A transformação social na visão da sociologia clássica
José Otacílio da Silva1
Resumo: O propósito deste artigo é mostrar como os clássicos da sociologia – Karl Marx, Èmile
Durkheim e Max Weber – concebem o processo de transformação social. A compreensão da
dinâmica social tem a sua importância, pois é por meio desta compreensão que o homem pode
iluminar a sua prática política, seja no sentido da conservação, seja no sentido da transformação da
sociedade. Com base em leituras das principais obras destes clássicos, o artigo mostra, num
primeiro momento, que a transformação social, no entendimento de Marx, depende das
contradições que ocorrem entre as forças produtivas e as relações de produção e do nível de
desenvolvimento das lutas de classes. Num segundo momento, pôde-se observar que, para
Durkheim, a transformação social não é outra coisa senão o processo de desenvolvimento da
divisão do trabalho: a divisão e especialização do trabalho, mesmo enfraquecendo a consciência
coletiva e fortalecendo as consciências particulares, longe de provocar a ruptura dos laços sociais,
promove, ao contrário, a transformação da solidariedade mecânica em solidariedade orgânica. Por
fim, antecedendo às considerações finais, o artigo mostra que, no entendimento de Weber, a
transformação ou a conservação da sociedade é uma decorrência das lutas que ocorrem entre as
diversas visões de mundo.
Palavras-Chave: Transformação social, Sociologia clássica, Clássicos da sociologia
1. Introdução
O propósito deste artigo é mostrar como os clássicos da sociologia – Karl Marx, Èmile
Durkheim e Max Weber – concebem o processo de transformação da sociedade. Com base em
leituras das principais obras destes clássicos, bem como em leituras das obras de alguns de seus
críticos, o artigo mostrará, num primeiro momento, que, aos olhos de Marx, as contradições
sociais constituem a base de suas explicações sobre a dinâmica social. Num segundo momento,
trata-se de mostrar que, no entendimento de Durkheim, a divisão e especialização do trabalho,
mesmo enfraquecendo a consciência coletiva e fortalecendo as consciências particulares, não
provoca a ruptura dos laços sociais, mas, ao contrário, promove a transformação da solidariedade
mecânica em solidariedade orgânica. Por fim, antecedendo às considerações finais, mostrar-se-á
que, no entendimento de Weber, a transformação ou a conservação da sociedade é uma
decorrência das lutas que ocorrem entre as diversas visões de mundo.
2. Karl Marx (1818-1883): contradições, luta de classes e transformação social.
O processo de transformação social, no entendimento de Karl Marx, está estreitamente
relacionado com as contradições e com as lutas de classes que se desenvolvem na própria base
material da sociedade. Trata-se de uma concepção que contempla uma relação dialética entre
infra-estrutura e superestrutura, entre ser e consciência, enfim, uma relação onde o homem é
considerado como sujeito ativo no processo; um sujeito que, dentro de certas circunstâncias,
influi na transformação social. Assim, pode-se dizer que, para Marx, a transformação social
1
José Otacílio da Silva, é professor de Sociologia e Ciência Política do CCSA – Centro de Ciências Sociais
Aplicadas e membro do GPCP – Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político, da UNIOESTE –
Universidade estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel-PR.
ocorre na medida que as contradições que se manifestam na base material da sociedade dêem
origem a determinadas formas de consciência e, conforme essa consciência, os homens atuem
no sentido de transformar ou de conservar a realidade social.
Na crítica que faz aos Princípios de filosofia do direito de Hegel, Marx havia chegado à
conclusão de que o processo de transformação social não é outra coisa senão o processo de
desenvolvimento das forças produtivas e de seu inter-relacionamento com as relações de produção
e com as formas ideológicas. Naquele trabalho, diz Marx,
“o resultado geral a que cheguei e que – uma vez obtido – serviu de fio condutor
para os meus estudos, pode resumir-se assim: na produção social de sua vida os
homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de suas
vontades, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base sobre a qual se
levanta as superestruturas jurídicas e políticas e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. Ao chegar a uma fase de
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as
relações de produção existente, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica,
com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De
forma de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em
obstáculos a elas, e se abre, assim, uma época de revolução social” (Marx,
Prefácio ..., p. 301).
Essa concepção de transformação social postulada por Marx, foi demonstrada, com muita
clareza, em suas análises sobre o desenvolvimento do capitalismo. Da mesma forma que o
desenvolvimento dos modos de produção anteriores, o desenvolvimento do modo capitalista de
produção se caracteriza pelas contradições que se estabelecem entre forças produtivas e relações
de produção. No capitalismo – como nos outros modos de produção – o desenvolvimento das
forças produtivas provoca simultaneamente dois fenômenos inter-relacionados: de um lado a
contradição entre a produção e o consumo e, de outro lado, a contradição ou antagonismo entre os
interesses das classes sociais.
No capitalismo, a contradição entre a produção e o consumo é fruto do longo processo
através do qual os capitalistas procuram atender às suas imperativas necessidades de lucro.
Para atingir estes propósitos, os capitalistas, por um lado, promovem o desenvolvimento das
forças produtivas investindo em tecnologia em geral e, por outro lado, promovem a exploração
da força de trabalho por meio da extração da mais-valia absoluta e da mais-valia relativa, isto é,
por meio da apropriação do excedente da produção gerado pelo trabalhador. Destas atitudes
dos capitalistas resultam um acréscimo extraordinário na produção e uma queda gradativa do
mercado consumidor, quer dizer, uma crise de superprodução. Se os salários, necessários para
o mercado consumidor, não podem subir – pois isto significaria um acréscimo do capital
variável e, portanto, uma queda da taxa média de lucro – a saída dos capitalistas é a redução da
produção via cancelamento dos investimentos, demissão dos trabalhadores, etc. O resultado
destas atitudes é a redução ainda maior do mercado consumidor e, enfim, o reinicio de um
ciclo descendente onde, no final, a crise se instaura com maior vigor, até que o sistema ganhe
novas forças e se restabeleça ou então, sucumba-se (Marx, 1980, p. 239-305).
Ao longo do desenvolvimento das forças produtivas, além da contradição que se
estabelece entre a produção e o consumo, as contradições ou antagonismos de classes também
se instauram. Quer dizer, os capitalistas, ao procurarem atender às suas necessidades de lucro,
provocam não apenas o acirramento da contradição entre a produção e o consumo, mas
também a degradação de uma classe social que, alienada no processo produtivo, desenvolve
interesses antagônicos aos seus. Nesse sentido, diz Marx, "a burguesia forjou não apenas as
armas que representam a sua morte; produziu também os homens que manejarão estas armas –
o operariado moderno – os proletários" (Marx e Engels, 1978, p. 99). Na sua busca de lucro, os
capitalistas não só destituem os proletários de seus meios de produção, mas também ultrajam
as suas condições de existência explorando a sua força de trabalho e eliminando o seu poder de
decisão sobre o processo de produção e de distribuição. Se, no início do capitalismo, esses
trabalhadores, por serem em número pequeno e disperso, não têm consciência de suas
condições degradantes de existência, ao longo do processo, crescem em número, concentra-se
no espaço e, em sua práxis política, adquirem consciência de suas situações comuns de
explorados e dominados, bem como adquirem consciência das situações comuns – de
exploradores e de dominadores – de seus adversários. Enfim, simultânea e intimamente ligado
ao desenvolvimento das forças produtivas, desenvolve-se, por um lado, a classe dos capitalistas
e, de outro lado, a classe proletária. De um lado, uma classe que quer manter as suas condições
privilegiadas de existências, de outro lado, uma classe que pretende promover mudanças
profundas em suas condições degradantes de existência; uma classe que pretende libertar-se de
seus grilhões.
O desfecho dessas contradições entre forças produtivas e relações de produção e
antagonismo de classes vai depender das circunstâncias históricas. Objetivamente, as
contradições entre forças produtivas e relações de produção podem se aprofundar gerando uma
grande crise de superprodução, sem que, necessariamente, resulte em uma profunda
transformação nas relações de produção. Essa transformação profunda nas relações de
produção só ocorreria no contexto em que, paralelamente ao desenvolvimento dessas crises
cíclicas do capitalismo, a classe dominada – no caso, o proletariado –, interessada em mudar as
relações de produção, tivesse desenvolvido sua consciência de classe, isto é, tivesse descoberto
as verdadeiras causas da crise, as verdadeiras causas da sua situação de explorada e de
dominada, bem como tivesse conhecido quem são os seus algozes – os proprietários dos meios
de produção e tivesse, enfim, se constituído em um forte partido de classe.
Em outras palavras, no entendimento de Marx, uma transformação radical da sociedade
só aconteceria no contexto em que, ao lado da crise de superprodução, a classe dominada e
explorada tivesse uma consciência de classe desenvolvida. Neste contexto de condições
objetivas e subjetivas adequadas, a classe dominada – o proletariado – teria interesses em
promover mudanças significativas nas relações de produção capitalistas que emperram o
desenvolvimento das forças produtivas e, então, por meio de sua atuação como classe
organizada, desencadearia a revolução social. Através do uso da força, o proletariado
conquistaria o poder político e – destituindo os proprietários de seus meios de produção –
promoveria as devidas mudanças nas relações de produção, ou seja, a devida transformação da
propriedade privada dos meios de produção em propriedade coletiva e a gradual transformação
do homem capitalista em homem comunista, do homem egoísta, em homem coletivista. Esse
processo de transição do capitalismo para o comunismo foi denominado por Marx como
socialismo ou ditadura do proletariado. O comunismo seria a etapa seguinte do processo de
transformação da sociedade, onde, não havendo mais a propriedade dos meios de produção,
não haveria mais as classes sociais e, portanto, nem mesmo o Estado – enquanto instrumento
de dominação de uma classe sobre a outra – não teria mais razão de existir.
Em síntese, pode-se dizer que, para Marx, a transformação social consiste em um
processo impulsionado pelas contradições que se estabelecem entre forças produtivas e
relações de produção. No início do desenvolvimento do modo capitalista de produção, as
relações de propriedade possibilitam o desenvolvimento das forças produtivas, mas, no
decorrer do processo, as próprias relações de propriedade tornam-se um estorvo ao seu
contínuo desenvolvimento. No bojo desse mesmo processo, desenvolvem-se as classes sociais
com interesses antagônicos e que lutam entre si para conservar ou para transformar a sociedade
existente. Conforme o desenrolar dessas lutas, ocorreria, então, a transformação ou a
conservação da sociedade.
3. Émile Durkheim (1858-1917): divisão social do trabalho e transformação social
Durkheim postula que, longe de existir uma transformação linear da humanidade, como
supõem alguns pensadores, cada sociedade possui sua evolução particular. Durkheim não
concorda com o postulado de Auguste Comte, segundo o qual, existe uma evolução geral do
gênero humano, que consiste numa realização completa da natureza humana. Para Durkheim, tal
progresso da humanidade não existe; o que existe, a única coisa que realmente é oferecida à
observação, são as sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem,
independentemente umas das outras. Nesta visão durkheimiana, cada povo constitui uma
individualidade e todas essas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se fundir
numa mesma série contínua, nem, sobretudo, numa mesma série única. A seqüência de uma
sociedade não poderia ser figurada por uma linha geométrica: ela se parece antes com uma árvore
cujos ramos se dirigem em direções divergentes (Durkheim, 1984a, p. 17-18). Entretanto, embora
se referindo às sociedades particulares e não à humanidade em geral, a nosso ver, Durkheim
concebe uma evolução linear da sociedade: de sua forma inferior, segmentar, cada sociedade
particular se transforma, necessariamente, em sociedade superior, orgânica.
Nas sociedades inferiores, o substrato social caracterizado por um sistema de segmentos
homogêneos e semelhantes entre si (Durkheim, 1984, p. 311), constitui-se o habitat natural da
consciência coletiva tida como "um conjunto mais ou menos organizado de crenças e sentimentos
comuns a todos os membros do grupo". (Durkheim, 1984, p. 150) Neste tipo de estrutura social,
os indivíduos, por não possuírem nenhuma especialização em suas atividades, assemelham-se
entre si nas suas maneiras de pensar, agir e sentir e, por isso, muito mais fácil é a penetração e a
permanência da consciência coletiva na consciência de todos os membros do agrupamento social.
Neste tipo de estrutura social, diz Durkheim (1984, p. 208), "a religião penetra toda a vida social,
mas é porque a vida social é feita quase exclusivamente de crenças e práticas comuns, que retira
de uma adesão unânime, uma intensidade muito particular". Nestas condições, a solidariedade que
garante a coesão social não é outra senão a do tipo "mecânica", isto é, uma solidariedade onde os
indivíduos, por não terem em suas consciências nada de pessoal e tudo de coletivo, atendem
mecanicamente à moral coletiva.
Com o desenvolvimento da divisão do trabalho, transforma-se não apenas o substrato
social, mas também a consciência coletiva e, com ela, a forma de solidariedade social. À medida
que a divisão e especialização do trabalho se expandem, os componentes da sociedade adquirem
condições para o desenvolvimento de suas individualidades e, com isso, o substrato social, de um
sistema de segmentos homogêneos e semelhantes, transforma-se num conjunto de elementos ou
segmentos diferenciados entre si. Com a expansão da divisão do trabalho, a estrutura da sociedade
não se constitui mais "por uma repetição de segmentos similares e homogêneos, mas por um
sistema de órgãos diferentes, cada um dos quais com um papel especial e que são, eles próprios,
formados por partes diferenciadas" (Durkheim, 1984, p. 211). Neste tipo de substrato social, não é
mais a consciência coletiva enfraquecida que garante a coesão social, mas a dependência que
passou a existir entre os indivíduos em virtude da divisão do trabalho. Trata-se, neste caso, de um
tipo de coesão social em que os indivíduos se mantêm unidos não em virtude de suas semelhanças
– que não mais existem – mas em virtude de suas diferenciações. Sendo, cada indivíduo ou cada
função, uma parte específica de um todo, um órgão de um organismo, os indivíduos ou suas
funções mantêm entre si relações de dependências recíprocas e, por isso, apesar de suas
individualidades, mantêm-se solidários.
Aos olhos de Durkheim, portanto, a própria divisão do trabalho é a responsável direta pela
nova forma de integração social. Apesar da divisão do trabalho promover o surgimento das
consciências individuais, ela própria cria a dependência recíproca entre os indivíduos. Se antes –
nas sociedades onde a divisão do trabalho quase não existia – os indivíduos pouco dependiam uns
dos outros para sobreviver, agora, com a divisão do trabalho, mais do que nunca a sobrevivência
do indivíduo depende da colaboração de seus semelhantes. Com a divisão do trabalho, cada
indivíduo ou cada grupo de indivíduos, transformou-se num órgão de um organismo social, agora
mais complexo. Na visão de Durkheim, cada categoria profissional surgida com a divisão do
trabalho, tem uma função específica a cumprir no organismo social e, no conjunto, cada uma
depende da outra para sobreviver: os pedreiros dependem dos professores, os professores dos
padres; os padres dos policiais; os policiais dos médicos, etc. Daí a terminologia utilizada por
Durkheim para denominar esta nova forma de coesão social: solidariedade orgânica – uma
solidariedade que nasce das diferenças existentes entre os indivíduos.
Os conflitos sociais que, a despeito da divisão do trabalho, permanecem na sociedade, são
explicados por Durkheim por meio do conceito de “anomia”. Em sua avaliação, os conflitos
sociais existentes nas sociedades contemporâneas se explicam pelo estado de anomia em que elas
se encontram, isto é, pela ausência de regras de convivência entre os diversos órgãos que
compõem o organismo social. A divisão do trabalho, aos olhos de Durkheim, deu origem a novos
órgãos que passaram a constituir o organismo social, mas, ao mesmo tempo, as funções que estes
órgãos deveriam cumprir não foram devidamente regulamentadas. Assim, os conflitos existentes
entre os diversos órgãos do organismo social ou entre os diversos indivíduos ou agrupamentos
sociais que compõem a sociedade, explicar-se-iam pela não definição da função, do papel que
cada um teriam a desempenhar na sociedade. Durkheim acredita que, se definidas essas funções,
se criadas as regras de convivência entre os diversos órgãos, a solidariedade orgânica passaria a
existir em sua plenitude.
As regras necessárias para o convívio harmônico dos diversos órgãos constituintes do
organismo social, no entendimento de Durkheim, deveriam ser criadas pelas associações
profissionais e não pelos indivíduos e nem tampouco pelo Estado. Durkheim considera que os
indivíduos são muito volúveis em seus interesses e isso dificultaria a criação das necessárias
regras duradouras de convívio social. O Estado, por sua vez, não estaria apto a criar tais regras,
pois, se encontrando distantes dos indivíduos, não poderia perceber as reais necessidades dos
cidadãos. Sendo assim, caberia às associações profissionais criar as regras de convivências entre
as partes constituintes da sociedade, pois estas entidades estariam suficientemente perto dos
indivíduos e, portanto, teriam melhores condições para compreenderem suas reais necessidades e
com isso, criar regras mais duráveis de convívio social.
Em síntese, a preocupação com a integração social constitui uma linha mestra que norteou
as investigações de Durkheim sobre o processo de transformação da sociedade. Preocupado com a
integração social, Durkheim preocupou-se mais em explicar como ocorre a coesão social do que
em explicar como ocorrem os conflitos sociais, as contradições e antagonismos existentes na
sociedade. Se através das noções de substrato social, consciência coletiva, exterioridade, coerção,
solidariedade mecânica e orgânica, etc., Durkheim trouxe contribuições importantes para a
compreensão da integração social, parece que estas noções pouco contribuem para a compreensão
dos conflitos sociais, das divergências de idéias e interesses que ocorrem entre os indivíduos e os
grupos sociais no interior da sociedade.
4. Max Weber (1864-1920): a força das idéias no processo de transformação social
Na concepção de Weber, a transformação da sociedade ocorre conforme se desenvolvem
as lutas entre as diversas ideologias, ou seja, entre as diversas visões de mundo. Na medida em
que, na concorrência, uma nova visão de mundo se destaca entre as demais e se propaga no meio
social conquistando novos adeptos, mais propensa ela estará a se instituir no mundo, portanto, a
conservá-lo ou a transformá-lo em conformidade com o sentido por ela postulado. Esta concepção
de transformação social elaborada por Weber, encontra-se estreitamente relacionada não só com a
sua noção de carisma, mas também com as noções de situação de classe e de posição social.
No entendimento de Weber, longe de ter sua origem na base material da sociedade, as
ideologias ou as visões de mundo – enquanto conjunto de conceitos e proposições coerentemente
articulados que visa explicar o mundo – são criações de indivíduos portadores de “carisma”, isto
é, portadores de “dons sobrenaturais” ou de “qualidades extraordinárias” para a criação de idéias
novas. Carisma, na definição de Weber, é uma propriedade individual e não uma propriedade
adquirida por determinado indivíduo sob determinados condicionamentos sociais. Como o próprio
Weber define o termo, carisma é uma "qualidade extraordinária de uma pessoa" (Weber, 1983a,
p. 340); dons considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos (Weber, 1983a, p. 223). É
por meio do carisma que o indivíduo – na qualidade de profeta, líder partidário, herói, etc. –
produz idéias inovadoras ou feitos extraordinários. É dessa forma que Weber concebe não só a
origem e evolução das ideologias particulares, mas também das grandes religiões mundiais –
hinduísmo, confucionismo, budismo, cristianismo, islamismo.
A forma pela qual Weber explica a origem e evolução da ética protestante, por exemplo,
constitui uma demonstração de suas convicções acerca da origem das visões de mundo e da
própria transformação social. Em conformidade com a noção de carisma elaborada por Weber,
a ética protestante – enquanto visão de mundo religiosa – tem sua origem nas qualidades
extraordinárias de determinado líder carismático. Particularmente no que se refere à doutrina da
predestinação, a ética protestante é, na opinião de Weber, obra das inspirações e dons
extraordinários de Calvino. Weber avalia que a própria natureza dos interesses religiosos de
Calvino é uma demonstração de que a sua doutrina é fruto de suas qualidades individuais e não
de condicionamentos sociais. O interesse religioso de Calvino, ao contrário do interesse
religioso de Lutero, por exemplo, "não estava voltado para os homens, mas somente para Deus"
e, justamente por isso, os seus interesses religiosos não poderiam derivar de sua experiência
religiosa e sim da necessidade lógica de seu pensamento" (Weber, 1983, p. 390).
A doutrina da predestinação postulada pela ética protestante calvinista – ao contrário do
que pensava o catolicismo – apregoa que não existem mecanismos reparadores de pecados
capazes de garantir aos indivíduos a vida eterna. Ao invés disto, Calvino propunha que alguns
homens foram definitivamente eleitos por Deus e outros que não o foram; que "alguns homens são
predestinados à vida eterna e outros são predestinados à morte eterna" (Weber, 1987, p. 69).
Segundo Calvino, diante da predestinação, inútil é agir com o propósito de buscar a salvação,
pois, de antemão, ou já se está condenado ou já se está absorvido. Assim, as pessoas deveriam
entender que o mundo existe não para a remissão de pecados ou de impurezas da alma, mas sim
para a "glorificação de Deus e somente para essa fim" (Weber, 1987, p. 75). Para certificar-se de
que é um predestinado, o indivíduo deveria considerar-se escolhido e combater suas dúvidas
quanto a isto. Calvino recomendava que, para alcançar autoconfiança na sua predestinação, o
indivíduo deveria ter uma intensa atividade profissional, pois isto lhe daria a certeza da graça
(Weber, 1987, p. 77). Diante da convicção de ter sido escolhido, o predestinado deveria direcionar
sua conduta para a perfeita realização da obra de Deus; deveria agir com zelo e eficiência no
cumprimento de suas tarefas, pois, dessa forma estaria demonstrando para si próprio que fora um
dos escolhidos e, ao mesmo tempo, cumprindo a sua única missão no mundo: a construção do
Reino de Deus.
O agir metódico e eficiente em suas atividades cotidianas com o propósito de atender a
Deus, levaria o adepto do protestantismo a transformar suas condutas tradicionais, afetivas e
irracionais em condutas cada vez mais racionais. A acumulação de riquezas que, para os católicos,
poderia ser um empecilho para a garantia da vida eterna, para os protestantes tornar-se-ia não só
uma indicação da graça de Deus, mas também a indicação da atribuição de uma responsabilidade
ao indivíduo. Neste caso, o rico, ao invés de sentir-se temeroso diante de parábolas cristãs, tais
como, é mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha que um rico entrar no reino do céu,
deveria ter a sua riqueza como uma demonstração, íntima, de que Deus o havia escolhido para a
vida eterna – uma escolha em que Deus lhe atribuíra a responsabilidade de administrar as coisas,
conservando-as integralmente e ampliando-as através de um infatigável trabalho (Weber, 1987 p.
122). Enfim, a doutrina da predestinação, segundo Weber (1987, p. 87), não é outra coisa senão o
"fundamento dogmático da moralidade puritana no sentido de uma conduta ética metodicamente
racionalizada".
Uma vez criada sob as inspirações carismáticas de Calvino, a ética protestante difundiu-se
no mundo em busca da conquista de adeptos, mas só obteve estes adeptos na medida em que
encontrou indivíduos com idéias afins com os seus postulados, ou seja, na medida em que
encontrou indivíduos cujos interesses materiais e ideais – derivados de suas situações de classe e
de suas posições sociais – possuíam alguma afinidade com o conteúdo daquela ética. As camadas
cívicas – artesãos, comerciantes, empresários ligados ao artesanato – que existiam no ocidente
moderno, particularmente na Inglaterra, foram as camadas sociais que, na concepção de Weber,
estariam mais propensas a aderirem à Ética Protestante. Os guerreiros, em decorrência de seu
estilo de vida específico, não desejavam um domínio racional da realidade, mas, ao contrário,
optavam pela idéia do destino incerto. As camadas hierocráticas, em virtude de sua posição
estamental, longe de aceitar a crença da predestinação, possuíam mais propensão para aceitar a
crença na cura das almas e a se distanciarem da busca individual da graça. As camadas de
funcionários públicos, em decorrência mesmo de sua posição social, possuíam mais afinidades
com as crenças que faziam ritualismos de seus cultos. As camadas de camponeses, por sua vez,
pelo fato de possuírem laços mais íntimos com a natureza, estavam mais inclinadas para a magia e
feitiçaria. Eram as camadas cívicas, ou seja, as camadas de artesãos prósperos, comerciantes e
empresários, que, apesar de todas as suas ambigüidades em relação às diversas religiões, mais
afinidades possuíam com as doutrinas que pregavam o racionalismo prático, portanto, camadas
que mais propensas estavam para incorporar a ética protestante e colocar em prática, a
racionalidade por ela postulada.
É com este entendimento que Weber procura demonstrar que as idéias exercem uma
influência decisiva na transformação social, ou seja, na transformação da comunidade em
sociedade, do feudalismo em capitalismo. O capitalismo – cuja característica básica é a
racionalidade das condutas dos indivíduos – nasceu na Inglaterra porque foi justamente neste país
que a ética protestante mais se proliferou. Evidentemente, o desenvolvimento do capitalismo
dependeu de outros fatores tais como o nível de desenvolvimento da divisão do trabalho, a
extensão do mercado, a estrutura social existente, etc. Entretanto, o impulso decisivo para o seu
nascimento só foi possível na medida em que o seu ideal racional encontrou indivíduos ou grupos
sociais predispostos a assumi-lo enquanto norma de conduta. A ética protestante, no entender de
Weber, foi o fator decisivo que contribuiu para o desenvolvimento dos interesses materiais e
ideais afins com o ideal de conduta racional exigida pelo capitalismo, portanto, para o próprio
nascimento do capitalismo na Inglaterra. Depois de vir à luz sob a inspiração dos dons
carismáticos de Calvino e, depois de penetrar em determinadas camadas sociais como forma de
conduta racional, a ética protestante – ainda que visasse simplesmente servir a Deus – criou o
ethos, a mentalidade afim com a racionalidade prática exigida pelo capitalismo.
O ideal racional, depois de implantado nas atividades econômicas, se expande para todos
os setores das atividades sociais – arte, arquitetura, educação, etc. – e torna-se uma norma de
conduta generalizada que se impõe a todos os membros da coletividade e não apenas a
determinadas camadas sociais. Quer dizer, depois de nascer sobre a influência da ética protestante,
o capitalismo se desenvolve autonomamente, isto é, passa a basear-se em seus próprios
fundamentos mecânicos e a determinar, com uma força irresistível, a vida de todos os indivíduos
que nasceram nesse mecanismo (Dawe, 1980, p. 518-522). Este processo de racionalização ou de
desencantamento do mundo – processo em que o amor, o ódio, e todos os elementos pessoais,
irracionais e emocionais são eliminados da conduta do indivíduo – torna-se um processo,
universal e inevitável, de eliminação da agência humana e de solidificação das relações sociais
racionalmente orientadas. Neste sentido, diz Weber (1987, p. 131), o puritano queria tornar-se um
profissional e todos tiveram que seguí-lo; ele contribuiu para a formação de uma ordem social que
atualmente determina de maneira violenta o estilo de vida de todo o indivíduo”. Enfim, na opinião
de Weber, a conduta racional difundida pelo protestantismo – conduta que, de início, apenas em
determinadas atividades e camadas sociais foi adotada pelos indivíduos – transforma-se, universal
e irresistivelmente, em um padrão de conduta racional, em consolidação nas instituições cada vez
mais burocratizadas, em uma gaiola de ferro.
5. Considerações finais
As discussões acima realizadas pretenderam demonstrar como a sociologia clássica –
Marx, Durkheim e Weber – conceberam a dinâmica social. Pôde-se observar que, para Marx, o
processo de transformação social se encontra estreitamente relacionado com as contradições que
ocorrem na base material da sociedade: com as contradições que se manifestam entre as forças
produtivas e as relações de produção e com as lutas classes. Em cada contexto histórico, a classe
dominada da época seria o agente da transformação social na medida em que adquirisse
consciência das contradições sociais e na medida em que se organizasse para a conquista do poder
político enquanto instrumento promotor das mudanças. Além disso, foi possível observar também
que, para Durkheim, a evolução social ocorre conforme se expandem a divisão e a especialização
do trabalho. Com a divisão do trabalho ocorre o enfraquecimento da consciência coletiva; o
nascimento e desenvolvimento das individualidades, mas nem por isso, a sociedade se desintegra.
Se antes as semelhanças que havia entre os membros da coletividade os mantinham,
mecanicamente, integrados, agora, é a divisão do trabalho que, ao torná-los diferentes e
dependentes uns dos outros, os mantém organicamente integrados entre si. Weber, por sua vez,
explica a transformação social pelas lutas que ocorrem entre as diversas visões de mundo. Quer
dizer, para Weber, a transformação social ocorre na medida em que uma dada visão de mundo
encontra adeptos com interesses ideais e materiais afins e se implanta no mundo tendo em vista a
sua conservação ou a sua transformação.
6. Bibliografia
DAWE, Allan. Teorias da ação social. In: BOTTOMORE, T. e NISBET, R. História da análise
sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
DURKHEIM, Emile. A ciência social e a ação. São Paulo: Difel, 1975.
DURKHEIM, Émile. A divisão social do trabalho. Lisboa: Presença, 1984.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 1984a.
DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro: Forense/Universitária, 1970.
DURKHEIM, Émile. Sociologia. São Paulo: Ática, 1989.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa: Presença, 1989.
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1987.
MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. In.: LASKI, Harold, O manifesto
comunista de Marx e Engels. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.
WEBER, Max. Sociologia. São Paulo: Ática, 1991.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1987.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1991.
WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Economica , 1983.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
Download

A transformação social na visão da sociologia clássica