XXIV Jornadas Luso Espanholas de Gestão Científica
6,7,8 fevereiro 2014 - Leiria
GESTAO DAS ORGANIZAÇOES SEM FINS LUCRATIVOS
RELAÇÕES DE PODER EM UNIDADES DE INTERNAÇÃO
ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: ESTUDO DE CASOS.
PARA
Anderson Marques da Silva ([email protected])
Marlene Catarina de Oliveira Lopes Melo ([email protected])
Ana Lúcia Magri Lopes ([email protected])
Faculdade Novos Horizontes
Mestrado Acadêmico em Administração
Av. Alvarenga Peixoto, 1270
30180-121 Belo Horizonte (Brasil)
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar as relações de poder no interior de unidades de internação
para adolescentes em conflito com a lei, na percepção de suas diretoras. Trata-se de um estudo de
caso, com abordagem qualitativa e coleta de dados, por meio de entrevistas semiestruturadas. Os
sujeitos desta pesquisa foram três diretoras que atuam diretamente em três unidades
socioeducativas para adolescentes infratores, localizadas em Belo Horizonte: uma destinada à
internação provisória; outra destinada ao publico feminino e, outra, ao publico masculino em
cumprimento de medida por tempo indeterminado. Os dados foram analisados à luz das técnicas de
análise de conteúdo. Os resultados demonstraram que para manter-se na posição de gerenciamento
de uma unidade de internação é imperativo o desenvolvimento de estratégias e práticas de
flexibilização por parte da direção. Foi possível apreender, ainda, que as relações de poder em tais
unidades estão fortemente presentes, perpassando o cotidiano destas instituições.
PALAVRAS-CHAVE: Relação de Poder, Adolescentes Infratores, Unidade de Internação.
ABSTRACT
This article aims to analyze the relations of power within the inpatient units for adolescents in
conflict with the law, in the perception of its directors. This is a case study with a qualitative
approach and data collection through semi-structured interviews. The subjects were three directors
who work directly in three socio units for young offenders, located in Belo Horizonte: one for the
detention, one for a female audience, and the other to the male public in compliance measure
indefinitely. The data was analyzed using the techniques of content analysis. The results showed
that to keep yourself in the position of managing an inpatient unit is imperative to develop
strategies and practices of flexibility on the part of management. It was possible to understand also
that the power relations in such units are strongly present, going through the daily routine of these
institutions.
KEY WORDS: Relation of power, Teens Offenders, Internment Unit.
1. INTRODUÇÃO.
Diante de um contexto em que jovens infratores são colocados frequentemente em destaque, sobretudo pela
mídia e opinião pública, as relações de poder que se desenvolvem neste cenário, constituem-se em elemento
extremamente importante para a busca da compreensão do gerenciamento de unidades de internação para
adolescentes em conflito com a lei.
Na perspectiva de Blackburn (1997, p. 301) o poder pode ser entendido como a “capacidade de se mobilizar
forças econômicas, sociais ou políticas para obter certo resultado”, podendo ser exercido de forma
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deliberada, consciente ou não. No entender de Foucault (2009), entretanto, o poder deixa de existir na medida
em que é utilizado como um instrumento de diálogo entre os indivíduos de uma sociedade, pois abre espaço
para o estabelecimento das relações de poder.
Assim, as relações de poder podem se estabelecer de forma peculiar nas organizações tanto privada quanto
pública, como é o caso das unidades de internação destinadas a adolescentes envolvidos com atos
infracionais. Essas unidades seguem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) regido pela Lei Federal
n. 8069 de 1990, que traz em seu artigo 122, que a aplicação da medida socioeducativa de internação deve
ocorrer caso o ato de contravenção for cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por
reiterações no cometimento de outras infrações graves e por descumprimento da medida anteriormente
imposta. O período máximo de internação que os adolescentes poderão ser submetidos é de três anos, sendo
os jovens submetidos à avaliação técnica a cada seis meses de permanência na unidade. Mesmo passando boa
parte da adolescência em unidades de internação e, apesar de se considerarem vítimas, os jovens posicionamse sem qualquer inibição e seguem praticando atos infracionais. Foucault (2010) retrata essa realidade ao
falar da finalidade de “classificar, qualificar e punir”, estabelecendo sobre os indivíduos uma visibilidade
através da qual eles são diferenciados e sancionados.
Ressalta-se, no entanto, que nas unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, esses
exercem uma relação de poder muitas vezes implícita, sobrepondo-se ao poder dos diretores, de modo a
produzirem uma nova rotina que não a institucional. Em unidades de internação provisória tal situação pode
ser ainda mais acentuada, uma vez que essa se apresenta como a porta de entrada para o cumprimento de uma
medida socioeducativa.
Assim, problemas de violência, sobretudo física, podem ocorrer uma vez que os adolescentes estão diante de
uma espécie de “contrapoder” exercido, até então, por funcionários responsáveis pela segurança do local, que
em muitos casos inclusive, são acusados de cometer atos violentos para impor a rotina institucional e limitar
o poder de ação dos internos. Todavia, em determinados períodos de tensão vivenciados nessas unidades
como, por exemplo, rebeliões, os profissionais que ali trabalham podem vir a ser alvo de atos intimidatórios
por parte dos adolescentes. Nesse sentido, Olic (2009) evidencia que os jovens se utilizam de estratégias para
se apropriar das fraquezas e medos do outro, como forma de coação desses profissionais.
Importa lembrar que os embates de poder não se resumem apenas à relação entre funcionários e adolescentes,
mas ocorrem também entre os próprios adolescentes. Dessa forma, os diretores que atuam nessas unidades
para adolescentes em conflito com a lei, têm que lidar com a existência de uma relação de poder que não
contribui para o cumprimento da medida socioeducativa. Embasados no que preconiza o ECA, os diretores
procuram desconstruir a ideia de uma “estrutura carcerária” no interior dessas unidades, no intuito de
eliminar o pensamento de maior poder e status nas mãos de uma liderança que não seja a sua. Por sua vez, os
adolescentes infratores, acabam por se sujeitar ao domínio dessas lideranças, em virtude do medo que “está
associado com a permanente ameaça de violência física, independente de onde venha” (Adorno; Salla, 2007,
p. 16).
No caso específico de unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, localizadas em Belo
Horizonte-MG, o adolescente é privado de liberdade se for apreendido em flagrante de ato infracional ou por
ordem escrita e fundamentada por uma autoridade judiciária competente, em conformidade com o disposto
no artigo 108 do ECA. No primeiro momento, o adolescente é encaminhado para uma unidade de
atendimento, denominada Centro de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional, onde é
apresentado ao Ministério Público para audiência com o Promotor de Justiça. Ao receber a aplicação da
medida socioeducativa, o adolescente, é encaminhado para uma Unidade de Internação Provisória. Neste
espaço, o adolescente permanece por até 45 dias, aguardando a decisão da Justiça Menorista sobre qual
medida socioeducativa caberá àquele adolescente.
No entanto, ao adentrar à Unidade de Internação, o adolescente tem seu papel redefinido. Neste sentido, os
diretores de unidades, sejam de internação provisória ou por tempo indeterminado, encontram-se diante de
uma relação de poder imposta, seja ela velada ou não. Um exemplo claro de tal situação é o chamado
“seguro”, local dentro da unidade em que alguns jovens permanecem isolados dos demais por motivo de
desavenças. O “seguro” é constituído por adolescentes que tiveram algum tipo de prática, que vai contra os
padrões morais estipulados pelos próprios adolescentes ou pelos agentes de segurança, seja dentro ou fora das
Unidades. Dentre os principais atos e ações condenadas por eles são: o estupro, o desrespeito nos dias de
visita (olhar para a família de outro adolescente, andar sem camisa enquanto houver visita no pátio ou colocar
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a mão nas partes íntimas), além do não cumprimento das regras de convívio estipuladas pelos adolescentes
que ocupam, informalmente, cargos de liderança.
Buscando entender a dinâmica e os mecanismos de poder que faz parte da rotina de profissionais que
desenvolvem seu trabalho para o cumprimento da medida socioeducativa por parte dos adolescentes
pergunta-se: como se dá as relações de poder no interior de unidades socioeducativas para adolescentes em
conflito com a lei? Para que tal questionamento seja respondido, este artigo tem como objetivo analisar as
relações de poder no interior de unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, na percepção
de seus diretores.
Este artigo está organizado em seis seções a partir desta introdução. A segunda seção aborda o referencial
teórico que trata questões relacionadas à função gerencial e às relações de poder nas organizações. A terceira
seção apresenta a metodologia utilizada para o desenvolvimento desta pesquisa. A quarta seção traz a análise
dos dados coletados, seguida pelas considerações finais e referências.
2. AS ORGANIZAÇÕES, A FUNÇÃO GERENCIAL E AS RELAÇÕES DE PODER.
A função gerencial vem sendo objeto de estudo por parte de teóricos no campo da Administração, tendo
como pioneiro Henri Fayol (1916). Posteriormente, diversos autores como Barnard (1938); Carlson (1951);
Mintzberg (1973); entre outros, se debruçaram sobre essa temática contribuindo para um melhor
entendimento sobre a importância da função gerencial nas organizações, e algumas peculiaridades próprias
de grupos gerencias que desempenham uma variedade de papéis.
Mintzberg (1990) ressalta que a função gerencial tem caráter de brevidade, variedade e descontinuidade.
Complementando, Motta (1993) aponta a dificuldade de se obter uma única definição sobre a função
gerencial, já que o trabalho de gerentes é ambíguo, intenso, descontínuo, fragmentado e de natureza variável,
realizado por meio de tarefas imprevistas. Assim, a nova forma laboral, caracterizada pela flexibilização do
trabalho, focada na qualidade e produtividade, apresentam grandes desafios aos gerentes.
Nesse contexto, evidencia-se uma nova reestruturação do papel da função gerencial, no qual as organizações
buscam, cada vez mais, habilidades humanas e interpessoais como criatividade, flexibilidade, dinamismo,
comunicação, intuição, dentre outros aspectos importantes (OLIVEIRA, N.; OLIVEIRA, R.; DALFIOR,
2000), para o melhor desenvolvimento das atividades organizacionais.
Reed (1997) já apontava que o aumento da flexibilidade nas práticas e nas organizações de trabalho traz
efeitos na estrutura das organizações no que tange às práticas de gestão e na natureza das tarefas
desenvolvidas. Para o autor, a natureza da estrutura e da gestão apresenta uma ordem estratificada,
atravessada por redes de relações que sustentam e corroem sua sustentabilidade. O autor ressalta, ainda, que
mesmo com uma estrutura formal de gerência e uma rígida divisão do trabalho, a complexidade das práticas
de gestão impõe modos de interação que alteram as maneiras de condução e enfraquecem as barreiras
existentes nas organizações de trabalho. Assim sendo, o trabalho de gestão deve saber adaptar conflitos e
imperativos da diferenciação social às exigências da prática sociopolítica.
Na perspectiva de Megginson (1986, p. 6) “as funções gerenciais básicas são as mesmas tanto para as
pequenas empresas como para as grandes; para as organizações públicas e semi-públicas, bem como para as
privadas; para as empresas manufatureiras, organizações de serviços e lojas; e para firmas nacionais,
estrangeiras e multinacionais”. Em outras palavras, as funções de administração são basicamente as mesmas
para qualquer espécie de organização.
No tocante às particularidades da função gerencial, Davel e Melo (2005) revelam algumas considerações
importantes. Para os autores, a ação gerencial é dinâmica e ambivalente, instável e contraditória. Nesse
contexto, o gerente tem sua identidade construída sob tensão, e a aprendizagem em lidar com isso está no
cerne da modificação e transformação de um indivíduo em gerente.
Mas, para que o gestor consiga desenvolver seu trabalho deve atuar como um mediador de conflitos dentro e
fora da organização (PAGÈS et al, 1987); (SPINK, 1997), trabalhando em um tempo estratégico na tentativa
de garantir acordos que permitam o cumprimento das atividades (BUTLER, 1995). Tais ações constituem-se
em tarefas complexas, pois envolvem interesses diversos que, sem dúvida, exigem preparação por parte dos
gestores para lidar com heterogeneidades.
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Tanto os cargos de diretores, como de gerentes, possuem a função de organizar e de zelar para o bom
andamento da organização. Willmott (2005) salienta que o trabalho do gerente é organizar e controlar o
processo de trabalho dos outros, direcionando-os e submetendo-os – inclusive ele próprio - às prioridades
organizacionais. Esses profissionais, no entanto, necessitam de constante atualização para um melhor
desenvolvimento de seu trabalho.
Desde o surgimento da teoria denominada direção participativa, as organizações já não são um sistema rígido
de regras, mas sim um local de cooperação. Enriquez (2007) afirma que as organizações não são lugares
apenas formais e impessoais, e que toda organização possui microculturas, unidos por uma afinidade
coletiva.
Para Bronzo e Garcia (2000, p. 45) o desenvolvimento das teorias organizacionais revela uma complexidade
própria: ao longo do tempo e a partir de certas orientações epistemológicas, as teorizações formuladas no
campo da Administração refletiram uma forma particular de observação dos fatos sociais na esfera da
produção e do trabalho, carregada de valores e referências dominantes. “Isso não representa propriamente
uma surpresa, sobretudo se nos conscientizarmos de quais foram os benefícios práticos dos estudos
organizacionais, neste século, para o desenvolvimento do controle gerencial e das estratégias para a
manutenção das relações de poder nos circuitos internos de exploração da força de trabalho”.
2.1. As relações de poder, a punição e a disciplina do corpo.
Um pouco da história sobre punição e do surgimento do sistema prisional é abordado nos estudos de Foucault
(2009, p.43), como sendo um sistema muitas vezes, injusto, ao explicar que “o corpo do condenado é
novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público”.
É sabido que nas organizações que utilizam o sistema socioeducativo existem padrões de pensamentos e
comportamentos, mas também que se torna impossível ignorar as relações de poder existentes nesses
ambientes. Neste sentido, Foucault (2009) assegura que as relações de poder existentes nas diversas
organizações como instituições, hospitais, escolas, prisões, quartéis, foram marcadas pela disciplina,
afirmando que essa prática já apresenta uma maneira específica de punir. O autor complementa que é pela
disciplina que as relações de poder se tornam mais facilmente observável, pois por meio dessa disciplina são
estabelecidas as relações entre o opressor e o oprimido, entre o mandante e o mandatário, entre o persuasivo e
o persuadido, e tantas quantas forem as relações que exprimam comando e comandados.
Nesse sentido, a temática das relações de poder apresentada por Foucault (2009), analisa as instituições a
partir do dispositivo panóptico, de vigilância e invisibilidade, que se baseia em três elementos arquitetônicos:
espaço fechado, divisão em celas e torre central. Desse modo, da torre é possível enxergar as celas, muito
embora das celas não seja possível enxergar quem está na torre e nem tampouco em outras celas. Foucault
(2009, p. 194) destaca que “o panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus
mecanismos de observação, ganha eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens”.
Assim, a questão da disciplina irá fabricar corpos submissos, ‘dóceis’, aumentando o poder econômico do
corpo diminuindo essas mesmas forças, em termos políticos de obediência. Por um lado faz do corpo uma
‘capacidade’ que ela procura aumentar; invertendo por outro, sua potência.
Em relação às instituições destinadas a indivíduos privados de liberdade, Carvalho (2003) aponta as
modificações pelas quais passam os adolescentes no âmbito dessas instituições: a sequência de horários, a
rotina diária, as preferências alimentares, são elementos totalmente subtraídos dentro de uma unidade de
internação. Outra alteração sofrida é a desfiguração pessoal por meio da exclusão da aparência trazendo a
perda do conjunto de identidade da pessoa. Corpo e mente, gradativamente, passam a compor uma dinâmica
de tensão permanente, punição e disciplina, que aos poucos vai encontrando sua forma, em consonância com
a dinâmica da instituição.
Segundo Goffman (2003) a admissão em um centro de internação marca uma série de alterações no cotidiano
dos adolescentes. As imposições colocadas por esses centros, entre o momento de internação e a comunidade
externa assinalam o primeiro impacto. Para o gerenciamento de unidades de internação, o indivíduo
estabelece uma afinidade entre a sua forma de administrar e o seu relacionamento com as demais pessoas.
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Freitas (2007) revela que a identidade profissional cada vez mais se confunde com a identidade social e segue
mobilizando a subjetividade dos indivíduos, que se fascinam com a organização, mesmo estando distante de
seus locais de trabalho. Para Enriquez (2000) o indivíduo se aprisiona na armadilha de sua vontade de
reconhecimento, então, o sujeito se entrega de corpo e alma ao modelo da empresa. Sem perceber que é
manipulado, acredita participar de um processo cooperativo.
Para compreender o poder em suas raízes Foucault (2009, p. 16) inspirou-se na insurreição dos saberes
marxistas, psicanalíticos e psiquiátricos, contra o modelo das instituições psiquiátricas e a sua
sustentabilidade que reside nos efeitos do poder e de saber de um discurso científico. “Poder é guerra, guerra
prolongada por outros meios”. Guerra nas diferentes formas de se dar: silenciosa nas instituições e nas
desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos. O que significa dizer, para Foucault
(2009), que as relações de poder nas sociedades atuais têm por base uma relação de força estabelecida, assim
como as relações de poder nos centros socioeducativos.
Dessa forma, o gerenciamento de unidades de internação passa por situações de legitimação de poder.
Enriquez (2007, p. 61) deixa claro que para se trabalhar na direção de uma organização é necessário possuir
algumas competências especificas e, a “autoridade passa a ser, então, função do grupo encarregado de gerir
sua organização”. Não se pode admitir, entretanto, que exista somente uma fonte ou instrumento de poder em
ação na unidade de internação para adolescentes infratores, deve-se considerar às diversas combinações das
partes que compõem o chamado “sistema” socioeducativo.
Cabe ressaltar que as unidades de internação são marcadas pela rigidez de suas normas, tendo a disciplina
como o princípio de toda a lógica organizacional administrativa. Foucault (2010, p. 203) afirma que
a disciplina é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta
todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de
aplicação, de alvos; ela é uma “física”, ou uma “anatomia” do poder, uma
tecnologia.
Nesse sentido, a disciplina teria a função de aumento das habilidades do corpo, aprofundar sua sujeição a
outrem, e, principalmente, constituir uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente e mais
útil; assim, forma-se uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação
calculada de seus elementos, de seus gestos e de seus comportamentos, a fim de torná-lo apto ao convívio
social, conforme aponta Foucault (2009).
Com relação às unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, fica evidente a construção,
no âmbito social-prisional, de uma correlação entre o sistema de ação informal e oficial de ação. Essa
interação – somada às práticas disciplinares e aos métodos de coerção, muitas vezes considerados violentos –
ocasiona um exercício e uma relação de poder, que, não é imposto de fora, mas fruto das próprias relações
estabelecidas e interiorizadas pelos indivíduos envolvidos. Assim, essas unidades de internação, sejam elas
provisórias ou não, se submetem a ordem social, comportando-se como uma moduladora de corpos e atitudes
no momento em que transforma esses adolescentes.
2.2. A questão infracional – entre o Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Lei 6697 de 10/10/1979, conhecida por Código de Menores, foi elaborada por um grupo de juristas
selecionados pelo governo, para substituir o Código de Menores, anteriormente utilizado. Não trazendo em si
mudanças expressivas, representa pressupostos e características que coloca a criança e o jovem, pobres e
despossuídos, como elementos de ameaça à ordem vigente. O chamado novo Código atuava no sentido de
reprimir, corrigir e integrar os considerados marginalizados e desviantes de instituições de acolhimento de
crianças e adolescentes, valendo-se dos velhos modelos correcionais.
Conforme o preconizado no antigo Código de Menores, crianças e adolescentes considerados perigosos,
como os abandonados, carentes, infratores, ou que demonstravam comportamento diferente, deficiência ou
doente, ocioso ou que permanecesse nas ruas eram passíveis, em um momento ou outro, de serem enviados
às instituições de recolhimento. Na prática significava que o Estado podia destituir determinados pais do
poder familiar por meio da decretação de sentença de "situação irregular"; tendo a "carência" econômica sua
principal hipótese de "situação irregular". Essa política de repressão e de confinamento provocou indignações
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por vários segmentos da sociedade não alienada, preocupada com a questão dos direitos humanos, tanto pela
perversidade de suas práticas, como pela ineficiência de seus resultados.
A Constituição da República Federativa do Brasil (1998) mostra outra realidade, modificando o paradigma
envolvendo crianças e adolescentes:
"É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar a criança e o
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a
consciência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência e opressão".
Iniciou-se, então, uma articulação em favor dos direitos constitucionais e direitos infanto-juvenis, resultando
na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, instituído pela Lei 8069/90. Foi introduzida,
nesse Estatuto, uma série de mudanças relacionadas ao trato dado à questão da Infância no Brasil. Mas sem
dúvida, a mais importante e significativa foi a passagem da condição de situação irregular para a situação de
proteção integral.
A Carta Magna de 1988 traz em seu artigo 228, a garantia de que são penalmente inimputáveis os menores de
dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. Desta forma, a eles não é possível atribuir
responsabilidade penal, uma vez que ainda se encontram em processo de desenvolvimento. Todavia, observase, sobretudo na opinião pública, conteúdos estigmatizados sobre os adolescentes em conflito com a lei,
nomeando-os como trombadinhas, pivetes, bandidos, vagabundos e outros estereótipos.
Assim, a Lei 8069/90 é hoje, alvo de severas críticas e contestações, apresentando dissensos acerca do
conceito de ato infracional ou delito. O ECA, em seu artigo 103, descreve o ato infracional como “a conduta
descrita como crime ou contravenção penal”. Nesse sentido, o adolescente em conflito com a lei, por ter
praticado ações delituosas, é desqualificado enquanto adolescente e visto apenas sob o prisma da lei. De
acordo com Volpi (1997, p. 9) essas visões reforçam posturas policialescas ao comentar que:
a segurança é entendida como a fórmula mágica de proteger a sociedade... da
violência produzida por desajustados sociais que precisam ser afastados do
convívio social, recuperados e reincluídos. É difícil para o senso comum juntar a
ideia de segurança e cidadania. Reconhecer no agressor um cidadão parece ser
um exercício difícil e, para alguns, inapropriado.
Segundo Oliveira Júnior (1999) os adolescentes que cometem crimes são abordados como autores de ato
infracional e devem ser orientados de forma diferente da maneira repressiva. Nem os conselhos tutelares e
nem o Juizado de Menores têm por atribuição apenas o caráter repressivo ou punitivo.
A suposição assumida é a de que não se pode exigir de pessoas muito jovens os
mesmos padrões comportamentais esperados dos adultos, e que o papel destes
últimos é educar, ou seja, ensinar e atrair as crianças e adolescentes para
viverem em concordância com tais padrões de conduta (OLIVEIRA JÚNIOR,
1999, p. 84)
Os casos envolvendo crianças, ou seja, as pessoas de até doze anos de idade incompletos, são analisados sob
o prisma de um indivíduo em condição peculiar de desenvolvimento que ainda não consolidou sua identidade
e seu caráter de maneira completa, e que deve antes de tudo ser assistido, ao invés de ser punido. Se a criança
é autora de um ato considerado criminoso, deve-se realizar um trabalho envolvendo sua família para
identificar e avaliar as possíveis falhas nas políticas públicas e tentar o melhor encaminhamento ao caso. Já o
adolescente que comete ato infracional será encaminhado ao Juizado da Infância e da Juventude onde
responderá pelo seu ato. Dessa forma, o ECA representou um grande avanço por vários motivos, dentre eles,
considerar crianças e adolescentes seres humanos em desenvolvimento e sujeitos de direitos e de deveres em
substituição às ideias de condenação, discriminação e exclusão com a implantação de medidas protetivas e
socioeducativas, no intuito de promover a proteção e garantir os direitos da criança e do adolescente, além de
consolidar o que prega a Carta Magna e, de certa maneira, para sanar os danos1 ocasionados de leis
anteriores, a exemplo do antigo Código de Menores.
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As leis anteriores ao Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - não previam medidas socioeducativas, tratavam a questão dos
adolescentes infratores de forma repressiva que permitiram muitas atrocidades, como foi o caso do código menorista, de 1927.
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2.3. Um breve relato sobre as medidas socioeducativas.
As medidas sócio-educativas podem ser aplicadas somente aos adolescentes, chegando a seu grau máximo,
que é a privação da liberdade. O ECA relaciona seis tipos de medidas sócio-educativas em seu artigo 112, a
saber: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento
educacional, além da possibilidade de aplicar qualquer uma das medidas específicas de proteção. Os
adolescentes com idade compreendida entre doze e dezoito anos são considerados inimputáveis (LEI
FEDERAL, 8069/90).
Quando da comprovação da prática de ato infracional poderá ser aplicada a medida socioeducativa, com ou
sem a restrição da liberdade. O caráter fundamental das medidas propostas pelo ECA- constitui-se na
possibilidade de reinserção social, preservando os direitos das crianças e do adolescentes.
Cabe ressaltar que, conforme preconiza o Estatuto em seu artigo 121, a medida de internação, permite que o
adolescente realize atividades externas, a critério da equipe técnica. Tal medida não comporta prazo
determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada a cada seis meses; contudo, não pode ultrapassar o
período de três anos, sendo compulsória aos 21 anos de idade.
A internação constitui a mais rígida de todas as medidas socioeducativas. Considerada como medida
privativa de liberdade, somente será aplicada em casos mais graves, conforme disposto no artigo 121 ECA:
A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de
brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento (LEI FEDERAL, 8069/90).
.
Em relação à internação de caráter provisório, o artigo 108 do ECA estabelece que:
A internação, antes da sentença pode ser determinada pelo prazo máximo de
quarenta e cinco dias. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em
indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade
imperiosa da medida (LEI FEDERAL, 8069/90).
Esse tipo de internação antes da sentença é denominada provisória pelo fato de ser aplicada antes da
sentença. O prazo de 45 (quarenta e cinco) dias não poderá ser prorrogado em hipótese alguma e, será
contado, a partir da data em que houver a apreensão do adolescente. Com isso, se um adolescente estiver em
caráter provisório e sua internação ultrapassar o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias sem que tenha sentença
no procedimento em que apura o ato infracional, ele deverá ser posto em liberdade imediatamente.
3. METODOLOGIA.
Esta pesquisa caracterizou-se como qualitativa, por possibilitar identificar características de determinada
população ou de determinado fenômeno (Vergara, 2003) e, descritiva do tipo estudo de caso. Segundo Yin
(2005), o estudo de caso favorece uma visão holística sobre os acontecimentos da vida real, destacando-se
seu caráter de investigação empírica de fenômenos contemporâneos.
Os sujeitos desta pesquisa foram três gestoras que ocupam cargos de diretoria em três unidades de internação
distintas, que atendem adolescentes infratores em conflito com a lei, localizadas em Belo Horizonte-MG.
Uma destas unidas de internação pesquisada atende adolescentes do sexo masculino, em caráter provisório e,
as duas outras unidades de internação são de caráter indeterminado, sendo uma destinada ao público
masculino e outra ao público feminino.
Para a coleta de dados utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturado, contemplando perguntas
direcionadas ao objetivo desta pesquisa. Segundo Flick (2004), esta forma de pesquisa é capaz de oferecer
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mais resultados do que os questionários fechados, razão pela qual foi selecionada. As entrevistas foram
agendadas de acordo com a disponibilidade das entrevistadas, gravadas e posteriormente transcritas, na
íntegra, para efeito de análise, preservando o que foi dito. A escolha dos sujeitos desta pesquisa foi
estabelecida pelo critério de acessibilidade e as diretoras entrevistadas foram aqui nomeadas D1, D2 e D3
para preservar suas identidades.
Os dados coletados por meio das entrevistas foram analisados sob a perspectiva da análise de conteúdo. De
acordo com Bardin (2004), a análise de conteúdo possibilita analisar as comunicações, obtendo a descrição
do que está no conteúdo das mensagens, por meio de procedimentos objetivos, permitindo a dedução de
conhecimentos que dizem respeito às condições de produção/recepção dessas mensagens. Assim, a análise de
conteúdo é uma narração objetiva e sistemática das comunicações que objetiva a interpretação dessa
comunicação.
4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS.
Após o desenvolvimento desta pesquisa verificou-se, na percepção das diretoras, o esforço conjunto e a
coesão de toda a equipe que atua diretamente com adolescentes infratores. Buscou-se subsídio na literatura,
sobretudo nos pensamentos de Reed (1997) e Foucault (1979; 2010) para uma melhor compreensão acerca
das relações de poder estabelecidas nas unidades socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei.
Ao serem questionadas sobre a existência de relações de poder nas unidades socioeducativas e se estas
interferem na sua forma de administrar e gerenciar as unidades, todas as diretoras entrevistadas deixaram claro
que existe uma forma singular de lidar com o outro no seu cotidiano de trabalho. Por outro lado, as diretoras
entrevistadas evidenciaram a existência de normas que, por si só, não permitem realizar um controle total e
eficaz no âmbito destas unidades, enfraquecendo o sistema socioeducativo no que tange à manutenção da
ordem. Esta realidade retrata o pensamento de Foucault (1979) ao levantar pontos polêmicos sobre a
ressocialização, sintetizando de certa forma, seu produto final. Assim, o autor ao fazer um primeiro balanço do
fracasso da prisão como um local de reintegração de pessoas novamente ao convívio social, por meio de
políticas humanísticas, enfatiza que a prisão serve somente para punir e não para educar, formar e garantir ao
ser humano melhorias. A prisão para Foucault (1979) é apenas elemento de fabricação de delinquência,
tornando-se assim, algo maléfico a partir do momento em que trata o ser apenas como sendo infrator, ou seja,
marginal.
Quando abordada a questão sobre se as relações de poder interferem na orientação do trabalho nas unidades
pesquisadas, fica evidenciado que o poder se manifesta entre todos os envolvidos no sistema socioeducativo,
sobretudo, entre as próprias equipes de trabalho, conforme ilustra a fala da diretora entrevistada:
[...] Interfere sim, elas interfere tanto de uma forma positiva, quando a intenção é
positiva e também ela interfere de uma forma... de uma forma negativa... se tiver
algum... alguma coisa que vai na contramão, assim, da orientação do trabalho.
Outro dia, conversando com um coordenador de plantão de uma situação que ele
achava que a equipe técnica ela não tinha considerado as intervenções que a
equipe de segurança fez com o adolescente; e autorizou esse adolescente ter uma
saída externa, então ele tava colocando uma relação de poder da equipe técnica e
da equipe de segurança. (D1)
Neste sentido, percebe-se a existência de conflitos a partir das relações de trabalho que ocorrem no interior das
organizações, principalmente, naquelas que trabalham com vigilância e segurança. Na visão de Reed (1997, p.
97-98) os conflitos nas relações de trabalho ocorrem, sobretudo, pelo fato de exigir, necessariamente, “a
subordinação do trabalhador à autoridade do empregador”. Foucault (1979) já enfatizava que o poder não
funciona de forma isolada. Para o autor, o poder não se aplica aos individuos, mas passa por esses indivíduos.
Dessa forma, as relações de poder devem ser obervadas e analisadas não de maneira única, mas a partir de
algo que se desenvolve e mantem-se quando vivenciado em rede.
A existência do poder de decisão e de controle, também foi percebido, principalmente, na configuração das
comissões disciplinares no cotidiano das diretoras entrevistadas das unidades pesquisadas. Este fato delineia
as relações de poder entre superior e subordinado proposto por Reed (1997, p. 99) ao mencionar que “o
conflito institucional refere-se ao padrão geral de relações sociais existentes numa sociedade através da qual
os grupos dominantes e dominados lutam para impor, uns aos outros, as suas prioridades”. Neste contexto, o
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recorte da fala da diretora entrevistada deixa claro que as intrínsecas relações possuem um pano de fundo
revestido de poder:
[...] Então, as comissões disciplinares elas tem um direcionamento, não é
qualquer pessoa que pode aplicar medida disciplinar, tem que ser o coordenador,
tem que ter uma comissão, na comissão tem que ter um técnico, então essas
coisas vêm quebrando um pouco esse poder, o próprio uniforme que antes eles se
vestiam todos de preto, [...] assim, na verdade a gente tem ainda, algumas
pessoas, porque a mídia ela... de fato ela tá aí mostrando a realidade e, isso, a
gente não pode negar, é aquilo que eu te falei no início, se você quiser encontrar
com um bandido, [...] a gente tem que mostrar para os meninos quem é que dá as
ordens, quais são os limites e quais são as regras, mas tem várias formas de fazer
isso né”. (D2)
De outra forma, Foucault (2010) menciona que o poder disciplinar faz com que grandes grupos sejam
adestrados e minimizados em pequenas células, assim, a disciplina tem o propósito de fabricar indivíduos; ela
é a técnica específica de um poder que torna os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como
instrumentos de seu exercício. O autor salienta, ainda, que em instituições como as aqui pesquisadas, há a
prevalência de normas rígidas para o ‘adestramento’ e transformação das pessoas em corpos mais ‘dóceis’
como forma de se controlar o outro. Tal posicionamento, entretanto, pode ser contraposto ao pensamento de
Olic (2009) ao enfatizar que o adolescente pode se apropriar dos medos de determinados membros da equipe,
levando-o a adoção de medidas e ações estratégicas para se obter vantagens durante seu período de
internação e de cumprimento da medida, configurando, assim, em relações de poder.
Em outro trecho das entrevistas, percebe-se claramente que mesmo com a existência de normas e da presença
da diretoria, existem algumas particularidades no interior das unidades pesquisadas no que se refere a
tratamento da questão da ordem e do gerenciamento:
[...] no universo de oitenta funcionários o que influencia negativamente o grupo
de funcionários, contra a direção, contra o Estado, contra o Estatuto, contra a
Constituição, é... esses cinco (coordenadores) né, têm os que vai na pilha deles,
têm os que não vai, os que não acreditam no que eles estão falando. Com os
adolescentes hoje eu percebo uma influência mais positiva do que negativa,
assim, é... eu acho que o trabalho com os adolescentes nesse momento tá um
trabalho assim dá equipe bancar algumas coisas, de não deixar instituir a lei do
adolescente aqui dentro, mas isso assim, a gente tem que ter muito cuidado,
porque num piscar de olhos, como é o caso da aposta que eu falei, a coisa
acontece e a gente nem percebe, né, mas eu acho que a influência com os
meninos é mais positiva do que negativa nesse ponto. (D1)
No caso da diretora entrevistada (D3), percebe-se a existência de normas, mas a questão envolvendo as
relações de poder no trabalho mostra-se velada, tanto no trato com as adolescentes da unidade de internação
para adolescentes do sexo feminino, como para com os educadores.
[...] Eu acho que não, eu acho que existe momentos de assim né... de às vezes
momentos assim é... é de divergências no trabalho né, eu acho que às vezes
existe momento de... situações às vezes conflitante de não entendimento do
trabalho, mas eu acho que particularmente não. (D3)
Foucault (1979) revela que é a própria regra que permite a violência e que a existência de outra dominação
pode sobrepor àqueles que dominam. O autor mostra que é a partir do estabelecimento de regras, da
normatização, que pode surgir atos de violência. As regras passam a ter seu sentido a partir do momento em
que podem ser obedecidas ou não pelos indivíduos, denotando que em seu conteúdo próprio, são meramente
vazias.
A fala da diretora entrevistada ilustra as relações de poder existentes no âmbito das unidades pesquisadas:
[...] Eu acho que existe sim relação de poder em todos os lados assim, na... se a
gente for pensar assim que o centro socioeducativo ele tem várias equipes, tem a
equipe dos agentes, que são quatro plantões, então são, os agentes se dividem em
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quatro equipes, cada equipe dessas tem seus líderes legítimos e os líderes que
não são legítimos que ocupam esse lugar de liderança pela forma que se
posicionam, pela forma que influenciam o grupo. A gente tem é... a equipe
técnica que também tem é...líderes natos [...] (D1)
Em relação à questão de gerenciamento das unidades pesquisadas e os aspectos que facilitam e dificultam o
trabalho cotidiano das unidades pesquisadas, observou-se que a forma de tratar e lidar com o outro, com o ser
humano, constituiu-se elemento principal para as relações existentes. Considerando tais aspectos, observa-se
que estes impactam diretamente nas relações de poder nas unidades de internação, na percepção das diretoras
entrevistadas:
[...] acredito que seja o maior dificultador que tem hoje assim, é... é... é...
gerenciar essas pessoas que não acreditam no trabalho e que fazem um
movimento contrário a isso o tempo todo, assim. [...] o facilitador... eu acredito
que a gestão coesa assim, essa que é instituída né... pela unidade, o corpo
diretivo, os supervisores, os coordenadores, eu acho que esse grupo estando
coeso com a proposta de trabalho, assim, com a proposta da gestão, com as
decisões que a direção toma, eu acho que isso é um ponto facilitador junto ao
grupo, porque eu como diretora eu não estou presente de manhã. (D1)
[...] eu acredito que sim, conhecer a realidade é um facilitador, porque quando
ele vem te cobrar, quando o agente socioeducativo vem te cobrar que é muito
complicado. O dificultador nos últimos tempos tem sido, primeiramente, com o
concurso público que eu acho que foi um avanço muito grande né, mas de
qualquer forma com isso, vem os direitos e as leis né, então os concursados, os
meus concursados hoje, por exemplo, todos já saíram do estado probatório, são
efetivos de fato, são muito legalistas e nós as diretoras, os gestores, nós não
fomos muito bem preparados pra isso [...] (D2)
Considerando a questão do gerenciamento no cotidiano destas unidades socioeducativas, em relação à
autonomia e dependência no exercício gerencial, foi possível perceber uma autonomia relativa das diretoras
entrevistadas, sobretudo pelas formas de poder existentes nestas unidades. Reed (1997) descreveu tal
problemática ao analisar os desafios da gestão contemporânea. O autor revela que a extensão da
racionalização, no sentido ascendente, à hierarquia dos trabalhadores com funções administrativas,
associando a informática nas situações de trabalho de gestores, diretores, técnicos representa uma tendência
global de erosão de situações privilegiadas entre trabalhadores com posições mais elevadas. Assim, “a perda
da autonomia, associada à racionalização induzida pelas novas tecnologias ligadas à subordinação
organizacional e ao reconhecimento do Estado, conjugam-se num movimento que aumenta a vulnerabilidade
das várias categorias da classe dos serviços” (REED,1997, p. 144).
Sob a perspectiva das relações de poder no cotidiano de trabalho das diretoras entrevistadas nas unidades de
internação pesquisadas, a questão da disciplina do corpo mostra-se delineada e evidenciada. Foucault (2010)
mostra que as relações que o corpo deve manter com o objeto que o manipula são definidas pela disciplina. A
disciplina mantida não só pelos adolescentes privados de liberdade, mas também a exercida sob os diretores e
funcionários da unidade de internação, relacionam diretamente com a autonomia encontrada nestas
organizações.
[...] Em relação ao grupo, em relação ao meu trabalho dentro da unidade, eu acho
que eu tenho muita autonomia assim, de liderança, de decisão, de planejamento,
de organização do trabalho, agora em relação a secretaria eu já não vejo tanta
autonomia assim, eu vejo que eu sou já assim mais... é... como que fala eu fico
mais presa assim, as orientações, as normas, ao que pode fazer, ao que não pode.
(D1)
Na verdade, o quê que acontece, autonomia eu acho que foi conquistada, eu acho
que tenho sim essa autonomia hoje, agora, é claro que em alguns momentos eu
tive que me impor. (D2)
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De uma certa forma né, dentro das orientações né, por muitas vezes a gente tem
que... é... é... tem que tá demandando, ou então passando uma ou outra questão
pra gerência ou pra superintendência, mas eu acho que é dentro da normalidade
né, das questões hierárquicas e tal, mas tem [...] (D3)
A literatura mostra que as relações existentes no interior das organizações permeiam “a concentração da
atenção no desenvolvimento de uma ordem interna constituída por um sistema formal de negociação coletiva,
pela codificação de acordos coletivos, por procedimentos disciplinares escritos e pela gestão dos mercados
internos de trabalho” (REED, 1997, p.103). É o que verifica-se quando aspectos relacionados às principais
tendências de gerenciamento dentro das unidades pesquisadas são abordados. Identificou-se que todas as
diretoras entrevistadas utilizam-se de estratégias para obtenção do êxito na sua administração, principalmente
para lidar com as relações internas de poder.
Foucault (1979) ao falar da mecânica do poder, mostrou as formas capilares de existência do poder, na
maneira de como o poder encontra os indivíduos, na forma que atinge seus corpos, atitudes, discursos e sua
vida cotidiana. Ficou claro que a participação e o envolvimento da equipe facilitam o trabalho e a legitimação
do administrador da unidade, sobretudo no controle para lidar com as formas existentes de poder.
Eu acho que uma estratégia é o compartilhamento, assim, do trabalho, de não ser
um trabalho centrado na figura do diretor geral, mas um trabalho descentralizado
pela via de comissões de trabalho... , então, porque se isso tudo ficasse por conta
do diretor, com certeza o diretor não daria conta sozinho e o diretor não
consegue ver tudo ao mesmo tempo, então essa comissão ela auxilia a direção
nessa tomada de decisão [...] (D1)
[...] é, eu acho o grande, a grande diferença é o diálogo e essas capacitações, a
gente teria a um mês atrás a gente chamou de Treinamento Adojov, que é uma
capacitação no local de trabalho, aí a gente tirava as pessoas de dentro das
funções dela durante certo período no horário de trabalho [....] Democracia...
democracia o direito de todo mundo da sua opinião, o direito das pessoas se
manifestarem, o direito deles participarem das tomadas de decisões e daí
inclusive os meninos, inclusive os adolescentes. (D2)
Então, assim né, que tenha já com sucesso alcançado né... eu acho que não tem
esse jeito assim né, nada engessado né, eu acredito que dentro das... das... dos
processos da minha gestão... é... eu tenha conseguido contribuir né... com todas
as orientações né, e contribuir com o ambiente de trabalho né... ser um ambiente
possível né dentro do diálogo, dentro da comunicação, junto com as equipes né...
(D3).
Nesse sentido, foi possível perceber, por meio das falas das diretoras entrevistadas, que as interações e
dinâmicas internas nas unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, estão intimamente
ligadas a formas internas de relações de poder, fortemente marcadas no cotidiano destas instituições.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Este artigo teve como objetivo analisar as relações de poder no interior de unidades de internação para
adolescentes em conflito com a lei, na percepção de suas diretoras.
Os casos estudados indicam a existência de particularidades no desenvolvimento das atividades laborais das
diretoras entrevistadas das unidades estudadas, tanto naquelas que tratam do público masculino quanto
naquela que lida com o público unicamente feminino. Estas particularidades apontam que, mesmo havendo
uma definição de normas e procedimentos administrativos e de segurança, as diretoras entrevistadas
vivenciam relações de poder precisando criar, bem como utilizar estratégias para lidar com cada situação que
emerge no interior destas unidades.
Importa lembrar que, mesmo havendo um conjunto de regras e normas de conduta e de funcionamento das
unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, estas, muitas vezes, são burladas para que se
tenha tranquilidade no cotidiano de trabalho. Dessa forma, determinadas equipes trabalham de formas
distintas, mesmo atuando em um mesmo espaço organizacional e sob a mesma direção e gestão. Estas
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particularidades podem ser entendidas como mecanismos e estratégias de defesa e de ações de suas diretoras
e das equipes para alcançar seus objetivos, mantendo a ordem entre os adolescentes infratores em
cumprimento de medida de internação ou, ainda, para evitar os inconvenientes da insurreição.
Observou-se, ainda, que mesmo amparadas por todo um arcabouço legal, por normas e diretrizes
institucionais, para que coexista o bom funcionamento, o cumprimento real da medida e, sobretudo, a
disciplina, as diretoras destas unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei, não conseguem
exercer a autoridade, precisando fazer concessões e ajustes a todo instante para afastar possíveis problemas
de ordem disciplinar e de controle das situações diversas existentes, vivenciando assim, relações de poder no
interior destas unidades socioeducativas.
Dessa forma, fica evidenciado que as diretoras destas unidades pesquisadas não detêm o poder, de fato, pois
as relações perpassam por arranjos e particularidades que (re)desenham as relações de poder existentes no
interior destas unidades socioeducativas, onde corpo e mente, passam gradativamente a compor uma
dinâmica de tensão que vai do caráter punitivo e disciplinar da instituição até a cultura de valores
considerados marginais, que aos poucos vão encontrando maneiras de ter uma colocação na estrutura
orgânica interna da instituição.
Fica evidente a construção, neste espaço institucional, de uma correlação de forças entre a ação informal e as
ações institucionais (oficiais). Essa correlação de forças, junto com as práticas disciplinares e de coerção,
resulta em um exercício de poder, que não é proveniente de fora, mas fruto das próprias relações
estabelecidas e criadas e, sobretudo, incorporadas por todos os envolvidos.
O saber lidar com o ser humano, mesmo diante de instruções normativas existentes, constitui-se o ponto
principal nas unidades analisadas, pois existe uma forma singular e peculiar de tratar o outro. Assim, as
relações de poder permeiam o interior destas unidades, uma vez que estão marcadas na relação das diretoras
com os funcionários, das diretoras com os adolescentes infratores, dos educadores com os outros educadores,
como também, entre os próprios adolescentes.
No tocante à autonomia e dependência no exercício gerencial, prevalece a autonomia das diretoras das
unidades, contudo, uma autonomia considerada relativa, pois esta não existe independente do contexto. Neste
sentido, as relações de poder perpassam todas as equipes, havendo uma real manifestação de poder entre elas,
o que interferi de alguma forma na maneira de gerenciar e de administrar estas unidades.
Apesar das evidências empíricas possibilitando novas estruturações teóricas produzidas por este estudo,
devem-se indicar algumas de suas limitações: número de entrevistados e as unidades de análise restringir-se a
três unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei. Propõe-se, como prosseguimento
desta pesquisa, a elaboração de estudos que tomem como sujeitos de pesquisa, não só diretores gerais, mas
também diretores administrativos e gestores de políticas públicas voltadas para essa temática, bem como os
adolescentes em conflito com a lei.
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