou
irreal, no caso, como eu apresentei nos estudos dos estados de intensidade psicológica, de Bergson. Ele não definia a unidade
de tempo, o Bergson falava na intensidade
dos estados psicológicos, é uma coisa
diferente…
MEP – A vivência não seria uma coisa
padronizada, resultante das nossas vivências, crescimento, educação…?
HS – Mas nós não temos isso ainda
definido, em termos de cartografia da citoarquitectura cerebral. Não conseguimos
definir com eficiência, se uma unidade
de tempo tem ou não uma correspondência em termos de funcionalidade cerebral.
O interessante, para podermos dizer isso
seria dizer “muito bem, numa determinada
actividade, a correspondência em termos
de circuito neuronal é esta, e a esta função, imagine com a ajuda de um SPECT,
conseguíamos ter uma ideia da localização
de experienciação”, e não há experiên-
transmissão oral
cias dessa ordem, teríamos de as fazer…
Porque é interessante, e isso seria mais
importante ainda devido à questão que eu
falei na conferência… A Neurociência é feita e dirigida a uma classe, a uma cultura,
como se houvesse prevalência… Repare,
como é que o tempo é vivênciado…?
DNM – Por exemplo, nas pessoas daquelas tribos da Amazónia, ou de África,
que vivem o seu tempo de forma muito
própria…?
HS – Nessas tribos, onde não há relógio, não há noção de tempo da mesma
forma que nós temos. E verificarmos isso
em termos neurológicos seria interessantíssimo e não me refiro á identificação da
área cerebral responsável pela contabilidade da unidade de tempo, mas sim á
subjectividade associada á experiencia
do tempo vivido mediante a ecleticidade
étnica… Quando se faz ciência “caseira”,
que é o que grosso modo tendemos a fazer, uma ciência a seu modo provinciana,
do tipo, “vamos aferir um estudo a oitenta
pessoas, ou noventa pessoas, ao invés de
uma amostra de mil pessoas, que já é uma
amostra significativa para um estudo a
nível nacional, mas que ainda assim muito
pouco representativa da população mundial e de toda a sua diferenciação étnica e
que nem por isso nos coibimos de aferirmos que dessas mil pessoas se possa dar
o caso de essas mil se fazerem corresponder ao resto da população mundial… isto
não deixa de ser curioso…
HS – Quando a ciência se pensa a si
própria e se define a si própria com exactidão, a partir de unidades desta ordem,
há algum erro aqui que se está a passar.
Nós anulamos critérios de ambiente, sendo
que muitos estudos dizem que o ambiente influencia, e repare como a ciência se
pode enganar a si mesma… Quando tem
estudos de gémeos monozigóticos, que
são usualmente usados em medicina, por
exemplo, lembro-me de um estudo de
duas gémeas. Uma vai para a cidade, outra fica a viver no campo, a primeira morre
de cancro e a segunda não.
Se nós não tivéssemos consciência
destas situações, até seria entendível que
nós aferíssemos resultados a partir de
amostras dessa ordem. Mas, como a ciência é feita de palavra e a palavra é feita no
contexto, e o contexto define uma população e um interlocutor… E isto é a ciência
médica, é o resultado de uma conferência… Mediante a audibilidade daquilo que
é dito, se soa bem ou mal, de acordo com
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desumbiga
as nossas concepções pessoais ou não...
O problema, é que se tenta definir em
poucos minutos, pensamentos da ordem
de uma vida, e isso é impossível. Agora
repare, e o mais interessante é quando
nós criamos cientistas que pensam deste
modo, estão ali fechados naquele laboratório, estudam 10 cães… logo, se existiam
variáveis…E foi isto que eu tentei alertar
na conferência do ENJOY Med, é que não
fechemos as portas a outras culturas, que
não façamos uma ciência de casa, com
ratinhos…
A questão aqui essencial é esta, quando
nós não temos noção desta dimensão
deixa-me a mim preocupado. Uma ciência
que é uma espécie de economato, onde temos de fazer uma gestão logística do que
temos e do que não temos, para fazermos
uma boa gestão da casa… Mas é só aqui,
com o produto daqui, … um economato,
“A tradição do estatuto
do médico em Portugal
está bastante cimentada e dificilmente se desmonta daqui. Não sei até
que ponto inviabiliza a
abertura para determinado tipo de campos de
conhecimento que poderiam estar aqui mesmo
ao nosso lado”
uma boa gestaozita e tal, para aquilo
funcionar… Isto não é ciência. A ciência, sobretudo a ciência médica, tem de
considerar variavéis de uma outra ordem,
eu não sei ainda como é que poderiam
ser consideradas, mas hoje, se alguma
coisa a internet poderia servir, seria isso,
essa intercomunicação, em termos de
estudos de maior amplitude com colaborações de entendimento. Isso é trabalhar em
prol da comunidade humana, do mundo.
E isso seria fazer uma ciência séria que
atenda ao homem enquanto ser e não à
sua dimensão contextual ainda que essa
seja uma prioridade da medicina.
MEP – A ciência que é feita é muito
centrada na Europa e nos Estados Unidos, e para essas populações, está muito
fechada…
HS – É a cultura ocidental e os mercados económicos…eles tem e talvez terão
sempre a ultima palavra nesta para não
dizer em tudo…
MEP – E como surge o interesse pela
Psicologia Clínica e pela Filosofia?
HS – Então, é isso mesmo, é essa inquietação constante de perceber. Repare,
a medicina dá-me uma parte de cariz mais
anátomo-fisiológico eu diria: eu conheço
o cérebro, o coração, o sangue que circula
e alimenta os músculos, o corpo, pronto…
E começam a surgir aquelas questões…
Começamos a ver que existem patologias que são da cabeça e realmente se
manifestam no corpo (psicossomática),
e aquelas patologias que são puramente
emocionais. Que não acontecem no corpo,
não há registo, não há nenhum tipo de
exame que me possa dar qualquer indicação. Mas a pessoa continua em sofrimento, e isto deixa-me aqui alguma coisa de
preocupação, essa inquietação, do que é
o homem, nessa complexidade, leva-me
à psicologia… Continuava a não responder, porque no meu caso, a psicologia era
clínica, e alguns modelos curriculares hoje
em dia são muito próximos já à medicina.
E não correspondeu, não adiantou muito.
Portanto, fui para um ramo da Filosofia,
que é o da Filosofia da Mente…
MEP – Que autores leu e que o marcaram?
HS – John Searle é um filósofo da mente, é talvez um dos grandes precursores da
filosofia da mente; Merleau-Ponty, Daniel
C. Dennet; Ludwig Wittgenstein, e já têm
aqui grandes referências. Temos também
o casal Churchland, Paul Churchland, mas
ela é mais conhecida, Patricia Churchland,
que dentro das Neurociências trabalham
conceitos como a Neurofilosofia, e depois
têm outros ainda que não só ligados à
filosofia, mas ainda assim com visões de
extremo interesse, que não são propriamente filósofos, mas são autores que
abordam e trabalham questões da filosofia
da mente, como por exemplo C. Jung,
Pierre Buser, Karl Popper, que no caso é
filósofo e John Eccles. Depois têm os mais
tradicionais, como John Locke, David Hume
ou Zubiri. Há ainda outros autores que não
fazendo propriamente parte da filosofia
da mente, têm o seu trabalho dirigido a
grandes aspectos da mente ainda que
inseridos ou em correntes filosóficas ou na
Psicologia, e que não devem deixar de ser
estudados, como os autores da Psicanálise, Fenomenologia, Existencialismo, etc.
MEP – E agora para terminar, nas últimas décadas, de que forma é que tem visto a relação entre a Ciência e a Religião?
E o que acha que vai ocorrer no futuro,
aproximação ou afastamento?
transmissão oral
HS – Eu tenho esperança de que colaborem, mas sinto profundamente que
ainda tem as costas às avenças. Distinguiríamos aqui duas dimensões. A dimensão
possível, e essa dimensão possível está
ao nível da política. Estamos a falar da
colaboração de instituições que face à
realidade da tradição religiosa de um país
e ao poder institucional que a Igreja tem,
obriguem a que determinadas instituições,
como Hospitais, Faculdades, etc., colaborem. Isto é a dimensão possível da colaboração. E face à legislação, há uma obrigatoriedade dessa mesma colaboração em
determinados aspectos que, digamos, são
terrenos cinzentos, e têm de colaborar.
bilidade para a ciência não é valorizada,
nem sequer é tida como, eventualmente,
um objecto possível de estudo. Nesta
impossibilidade, agarramos-nos à tradição conceptual: conceitos como espírito,
alma, consciência, e outros que tais. E
fazemos depois traduções/adaptações do
seu significado ou o que isso poderia ter
em termos históricos em determinados
autores, fazemos uma adaptação, fazemos
traduções, e depois fazemos uma espécie
de grandes revelações que na verdade não
acrescentam muito mais do que o que já
temos e sabemos…
Eu penso que há aqui, essencialmente,
a ausência de uma boa vontade. Estamos
a falar aqui de duas instituições de grande
poder. Repare, se fizéssemos um estudo,
puramente estatístico, de aferir quantos
médicos são católicos, seria interessante.
Como é que o exercício da medicina se faz
através do método científico, e ao mesmo
tempo, acreditamos em Deus? Como é que
essa convivência se dá dentro da pessoa?
Como é que ela sequer é possível?
MEP – Se calhar não é tão interiorizada quanto isso…
HS – Ora aí está, mas ainda assim,
teríamos de dimensionar esse sentido
religioso.
Agora, na dimensão do impossível,
designemos assim, nós teríamos os pontos
radicais. E a Ciência e a Religião não têm
dado grandes passos. Elas têm fingido
através da criação de léxico comum,
como Neuroteologia, Neuroética, Bioética, Neurociência do Espírito, e uma espécie de miscelânea de termos conceptuais.
Que tentam de alguma forma traduzir
realidades que causaram mais confusão
do que trouxeram discernimento, e têm
andado ali, mas no cerne da questão ainda
continuam às avessas.
MEP – Ainda existe um desconforto, um
tabu?...
HS – Vamos lá ver, a medicina não está
aberta, e vamos admitir que a ciência
se distinguiu da religião e da tradição
religiosa exactamente por ter um método
e por em causa tudo. A Fé lida com uma
dimensão da existência humana que não
tem palpabilidade, e a ausência de palpa30
desumbiga
MEP – Poderia colocar aqui outra
questão. Sabemos que as pessoas com
doenças que não são curadas na nossa
usual medicina, acabam por recorrer a
outros lugares. Algumas acabam por ter
uma melhoria, outras não… Mas a verdade
é que os médicos são conhecedores desta
realidade e não existe um passo por parte
da comunidade médica para tentar perceber como é que isto acontece… E mesmo
médicos quando na mesma situação, acabam por recorrer aos mesmos locais, para
os seus problemas, isto existe. Ao existir
essa ausência de solução para determinadas situações, o que se faz é permanecer
naquilo que se sabe, e pronto...
HS – Na dimensão do possível!
MEP – Sim…
HS – Há aceitação institucional, mas
em dimensões diferentes. Quando passamos à questão real, passamos à dimensão
do impossível. A dimensão do possível é,
“Eu não interfiro, assisto, não digo que é,
não dou opinião, mantenho-me na minha
instituição…, respeito”. Mas não me manifesto, porque para isso teríamos que ir à
dimensão do impossível, que é admitirmos
que pode haver outras respostas que não
aquelas que a medicina possa dar. E isso
deixa o médico desconfortável… Isto é o
que é real.
MEP – Estamos a falar de um estatuto institucional que foi adquirido pela
classe médica…
HS – Ora aí está, a realidade institucional deixa muito aquém as possibilidades
de resposta que seriam necessárias, e com
boa vontade nós poderíamos aceder, mas
para isso teremos que descer desse patamar institucional. Devemos manter o espírito científico. O médico forma-se, perde o
espírito científico e passa a ter um espírito
mais clínico, e é bom que se note que ele
é necessário. Instituições como estes Hospitais não poderiam existir e dar resposta
a esta premente necessidade de cuidados
médicos, como um país precisa, como o
nosso, se não tivesse clínicos altamente
vocacionados para a clínica, como é óbvio.
Mas é dever daqueles que, com formação
médica, e médicos de formação, que estão
na investigação, terem essa abertura.
Quando descemos de tais patamares, a
ideia geral que existe é que perdemos posição, e isto é um valor da tradição. A tradição do estatuto do médico em Portugal
está bastante cimentada, é bastante forte,
e dificilmente se desmonta daqui. E isso eu
não sei até que ponto, não posso afirmá-lo, inviabiliza a abertura para determinado
tipo de campos de conhecimento, que
poderiam estar aqui mesmo ao nosso lado,
mas admito que sim, admito que possa
ser um sério entrave, a essa facilidade de
acesso. Deveria de haver uma maior boa
vontade por parte da classe médica, e dos
investigadores, ligados às ciências biomédicas, etc. Porque eventualmente, trata-se
em última instância, e em última questão,
de responder à necessidade humana de
se tratar, seja em que dimensão esse
sofrimento aconteça, seja ele patológico
de cariz orgânico, ou de cariz “espiritual”,
eu não sei até que ponto, não o posso afirmar, lá está a minha própria limitação.
MEP/DNM – Muito obrigado.
MARIA EMÍLIA PEREIRA
DAVID NASCIMENTO MOREIRA
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desumbiga
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desumbiga
babilónia
marco alcazar
anselm kiefer - blood on paper
O LADO DE DENTRO DA LOUCURA u O CINEMA NÃO SÃO FILMES...
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desumbiga
babilónia
o lado de
da loucura
Falei e ninguém ouviu.
Gritei e ninguém sentiu.
Pus-me a cantar no meio da rua!
Ninguém parou.
Tentei falar…
Mas a voz já não falou.
Mudei de sítio,
Mudei de gente.
A mesma coisa,
A mesma mente.
Tentei. Respirei.
Vivi… Ultrapassei.
Novo evento.
Esbracejei!
Risos, piadas,
Comentários, Julgamentos.
Ajuda em raros momentos.
Desisti.
Abri os braços…
E deixei-me levar pelo vento.
Fui feliz por um momento.
34
desumbiga
“
REFLEXÕES SOBRE A PEÇA “um
Um eléctrico chamado desejo” é
uma peça de teatro escrita em
1947, pelo dramaturgo Tennessee
Williams, que recebeu o Prémio
Pulitzer por esta obra. A peça estreou na Broadway em Dezembro de 1947 e
permaneceu em cena durante dois anos no
Ethel Barymore Theatre, encenada por Elia
Kazan, com Marlon Brando, Jessica Tandy,
Kim Hunter e Karl Malden nos principais papéis. Na produção que estreou em Londres,
em 1949, encenada por Laurence Olivier,
os principais papéis eram interpretados por
Bonar Colleano, Vivien Leigh (na imagem) e
Renee Asherson.
Esta peça foi recentemente, e de forma
brilhante, encenada por Diogo Infante, no
Teatro D. Maria II, com Alexandra Lencastre
a representar o papel principal com uma
postura muito forte e consistente.
A peça apresenta-nos como personagem principal Blanche DuBois, uma mulher
sulista com a idade a pesar no rosto, mas
ainda atraente, com características de
personalidade borderline, que ostenta uma
armadura de supostos bons princípios e cultura, com um autêntico delírio de grandeza,
sendo ainda extremamente manipuladora
no relacionamento com os outros. Tudo isto
para ocultar, dos outros e de si própria, a
realidade que vive: uma dependência alcoólica, uma total ruína financeira e social, uma
extrema necessidade de aceitação e de ser
amada, sentimentos de perda no passado
mal geridos.
Blanche visita a sua irmã Stella em New
Orleans, que vive com o marido Stanley
Kowalski, membro da classe trabalhadora
industrial. A irmã recebe-a com muita reserva, temendo a reacção do marido à personalidade demasiado floreada e enfeitada de
Blanche. Blanche diz à irmã que perderam
a propriedade que a família possuía no sul
e que se encontra sem trabalhar como professora, com permissão do seu supervisor,
devido às suas crises nervosas. Na realidade
tinha sido despedida, após ter-se relacionado com um aluno, não tendo sido este o
único relacionamento problemático que teve
no passado. Na realidade, Blanche fora casada com um homem que amava muito, as
que teve relações extra-conjugais homossexuais, tendo depois cometido suicídio. Este
evento marcou-a demasiado, arrastando-a
para um mundo de não compreensão, onde
as fantasias e ilusões coexistem lado a lado
com a realidade. A chegada de Blanche
perturba a relação entre a irmã e o marido,
baseada em instintos basicamente animalescos. Stella preocupada com a irmã, aceita
acolhê-la em casa, entrando em colisão com
o marido que depressa se informa sobre
os factos do passado de Blanche. Stanley
confronta Blanche, de uma forma violenta e
cruel, com todos os acontecimentos que ela
tentava esquecer há anos, afirmando que
as diferenças de carácter que possui serão
prejudiciais para os que a rodeiam, independentemente do local que ela escolher para
viver. Depois de abusar física e psicologicamente dela, provocando em Blanche uma
entrega final à insanidade, entrega-a a uma
instituição, não tendo qualquer oposição por
parte da irmã. Blanche termina dizendo ao
Médico que a conduz: “Sempre dependi da
bondade de estranhos”.
Quando vi esta peça, apercebi-me que
ela pode ser encarada com uma representação da forma como a sociedade vê e trata o
doente mental, bem como as consequências
que advêm desse comportamento.
Blanche representa um ser humano,
potencialmente um de nós, que perante um
evento traumatizante e não vivenciado e
ultrapassado de forma saudável, desenvolve
comportamentos e formas de pensar patológicos e disfuncionais, que são no fundo
estratégias adaptativas criadas para lidar
com a situação em que se encontra.
Ora vejamos, perante o sentimento de
abandono e de baixa auto-estima, a personagem desenvolve uma atitude sedutora, vivendo relacionamentos impossíveis
e numerosos. Perante uma dependência
alcoólica e total incapacidade para trabalhar
babilónia
e ser independente, desenvolve delírios
de grandeza, auto-proclamando-se como
exemplo de virtude e boa educação, agindo como se nada se adequasse aos seus
elevados padrões. Todas estas técnicas
de fuga à realidade, apresentam-se como
bastante primitivas e até mesmo infantis,
mas são a única forma encontrada no
contexto em que se insere e sem qualquer
ajuda exterior no sentido de contenção, de
compreensão.
Poderíamos pensar que pela sua atitude
manipuladora de pessoas e factos, Blanche seria eventualmente perigosa para
os que a rodeiam, mas o que acabamos
por verificar é que ela é completamente
inofensiva, pois a sua fragilidade e imaturidade impedem-na de reacções agressivas,
até mesmo quando confrontada de forma
cruel e abusada por Stanley.
Stella e Stanley podem representar
duas atitudes bastantes transversais na
sociedade perante o doente mental. No
primeiro caso, verifica-se uma aparente
aceitação da situação, mas com uma
atitude demasiado passiva, sem qualquer
envolvimento profundo ou uma busca
pela verdadeira razão do comportamento
patológico, de forma a ajudar a ultrapassá-lo; na realidade é a postura mais fácil de
adoptar, pois não implica qualquer tipo de
desgaste ao interveniente, é um “deixa
andar”. No segundo temos uma atitude
recriminatória, abusiva e de assumida
superioridade perante uma pessoa que se
encontra fragilizada e sem possibilidade
de defesa. Stanley age para com Blanche
como se esta fosse uma ameaça para a
sociedade, quando na realidade é ele o
agente que lesa.
Não foi assim há tanto tempo que os
doentes mentais eram encerrados em
instituições como animais, com a justificação de que poderiam ser prejudiciais
para a sociedade, quando era esta que
os prejudicava, deixando-os entregues
aos seus delírios sem qualquer intuito de
os aceitar e promover a sua integração,
35
desumbiga
com o objectivo de melhorar a vivência
dos seus problemas, através do diálogo e
partilha com os que os rodeiam.
Felizmente, verificou-se que o único
resultado de uma atitude recriminatória,
rígida e agressiva era o agravar permanente de um comportamento patológico
que poderia ser ultrapassado.
Os doentes mentais são hoje tratados
maioritariamente em hospitais de dia,
regressando a casa, tentando construir o
seu próprio caminho e autonomia. Ainda
assim confrontam-se diariamente com incompreensão, com julgamentos ou então
com atitudes passivas que em nada lhes
são úteis. Acabam por vezes por desistir,
abrindo os braços aos delírios e ilusões de
forma definitiva, por não visualizarem outra forma de funcionarem e serem felizes.
Usando as palavras de Blanche, restam-lhes os Médicos, estranhos dos quais esperam ansiosamente uma atitude bondosa
e acolhedora, numa última tentativa de
viverem a realidade em que se inserem.
A minha questão é: estamos nós preparados para os acolher, com as suas particularidades e mentes complexas, que nos
desafiam diariamente a sermos criativos,
flexíveis e melhores seres humanos?
Será que compreendemos que qualquer
um de nós pode um dia ser uma Blanche?
Será que gostaríamos de ser tratados
como Stanley a tratou?
Deixo estas questões para que possamos reflectir, coma esperança que, depois
do longo caminho percorrido, um caminho igualmente longo surja, em direcção
à aceitação de todos os seres humanos
como iguais.
salomé Silva
[email protected]
babilónia
36
desumbiga
babilónia
o cinema não
são filmes...
“
Chegamos
em cima
da hora,
ainda conseguimos
bilhetes. Entramos
apressados, a sala
já está às escuras
e já passam os
primeiros trailers.
Curvamo-nos de
imediato para não tapar as
vistas a ninguém e a fala dá
lugar a sussuros. Finalmente
damos com o lugar 14 da fila
L e, já sentados, despimos o
casaco e pousamos no chão
o tal chapéu de chuva de que
mais tarde nos acabaremos por
esquecer. Às vezes lembramo-nos de pôr o telemóvel no
silêncio, outras vezes não. Não
importa. E ali vamos estar...
durante 90 e tantos minutos a
ver contar uma história. Não
viemos para apenas “espreitar”
(isso fazemos cada dia, com
as vidas dos nossos vizinhos
e colegas), aqui queremos
muito mais. Nós viemos para
ver. Satisfazer o nosso desejo
voyerista sempre ansioso para
saber o que está por detrás
daquela janela, ou que estão
a fazer dentro daquela casa.
Eventualmente, acabaremos
por corar, esboçar sorrisos,
encolher-nos na cadeira...e se o
filme merecer, mesmo mesmo,
vertemos umas lágrimas ou
37
desumbiga
soltamos umas gargalhadas.
Inicialmente assustamo-nos.
Estará alguém a ver-nos? Mas
depois percebemos que a sala
é escura e que ninguém sabe
que fomos nós... Isso tranquiliza-nos e voltamos ao filme.
Os 90 e tal minutos chegam
ao fim. Não ficamos para os
créditos (nunca vimos qualquer interesse nos créditos).
Depois de nos espreguiçarmos
e trocarmos um rectórico “gostaste?”, abandonamos a sala.
Já está. Usámos este filme para
relaxar. Provavelmente nunca o
voltaremos a ver. Foi prazeroso.
Já podemos ir para casa. “
Esta é a relação de muitas
pessoas com o Cinema. Vamos
ao Cinema na esperança de
trazer para a nossa vida, ainda
que por um par de horas, a
acção que escasseia na nossa
vida ou o drama que de certo
modo serve para nos relembrar
o quão privilegiados somos.
Outras vezes só queremos rir.
Na nossa mente, é um entre-
tenimento que usamos sem
pudor, para estabilizar ansiedades internas ou alimentar estados de humor. Contudo, não
deixa de ser interessante procurar um maior distanciamento
da situação para perceber
que quiçá somos nós próprios,
enquanto espectadores, que
estamos a ser usados por uma
indústria (cinematográfica) manipuladora. São realizadores,
guionistas, actores e atrizes,
técnicos de som e de fotografia, produtores, estúdios de
cinema...que durante aqueles
largos minutos decidem o que
vamos sentir. Nada é filmado/
contado ao acaso. A lendária
cena do chuveiro, do filme
“Psycho” de Hitchcock, por
exemplo. Não poderia, nos dias
de hoje, causar sequer a quarta
parte do medo e ansiedade,
despoletados em 1960 quando
estreou. Os efeitos especiais
estão ultrapassados, já não
assustam ninguém. Passou à
categoria de filme de culto. A
música de fundo desta
cena, no entanto,
mantém-se eficaz e
aplicada de forma
apropiada a um filme
actual, tem poder para
nos arrepiar. O Cinema
não se resume, portanto, a um filme. É uma
experiência sensorial
complexa que envolve
sons, imagem, sentimentos e
pensamentos. O novo Clube
de Cinema da Faculdade de
Medicina de Lisboa (FML), o
CêCê (CC), procura desmontar o Cinema. De uma forma
amadora mas muito dedicada e
entusiasta, juntamo-nos (membros do clube) quinzenalmente,
na sala multiusos da FML, para
participar (e não meramente
assisitir) na complexa experiência que é o cinema. Corremos
vários estilos e géneros, dentro
do Cinema Indie-Alternativo
e depois de viver duas horas
de um filme mastigamo-lo em
conjunto. Debatemos enredos,
técnicas e performances artísticas. Pomos em causa as visões
de alguns realizadores e ou evidenciamos paralelismos com
a sociedade actual. Opinamos.
Opinamos muito. E só depois
vamos para casa.
Tiago Miranda
Vítor Magno
Alexandre Freitas
38
desumbiga
Estórias clínicas
cornelia PARKER - Marks made by freud, subconsciously (MACROphotograph of freud’s
a vida é dura para quem é mole u a doença u ESTÓRIAS CLÍNICAS
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desumbiga
estórias clínicas
A vida é
texto escrito e publicado no blog
dura
Consciente, Orientada e Colaborante
para quem é
http://conscienteorientadaecolaborante.blogspot.com
mole
durante uma estadia na Guiné no âmbito de uma
missão de voluntariado da AMI
O
dia começou
soalheiro numa
tabanca chamada
“Madina” e a D.
Domingas foi ao
mato buscar um legume para
o almoço, nada de especial
até aqui, a vida corria sem
percalços, um dia normal na
vida de uma mulher Guineense! Mas, e há sempre
um mas… Há 4 espécies
de cobras venenosas nesta
região! Há muitas cobras na
época das chuvas! Há mato!
Há azar na vida… Há um pé
que é mordido por uma cobra! Pede-se ajuda… liga-se
para a AMI! Vamos a correr. A
viagem de jipe parece interminável, tentamos definir um
40
desumbiga
plano de acção para quando
chegarmos ao destino não
perdermos tempo.
Chegamos a Madina, toda
a aldeia está em alvoroço, há
olhos cheios de esperança,
talvez “os brancos” tragam
a solução… A senhora vem
meio inconsciente, é trazida por 4 homens até nós,
improvisa-se uma sala de
cuidados intensivos na parte
de trás do jipe. Há gente por
todo o lado! Avaliam-se os
sinais vitais… o pulso mal
se sente! Entrou em choque! Ouvimos o batimento
cardíaco ir embora… e levar
com ele a esperança de ter
sido uma cobra não venenosa. Não há nada a fazer!
Fecham-se as pálpebras
da senhora com respeito e
olha-se para baixo… também
não há nada a dizer! Inevitável! Toda a aldeia rompe em
choro e ranger de dentes. O
sofrimento, nesta terra, faz
barulho, atira-se para o chão,
não tem vergonha de chorar
ou de perder a postura, por
aqui borrar a maquilhagem
não parece importar a quem
perdeu “uma Domingas”.
Agora, é preciso levar o
corpo para casa, o funeral
ou o “toca-choro” como lhe
chamam vai decorrer nos
próximos dois dias. O jipe
leva o corpo e a família que
lá coube… eu vou a pé com
outro membro da equipa!
Caminhamos 20 minutos em
silêncio! Nunca o silêncio foi
tão confortável e apaziguador! Pelo caminho ouvem-se
gritos de desespero, emoções sem filtro, toda a comunidade corre para consolar a
família. À chegada resta-nos
dizer “fizemos o que pudemos”…
A viagem para casa
é também uma reflexão
sobre a nossa insuficiência,
passamos a vida a acreditar
em super heróis, habituámo-nos a esperar que ao último
minuto a princesa seja salva
e o dragão morto… mas a
realidade é outra! A vida
é outra… é dura. Não há
efeitos especiais, não há desenlaces de última hora. Não
há heróis. A vida é dura e
nós somos moles… molinhos,
fazemos o nosso melhor,
esforçamo-nos, lutamos,
estudamos… mas a nossa
insuficiência é avassaladora!
Saber isto, ter consciência da
nossa “moleza” ou da nossa
consistência pode, por um
lado, tornar-se libertador… é
bom saber que não controlamos tudo, que nem tudo
depende do nosso esforço!
A humildade aproxima-se de
formas estranhas…
BIANCA BRANCO
(TEXTO E FOTOGRAFIAS)
estórias clínicas
41
desumbiga
estórias clínicas
DOENÇA
A
doença. A doença que suspeitamos não ter, mas está lá, as dores de uma artrite ganha por pesos
e pesos levantados, voluntariamente, quando o Mundo se vira e diz “descansa!”
Não descansas, e ainda insistes, numa fulgura que só te agrava o manejo das articulações, doridas e cansadas de suportar tudo o que os ombros já deixaram escorrer para as outras divisões
corporais.
A solidão do gesto diário, repetido até mais não por uma força que não sabes de onde vem, mas que a
vivacidade da persistência teima em não te deixar parar.
Mas parar tem de ser. Ou a doença não pára, não regride, progride até te imobilizar, até consumir cada
célula permeável a cada dor nem sempre física mas sempre mordaz, sempre à espreita de uma insignificante brecha por onde possa entrar.
E é um caminho sem retorno.
Metáforas do que se sente? Talvez. Mas metaforicamente falando, a doença é uma puta que não nos
deixa viver, que se impregna ao mais íntimo do sentir que queres ignorar e que te surge à frente como
paredes em construção de uma casa que nunca será habitada.
Mas essa era a casa que queria. Que deveríamos ter. Se é nossa por direito, porque não pudemos lá
morar?
Metáforas à parte, a vida é uma grande merda.
E para esta frase, não há eufemismo que lhe valha.
(São só palavras. Nada mais do que isso. Palavras!)
daniela alves
42
desumbiga
estórias clínicas
ESTÓRIAS
naquela guerra. Não é o primeiro que traz a sua história
de África, trazem-na todos,
cicatrizada nas palavras ao
doutor, o que trata as dores
dos velhos.
O senhor fuma? Não
senhor. Com o compasso
vagaroso, continua. Nunca
fumei, nunca me emborrachei
e nunca recorri aos serviços
pagos de uma senhora. Sou,
portanto, aos olhos do típico
homem português, um mariquinhas.
III.
MINA ANGUELOVA - O DESEJADO
@ www.minanguelova.blogspot.com
D
I.
P
orque há Medicina
e há Cirurgia. Não
custa distingui-los. Os
médicos referem-se à
Cama Seis. Os cirurgiões, por seu lado, referem-se a
algo mais concreto. A Tiróide, a
Supra ou o Feo. É tão estranho,
por isso, chegar a Pediatria e
falar-se no Ruben, na Sara e no
Bebé Borges.
Dois cirurgiões comentam o
plano para o bloco operatório
da semana. “Tenho uma tiróide
para preencher a vaga que sobra de amanhã, vou telefonar
para que seja internada hoje.
Amanhã são três tiróides e uma
para.” Durante o telefonema, a
cirurgiã não esquece a simpatia. “Tinha aí uma tiróide que
me disse que estava disponível, vê lá se lhe telefonas a
avisar.” Regressando de novo
43
desumbiga
à aula, procuramos focar-lhe a
atenção no caso que vimos. Por
momentos, não se fala apenas
do órgão. “Essa mulher é doida, completamente passada!”
II.
V
eio à sua consulta,
o senhor J. De olhar
simpático e postura
composta, conta
pausadamente das
dores que mantém, dos dias
que vive só em casa. Usa palavras aprumadas, cuidadosamente colocadas nas frases, de
caligrafia bonita e em velocidade de cruzeiro. Um embalo.
Porque o senhor J. esteve na
guerra do Ultramar. Viveu
muito lá, traz outras mazelas e
agora é para isto que a vida o
reservou, depois de tanta vida
e manhã, recebi o
sorriso de sempre
quando me viu,
apertou a minha
mão com um pouco mais de força quando tive
de sair, quis-me mais tempo com ela. E agora, outra,
aperta-me de novo a mesma
mão, mas não me quer ali.
Chamou pelo doutor, que
eu não lhe bastaria. Não me
olhava, afastava o meu braço
com a força que lhe restava e
que ainda surpreendia por ser
suficiente para nos enfrentar.
Não me quis dizer como a
poderia ajudar e não a quis
magoar mais, a sua intolerância pela minha presença não
ia acabar bem. Chamei quem
mais autoridade tem para
resolver a situação. Quis ajudar
enquanto lhe tiravam o sangue
que era preciso. Dei-lhe a mão,
para que não fosse estragar o
trabalho e magoar-se e para
que soubesse que alguém ali
estava. Geralmente, sossega.
E apertou-me a mão, com as
unhas cravadas na minha carne, para que doesse, para que
desistisse, para que a abandonasse. Não o fiz. Abracei mais
a mão, para que as unhas não
conseguissem encontrar de
novo caminho para a minha
carne, e fingi que a marca
que me ficou na pele não fora
propositada. Porque, apesar de
tudo, não deixamos de ajudar.
IV.
O
guia e o guiado.
Quem queres ser?
Ele cheirava demasiado a tabaco.
Os olhos caídos
recusavam-se a fechar e passeava por ali. Viu-nos e pediu
licença, na sua voz de metediço natural da idade, para
fazer um telefonema. O pijama
prendia-o ao serviço e a espera
que aguardávamos permitiu a
cedência. Ficou muito grato e
aproveitou para dar motivo às
palavras que insistiam em sair
de si.
Ele tem um projecto. Vai
encher o mealheiro que tem
em casa, aquele que lhe chega
até ao ombro, e vai-nos oferecer uma sapateira. Vai poupar
para comprar uma casa. Vai
trabalhar, ser bom estudante,
muito bom estudante. Fala-nos dos amigos que lhe vão
arranjar umas falcatruas para
poder recomeçar a sua vida. E
explica-nos um pouco da vida.
Porque há quem guia e
quem é guiado. Quem queres
ser? É fácil ser guiado, é só
seguir, mas ser guia é melhor.
O guia encontra obstáculos,
mas tem os seus guiados. E
consegue.
Ele falou. Muito. Por vezes
nem esperava que alguém o
ouvisse. Está atento, apesar de
tudo, e sabe o número exacto de dias que aqui está. Em
breve, ficará melhor e poderá
sair. Tem um mealheiro à sua
espera.
ANA TERESA PRATA
[email protected]
44
desumbiga
peregrinação
mauricio pezo
cornelia parker
impressões do louvre
45
desumbiga
peregrinação
impressões
do LOUVRE
N
ão se deve visitar o
Louvre como um museu
normal. Habitualmente,
a grande preocupação que temos ao ver
uma exposição é a de saber que
deitámos um olhar a todas as
peças. Mesmo que só por um
segundo. O Louvre ajuda-nos
a destruir esse nosso estúpido
hábito. Porque ali percebemos
rapidamente ser impossível ver
muito mais que meia colecção
num dia inteiro de visita. Claro
que podemos correr e passar
por todas as galerias tentando
bater o record de 9 minutos e 43
segundos estabelecido no filme
Bande à part de Jean-Luc Godard. Mas provavelmente seríamos expulsos pelos seguranças
antes de terminar o périplo. Por
isso, caso queiramos acabar a
visita, é mais seguro optar pela
conservadora marcha-a-passo-de-ver-museus.
S
exta-feira à noite é a
melhor altura para a visita. O ambiente nocturno
e a pouca afluência de
gente tornam o museu
íntimo. Sexta-feira à noite vai-se
fazer companhia às estátuas solitárias ou às telas que precisam de
alguma atenção. O Louvre torna-se
um pequeno país que resume a
história de todos os outros países
do mundo através das obras de
arte que o povoam. Há uma espé-
46
desumbiga
cie de ecossistema que se revela.
Podemos ficar por lá, em salas
majestosas, acreditando que são a
nossa casa, subitamente decorada
por obras primas do renascimento
italiano ou antiguidades gregas.
o acontecimento é o público em si
mesmo. As pessoas, vivas, falando
e agindo, serão sempre mais interessantes que qualquer objecto.
Mas do outro lado, em Richelieu,
vamos encontrar, ao mesmo tempo, as colecções mesopotâmicas
num sossego místico. E assim,
involuntariamente, o museu faz
ainda pensar sobre a própria
construção da História, da Cultura e seus mitos.
É
A
simetria arquitectónica
do edifício contrasta com a distribuição
irregular dos visitantes
pelas galerias. O museu
divide-se em três grandes zonas:
Denon e Richelieu, laterais, e Sully,
central. Na ala Denon, encontra-se
o epicentro do frenesim turístico,
desenhando uma meia-lua de
segurança à volta da Mona Lisa. Aí,
preciso ir várias vezes
ao Louvre, como se
ele se tratasse de uma
pessoa muito interessante com quem
gostássemos de conversar.
Uma ou duas salas por visita,
é o ideal. Olhar bem para os
quadros que estão nas filas de
cima também. Tirar notas sobre
os artistas. Consultar a internet
no telemóvel inteligente e ler no
imediato sobre as correntes ou
sobre aquela obra em particular.
E assim, aos poucos vamos construindo o nosso museu mental. A
quem saiba o Louvre de cor pouco
mais se pode exigir.
Bernardo moura
(TEXTO E FOTOGRAFIAS)
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CICLO DE EXPOSIÇÕES NO EDIFÍCIO EGAS MONIZ
JANEIRO - JULHO 2011
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Des1biga n.º 17 - Delirium