Projeto
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[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch1
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[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch2
Projeto
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[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch3
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch4
Percursos subterrâneos do Capital: uma
entrevista com Alexander Kluge
Gertrud Koch
Em 1927, Sergei Eisenstein decidiu fazer um filme a partir de “O
Capital” e encontrar imagens que mostrariam o processo descrito
pelo estudo científico de Karl Marx sobre a lógica e gênesis do
capitalismo moderno. Desde os anos 90, o cineasta, escritor e
produtor de tv Alexander Kluge e sua companhia “dctp” tem
proporcionado as assim chamadas “janelas de cultura” nos canais
privados da tv alemã com programas de entrevistas organizadas
por meio de chamadas de texto (como no cinema mudo), rolagem
de legendas e ensaios cinematográficos cobrindo um amplo
espectro de tópicos que vão de filosofia e ciências naturais à
história da ópera. Agora ele realiza o plano originalmente
concebido pelo entusiasta da “montagem de atrações”. Intitulado
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch5
“Nachrichten aus der ideologischen Antike [Notícias da Antiguidade Ideológica]: Marx – Eisenstein – O Capital”, a caixa com
três DVDs, com um total de 570 minutos, utiliza cenas
cinematográficas,
entrevistas,
declamações
e
sequências
tipográficas para abordar o plano de Eisenstein, a relação entre
seres humanos e bens analisada por Marx e a dinâmica da
sociedade capitalista de troca.
Sobre
quais
premissas
teórico-midiáticas
se
baseiam
as
estratégias estéticas da visão associativa de Kluge sobre a
magnum opus de Marx? E quais revelações podem ser extraídas
de sua análise cinematográfica de “O Capital” à luz do capitalismo
globalizado e sua crise atual? A professora de cinema Gertrud
Koch conversou com Kluge para a revista Texte zur Kunst sobre
Eisenstein, a importância da técnica de montagem e a força
propulsora do passado para o futuro.
GERTRUD KOCH: Em suas anotações para o filme baseado em
“O Capital”, Sergei Eisenstein usa um termo que eu acho curioso.
Ele fala em “cinematografizar” o livro. Como você lidou com isso?
ALEXANDER KLUGE: Eu fui imediatamente nocauteado por
esse termo! Porque planejar “cinematografizar” um determinado
material demonstra uma atitude muito segura em relação ao
cinema. Soa como tradução, transposição, transcrição. Ou seja, o
mesmo material, apresentado em um novo médium, não apenas
aparece em uma nova forma mas está sujeito a uma mudança
substancial.
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch6
KOCH: O que é interessante também sobre o termo é que ele é
uma alusão à eletrificação. Há uma transferência energética
sendo feita. Eisenstein conecta “cinematografização” a certas
estratégias de visualização, mas também à criação de significado.
Quanto eu estava vendo seus DVDs intitulados “Nachrichten aus
der ideologischen Antike: Marx – Eisenstein – Das Kapital”, eu
logo me perguntei como realizar esse conceito, esse procedimento
poetológico, em outras mídias. É sobretudo notável que seu filme
– para colocar em termos tradicionais – emprega uma variedade
de mídias. Você acha que há uma outra forma de cinema
emergindo também em seu trabalho? Como você “DVDifica”?
KLUGE: Essa é uma pergunta muito interessante. Você sabe que
Walter Benjamin tentou fazer da reprodutibilidade técnica objeto
de uma análise explorando a questão sobre o que o filme pode
realizar e o que há de novo nesse médium. Acho que em nossa
época, ou seja, em 2009, as possibilidades técnicas já se
desenvolveram tanto e estão disponíveis por toda a parte que uma
possível resposta não pode ser encontrada por aí, mas, ao
contrário, em alguma curso subterrâneo fundamental localizado
bem abaixo do nível das tecnologias individuais. Portanto eu
estou testando minha fidelidade a Eisenstein. Respeito o homem.
Eu gostaria de imitá-lo, se pudesse.
KOCH: Mas por que ele não pode ser imitado?
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch7
KLUGE: Ele é frequentemente mais criativo que eu. Adotei a
atitude de um discípulo comprometido com ele. Para mim, ele é
um dos grandes modernistas. Mas eu também sou fiel a Hans
Richter, Eisenstein, Jean-Luc Godard, mas também músicos cujo
trabalho se encaixa nesses cineastas. Eu tenho mais de um guru.
Com Oskar Negt, eu geralmente trabalhava com a questão de se
existe ou não uma economia política do trabalho, algo como um
antípoda do capital. Pois o trabalho pode expressar-se muito
melhor que o capital; ele não é de forma alguma abstrato. Ao
mesmo tempo, as qualidades humanas – as forças essenciais do
homem, como Marx as chamava – desenvolvem-se tão
lentamente que nós devemos observá-las com muito mais
cuidado do que os rápidos e extensos processo do capital que
estamos presenciando agora, por exemplo.
KOCH: Mas que aconteceria se nós tentássemos relacionar esses
movimentos do capital, como foram descritos por Marx, com
formas de expressão estética?
KLUGE: Isso pode ser feito!
KOCH: São contra-mídia?
KLUGE: Não. Elas são relações de fidelidade – fidelidade ao
objeto e fidelidade aos autores que já tem feito algo e são meus
modelos. Se eu os uso para desenvolver um percurso básico, isso
então corre subjacente a várias mídias. No começo eu não podia
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch8
nem mesmo dizer se iria ser um livro, um filme, uma contribuição
online, um DVD, uma noite no cinema ou uma espécie de contraprogramação na televisão. Cada uma dessas mídias funciona de
um modo muito diferente, isto é, não existe algo como um
público; há muitas abordagens diferentes para um público que
está sujeito a enormes interferências. Ele ainda não foi destruído
totalmente, mas há forças trabalhando para isso. Por isso é
importante formar um contra-público e manter um público. Eu
fiz uma pequena digressão porque acho que mesmo quando se
quer dizer uma e mesma coisa hoje em dia, você precisa usar de
multilinguagens quando se trata de tecnologias de transmissão.
Você tem de comunicar isso para jovens que usam seus
computadores e estão online. Eles mesmos podem colocar coisas
na rede, e portanto não tem muita paciência com os produtos de
outras pessoas. Isso significa que tudo tem de ser de curta
duração. Isso era lei nos primórdios do cinema, quando as
pessoas nos Estados Unidos – você é mais familiarizada com isso
do que eu – ficavam de pé em cinemas, trabalhadores imigrantes
que haviam trabalhado o dia todo e falavam diferentes línguas, e
estavam todos impacientes com qualquer coisa que durasse mais
do que de um a três minutos.
KOCH: Curiosamente você escolheu uma forma muita longa para
sua nova produção.
KLUGE: As contribuições individuais são em geral curtas, mas a
produção como um todo é muito longa, é verdade. A lei da
brevidade, que governa a web, contrasta com a mesma lei da
generosidade dos DVDs, que é justamente não apenas um
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch9
médium de armazenamento. De fato, um DVD funciona como
uma jangada. Você pode amarrar um grande número de troncos
juntos e daí viajar de modo bem seguro. As da Polinésia
provavelmente foram feitas dessa forma. Isso cria a possibilidade
de fazer filmes de três, dez, trinta horas de duração. No meu
ponto de vista, a história do filme tem sido caracterizada sempre
pela polaridade entre filmes de fôlego que mostram muitos
materiais sem edição e outros extremamente curtos; exatamente
como o momento é curto enquanto todos os eventos reais e
relevantes tem uma duração.
KOCH: Mas o que se nota quando se assiste aos três DVDs que há
um ritmo. E que, penso, tem a ver com o fato de que há
entrevistas com “cabeças falantes” seguidas por montagens muito
rápidas de imagens com motivos linguísticos muito esparsos.
KLUGE: É, por assim dizer, uma montagem de sequências
inteiras. Em um filme, você montaria cenas. Agora, com o DVD,
há a possibilidade de contrastar sequências inteiras como se elas
fossem cenas. Assim, por exemplo, quando Peter Sloterdijk
comenta a frase de Marx “Alle Dinge sind verzauberte Menschen
[todas as coisas são seres humanos encantados]”, ou seja, sobre o
fetiche da mercadoria, ele usa o modo narrativo que lhe é
peculiar, assim como alguém escrevendo um ensaio. Imediatamente depois você ouve trabalhadores em greve nos anos 60.
Essas são pessoas que ainda não foram intimidadas. Elas ainda
tem a confiança de pessoas que eram requisitas durante a guerra,
que passaram pela reconstrução do pós-guerra; esses são os
mineiros. E eles não irão tolerar algo de que não gostem, nem
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch10
mesmo partindo dos líderes de greve. O que Sloterdijk tinha de
dizer era muito interessante para mim, mas a informação isolada
não é o conteúdo da cena: o contraste com a próxima sequência é
essencial. O mesmo acontece para a contribuição de Oskar Negt,
que segue o poema “Der Gesang des Krans Nr. 4 [O Canto do
Guindaste Nº 4]”, de Bert Brecht, no qual a maquinaria criada
pelo homem fala com o homem e ambos conversam sobre a vida
eterna, sobre andar ereto, dizendo em poucas palavras o que
Sloterdijk tinha acabado de falar por 45 minutos.
KOCH: Você diria que, como cineasta, você leva as formas de
montagem a uma tensão entre modos de falar, pronunciamentos,
e essa aspecto do capital humano reificado, um aspecto a que se
refere também na conversa com Joseph Vogl quando ele aponta
para as teorias de Bruno Latour, que chamava a atenção para a
necessidade de um “parlamento das coisas”? Isso pressuporia que
nós atribuímos às coisas vidas delas mesmas, algo que nós
também encontramos na estética cinematográfica romântica
precoce de Balázs. Quão vinculado você é às formas de “estética
da coisa”?
KLUGE: As coisas são parte do modo que o filme expressou o
momento. Elas são parte do “momento cristalizado”.
KOCH: Se considerarmos a regra particular que governa cada
médium, a montagem tomaria diferentes formas em cada um.
Isso significa que as durações devem ser diferentes, e isso faz
diferença em relação à substância?
Projeto
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[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch11
KLUGE: Eu posso desenvolver um filme de 90 minutos a partir
de 10 horas de material em DVD e apresentá-lo nos cinemas. E se
eu enquadrasse a mesma coisa em um programa de quatro horas
em um filme que funciona do modo como “Deutschland im
Herbst [Alemanha no Outono]” e ousasse fazer uma contraprogramação em um sábado na televisão, isso seria outra forma,
mas uma que poderia também apresentar uma substância diferente. Portanto, há uma certa polifonia que está enraizada na
própria matéria, nas coisas. Essa é a oportunidade da história
cinematográfica hoje.
KOCH: Nos três DVDs há essa alternância entre longas conversas
e montagens relativamente curtas de imagens. Podemos também
descrever isso em termos de capital? São os valores das formas e
as condições da produção que estão em jogo aqui? No fim das
contas, gasta-se muito mais para produzir uma pura montagem
de imagens do que conduzir uma conversa. É isso talvez o que a
montagem expressa, o fato de que a língua pode no fim ser um
médium que é o mais acessível, que está disponível a todos, que é
o mais fácil de se referir e focar, enquanto imagens sempre tem
uma tendência a se ocultar?
KLUGE: Para começar, eu acho que a linguagem, que tem
permitido a comunicação entre pessoas ao longo de 2.000 anos, é
um médium de ausência. Eu não ajo como se eu possuísse aquilo
com o qual eu lido, mas ao contrário sei que eu tenho de adquirilo em primeiro lugar. Portanto, eu reconheço objetos como algo
estranho a mim, o que me permite percebê-los. E é isso o que a
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Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch12
escrita e a linguagem podem fazer. Mas a diferença é que a escrita
tende a permanecer; a linguagem e a audição, a se liquefazer. E é
aí que vem o segundo aspecto. Há imagens que realmente apenas
a câmera pode gravar e que você não pode deliberadamente
encontrar. Esse é o momento cristalizado.
KOCH: O mesmo vale para as imagens mostrando os falantes.
KLUGE: Sim, está certo. E essas imagens são, por assim dizer,
autônomas e totalmente equivalentes às palavras ou à música.
Mas quando eu as combino, por exemplo, na frase “ao pé da
montanha”, as coisas tornam-se muito coloquiais porque nem
existe um pé, nem eu sei onde a montanha está. A imprecisão ela
mesma não seria ruim, isso é uma virtude de uma sequência de
imagens. O que é ruim é que você pode cobrir realidades. Por
exemplo, quando você leva atores para refazer a questão BaaderMeinhof, há 20 metros de lava cobrindo os eventos reais.
KOCH: É verdade.
KLUGE: E eu hesitaria chamar isso de filme. É uma narrativa,
sem dúvida. É um design de pôster também. São todos os tipos de
coisas.
KOCH: Você diria que a diferença entre a forma “cinematografizada” de imagens é afinal a mobilidade, o dinamismo
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch13
interno, a unidade visual que permanece variável. Uma cena de
um filme é, por assim dizer, apenas um ponto invisível sujeito à
dissolução.
KLUGE: Certo! E como você trabalha contra essa qualidade de
imagens, essa tendência de estreitar nossa experiência? Isso
poderia me tornar quase um iconoclasta; precisamente porque eu
sou um cineasta e o cinema é minha terra natal, eu começo, como
forma de precaução, por tentar destruir imagens.
KOCH: E que você faz com as montagens?
KLUGE: Eu acredito que as montagens façam isso por si só. Elas
desgastam as imagens. E o segundo instrumento é que eu faço
longas passagens de textos entrecortadas por muito poucas
imagens. Eu enxugo as imagens, o que as deixa mais fortes. Elisão
ou eclipse as deixam fortes e então eu tenho efeitos secundários.
No primeiro DVD há uma passagem sobre a Sexta-feira Negra, e
você ouve Eva Jantschitsch, uma líder de uma banda austríaca
que se auto-denomina “Gustav”. Exatamente porque essa música
não é de 1929, mas sim contemporânea, enquanto as imagens não
dão um passo para fora de sua história, ela cria um bom
contraste. O segundo contraste emerge porque o espectador relaciona tudo a nosso tempo. Devo admitir que não editei desse
modo porque pensei que a crise financeira viria. Fiz a edição em
março, quando não sabia que ela estava vindo. Mas eu sabia que
ela estava sempre ali, em um sentido abstrato.
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch14
KOCH: Sua página na internet também permite ao espectador
clicar em novas imagens e novas montagens. Desde quando você
está interessado em montagens como uma forma estética em si
mesma – uma forma que agora está presente no YouTube, onde
pessoas colocam essas formas curtas na web? Minha impressão é
que você reconhece aí seu próprio modo de produzir coisas. Uma
nova liquefação, por assim dizer, uma semelhança de família,
como afirmava Wittgenstein.
KLUGE: Essa é fundamentalmente a forma do comentário. Um
comentário pode conter um elemento de laconismo – isto é, ser
muito
curto.
Mas
essa
brevidade
se
correlaciona
com
meticulosidade, então por outro lado é extremamente longa. Você
pode mencionar qualquer coisa em que estiver interessada – seja
a crise financeira ou o conflito na Geórgia. Não importa o que
você diga, isso se tornará uma história linear, com início e fim.
Nela, você pode agora cavar um poço onde quiser. Começa
descrevendo, em uma direção perpendicular ao enredo, algo em
detalhe. Por exemplo, o fato que um observatório foi deixado para
trás na Geórgia desde os dias da União Soviética, o que remete à
tradição astronômica de 1928, e os Russos já tinham uma relação
com o céu estrelado desde Mikhail Lomonosov, e Lomonosov era
um filho de pescadores e tornou-se presidente da academia
imperial – eu apenas construí uma frase.
KOCH: Sim, mas Eisenstein construiria a frase diferente. Ele quer
ter a produção do significado casual.
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch15
KLUGE: É verdade. Mas o significado casual é algo que eu posso
também confiar à minha fé nas interrelações entre coisas quando
sou verdadeiramente compelido por um fato – “Will ich die
Sterne sehen/ muss stets das Aug’ mir übergehen [Quando eu
olho o céu estrelado / Lágrimas transbordam dos meus olhos”.
Isso não é algo que o astrônomo diz, mas é um verso. E agora em
um certo ponto estou fazendo um filme a partir desse verso e daí
vou fundo. Isso é mais próximo de Eisenstein do que você poderia
imaginar. Quando ele propõe sua dramaturgia esférica, então há
um centro de gravidade nisso, um núcleo. E agora eu posso
descrever todas as superfícies e espetar imagens nelas, e eu não
perderia o núcleo.
KOCH: Mas o interessante é que Eisenstein argumenta que as
coisas guardam semelhanças umas com as outras ainda que não
sejam exatamente idênticas. E no que elas parecem umas com as
outras é de um modo o que o filme gera como um conceito nãocognitivista. Aprender a experimentar as similaridades e portanto
construir uma rede subterrânea de significados que liga coisas
não semelhantes.
KLUGE: Eu penso e sinto o oposto. Eu trabalharia apenas com a
diferença. A técnica da analogia, usada como Eisenstein
realmente fez, é, acho, um instrumento de dominação. Para mim,
Dziga Vertov seria uma opção melhor. Gostaria que Vertov e
Eisenstein tivessem realizado juntos o projeto de transformar “O
Capital” em filme em 1929. Então nós teríamos um filme, com
Vertov, que teria de fato filmado as cenas. Eisenstein poderia
fazer tudo no estúdio. Eisenstein diz que imagens são uma
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch16
linguagem. Mas é isso que Hollywood faz também quando diz: em
seguida, uma cena de amor. Você pode dizer logo que se trata de
uma cena de amor. Elas parecem diferentes, mas você pode dizer
de chofre que duas pessoas se apaixonaram aí. Você pode dizer
isso na abertura da tomada da cena, que é o que os atores imitam,
apesar de relacionamentos reais desse tipo serem raros.
KOCH: Mas em Eisenstein...
KLUGE: ... é a mesma coisa!
KOCH: Mas o que é fascinante em Eisenstein é que ele além disso
introduz nessas peças de montagem semiológica a montagem
sobretonal, ou seja, critérios musicais que são completamente
separados das questões de significado. É aí que a qualidade
sensual e estética de seus filmes emergem por completo. Se você
não percebe isso enquanto assiste a Eisenstein, você reduz muito
seu trabalho ao que ele mesmo sempre sugeriu através de sua
teoria causal do significado. Eu estaria interessada em saber em
que medida formas musicais ou conceitos de composição são
importantes nas montagens que você faz com imagens.
KLUGE: Eu não sou um crítico de Eisenstein. Sou alguém que
ama Eisenstein. E quando eu o chamo de presa imaginária, isso
quer dizer que eu não largo dele se ele tiver teorias contraditórias.
Eu não ligo. Ele é simplesmente uma fonte muito rica. O segundo
ponto é que a música nos filmes tem uma função autônoma. E EiProjeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch17
senstein realmente vislumbrou um filme sonoro no qual a trilha
seria não um acompanhamento mas se moveria de acordo com
suas próprias leis. As imagens, que se desintegram elas mesmas
em palavras e fotografias, e a música são autônomas. Mas há
muitas imagens que não são realmente imagens. Se você pensar
no cão transcendental de Kant, é alguma coisa entre um pequinês
e um são bernardo, mas isso não produz a imagem de um cachorro. Há apenas imagens representativas, que podem lembrar a
associação com um “cão”. Mas você pode realmente invocar essa
associação apenas por contraste com algo mais, digamos, com um
gato movendo-se furtivamente em direção à sua presa ou um rato
ou um macaco.
KOCH: Então a questão é se imagens podem ou não ser sempre
concretas, mostrando apenas uma única coisa.
KLUGE: Esse cachorro é algo que a câmera pode expressar. As
imagens são concretas, e portanto autônomas. São como sons. E
se elas são preenchidas com significado, algo como “no pé da
montanha” ou “o flanco sensível da Rússia”, então elas não são
realmente imagens. Em música, de acordo com Brecht, há
“Misuk” e “Musik”, e música também tem sua autonomia, você
pode desconstruí-la, em, digamos, Mozart ou Wagner ou
Schoenberg, e ela permanece viva. Seus fragmentos ainda ecoam.
KOCH: Assistindo a seus DVDs, o espectador fica com a
impressão de que há uma transferência implícita. Mas o que é
interessante é que as leis das quais falou Marx, e nas quais
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch18
Eisenstein estava também interessado, não mais existem. Aqui
está uma confirmação cinematográfica sobre a situação atual e
sua longa duração remontando ao passado. Onde você diria que
está a inovação nesses traços formais do capitalismo como você
mostra? Que você acredita ter mudado em relação a essas leis?
Sua forma cinematográfica livre é uma análise do capital?
KLUGE: Acho que pouco mudou em relação a processos
objetivos. No ano em que Marx nasceu, em 1818, havia
escravidão, trabalho infantil e uma jornada superior a oito horas.
Em comparação com isso, houve progresso. Por outro lado, no
125º aniversário de Marx, houve Auschwitz. Portanto eu não
posso falar em progresso. Nesse sentido, eu não diria que nada
tenha verdadeiramente mudado. Mas o que mudou muito foi a
habilidade analítica de se ocupar com esses processos. Sigmund
Freud entrou em cena, um mundo subjetivo que Marx não tinha
previsto de forma alguma.
KOCH: Eu ainda gostaria de voltar à questão da função que o
filme preenche em tal análise.
KLUGE: Há o inconsciente ótico do qual fala Benjamin.
Traduzindo em termos técnicos, é o que a câmera vê mas o olhar
habituado não. Se você supor que nós vemos com nossos corpos
inteiros, você pode dizer, para simplificar, que há oito telas atrás
de nossas cabeças nas quais as impressões transmitidas pelos
olhos são projetadas. Uma capacidade de sentir da cabeça que já
sabe tudo de antemão, com uma riqueza de pré-concepções
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch19
inscritas através da evolução que era utilizada para nos salvar a
vida. Toda impressão é interpretada de acordo com essas préconcepções. Mas se você é o segurança do presidente Obama e
quer protegê-lo, você não pode agir de acordo com essa
“percepção habitual”, você não conseguiria ver o ataque. Você tem
de ver o que suas pré-concepções (o olhar habitual) não
conseguem ver. E, nesse aspecto, o filme pode, assim como Marx
diria, “objetificar”.
KOCH: A objetificação da objetificação.
KLUGE: Exatamente.
KOCH: O filme reifica a reificação e assim o faz porque tem uma
capacidade particular para mostrar essa reificação. A linguagem
de Marx é cheia de metáforas. Faz parte do seu projeto traduzir
não apenas Eisenstein mas também Marx em toda a sua poética?
KLUGE: Eu gostaria muito. Quando Marx fala, por exemplo, da
liquefação de todas as relações petrificadas, aquela palavra exige
ser tomada totalmente a sério. A palavra não aparece em
Shakespeare ou Hegel. Você precisa ser um bom analítico, como
Marx, para encontrá-la.
KOCH: Escrevendo uma nova teoria, você certamente desenvolve
uma nova semântica, uma nova linguagem. E essa é na verdade a
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch20
força de Marx. Mas seu projeto também é uma retradução de um
tempo que você associa com a antiguidade clássica, uma
retradução da “antiguidade ideológica”. Eu me pergunto: por que
antiguidade ideológica e não simplesmente “história das ideias”?
KLUGE: A ideologia é um termo que Marx usa para falsa
consciência. Portanto eu não posso escolher ter ou não esta
consciência; eu vivo com base nela. A confiança infantil primária,
por exemplo, é uma falsa consciência necessária, sem a qual você
não pode viver, sem a qual nenhum ser humano pode desenvolver
auto-consciência. Se a auto-consciência está baseada em um
engano, eu posso, todavia, emancipar-me. Essa é uma mera ideia
marxista. E é uma ideia que eu gostaria de contar quatro, cinco,
sete vezes até que tenha sido iluminada por todos os lados. No
final, eu faço parte do pessoal da limpeza, alguém que faz as
coisas que não brilham por si só brilhar.
KOCH: Mas você é, por assim dizer, um membro do esquadrão da
limpeza – porque é isso que muitos marxistas tem tentado fazer
depois de Marx, generalizar o conceito de ideologia, por exemplo
na tradição Althusseriana, onde não pode mais haver um
horizonte de consciência correta porque tudo é necessariamente
falsa consciência. E é algo a que a Escola de Frankfurt sempre se
opôs.
KLUGE: Nesse sentido, eu também me oporia à visão de
Althusser. Eu estou puxando da passagem bem conhecida na
introdução de Marx à “Contribuição para a Crítica da Economia
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch21
Política”, onde ele começa com a saudade da infância da mente.
Ele
diz
que
os
gregos
eram
realmente
socialmente
subdesenvolvidos mas apesar disso tinha ideias que ainda nos
encantam 2.500 anos depois.
KOCH: Não apenas nos encantam como também nos mantem
engajados. Afinal, essas são questão não resolvidas.
KLUGE: Você está totalmente certa. Veja, o modo como os mitos
e heroínas gregas devem morrer, o modo como eles estão
dispostos nos céus – Calisto, uma das paixões de Zeus, torna-se
Ursa Maior etc.: isso é um modo respeitável de lidar com algo que
amamos mas que deve, porém, padecer. Essa é a relação com
nossos antepassados que me parece boa. Um futuro se estende na
nossa frente. Mas você também pode dizer que uma força propulsora está trabalhando atrás de nós. Houve momentos
aprazíveis na evolução, inclusive na evolução da sociedade.
Nossas vidas estão baseadas neles. Logo, você pode ver o Anjo da
História fazendo companhia com dois ou três outros anjos que
não são tão destrutíveis.
KOCH: Você então diria que um horizonte diferente aparece por
trás do seu projeto, no qual essa curva em direção à antiguidade
como uma possível antecipação do futuro é, em última análise,
uma figura da infinitude? No filme você chega a momentos
paratáticos nos quais blocos de tempo estão contíguos. Quando
você sabe que um projeto tomou a forma final e está pronto para
vir a público?
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch22
KLUGE: O projeto ainda não terminou. Se alguém me abordasse
com o desejo de pôr algum trabalho nele, eu o reabriria
imediatamente. O primeiro DVD serve apenas para familiarizar o
espectador com os sons ocultos que existem em Marx e
Eisenstein.
Pense,
por
exemplo,
no
“Lamento
der
liegengebliebenen Ware [Lamento da mercadoria não-vendida]”.
Isso, em última análise, é a ideia central de Marx: que o trabalho
humano está contido em produtos, com os quais os homens se
importam mais que eles próprios. E eles fazem isso por
compulsão, mas há também algo de auto-regulação neles, sua
obstinação. Então vem o segundo DVD, que trata de uma única
imagem em Marx: o fetiche da mercadoria. Você pode ler sobre
isso bem no início do primeiro capítulo de “O Capital”. É uma
imagem muito complexa porque significa que as pessoas colocam
o que elas tem em seu trabalho. Se elas pudessem reconhecer que
a produção social repousa nelas e que elas produzem a si mesmas,
uma sociedade rica e emancipatória surgiria. Estou convencido de
que esse elemento no ser humano não pereceu. No movimento de
protesto eu percebi numerosas vezes que algo desse tipo está vivo.
Não pode simplesmente ser estabilizado. Filatelistas e físicos
podem formar associações globais e calibrar sua unanimidade.
Até agora, ninguém encontrou um meio de fazer isso com a
qualidade da solidariedade. Esse ideia está no centro de todo o
segundo DVD; e estou particularmente orgulhoso da contribuição
de Tom Tykwer, que conta a história da produção de objetos.
Tenho um apreço especial pelo fato que ele faz isso com suas
próprias palavras e sua própria voz. Oitenta mil pessoas aparecem
em uma rua vazia. Elas estão escondidas nos objetos em
exposição. Evocar essas imagens invisíveis é uma ideia
fundamental por trás do filme. É por isso que eu falei antes em
Projeto
Revoluções
[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch23
“iconoclastia”. Você tem de ser um iconófilo e um iconoclasta em
iguais medidas, dependendo do objeto. E então vem o terceiro
DVD, que é sobre a socialização. “Ninguém jamais viu um
cachorro efetuar uma troca justa e deliberada de um osso com
outro cachorro”. Isso é Adam Smith, em alusão a David Hume,
que diz que quando homens se comportam como lobos, eles não
são todavia lobos. É assim que ele diz o oposto do que Thomas
Hobbes havia defendido. E porque eles não são lobos, sua
vontade má é transformada, contra sua vontade, em energia
social. Smith então coloca nestes termos: mil egocêntricos ou
demônios podem formar uma sociedade.
KOCH: Que é também o famoso exemplo de Kant; ele diz que
uma sociedade deve ser tal que pode-se viver nela mesmo se há
demônios entre seus membros.
KLUGE: Isso não é apenas uma expectativa, mas uma observação.
Tradução de Raphael Neves
Projeto
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[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch24
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[Entrevista
com
Alexander
Kluge]
Gertrude
Koch25

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Entrevisa com Alexander Kluge